A sedução necessária: como as fantasias parentais moldam a sexualidade infantil
1. Sedução e fantasia na perversão
Larissa Bacelete1
Introdução
O trabalho realizado na clínica do Projeto CAVAS2 nos motivou a buscar maiores
esclarecimentos em relação às organizações perversas. As dúvidas que surgiam durante o
acompanhamento destes casos versavam sobre as possibilidades de repetição dos atos de
violência sexual e/ou física por quem a sofreu em períodos muito precoces da vida,
perpetuando um ciclo de abuso que assistíamos com frequência no seio da mesma
família. Ouvindo os relatos de pais e avós que alegavam ter passado por experiências
muito parecidas com as que vitimizavam agora suas crianças, passamos a nos interrogar
sobre esta reprise que parecia aprisionar algumas gerações em reedições sombrias do
mesmo drama.
Encontramos muitas pesquisas que evidenciam as reverberações traumáticas do
abuso sexual, apontando, por exemplo, que mulheres que sofreram este tipo de violência
na infância, ao se tornaram mães, tendem a escolher parceiros que são abusadores em
potencial, ou a exporem seus filhos justamente à proximidade com o homem que foi seu
próprio agressor (Fuks, 2005, apud Bacelete, França & Roman). Também nos
interessamos pelo conceito da compulsão à repetição, tentando relacionar estes fatos com
o que Freud (1920) afirmou estar para além do princípio do prazer.
No entanto, algumas inquietações não se dissiparam apenas com a aproximação
entre a pulsão de morte e o abuso sexual transgeracional. Fomos percebendo que o
discurso dos pais sobre a violência perpetrada aos filhos era atravessado por certos
“espelhamentos”, tão obscuros quanto impossíveis de serem ignorados. Diante desta
situação, não tínhamos dúvidas de que estes nódulos que uniam silenciosamente pais e
filhos contribuíam, por exemplo, para a eclosão de comportamentos sexuais agressivos
nestes últimos, tornando-os algozes de crianças menores, na escola ou em casa.
1
Psicóloga (UFMG), pesquisadora do Projeto CAVAS/ UFMG, mestranda em Estudos Psicanalíticos no
Departamento de Psicologia da UFMG.
2
O Projeto CAVAS é um projeto de pesquisa e extensão realizado na UFMG desde 2005, voltado para o
atendimento psicológico a crianças e adolescentes que sofreram abuso sexual, além de ser um pólo de
investigação e disseminação de conhecimentos sobre a problemática da violência sexual infantojuvenil e
suas repercussões no psiquismo das vítimas.
2. 2
Apareciam também na estranha postura de extrema passividade que algumas crianças
adotavam, imitando o agressor e introjetando o sentimento de culpa por seus atos, sendo
incapazes de se defenderem ou reagirem aos maus tratos sofridos (França & Mendes,
2010). Ou ainda, tal “ruído” da fala dos pais, para usar a expressão de Laplanche, podia
ser ouvido nas palavras, gestos e comportamentos do infante nas poucas sessões nas
quais o tema da violência sexual podia ser tratado. De onde vinha este barulho, senão das
fantasias parentais sobre a sexualidade? Como penetravam o psiquismo infantil, a ponto
de encontrarem na criança de hoje um palco onde eram encenados traumas de outra
geração?
Estas observações encontraram respaldo teórico nas contribuições de Joyce
McDougall sobre a sexualidade perversa, especialmente em sua hipótese da criação
sexual como maneira de sobreviver às ameaças advindas do excesso que caracteriza as
relações entre infante e figura materna nestes casos.
A teoria laplancheana, destacando a primazia da alteridade na constituição
psíquica da criança, nos permitiu ver nas declarações dos pais fragmentos dos fantasmas
que rondam as relações familiares. Este ponto nos pareceu de suma importância em nossa
abordagem do tema da perversão, já que constatávamos na clínica a participação destes
conteúdos parentais nas expressões da sexualidade infantil.
A grande incidência da repetição nos casos de abuso sexual infantil demonstra a
relevância da investigação do psiquismo perverso e de seus trilhamentos pulsionais. O
caráter compulsório deste, a prevalência da atuação em relação à fantasia e à elaboração
demandam certa urgência, não só na criação de modos de compreender o funcionamento
deste arranjo psíquico, como também na abertura de possibilidades de intervenção nestes
comportamentos, interrompendo os ciclos de violência que atingem mais e mais vítimas.
Apesar de o abuso sexual ser um tema de extrema importância no cenário social,
pensamos que o estudo sobre as perversões engloba uma dimensão que ultrapassa a
experiência deste tipo de violência, tocando em questões tão básicas e complexas como
as primeiras relações entre criança e cuidador. Faremos então um breve percurso pela
visão laplancheana deste vínculo primário, para em seguida demonstrar, com o a ajuda de
Gerard Bonnet como as fantasias do adulto podem transformar uma sedução de vida, em
sedução mortífera, regida pela lógica da vingança. As contribuições de McDougall serão
analisadas a partir da sedução da figura materna.
3. 3
Sedução necessária
Pois não se trata mais exatamente de pura realidade
fatual, mas de efetividade, categoria que nos leva
além da contingência e da peripécia: trata-se de uma
sedução necessária (musste, verbo que marca o
caráter obrigatório da ação materna) inscrita na
própria sedução. (Laplanche, 1988: 116)
Para Laplanche, é preciso pensar na existência de uma passividade radical no
início da vida, quando o bebê, ainda desprovido de uma instância egóica bem delimitada,
é exposto a um adulto, portador de fantasias inconscientes. Ao retomar a teoria freudiana
da sedução3, o autor afirma que as solicitudes maternas na convivência com a criança
veiculam conteúdos sexuais que agem silenciosamente, erotizando-a nos momentos de
satisfação de suas necessidades básicas. Estes cuidados dispensados ao corpo da criança
funcionam, juntamente com o investimento afetivo do bebê pelo adulto, como uma forma
de sedução, que ocorre à revelia do próprio cuidador, já que se passa no nível
inconsciente.
Podemos entender a sedução protagonizada pelo adulto neste primeiro tempo
pensando em seu duplo aspecto: se por um lado a instauração da pulsão promove o
desejo, suscitando investimentos objetais como forma de efetuar ligações neste circuito
de energia psíquica, por outro lado, é também a ação do sexual que acarreta angústia e
desprazer, quando não pode ser balizada pelas ferramentas simbólicas das quais a criança
dispõe.
A Teoria da Sedução Generalizada, permite que retornemos ao conceito de apoio
tão trabalhado em Freud4, substituindo seu viés auto-conservativo, sobre o qual a
sexualidade estaria assentada, pela idéia de um trauma externo, oriundo da ação do
adulto, cujo elemento de efração é essencial, e provoca uma excitação intensa, matriz da
pulsão que circulará no psiquismo incipiente da criança. Deste modo, compreendemos o
pensamento do autor ao dizer que “a verdade do apoio é a sedução” (cf. Vida e morte em
psicanálise, 1985), pois se desejamos aproveitar a metáfora freudiana, é preciso tomá-la
como a forma com que a manutenção dos cuidados básicos engendra a pulsão neste
3
No artigo “Da teoria da sedução restrita à Teoria da Sedução Generalizada” (1988), Laplanche retoma a
Teoria da Sedução de Freud, bem como acompanha os processos de recalcamento da importância da
noção de sedução ao longo da obra freudiana. Apesar de ser um ponto de extrema relevância, a análise
deste artigo ultrapassa os limites deste trabalho.
4
Desde, por exemplo, seus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905).
4. 4
organismo. Tais conteúdos, mensagens enigmáticas a serem traduzidas pelo psiquismo
infantil em formação, funcionarão como inscrições sobre as quais as fantasias serão
construídas, exigindo novas representações.
O excesso da mensagem adulta, tanto consciente quanto inconsciente, e seu
encontro com o psiquismo infantil provocam neste sensações desprazerosas, de invasão,
fratura, e excitação. Entretanto, esta exposição total da criança será escamoteada ao
longo da constituição psíquica, pois o recalcamento incidirá exatamente sobre tais
conteúdos angustiantes: ter o corpo penetrado, fragmentado pela ação do outro. Enfrentar
esta passividade infantil é o desafio ao qual o ego do sujeito será lançado, através dos
esforços de simbolização. Aquilo que resta como impossível nesta operação tradutiva, o
recalcado, fonte da pulsão sexual, agirá produzindo um ataque interno ao organismo,
colocando o indivíduo sempre em uma posição de sujeição, análoga à deste tempo
primitivo. Portanto, esta dor, primeiramente de origem externa, torna-se o núcleo das
fantasias sexuais do sujeito, à medida em que ele consegue efetuar o recalcamento da
posição primária, através dos movimentos identificatórios e de constituição egóica. A
estrangeiridade da mensagem, agora introjetada, permanece, agindo daí em diante como
corpo estranho dentro do próprio sujeito, de onde emanam os desejos mais disruptivos e
egodistônicos.
Parece-nos extremamente clara a importância atribuída por Laplanche ao papel do
outro, e especialmente, da fantasia que este outro produz na sexualidade infantil. E
podemos chegar a afirmar que, de acordo com a Teoria da Sedução Generalizada, a
origem da sexualidade é sempre perversa, masoquista, pois se vincula a este
descentramento do sujeito, que se encontra totalmente submetido ao adulto. Outro ponto
importante a considerar é o prazer que atravessa esta submissão, por mais angústia que
possa acarretar para a instância egóica. Prazer por se relacionar aos primórdios, não ao
tempo “auto-erótico”, conforme apontava Freud5, mas a esta etapa de implantação da
libido no sujeito através dos cuidados externos. Lembramos aqui, da contribuição de
Stoller (apud Ribeiro, 2007:27), sobre a feminilidade passivamente recebida pela criança
através da imposição do corpo excessivamente terno da mãe, ou seja, de um poder
exterior muito gratificante, ao qual o infante não se opõe, e nem desejaria fazê-lo.
A ação do cuidador participa ativamente da formação das fantasias infantis
inconscientes, e não somente pela posição assimétrica entre o adulto, portador de um
5
Também nos Três Ensaios.
5. 5
inconsciente, e a criança, cujo psiquismo é ainda precário e desorganizado, mas também
pela forma pela qual este outro exercerá a sedução. Laplanche afirma:
As noções de zona erógena, de fonte somática da pulsão, de pulsão parcial anal,
oral ou fálica, não podem ser liberadas dos impasses aos quais nos convida uma
fisiologia temerária, se não lembrarmos que estas zonas, lugares de trânsito e de
trocas, são antes de tudo e primordialmente os pontos de focalização dos cuidados
maternais. Cuidados de higiene, motivados conscientemente pela solicitude
maternal, mas onde as fantasias de desejo inconsciente funcionam plenamente.
Enfim, é a partir do solo da sedução originária, e da sedução precoce, que é
possível atribuir toda a sua importância aos fatos da sedução infantil, para fazê-
los sair, enfim, da espécie de gueto teórico onde estão confinados há anos.
(Laplanche, 1988: 119-120)
Tal ressalva quanto à visão biologicista da pulsão, muitas vezes encontrada no próprio
Freud, ilustra a idéia de Laplanche acerca da efetividade da sedução generalizada, ainda
que o autor não esteja falando sobre a realidade desta sedução, no sentido de uma
sedução perversa, ou seja, de uma relação de pedofilia.
Já no artigo “Implantation, intromission”, a sedução originária é debatida de
acordo com a maneira pela qual o adulto introduz as mensagens enigmáticas no
psiquismo da criança. Segundo Laplanche (1992), a implantação do sexual é um processo
cotidiano, mais próximo da neurose, que possibilita ao sujeito que o sofreu uma reprise
ativa, ou seja, alguma tradução. Sua vertente mais violenta, a intromissão, provoca um
curto-circuito nas instâncias psíquicas que estão se formando, instalando no interior da
criança um elemento resistente a qualquer metábole. Embora os dois processos tenham
ligações com o envelope corporal e seus orifícios, o autor salienta a proximidade da
implantação com a superfície, o conjunto do corpo e sua periferia perceptiva, enquanto a
intromissão se refere às pulsões orais e anais.
A partir daí, poderíamos entender as práticas orais e anais em suas formas mais
sádicas, tão comuns nas perversões, como um reflexo desta invasão arrebatadora do outro
ao corpo e psiquismo infantil? Belo (2010) sugere que o bebê visto como orifício pelos
pais tem mais probabilidade de desenvolver uma psicose ou perversão, e em
contrapartida, o bebê “inteiro”, cuja libidinização do adulto é distribuída na totalidade do
corpo, encontra-se mais perto da neurose. Deste modo, nos perguntamos se a
superexcitação das zonas oral e anal revelam a incidência pungente da alteridade no
aparato físico do infante. A inauguração duplamente traumática da sexualidade do
perverso, não apenas no sentido amplo do trauma, fundador do inconsciente, mas
também em sua versão dissociativa e compulsória, imprime sua marca na subjetividade e
6. 6
no modo de expressão sexual do indivíduo, cujas possibilidades de satisfação giram em
torno do gozo desta posição de ser invadido, ou ainda, como sustenta Belo, de situar-se
em apenas um dos lados desta díade penetrante-penetrado.
Como é possível notar, a sedução originária tem um papel fundamental na
fundação do psiquismo do bebê, inaugurando as instâncias psíquicas a partir do trauma
que ocasiona o recalque primário. Além disso, a sedução instaura no psiquismo infantil
significantes dos quais emergirão as pulsões, fornecendo, portanto, material para a
expressão da sexualidade perversa e polimorfa.
Sedução mortífera
Gerard Bonnet (2008), psicanalista francês que dedicou muitos de seus trabalhos
ao estudo das perversões, salienta o papel fundamental da sedução nos comportamentos
sexuais desviantes. O autor complexifica a discussão sobre a pedofilia sustentando que,
de acordo com as estatísticas6, apenas trinta por cento dos agressores sexuais declaram
ter sido vítimas de abusos na infância. Isso invalidaria a idéia bastante simples, mas
comumente aceita, de que o perverso atuaria com sua vítima de maneira semelhante à
qual foi submetido outrora. Mas, se nem todo perverso/pedófilo passou por experiências
de agressão sexual nos primórdios da vida, a que devemos atribuir tal vicissitude da
pulsão?
Bonnet argumenta que todos nós tendemos a acreditar nesta falsa explicação
porque de algum modo sentimos que fomos, de uma forma ou de outra, seduzidos e
agredidos um dia. Para o autor, é como se nos identificássemos com este romance,
pensando: “Eu também já fui seduzido (a), sei o que é isso. No caso dele [perverso], a
experiência foi mais grave, é normal ter reagido desta maneira”(Bonnet, 2008: 31)7.
Portanto, o agressor sexual tem certa razão quando se defende dizendo ter sido seduzido,
na medida em que todos nós o fomos. Entretanto, este fato não implica que tal
experiência seja por todos replicada, de modo tão brutal, tomando como objeto outras
crianças. Na verdade, segundo Bonnet, a maioria das vítimas de abuso sexual e de
agressões físicas severas durante a infância desenvolveria neuroses, apresentando
6
B. Cordier (1999), Sexualité agie entre enfants et parents, Ed. Frison-Roche (apud Bonnet, 2008).
7
Tradução nossa.
7. 7
quadros de depressão, o que dificultaria que exibissem qualquer reação mais ativa em
relação ao trauma sofrido.
O que diferenciaria então estes sujeitos dos agressores sexuais, que são dotados
da capacidade de agir em decorrência de um sofrimento psíquico (pois não acreditamos
na falácia de que na perversão não existe sofrimento ou mesmo afeto em jogo)? De
acordo com o autor, mais do que o trauma da sedução ou do abuso sexual, o que é
desorganizador para os futuros desviantes é a ruptura de um laço libidinal de forma
abrupta. Baseado em outros pesquisadores que já teorizaram sobre o tema, como Searlers
(1956), Tomassini (1992), Lecraire (1975) e Rosolato (1987), Bonnet sugere que o
perverso foi uma criança seduzida, excitada pela ação do cuidador, mas rapidamente
abandonada à própria sorte, de modo que a tarefa de mediação simbólica, de criação de
meios mais psíquicos e menos sintomáticos para lidar com as pulsões não foi exercida
pelo adulto. Neste estágio tão precoce do desenvolvimento, deixada a sós com estas
mensagens nela enxertadas, mensagens excitantes cujas traduções não são possíveis
naquele momento, a criança irá privilegiar um modo de expressão pulsional para tentar se
livrar deste excesso, e, ao mesmo tempo, tentar restabelecer o contato com o outro.
Se a fratura na relação entre o infante e o adulto ocorrer no momento em que as
pulsões sádicas estiverem sendo investidas, o sujeito será levado a se fixar sobre este
ponto, buscando, através da erotização, inverter tal abandono. O desejo de vingança vem,
portanto, mascarar a angústia de separação arcaica e profunda. O agressor reconstitui, de
forma brutal e muito mais grave, a sedução à qual foi submetido, petrificada neste tempo
da ausência do outro, pelo menos do outro na função do que poderíamos chamar de “ego
auxiliar”.
Deste modo, uma grande decepção se encontra por trás da lógica da vingança.
Segundo Bonnet, o perverso é “possuído” pelos objetos maus internos, pelos restos
intraduzíveis da sedução que o habita, e impõe a um novo objeto a caricatura desta
sedução que o frustrou. Assim, transforma uma sedução de vida, em sedução mortífera.
O cenário da atuação perversa geralmente é cuidadosamente arranjado,
apresentando algumas características comuns, eleitas pelo sujeito para compor a cena que
deseja criar. Esta montagem não serve apenas para siderar a vítima, para arrebatá-la
nesta atmosfera, mas também para transmitir uma mensagem. Nas palavras do autor:
Isso [a cena montada pelo perverso] não é apenas uma repetição do passado, mas
é também, ao mesmo tempo, uma repetição do presente inconsciente, uma
8. 8
repetição teimosa, insistente, para colocar em cena certos significantes que estes
sujeitos não podem exprimir ou formular de outra maneira. (Bonnet, 2008: 40) 8
Esta constatação abre uma via para a discussão acerca do trabalho analítico que pode ser
realizado com estes sujeitos, pois se é verdade que o espaço onde se passa a atuação
compulsiva perversa conserva um potencial de interpretação, na medida em que contém
significantes como mensagens destinadas ao outro, a tarefa do analista seria a de
direcionar o olhar para este ato e toda sua ambientação, voltando ainda sua escuta para o
olhar do sujeito em relação a tal cena.
Nós percebemos que, se ele [perverso] apresenta seu ato como uma resposta à
sedução do adulto, como uma forma caricatural de mostrar a sedução excessiva
ou de devolvê-la, de maneira pior, isso é, de fato, uma invenção desesperada para
exercer a sedução à sua maneira, e reviver intensamente aquilo que foi
interrompido, tentando uma passagem à força em direção aos outros. É na medida
em que se facilita essa passagem ao nível dos significantes que ela não mais se
produzirá no nível dos atos. (Bonnet, 2008: 41) 9
O analista que trabalha neste campo se vê, então, diante de duas vertentes: a da explosão
pulsional cega e vingativa, sob a égide dos objetos primários, que o sujeito não pode
controlar; e a dos elementos significantes em jogo no ato, através dos quais devem ser
exploradas tentativas de comunicação, única maneira de realizar um deslocamento da
lógica da vingança para a das mensagens.
Sedução materna
A psicanalista Joyce McDougall (1997) denunciou o sentido pejorativo da palavra
perversão, e propôs que em seu lugar se utilizasse o termo neo-sexualidade. Este indica
uma das principais idéias da autora, a de que o perverso não é apenas um sujeito
desprovido da capacidade de empatia, infrator da Lei paterna que insiste em recusar
desde os tempos do conflito edípico. A autora aponta para uma interessante faceta da
perversão: a criação.
Se a autora insistia em falar sobre a invenção no cenário sexual destes sujeitos,
não era apenas com o intuito de obter uma perspectiva mais positiva da questão da
perversão, mas também por acreditar que a construção da identidade sexual é a pedra
angular sobre a qual repousa toda a subjetividade do perverso. Em outras palavras, a
8
Tradução nossa.
9
Idem.
9. 9
invenção da neo-sexualidade vem combater o sentimento de vazio interior e de derrocada
do ego, quando os traços de representação do objeto materno não puderam ser
introjetados, gerando falhas na simbolização e na delimitação das fronteiras corporais.
Em sua experiência clínica, a análise de pacientes neo-sexuais rendeu a
McDougall (1983) a constatação de certo padrão familiar, que consistia na presença
invasiva de uma mãe dominadora, e ausência de uma figura paterna capaz de barrar o
controle desmedido desta em relação à criança. A idealização da figura materna
onipotente, percebida pela autora nestes casos, tem um importante papel na economia
psíquica perversa. Ela preserva recalcados o ódio e o temor do infante a esta mãe que
deseja devorar, dominar, esvaziar o bebê de seus conteúdos, transformando-o em uma
espécie de marionete que ela possa regular a seu bel-prazer. O ingresso de um terceiro
nesta relação é bastante dificultado pela desqualificação do pai ou de qualquer outro
personagem que faça as vias de agente da separação entre mãe e criança, ficando esta
entregue aos ditames da figura materna. A autora aponta como consequência desta
perturbação inicial, uma grande falha na erotização do corpo do infante, indicando que a
vivência erótica parece ser sentida como algo proibido devido à atitude castradora da
mãe.
Para melhor compreender as teorizações de McDougall acerca da perversão, é
preciso que nos debrucemos sobre um conceito winnicottiano que fora essencial para o
desenvolvimento destas idéias. Estamos falando dos fenômenos transicionais, que
Winnicott define como um terceiro espaço de experimentação, um lugar que “representa
a transição do bebê de um estado em que este está fundido com a mãe para um estado
em que está em relação com ela como algo externo e separado” (Winnicott, 1975: 30).
Os fenômenos transicionais ocorrem no primeiro semestre de vida da criança, por volta
do quarto mês, e consistem numa tentativa de reconhecer o objeto como não-eu, embora
ainda de forma precária. Trata-se do intervalo entre a pura subjetividade do infante e o
reconhecimento da realidade externa. Este progresso começa pela manipulação auto-
erótica, com a criação de brincadeiras que permitam ao infante explorar as fronteiras
corporais, e posteriormente se amplia para o uso de brinquedos ou objetos que adquiram
o estatuto de defesa contra a ansiedade, principalmente em relação à separação do corpo
materno.
O objeto transicional, escolhido pela criança para simbolizar esta intersecção eu-
outro é afetuosamente investido, e deve permanecer disponível, sempre da mesma
forma, até que seja gradativamente destituído de importância, quando perder sua função
10. 10
ao longo do desenvolvimento da criança. Segundo Winnicott (1983), o papel da mãe
nesta operação é o de proporcionar ao bebê uma experiência ilusória de que o seio lhe
pertence, ou de que a realidade está sob o controle mágico e onipotente do filho. Pouco
a pouco, um movimento contrário, de desilusão, começa a ocorrer, na medida em que o
bebê desenvolve confiança no ambiente externo e pode experimentar as primeiras
frustrações que conduzirão ao desmame.
No caso da perversão, a atitude invasiva da mãe, seja motivada por suas
inseguranças e carências internas, ou pelo desejo de dominar a criança, entrava o
processo de introjeção dos objetos bons e apaziguadores, visto que o intervalo
necessário para a construção do espaço transicional encontra-se violado pela presença
maciça do objeto real. Desta maneira, a criança buscará compulsivamente um objeto
externo capaz de suprir o vazio em seu mundo interno. Este objeto de transição,
diferente do objeto transicional, representa o fracasso da função do terceiro espaço
caracterizado por Winnicott, já que é sua presença física que é incessantemente
procurada pelo sujeito, em oposição a seu uso simbólico. A vivência compulsória da
sexualidade perversa encontra aí suas raízes: a cena primária inventada pelo desviante
tem de ser repetida a fim de resguardar os contornos egóicos e corporais, fragilizados
diante do laço angustiante com o objeto primário. Nas palavras da autora:
A eterna busca do pai, escudo defensivo contra a mãe onipotente, contribui para
dar à perversão um caráter compulsivo, e fornece à estrutura psíquica perversa
um amparo contra a psicose, ao mesmo tempo em que atesta a sua fragilidade
intrínseca. Aquilo que se faz ausente no mundo interno é procurado num objeto
ou situação exteriores, pois uma falha da capacidade de simbolização provocou
um vazio na estrutura edipiana. Este fracasso diz respeito ao papel do pênis
paterno e à significação da cena primitiva. A dissolução de certos elos
associativos tende a enfraquecer, ao menos neste terreno, a relação do sujeito com
a realidade, e conduz a um desfecho “psicótico” do conflito edipiano e da
angústia de castração. Esta “solução” é, por sua vez, erotizada, e o sujeito
encontra simultaneamente uma resposta para o problema da descarga instintiva.
(McDougall, 1983: 37-38)
A incapacidade materna de propiciar a construção deste local fronteiriço, que
marca a passagem entre a extrema dependência do bebê, e seus gradativos ganhos em
direção à autonomia, compromete a simbolização de certos limites, colocando em xeque
a capacidade do sujeito de se sentir vivo e real quando o objeto não se encontra presente.
O pensamento de McDougall parece consoante ao de alguns autores
supracitados, como Searlres e Bonnet, pois para ela a criação sexual perversa
representa uma tentativa de contornar as angústias castrativas mais arcaicas, como a
11. 11
separação entre o bebê e o corpo materno, a ameaça de desmoronamento do eu, ou a
mortificação narcísica decorrente da ausência do objeto primário. Tais sensações são
evitadas através da construção neo-sexual, que pode ser entendida como uma espécie de
garantia que o sujeito tem de sua existência a despeito do outro todo-poderoso das
primeiras relações objetais. Assim verifica-se a existência de um duplo papel da cena
primária representada na atuação do perverso. Por um lado, ela é uma formação
identitária que visa refrear a dominação da figura materna, elegendo na realidade
externa um substituto fálico para a função paterna malograda. Sendo assim, o exercício
da atividade sexual desviante é a única forma que o sujeito encontra de impedir que
todos os seus conteúdos internos sejam apropriados pelo outro, guardando sua
descoberta erótica como um segredo tão importante quanto sua sobrevivência psíquica.
O fetiche, o sadismo, o masoquismo, a pedofilia, e outras formas de arranjo sexual
entram na organização desviante com este propósito. Por outro lado, a encenação
perversa guarda alguns vestígios desta sujeição ao outro das origens, representando
também a relação incestuosa com este objeto.
Toda esta problemática na esfera das fronteiras faz com que o infante introjete
uma imagem frágil e mutilada de si mesmo. A invasão devastadora do outro deixa um
legado de dependência extrema e de angústias que assolam o sujeito nos momentos em
que a compulsão sexual parece falhar em sua função de sustentáculo narcísico.
Sedução perversa
Contrapondo as idéias de Laplanche e Bonnet às de McDougall, percebemos
pontos que as aproximam e outros que as fazem divergir. Quanto às semelhanças, é
nítido que, mesmo não explorando o tema da sedução propriamente dita, McDougall
atribui grande importância à função da figura materna na construção de uma sexualidade
perversa. É a invasão desta que povoará o universo pulsional da criança de angústias
esmagadoras, de temores de destruição de seu corpo e psiquismo. Portanto, as fantasias
que governam a criação da neo-sexualidade e a atuação perversa são resultado destes
medos arcaicos oriundos das relações com o objeto primário. Além disso, a angústia de
separação do corpo materno também parece aceita, tanto por McDougall, quanto por
Bonnet.
12. 12
As dissonâncias entre a autora e a corrente laplancheana se fazem notar, entre
outros, pela ênfase nos processos de introjeção (e posteriormente identificação) dos
objetos bons. A idéia de que a criança apresentaria dificuldades para introjetar estas
representações, devido ao fracasso dos espaços de transição e da entrada do terceiro,
demonstra que o vetor dos movimentos psíquicos parte da criança, e segue em direção ao
adulto. Na visão de Laplanche, e por consequência, de Bonnet, é a atuação sedutora - e
por que não dizer, perversa - do adulto, intrometendo a sexualidade polimorfa de suas
fantasias inconscientes no infante que o priva da possibilidade de traduzir tais conteúdos
de maneira minimamente satisfatória, gerando uma espécie de curto-circuito em seu
psiquismo. A dificuldade de introjeção não pode ser atribuída à criança, primeiramente
porque não cabe a ela a tarefa de capturar o outro neste momento. A alteridade lhe é
imposta, o adulto “se intromete” em seu aparelho psíquico antes que qualquer ação possa
ser efetuada pelo infante.
Se concordarmos com esta premissa, é inevitável que tenhamos que reverter o
foco de nossa pergunta, interrogando sobre a forma pela qual o outro apreende, introjeta,
identifica esta criança... Trata-se de uma falha neste processo de designação do sujeito
pelo adulto? Não estaria esta dificuldade de identificação do lado dos pais, especialmente
da figura materna? O uso indiscriminado do corpo da criança como território próprio não
seria uma demonstração da incapacidade de reconhecer ali um sujeito, uma pessoa com
necessidades e desejos que ultrapassam a função de objeto obturante das fendas
narcísicas parentais?
Deste modo, pensamos que na perversão a criança é identificada, pelo adulto,
com o que há de mais desorganizador na sexualidade deste, com as fantasias de sedução
não simbolizadas, restos não traduzidos das experiências originárias de descentramento.
Quanto ao abuso sexual: as hipóteses de Bonnet acerca da fragilidade do
argumento da vitimização dos agressores no passado parecem-nos pertinentes. Após este
percurso teórico, acreditamos que a manifestação da sexualidade perversa não deve ser
tomada como mera reprise de uma vivência real. A fantasia oriunda do tipo de sedução, o
laço afetivo com o objeto primário, bem como a suspensão desta ligação, também são
importantes para a determinação – ou não – de uma sexualidade perversa. Neste ponto
McDougall também estaria de acordo, já que sempre procurou destacar o trabalho de
criação contido na sexualidade desviante. A interação de todos estes elementos irá
concorrer para a eleição, pelo sujeito, de um modo fixo e compulsório de viver a
sexualidade, ou de saídas mais comprometidas com a palavra e com a simbolização.
13. 13
O que se pode depreender deste tema até o momento é que a resistência em
oferecer ao perverso/abusador outras vias de comunicação que não a do ato, aprisiona
este sujeito no funcionamento ancorado na vingança, na reedição da frustração
vivenciada precocemente. Acreditar que uma escuta pode deslocar tal comportamento,
como o propõe Bonnet, revela-se uma esperança de que na clínica não nos deparemos
mais com tanta frequência com a devastação que a violência sexual causa no psiquismo
incipiente da criança.
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