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In Caria, Telmo (org.) (2003), Metodologia e Experiência Etnográfica em Ciências
Sociais. Porto: Afrontamento (pp. 61-76).
UM SOCIÓLOGO NA FÁBRICA:
para uma metodologia de envolvência social
Elísio Estanque
Centro de Estudos Sociais
Faculdade de Economia
da Universidade de Coimbra
A metodologia, por mais sofisticada que seja, não pode ser tomada separadamente
dos restantes procedimentos científicos e do processo global de construção da pesquisa
(Schutz, 1970: 315; Bourdieu, 1973: 88). Convirá, por isso, sublinhar que o trabalho de
―observação participante‖ que levei a cabo numa fábrica de calçado só adquire pleno
significado no quadro das preocupações analíticas e dos pressupostos teórico-
epistemológicos inerentes a esse projecto de pesquisa. Centrado nos processos de
estruturação e fragmentação da classe trabalhadora da região do calçado, o estudo
procurou analisar as práticas sociais no espaço produtivo à luz da sua vinculação às
identidades comunitárias face ao impacto das transformações sociais e históricas que
acompanharam o processo de industrialização na região (Estanque, 2000) 1.
Este texto pretende, por um lado, dar conta das principais preocupações de ordem
metodológica que acompanharam a pesquisa de terreno e, por outro lado, divulgar
alguns aspectos do quotidiano fabril por mim experienciados ao longo do período em
que permaneci na empresa. Além de traçar um retrato parcelar das vivências do mundo
laboral num sector tradicional, marcado pelo trabalho intensivo, destina-se a divulgar e
partilhar algumas das inúmeras hesitações e dilemas inerentes a este tipo de método, e
1 Não estando embora nos objectivos do presente texto explicitar as linhas orientadoras desse estudo,
vale a pena referir que, embora a metodologia qualitativa tenha ocupado aí um papel fulcral no
aprofundamento da análise (nomeadamente a componente da observação participante), ela constituiu
apenas uma componente entre outras, no quadro da pluralidade de metodologias utilizadas nessa
pesquisa, tais como as entrevistas semi-directivas, a análise de conteúdo de artigos de jornal e
documentos históricos variados, bem como os métodos quantitativos, designadamente o inquérito por
amostragem às classes sociais da região. A indústria do calçado foi estudada a partir dos territórios
abrangidos pelos concelhos de S. João da Madeira, Vila da Feira e Oliveira de Azeméis.
7
que ilustram a permanente tensão entre as exigências científicas, a dimensão ética e os
jogos de poder que envolvem o investigador num contexto como este.
1. Questões de metodologia compreensiva
1.1.Para uma epistemologia auto-reflexiva
A metodologia nas ciências sociais não é apenas uma mera ferramenta que o
investigador utiliza objectivamente para testar as suas hipóteses, tal como o social não
pode ser visto pelo investigador como simples objecto que ele mobiliza ou usa de forma
racional e utilitária. O social não está unicamente no objecto de estudo, e não basta
reconhecer (cinicamente) que o cientista é também ele um ser social, para que o
problema esteja resolvido. Não só o sociólogo é um ser social como o processo de
conhecimento que ele procura levar a cabo é um processo social. Para desenvolver uma
sociologia auto-reflexiva é inevitável que este entendimento seja extensível ao próprio
trabalho de pesquisa, de modo a questionar o vasto conjunto de riscos e de contradições
que ele encerra. Importa, portanto, considerar a prática de investigação enquanto
processo social orientado por uma dada estratégia, mas sujeito a uma infinidade de
contingências. A estratégia seguida e os procedimentos adoptados devem, pois, ser
expostos a avaliação do mesmo modo que o são os resultados obtidos. Sendo certo que
este tipo de problemas se levanta nos mais variados contextos de investigação, é
evidente que quanto maior for o grau de envolvimento do investigador com os sujeitos
sociais sob observação, mais pertinentes eles se tornam. Por isso, a presente reflexão
ganha um significado especial no caso da observação participante realizada na fábrica.
Quer os actores ou agentes em estudo, quer o próprio investigador orientam as suas
acções e percepções segundo o esquema de disposições sócio-cognitivas e afectivas
modeladas pelo mundo vivido das suas experiências e trajectórias. Mas, a acção social
não é mera estratégia. O mesmo é dizer que muito embora o comportamento humano
obedeça a regularidades e padrões de conduta socialmente inteligíveis e coerentes, não
se limita a seguir conscientemente um dado conjunto de regras com vista a alcançar
objectivos premeditados (Bourdieu e Wacquant, 1992: 25).
Para a sociologia compreensiva de Bourdieu, a principal diferença na estratégia de
pesquisa não é entre uma ciência que introduz no seu seio os pressupostos subjectivos
do investigador e uma ciência que não os introduz, mas sim entre uma ciência cujos
efeitos implícitos passam adiante sem que o investigador se dê conta deles ou uma
8
ciência em que o mesmo está alertado para eles e procura revelá-los o mais abertamente
possível de modo a que esses efeitos perversos sejam por ele controlados e
incorporados na análise (Bourdieu, 1996: 18). Quando o investigador mergulha no
contexto da pesquisa, é necessário procurar os efeitos arbitrários dessa intrusão, os
quais são inerentes à própria forma como ele se apresenta. Ele deve tentar situar e
contextualizar as expectativas dos observados e, ao mesmo tempo, esclarecer o modo
como se estabelece a interacção e as razões que levam, por exemplo, uns a colaborar e
outros a recusar colaborar. Nesta mesma linha, outros autores, como Fowler, chamam a
atenção para o facto de que, quando o sociólogo trabalha dentro de uma instituição, ele
tende a criar mecanismos de protecção contra os enviesamentos a que o seu trabalho
está sujeito, incluindo o do próprio estatuto ―soberano‖ do cientista: ―uma condição da
compreensão é a constante interrogação dos pressupostos tomados por adquiridos que
nos autorizam a mover-nos no mundo social como peixe na água‖ (Fowler, 1996: 11).
A reflexividade baseia-se num sentimento e num olhar sociológico que habilita o
investigador a perceber e a dirigir no terreno os efeitos da estrutura social em que a
pesquisa está a decorrer, mas não se pode dissociar a construção do objecto, do
instrumento de construção do objecto e da sua crítica (Bourdieu e Wacquant, 1992: 30).
Acresce que o conhecimento é sempre situado e produzido a partir de uma perspectiva
parcial que, em situação, canaliza de modo selectivo e definido dimensões sociais
diversificadas (concepções de justiça social, por exemplo) que são constitutivas de um
contingente de subjectividades (Haraway, 1992). Quer isto dizer que, qualquer que seja
a modalidade cognitiva de que falamos, o processo de construção do conhecimento
contém sempre uma dimensão autobiográfica, e esta não é redutível à reflexividade, tal
como a entende Bourdieu.
1.2.O método de caso alargado: entre a estrutura e a acção
O chamado ―método de caso alargado‖ (extended case method) — desenvolvido e
aplicado em vários estudos de campo, entre outros, por Boaventura Sousa Santos (1983
e 1995) e Michael Burawoy (1979, 1985 e 1991; Burawoy e Lukács, 1992) — pretende
ao mesmo tempo evitar o determinismo e o relativismo, estabelecendo uma causalidade
múltipla e interactiva, isto é, olhando os fenómenos a partir de baixo mas tendo
presentes as forças externas que os modelam. Não se trata de procurar os micro-
fundamentos da macro-estrutura (Collins, 1981) nem os macro-fundamentos da micro-
9
estrutura (Fine, 1991). Trata-se antes de tomar ambas as dimensões como interactuantes,
com vista a permitir que a experimentação no terreno possa obrigar à reformulação das
teorias e hipóteses existentes acerca do contexto social mais amplo (Burawoy, 1991).
Esta orientação metodológica procura em larga medida contrariar os tradicionais
métodos positivistas, opondo à generalização pela quantidade e pela uniformização, a
generalização pela qualidade e pela exemplaridade. Boaventura Sousa Santos sintetiza
bem as suas vantagens na seguinte passagem: ―em vez de reduzir os casos [em estudo]
às variáveis que os tornam mecanicamente semelhantes, procura analisar, com o
máximo de detalhe descritivo, a complexidade do caso, com vista a captar o que há nele
de diferente ou mesmo de único. A riqueza do caso não está no que há nele de
generalizável, mas na amplitude das incidências estruturais que nele se denunciam pela
multiplicidade e profundidade das interacções que o constituem‖ (Santos, 1983: 11-12).
O ―método de caso alargado‖ é discutido por Burawoy em articulação com o
método da ―teoria ancorada‖ (grounded theory), tradicionalmente utilizado pelos
estudos etnográficos. Ambas as perspectivas incorporam o micro e o macro,
considerando estes dois níveis como mutuamente implicados na realidade. A primeira
centra-se numa situação social concreta procurando compreender as forças particulares
que a moldam, evitando assim o problema da generalização; enquanto a grounded
theory pode construir o macro a partir das suas micro generalizações, o método de caso
alargado pode fazer emergir generalizações através da teoria reconstruída (Burawoy,
1991: 274).
Deste modo, a estrutura é vista como indissociável e reflexivamente ligada às
situações, e a sua invocação e explicitação deve ser feita de modo relevante para conferir
unidade às situações no quadro de uma realidade estruturada. Através desta abordagem é
possível demarcarmo-nos, por um lado, do excessivo relativismo, segundo o qual parece
não existir um mundo real, mas apenas múltiplas situações e, por outro lado, do
universalismo estruturalista, centrado na procura de características invariantes que
tendem a generalizar todas as situações sociais com base nos princípios universais.
Enquanto a grounded theory descobre generalizações abstraindo-as do tempo e do
espaço, ou seja, pondo em marcha uma estratégia indutiva que leva a explicações
genéricas, o método de caso alargado visa construir explicações genéticas, isto é,
explicações com base em resultados particulares. ―No modo genético, o significado de
um caso refere-se ao que ele nos diz acerca do mundo no qual está inserido. Qual será a
10
verdade acerca do contexto social ou passado histórico para que o nosso caso tenha
assumido as características que nós observámos? O significado refere-se aqui ao
significado societal. A importância do caso único recai sobre o que ele nos diz sobre a
sociedade como um todo mais do que acerca da população de outros casos similares‖
(Burawoy, 1991: 281).
Apesar do método de caso alargado também adoptar uma análise situacional, ele
evita os efeitos do relativismo e do universalismo, olhando a situação como fortemente
modelada a partir de cima. Diferentemente da etnometodologia – que em geral trata o
poder sobretudo através dos modos como ele se realiza no interior do micro-contexto,
colocando a ênfase nas variáveis que podem ser manipuladas na situação imediata – a
presente orientação metodológica não menospreza as forças mais amplas, procurando
ver como elas limitam a mudança e criam os meios de dominação na esfera micro.
Pretende-se dar conta da generalização ―através da reconstrução das generalizações
existentes, isto é, da reconstrução da teoria existente‖ (Burawoy, 1991: 279). Foi
justamente no cruzamento entre estas duas lógicas contrárias – o top down e o bottom
up – que procurei estudar a classe trabalhadora desta região a partir da interpretação das
práticas e subjectividades sociais onde o consentimento e a resistência apareciam como
dimensões articuladas entre si2.
Por outro lado, pode dizer-se que esta perspectiva metodológica pretende
ultrapassar a velha dicotomia entre a estrutura e a capacidade de acção dos sujeitos.
Embora, como lembra Giddens, se devam distinguir analiticamente os sujeitos e a
estrutura, o que importa é ter presente que a mudança depende das formas de articulação
entre ambas as dimensões. Para compreender a transformação há que atender às linhas
de continuidade e descontinuidade no tempo e no espaço e conceber os sujeitos não
como meros ―suportes‖, mas sim como elementos com ―capacidade de monitorização
reflexiva‖ sobre as estruturas em que estão inseridos. Na prática, os sujeitos são parte
integrante da estrutura e por isso, embora esta imponha fortes limites e obstáculos ao
conhecimento e à acção dos indivíduos, as acções ou reacções que eles desenvolvem
face às pressões exteriores são geradoras de mudança, muito embora essa mudança
2 Significa isto pressupor que as formas particulares que assumem as relações entre a classe e a
comunidade ou entre a produção e as identidades culturais locais nesta região não se esgotam em si
mesmas, podendo antes dizer-nos alguma coisa acerca dos processos de mudança estrutural mais vastos,
embora as suas principais linhas de transformação histórica possam assumir formas discrepantes nos
níveis nacional e local.
11
possa por vezes ser contrária às suas intenções. É nesse sentido que a estrutura pode ser
vista como uma ―ordem virtual‖ que se refere às ―propriedades de estruturação‖
(Giddens, 1989: 13), as quais tendem a assegurar as necessidades de reprodução
sistémica, mas, dadas as múltiplas pressões e adaptações que encerram, são obrigadas a
uma permanente reconstituição dessas propriedades (Fine, 1991 e 1992; Collins, 1981).
Tal como a macro-estrutura e a acção dos actores sociais são duas componentes de
um mesmo processo, a estruturação e a mudança têm implicações tanto no nível micro
como no macro. A manter-se esta distinção, ela só tem sentido se nos posicionarmos no
cruzamento entre os dois níveis para levar a cabo um conhecimento multifacetado e
complexo do mundo social mais vasto. É, pois, necessário estabelecer pontes que
permitam ver a forma como as dicotomias acção-estrutura e micro-macro, são
impregnadas uma pela outra (Fine, 1991: 162).
Assim, o poder assume-se aqui como um elemento incontornável. Se nos situamos,
por exemplo, no micro nível das organizações, a análise do poder e dos seus efeitos
exige que se observe o exercício do constrangimento não só enquanto resultado da
interiorização de normas e valores aí sediados, mas ao mesmo tempo enquanto efeitos
da estrutura societal que modelam a organização a partir do exterior. Enquanto o
constrangimento opera internamente, tanto pela coerção como pela interiorização
individual da disciplina, as contingências da realidade exterior operam
independentemente da percepção, impondo limites ao sucesso almejado pelo esforço
individual de conquista de oportunidades. A exterioridade é a estrutura persistente, em
certo sentido incontornável, que exerce os seus efeitos dramáticos sobre os actores,
mesmo quando estes não os reconhecem ou o analista não fala deles. É nessa dupla
articulação que se afirmam os macro-fundamentos da micro-estrutura (Fine, 1991). Não
se trata de os indivíduos não poderem agir ―como eles querem‖, mas sim de ter em
conta que a percepção incorpora constrangimentos no comportamento. É o nosso
entendimento do mundo material, ou seja, na prática, é a actuação das pessoas num
sentido macro-sociológico que está em causa, já que a própria aprendizagem é a leitura
do mundo social através de tipificações de situações, de instituições, de ideias, etc.,
vistas num sentido unitário e concebidas intuitivamente como efeitos da macro-
estrutura.
12
2. Contornos de um estudo de caso
2.1. Negociações tácitas com o proprietário da fábrica
A empresa onde realizei a observação participante é uma PME com cerca de 60
trabalhadores. A sua escolha ficou a dever-se, por um lado, ao reduzido número de
respostas que obtive das cerca de vinte empresas que contactei e, por outro, à
receptividade que obtive da parte do seu Director. O número limitado de alternativas de
que dispunha para poder escolher a fábrica mais adequada revela, desde logo, alguma
coisa acerca do sector industrial do calçado nesta região. Refiro-me não só à fraca
sensibilidade dos proprietários para com as questões sociais, mas igualmente à sua
habitual desconfiança para com a Universidade e a sociologia, em especial perante a
situação ―bizarra‖ de um académico se dispor a trabalhar como operário numa linha de
montagem.
Em face das dificuldades, aderi sem hesitações à abertura e entusiasmo
manifestados por este empresário desde o nosso primeiro contacto. Essa era uma
condição decisiva para realizar um trabalho desta natureza, pois deixei de lado a
hipótese (por ser inverosímil) de procurar ―emprego‖ numa fábrica sujeitando-me às
regras vigentes do mercado de trabalho. O interesse do patrão, o seu espírito jovem e o
carácter informal da nossa relação rapidamente me colocaram numa posição de ouvinte
privilegiado, a quem ele transmitia as dificuldades, problemas e ―incompreensões‖ que,
do seu ponto de vista, se erguiam ao seu esforço de desenvolvimento e modernização da
empresa.
Como se compreende, adoptei inicialmente uma postura passiva e de ouvinte atento
e interessado, manifestando as minhas opiniões com a timidez e a contenção de quem se
encontra numa posição de dependência. Contudo, à medida que me fui integrando junto
dos trabalhadores e conhecendo por dentro alguns dos problemas laborais, comecei a
contrariar por vezes as suas posições quanto à forma de encarar os problemas. O
contacto directo com o patrão foi de uma importância decisiva para o decurso da
investigação, não só pela cordialidade da relação, mas ainda porque isso me permitiu,
numa fase posterior, levar a cabo diversas interpelações e conversas junto dos restantes
sectores da empresa, em particular das chefias intermédias (que passarei a nomear por
―encarregados‖ ou ―chefes de secção‖).
O processo de autorização que permitiu a realização deste trabalho no interior da
fábrica passou por uma negociação tácita que se revestiu de várias nuances e alguma
13
diplomacia. Os objectivos estratégicos que eram perseguidos pelo proprietário, de um
lado, e pelo investigador, de outro, apenas parcialmente estavam em sintonia. Da parte
do primeiro, era clara a obsessão com a imagem da empresa e a expectativa de que com
este estudo o seu estatuto de industrial ―inovador‖ com ―espírito empresarial‖ avançado
pudesse sair reforçado. Da minha parte, pretendia pôr em prática uma perspectiva
teórica dirigida fundamentalmente às práticas de classe do operariado, aos mecanismos
de poder e à natureza ambígua dos comportamentos de resistência e aceitação por parte
dos trabalhadores em relação à hierarquia. Tal orientação não poderia de modo algum
ser abertamente explicitada porque tal iria, com toda a probabilidade, conduzir a
incompreensões e porventura pôr em causa a realização da pesquisa, sobretudo tendo
em conta as conotações político-ideológicas que continuam a envolver questões como o
poder, a acção colectiva ou, por exemplo, o sindicalismo, dimensões a que a perspectiva
teórica subjacente à investigação pretendia captar.
A referida ―negociação tácita‖ traduziu-se formalmente na disponibilidade do
investigador para realizar, paralelamente, um trabalho de recolha e de ―diagnóstico‖
destinado à empresa e orientado para a melhoria das suas performances produtivas. Esta
foi, portanto, uma cedência calculada já que se afastava dos objectivos científicos do
estudo. Sendo esse um requisito para assegurar as condições de cooperação que
necessitava preservar com o Director da empresa, não podia fugir a ele. Todavia, se no
início isso se destinava sobretudo a garantir a necessária margem de manobra para os
meus movimentos e contactos dentro da empresa, este novo elemento passou de
imediato a fazer parte da análise e ao mesmo tempo passei a encará-lo como um meio
que poderia potenciar as implicações práticas do estudo, designadamente no próprio
contexto da empresa e das condições de trabalho do colectivo operário. Neste capítulo
tudo correu conforme o previsto e no final facultei ao proprietário o prometido
―diagnóstico‖, assinalando diversos pontos críticos e apontando um conjunto de
sugestões destinadas a flexibilizar a estrutura organizacional e os canais de
comunicação da empresa.
Não deixa, contudo, de ser significativa a reacção algo violenta do patrão, quando
soube, semanas depois da conclusão do meu trabalho, que tinha participado num debate
promovido pelo sindicato onde foram referidos (e depois divulgados na imprensa)
alguns dos constrangimentos e práticas autoritárias de que os trabalhadores do calçado
são vítimas nas empresas. Apesar de se tratar de um comentário genérico sobre o sector
14
e não obstante o nome da empresa nunca ter sido divulgado, isso não me impediu de ser
acusado de estar a ―fazer o jogo do sindicato‖, de ―prejudicar a imagem dos
empresários‖ do sector e mesmo de ―traição‖. Em parte, a sua irritação ficou a dever-se
aos comentários de outros empresários locais a quem ele próprio teria divulgado a
minha presença na empresa, muito provavelmente como forma de reforçar a referida
auto-imagem de empresário inovador.
2.2.Entrar no ritmo: esforço físico e adaptação
No meu primeiro dia de trabalho saí de casa bastante cedo, num dia de inverno
chuvoso e ainda de noite. Alcancei a Zona Industrial localizada junto à entrada sul de S.
João da Madeira ainda antes das 8h da manhã. Parei por momentos numa fila de carros
a olhar as correrias dos trabalhadores que cruzavam a rua em direcção aos portões das
fábricas. A minha ansiedade aumentava com a expectativa de enfrentar pela primeira
vez o trabalho na fábrica. O ―choque‖ inicial dos primeiros dias foi particularmente
marcante e ilustra um pouco daquilo que são as dificuldades desta metodologia. A
entrada na fábrica faz-se normalmente pelas traseiras das instalações. Numa rápida
passagem pelos balneários — localizados na mesma divisão da casa de banho —,
guarda-se o casaco e o saco com o almoço num armário onde estão também a toalha, o
sabonete, papel higiénico, etc., veste-se a bata de trabalho e dirigimo-nos rapidamente
para o relógio de ponto, aguardando depois o toque da sirene para iniciar o dia de
trabalho.
Como era o meu primeiro dia e desconhecia ainda tudo isto, só no intervalo da
manhã (10 h) tomei contacto com este local e a primeira impressão que me ficou foi de
desagrado, sobretudo pelo mau cheiro e falta de higiene. Nesse dia entrei pela porta da
frente e dirigi-me ao encarregado geral, que me aguardava. Trocámos breves impressões
mas não adiantei muito sobre o conteúdo do meu trabalho, do qual já estava, aliás,
minimamente ao corrente. Limitei-me a adiantar que me interessava sobretudo trabalhar
junto dos operários a fim de sentir as dificuldades e exigências da produção na linha de
montagem e aceitei de imediato a sugestão que se fizesse uma ficha com o meu nome,
destinada ao registo diário das entradas e saídas no relógio de ponto, como acontece
com todos os outros. Nesta altura estava preocupado acima de tudo em ter uma
actuação discreta e cuidadosa, não divulgando detalhadamente e muito menos logo no
início todos os aspectos da observação que pretendia realizar.
15
Recordo com particular nitidez os sentimentos contraditórios que me assaltaram ao
mergulhar no ambiente mecanizado e ruidoso das instalações fabris. A agitação e
azáfama do pessoal, o barulho das máquinas e descargas de pressão das caixas de
aquecimento e refrigeração, os sons dos martelos, o cheiro a óleo e a produtos químicos
transmitiram-se uma impressão estranha. Ali estava eu à mercê de uma poderosa
engrenagem que parecia já estar a modelar-me, também a mim, desde os primeiros
instantes. Assaltaram-se emoções contraditórias, de angústia e curiosidade, de
apreensão e expectativa. ―Isto é mesmo a sério‖, pensei. Mas a preocupação em
começar não me deixou tempo para reflexões.
Após uma rápida explicação do chefe da linha de montagem ocupei o meu posto de
trabalho ao lado do tio António, o meu primeiro companheiro, grande conversador e
brincalhão apesar dos seus 62 anos de idade. A secção de montagem, onde trabalhei até
ao fim é a que ocupa maior número de trabalhadores e a mais importante no processo de
fabrico. A ela está ligada também a chamada secção de acabamentos, envolvendo
ambas cerca de trinta operários, mulheres e homens, predominantemente jovens. Ao
longo da pesquisa realizei diversas tarefas produtivas entre as quais arrancar pregos,
riscar as palmilhas, desenformar, dar cola e facear (operações manuais), cardar e
prensar os tacões (operações mecânicas). Principalmente na fase inicial o ritmo de
trabalho foi extremamente violento em especial se atendermos a que se trabalha (cerca
de 9 h por dia) em pé, sob a cadência da linha de montagem semi-automática, cujo
andamento varia em função das exigências produtivas e consoante os compromissos
quanto ao número de pares a entregar em cada semana.
Na semana em que iniciei o meu trabalho vivi momentos de grande ansiedade,
nomeadamente quando estive a desenformar sandálias manualmente. Desapertar os
atacadores com os dedos da mão, segurar contra o peito e pressionar para dar a folga
suficiente, puxar a forma de dentro da sandália e voltar a colocá-la no mesmo tabuleiro,
arrumar, contar e registar o número de pares que iam saindo segundo as cores e os
modelos. Tudo isto a uma velocidade estonteante, e acima de tudo insustentável face à
minha inexperiência e ao défice de calosidade das minhas mãos. Como estava ansioso
com a necessidade de mostrar qualidades e predisposto a não ―dar parte de fraco‖
perante os colegas, uma vez que pretendia ser, ou pelo menos parecer, o mais possível
igual a eles, fiz todo o esforço por aguentar firme entre o suor e o desespero quando, por
vezes, me atrasava e o tio António me gritava do outro lado dos tabuleiros ―agora é
16
você que manda na linha…‖. Nessa noite cheguei a acordar de com dores nos dedos e,
ao fim de dois dias tive mesmo de ceder. Dei conta da situação ao encarregado e voltei
ao posto anterior.
Durante os escassos 10 minutos dos intervalos da manhã e da tarde o cronómetro
continuava a marcar os movimentos dos trabalhadores. Apressadamente dirigíamo-nos
ao WC para lavar as mãos, de seguida caminhava-se em passada larga para o bar/
refeitório onde, depois de se entrar na rotina e de conquistar a simpatia da D. Amélia
(responsável por esse serviço), já tínhamos o café ou a sandes preparada no local
habitual do balcão; os restantes 3 ou 4 minutos era o tempo de descomprimir um pouco,
caminhar mais lentamente até ao portão, fumar meio cigarro ou trocar duas palavras
com o companheiro e regressar ao posto ao toque da campainha. Largar e pegar são
gestos completamente automatizados e imediatos. Não há tempo para acabar a tarefa
que se tenha em mãos. Ninguém o faz.
Para além do posto de trabalho e da correria dos intervalos, as possibilidades de
contacto com os trabalhadores ficavam reduzidas à hora do almoço (1 hora apenas) e ao
período após a saída, onde a pressa continuava a ser marcante. Por motivos óbvios,
almoçava regularmente no refeitório a fim de timidamente me começar a familiarizar
com o maior número possível de colegas. Nos primeiros dias recordo-me de ter
ocupado uma das mesas mais vazias e estar sentado num dos bancos corridos em frente
a uma operária que comia isolada e silenciosa a sua sopa de dentro da marmita.
Enquanto olhava para o rosto fechado da minha companheira de ocasião, e para os
grupos das mesas vizinhas, partilhava aqueles saborosos momentos de descompressão e
sentia um enorme desejo de sossego e alívio por estar momentaneamente fora do torpor
dos equipamentos fabris e da azáfama produtiva. Além do silêncio geral, certamente
agravado pela presença de um estranho que gerava alguma desconfiança (como se
provou depois), notei ainda que a maioria almoçava em menos de um quarto de hora.
Por exemplo, enquanto eu ainda me preparava para começar a almoçar já algumas das
jovens se aprontavam para arrumar as coisas e limpar a mesa, tentando assim aproveitar
a o resto do tempo para descomprimir e passear um pouco pelos arredores da fábrica.
Este desejo de paz, esta necessidade de evasão, aparece assim como consequência
directa da cadeia de pressões, do stress físico e psicológico a que o processo produtivo
nos conduz.
17
2.3. Angústias e dilemas
Ao relatar estes episódios da minha vivência na fábrica, que correspondem a
pequenos fragmentos do meu Diário de Campo, pretendo dar a conhecer situações que,
apesar de serem pontuais, mostram como aquilo que se observa é inseparável daquilo
que se sente, e neste caso concreto ilustram a importância do desgaste físico e seus
efeitos psíquicos na construção das rotinas e das atitudes perante o trabalho. Uma
experiência que, sentida na pele, nos ajuda a perceber algumas das resistências desta
colectividade operária, não só quanto à adesão aos objectivos da empresa mas também
quanto a uma participação mais activa nas estruturas sindicais.
É nessa medida que a vivência da experimentação é tão importante para observar e
compreender. A partilha da vida prática com a comunidade em estudo é uma forma de
perscrutar o caminho das experiências alheias através da experiência própria ou, para
usar as palavras de Bourdieu, é ―uma espécie de exercício espiritual que nos permite
alcançar, através do esquecimento do self uma verdadeira transformação do olhar que
lançamos sobre os outros‖ (Bourdieu, 1996: 24)
Efectivamente, através da relação que estabeleci com os trabalhadores, pude
comprovar como os papéis de ―observador‖ e de ―observado‖ se misturam e
permanecem em constante conflito. O impacto da minha chegada à fábrica implicou
que me tornasse o principal objecto de atenção, de observação e até de ―estudo‖. São
estas situações que nos devem levar a pôr em causa a tradicional divisão que tende a
tomar os membros da comunidade em estudo como meras instâncias vulneráveis,
ingénuas e passivas. Ao penetrarmos no seu universo somos levados a orientar o
exercício da pesquisa para a partilha do mundo comum com os nossos parceiros
momentâneos e a aceitar que também eles possuem teorias acerca dos outros e de si
próprios. Neste sentido, é inevitável e até desejável relativizar a autoridade da ciência
para entrar em diálogo com outras formas de conhecimento prático que emanam da
experiência empírica da própria colectividade (Burawoy, 1991: 293).
No início estava preocupado, antes de mais, em ser capaz de dar resposta às
exigências produtivas porque tinha consciência que tudo o resto passaria por aí. Assim,
quer a inexperiência técnica quer a ansiedade gerada pelo querer aprender e querer
―estar à altura‖ para melhor poder integrar-me, obrigavam a que a minha atenção se
concentrasse quase em exclusivo nas tarefas da produção. Parecia-me impossível
conciliar a concentração no trabalho com a observação dos comportamentos dos meus
18
colegas e do funcionamento geral da fábrica. Por um lado, porque demorou algum
tempo até que a destreza na realização das operações me permitisse ao mesmo tempo
dar atenção ao que se ia passando à minha volta sem que isso perturbasse o meu
trabalho, por outro lado porque, conforme me fui apercebendo com o correr do tempo,
os trabalhadores desenvolveram os seus mecanismos perceptivos até níveis
particularmente sensíveis, conseguindo captar com facilidade tudo aquilo que sai fora
das suas tarefas e rotinas normais. Ao contrário do que se passava comigo, que nos
primeiros tempos não conseguia conversar nem entender os meus colegas no meio de
todo aquele ruído, o meu colega de posto (o tio António), por exemplo, conversava com
as operárias dos acabamentos através da linha de montagem e entendia tudo o que elas
diziam olhando para os movimentos dos lábios.
Qualquer movimento menos usual era em geral detectado à distância mesmo
quando, para meu espanto, todos pareciam estar completamente absorvidos na tarefa
que tinham em mãos. Quando aparece uma visita na fábrica, quando surge uma
discussão, quando alguém entra ou sai do portão a horas fora dos horários normais,
quando, por qualquer motivo, alguém se desloca a outra secção ou esteve à conversa
com o patrão ou com o encarregado, logo um vasto conjunto de olhares discretos e
silenciosos trata de registar pormenorizadamente o referido ―acontecimento‖. Assim, o
tratamento dos encarregados, o cumprimento do patrão quando passava na linha de
montagem e a facilidade com que se detinha a trocar impressões comigo, foram os
primeiros sinais a levantar dúvidas e cautelas. Sinais esses que vêm juntar-se à falta de
umas mãos robustas e calejadas, à postura gestual denunciadora de um estatuto social
diferente e principalmente à ―maneira de falar‖, conforme mais tarde me confirmaram
alguns daqueles que de certo modo se vieram a tornar os meus amigos dentro da
empresa.
As especulações em meu redor ao longo da primeira semana de trabalho foram
diversas: desde ser um engenheiro que estava a aprender as diferentes tarefas para
depois assumir uma posição de encarregado, até ser um psicólogo contratado pelo
patrão para tentar estudar o pessoal a fim de melhorar a produção, passando por ser um
amigo do patrão que vinha para ali aprender com vista a mais tarde abrir uma fábrica e,
finalmente, surgiu até o boato de que se trataria de um agente da Polícia Judiciária que
se queria infiltrar na indústria do calçado para detectar negócios de tráfico de droga.
Este é o momento em que aquilo que os ―observados‖ vêem é mais significativo do que
19
o próprio olhar do ―observador‖. Mas este tipo de respostas revela ao mesmo tempo o
muro de obstáculos que de imediato começou a erguer-se entre o investigador e o
colectivo dos trabalhadores. O panorama era, nesta altura, de desconfiança e
retraimento.
Rapidamente me apercebi que esta situação se apoiava, em boa parte, na relação
privilegiada que o patrão e os encarregados mantinham comigo. Embora estivesse a
cumprir todas as exigências produtivas e disciplinares com o maior rigor, o modo como
os responsáveis se dirigiam a mim, a atenção que me dedicavam e certamente também a
forma como eu falava com eles indiciavam que era alguém que estava ―do lado deles‖,
isto é, do lado do patrão. Como também não foi difícil perceber, nesta fábrica, apesar da
fraca ou nula actividade sindical, a clivagem classista era óbvia mesmo no campo das
representações e atitudes, ou seja, os trabalhadores funcionavam na base do habitual
esquema dicotómico — o ―eles‖ e o ―nós‖ — e deste modo, no jogo diário das
interacções esse critério selectivo exigia opções claras.
É sabido que a atitude do investigador tem de pautar-se, como assinalei atrás, pela
discrição. Pensei então em esclarecer os meus objectivos de pesquisa e mostrar-lhes que
o estatuto ―especial‖ que ocupava na fábrica poderia constituir um instrumento capaz de
lhes proporcionar algumas vantagens. A ideia de esperar pacientemente que as coisas
evoluíssem no bom sentido foi então posta em causa. Era urgente assumir o meu
distanciamento perante a direcção da empresa e mostrar alguma solidariedade para com
a resistência em surdina que, sob a forma de permanentes queixumes e desabafos, os
trabalhadores deixavam transparecer no dia-a-dia.
Conversei com a única operária conotada como sindicalista mas, como percebi a
sua fraca popularidade, optei por diversificar os contactos, procurando abrir portas sem
fechar nenhuma e evitando privilegiar os elementos claramente conotados, fosse como
―sindicalista‖, fosse como ―mau profissional‖ ou como ―graxista‖, por exemplo. A
revelação do meu estatuto de investigador era incontornável, quer por razões éticas,
quer porque a conquista da confiança exige que se exponham alguns elementos da
identidade pessoal, como em qualquer processo de interconhecimento. Comecei, então,
a pouco e pouco a emitir opiniões e a fazer perguntas sobre alguns assuntos que
surgiam entre os grupos de trabalhadores, desde o desporto aos temas do dia-a-dia de
trabalho.
20
Passaram-se momentos de desânimo e só lentamente as oportunidades começaram
a surgir. Tentei aproveitá-las da melhor maneira, procurando integrar os pequenos
diálogos e conversas informais que surgiam durante as pausas, mas, como grande parte
dessa actividade discursiva tinha uma forte componente lúdica, de brincadeira e de
subentendidos, à mistura com jogos de sedução e piadas sexistas entre homens e
mulheres, era uma tarefa difícil para alguém pouco familiarizado com o meio. De facto,
a vertente da informalidade e das brincadeiras mais ou menos corrosivas que a
colectividade operária põe em marcha, não é senão o reflexo de um jogo de poderes,
como outros estudos já mostraram (Collinson, 1992). E neste caso foi, na verdade, uma
das dimensões que mais directamente serviu de critério de selecção no meu processo de
aceitação pelo grupo operário.
A aprendizagem inicial, apesar de intensa e dolorosa, foi extremamente importante.
Desde logo porque me obrigou a questionar alguns dos meus próprios pressupostos. Por
exemplo, a tendência para procurar estabelecer conversas ―sérias‖ que fossem
claramente orientadas para os objectivos da pesquisa — os conflitos com as chefias, as
relações com o sindicato, as opiniões sobre a empresa, etc. — levava sistematicamente
ao silêncio ou a respostas evasivas. Ao fim de algum tempo fui obrigado a constatar
que, no fundo, estava a querer ver aquilo que não existia e, sem me aperceber disso, a
avaliar aquele operariado segundo os velhos parâmetros da militância sindical e os
estereótipos tradicionalmente atribuídos à classe operária. À medida que se sucediam os
dias e as pequenas ocorrências, fui explicando a alguns trabalhadores os meus
objectivos — sublinhando que todas as minhas fontes seriam anónimas — e, a pouco e
pouco, comecei a assistir a pequenos desabafos e gestos de revolta que eram
abertamente exibidos junto a mim, perante as mais diversas situações laborais e os
comportamentos despóticos de alguns encarregados, sinais estes que comprovavam
finalmente a minha aceitação no seio do grupo. Alguns sectores da força de trabalho
passaram a procurar-me espontaneamente e a pedir a minha opinião sobre diversos
assuntos. Mas isso só aconteceu quando se tornou clara a minha postura crítica perante
as chefias e, consequentemente, o meu alinhamento cúmplice com as atitudes de
descontentamento dos operários, que se repetiam diariamente. Apesar disso, persistiu
sempre algum embaraço e retraimento, aspectos que, por um lado, exprimem a distância
cultural e de estatuto que nos separava e, por outro, são um sintoma da condição de
subordinação. Não apenas a subordinação de classe ou a dupla subordinação no caso
21
das operárias — a condição de classe e a condição feminina — mas também a atitude
de dependência cultural de quem, perante um ―académico‖, se sentia mais inclinado a
ouvir do que a falar.
2.4. O investigador e os jogos de poder
A necessidade de dar atenção aos efeitos perturbadores da minha presença na
fábrica deve-se não só ao desejo de controlar a sua interferência nas observações diárias
mas também ao seu significado em termos da análise substantiva. Obviamente que me
refiro, não a perturbações de ordem funcional mas, apenas, ao impacto simbólico e
sociológico introduzido por um elemento estranho e com um estatuto próprio. A forma
como procurei compatibilizar o apoio institucional das hierarquias com a aceitação e
colaboração dos trabalhadores, além das inúmeras dificuldades que levantou, deu lugar
a um processo dinâmico e contraditório que pode ser interpretado à luz da estruturação
das relações de poder no interior da fábrica.
Desde a desconfiança inicial agravada pela atenção que me dedicavam os chefes de
sector e o próprio patrão até à fase final em que foi visível a utilização estratégica que
alguns trabalhadores faziam da relação privilegiada que mantinham comigo, passando
pelo relacionamento com os encarregados, não é difícil identificar situações que
comprovam a forma como o investigador personifica um papel activo na configuração
dos jogos e lutas internas, favorecendo em certos casos a sua momentânea
transfiguração.
As relações com os encarregados podem servir para ilustrar esse jogo. Por
exemplo, no que respeita à divulgação dos objectivos da pesquisa tinha sido prevista a
necessidade de jogar na ambiguidade, isto é, divulgar o suficiente para clarificar a
situação mas sem entrar em detalhes excessivos, potencialmente comprometedores.
Apesar de no global ter conseguido uma colaboração aberta da parte dos encarregados,
no início notei o cuidado com que observavam a minha conduta junto dos operários. No
caso particular do chefe da secção onde eu próprio trabalhei, a nossa relação, embora
sempre colaborante, pautou-se por alguma instabilidade e evoluiu ao longo do tempo
entre atitudes de curiosidade e aproximação onde cheguei a detectar sinais de
reverência, momentos pontualmente reveladores de hostilidade e, noutras alturas,
expressões de insegurança e desconforto perante o meu crescente à-vontade com os
trabalhadores.
22
Em particular ao longo das últimas três semanas, em que procedi à aplicação de um
pequeno inquérito aos trabalhadores — preenchido nos intervalos ou levado para casa e
trazido no dia seguinte e onde, entre outras questões, se faziam perguntas sobre a
empresa e as relações com as chefias —, terá ficado clara junto dos encarregados a ideia
de que na posse daquele tipo de informações a sua posição perante mim estava de
algum modo mais vulnerável. Foi também nas últimas semanas que, seguindo a
solicitação inicial do proprietário, realizei algumas reuniões com os chefes de secção a
fim de retirar daí elementos para a elaboração do relatório de ―diagnóstico‖ que me foi
solicitado. Nessas reuniões discutiram-se alguns conceitos de teoria das organizações e
da liderança (por mim introduzidos) e debateram-se problemas gerais da empresa
(insatisfação do pessoal, relações com o patrão, etc). É claro que, ao pôr em prática
estas iniciativas e sabendo-se que tinha para isso o apoio do proprietário, os
encarregados foram percebendo que eles próprios estavam a ser objecto de particular
atenção. Se, por um lado, isso reforçou de certo modo a sua vulnerabilidade face à
posição particular e ―privilegiada‖ em que me encontrava, por outro lado, à medida que
o mesmo foi sendo percebido pelos operários, começou a desenvolver-se no seu seio
um crescendo de à-vontade onde por vezes transparecia uma ironia latente e um gozo
subliminar perante o embaraço de alguns dos encarregados, em particular o do sector da
montagem, visível, por exemplo, nas relações que mantinha comigo no posto de
trabalho e até na alteração subtil ao seu comportamento, mais comedido e cauteloso,
face aos seus subordinados. Para dar um exemplo concreto, na fase final, como o meu
trabalho me permitia circular junto das operárias dos acabamentos (pois estava a dar
cola nos palmilhados ao longo da linha de montagem), era visível a procura de que
comecei a ser alvo por parte delas, para conversarem comigo. Além de já me
conhecerem melhor sabiam que podiam fazê-lo sem serem chamadas à atenção, ao
contrário do que acontecia quando falavam umas com as outras. Assim, podiam
aproveitar para descomprimir face ao stress do ritmo produtivo e ao mesmo tempo era
uma forma de afirmação e de pequena vingança dissimulada perante o seu mais directo
opressor. Por vezes diziam-me: ―quando você for embora isto vai acabar…‖.
3. Conclusão
Se a observação participante é, em qualquer situação de pesquisa, um tipo de
metodologia que sempre põe à prova a capacidade de resistência e de integração do
investigador, num ambiente como o de uma empresa industrial com estas
23
características, as dificuldades ganham contornos muito próprios. As clivagens são
evidentes e sobrepõem-se claramente às orientações ideológicas dos agentes. Os
antagonismos estruturais repousam nos recursos incorporados e nas condições
objectivas em que os actores se situam no mundo do trabalho, mas reflectem-se nas
subjectividades colectivas diferencialmente estruturadas pelos diversos segmentos da
força de trabalho. Posicionado entre este conjunto de lógicas e pressões cruzadas, o
investigador confronta-se permanentemente com uma exigência de neutralidade nunca
totalmente conseguida e os imperativos de solidariedade exigidos pelo elo mais fraco da
estrutura de poderes da empresa. É, como vimos, um jogo dinâmico feito de múltiplas
subtilezas, que exige um constante esforço de readaptação e onde o próprio papel do
cientista no meio desse jogo deve ser questionado e discutido.
As dúvidas e inquietações de ordem científica e pessoal que me assaltaram foram
sendo diariamente registadas no meu Diário de Campo. Anotar as observações
efectuadas constitui um requisito imprescindível para o sucesso de uma observação
desta natureza. Escrever o diário todos os dias é essencial. Apesar do esforço
suplementar que representa escrever durante pelo menos duas ou três horas após a saída
da fábrica – em particular tendo em vista o desgaste físico, e psicológico, de um dia de
trabalho na linha de montagem –, essa é uma tarefa decisiva. O trabalho da escrita
representa, ele próprio, uma prática reflexiva que, por isso mesmo, vai modelando as
condições de envolvimento com o grupo por parte do cientista. Longe de ser uma
transcrição, um puro reflexo do que aconteceu, a escrita é uma tradução e uma
interpretação. Nessa medida, compatibilizar a ―fidelidade‖ com a ―legibilidade‖ do
produto final, conciliar a riqueza sociológica da informação recolhida com a defesa do
anonimato dos informantes, são requisitos difíceis de conciliar.
O envolvimento com o outro é sempre um processo através do qual os actores
sociais se projectam a si mesmos. A esse jogo de espelhos – onde se inscrevem
múltiplas dimensões identitárias – não é alheio o cientista social enquanto investigador
e observador. Ao procurar dar visibilidade aos observados está, ele próprio, a expor-se e
a confrontar o seu saber com os saberes alternativos em estudo. Para ser aceite pela
comunidade que estuda tem de participar nesse jogo e negociar as suas próprias
representações e os juízos implícitos que se inscrevem nos equipamentos teóricos e
metodológicos que leva consigo. Se o conhecimento científico tem de despir-se da sua
tradicional postura de autoridade, a prática do envolvimento pode assumir-se como uma
24
via fundamental para a sua reinvenção. A perspectiva auto-reflexiva que aqui procurei
adoptar situa-se nessa linha.
Referências bibliográficas
Bourdieu Pierre (1973), Le Métier de sociologue, Paris, Mouton.
Bourdieu Pierre (1996), ―Understanding‖, Theory, Culture and Society, vol. 13, nº 2.
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Collinson, David (1992), Managing the Shopfloor - Subjectivity, Masculinity and
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Estanque, Elísio (2000), Entre a Fábrica e a Comunidade: subjectividades e práticas
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Haraway, Donna (1992), Primate Visions: Gender, Race and Nature in the World of
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Santos, Boaventura de Sousa (1983), ―Os conflitos urbanos no Recife: o caso do
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Santos, Boaventura de Sousa (1995), Toward a New Common Sense, Londres/Nova
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University of Chicago Press.

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T10 observação metodologia, 2003

  • 1. In Caria, Telmo (org.) (2003), Metodologia e Experiência Etnográfica em Ciências Sociais. Porto: Afrontamento (pp. 61-76). UM SOCIÓLOGO NA FÁBRICA: para uma metodologia de envolvência social Elísio Estanque Centro de Estudos Sociais Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra A metodologia, por mais sofisticada que seja, não pode ser tomada separadamente dos restantes procedimentos científicos e do processo global de construção da pesquisa (Schutz, 1970: 315; Bourdieu, 1973: 88). Convirá, por isso, sublinhar que o trabalho de ―observação participante‖ que levei a cabo numa fábrica de calçado só adquire pleno significado no quadro das preocupações analíticas e dos pressupostos teórico- epistemológicos inerentes a esse projecto de pesquisa. Centrado nos processos de estruturação e fragmentação da classe trabalhadora da região do calçado, o estudo procurou analisar as práticas sociais no espaço produtivo à luz da sua vinculação às identidades comunitárias face ao impacto das transformações sociais e históricas que acompanharam o processo de industrialização na região (Estanque, 2000) 1. Este texto pretende, por um lado, dar conta das principais preocupações de ordem metodológica que acompanharam a pesquisa de terreno e, por outro lado, divulgar alguns aspectos do quotidiano fabril por mim experienciados ao longo do período em que permaneci na empresa. Além de traçar um retrato parcelar das vivências do mundo laboral num sector tradicional, marcado pelo trabalho intensivo, destina-se a divulgar e partilhar algumas das inúmeras hesitações e dilemas inerentes a este tipo de método, e 1 Não estando embora nos objectivos do presente texto explicitar as linhas orientadoras desse estudo, vale a pena referir que, embora a metodologia qualitativa tenha ocupado aí um papel fulcral no aprofundamento da análise (nomeadamente a componente da observação participante), ela constituiu apenas uma componente entre outras, no quadro da pluralidade de metodologias utilizadas nessa pesquisa, tais como as entrevistas semi-directivas, a análise de conteúdo de artigos de jornal e documentos históricos variados, bem como os métodos quantitativos, designadamente o inquérito por amostragem às classes sociais da região. A indústria do calçado foi estudada a partir dos territórios abrangidos pelos concelhos de S. João da Madeira, Vila da Feira e Oliveira de Azeméis.
  • 2. 7 que ilustram a permanente tensão entre as exigências científicas, a dimensão ética e os jogos de poder que envolvem o investigador num contexto como este. 1. Questões de metodologia compreensiva 1.1.Para uma epistemologia auto-reflexiva A metodologia nas ciências sociais não é apenas uma mera ferramenta que o investigador utiliza objectivamente para testar as suas hipóteses, tal como o social não pode ser visto pelo investigador como simples objecto que ele mobiliza ou usa de forma racional e utilitária. O social não está unicamente no objecto de estudo, e não basta reconhecer (cinicamente) que o cientista é também ele um ser social, para que o problema esteja resolvido. Não só o sociólogo é um ser social como o processo de conhecimento que ele procura levar a cabo é um processo social. Para desenvolver uma sociologia auto-reflexiva é inevitável que este entendimento seja extensível ao próprio trabalho de pesquisa, de modo a questionar o vasto conjunto de riscos e de contradições que ele encerra. Importa, portanto, considerar a prática de investigação enquanto processo social orientado por uma dada estratégia, mas sujeito a uma infinidade de contingências. A estratégia seguida e os procedimentos adoptados devem, pois, ser expostos a avaliação do mesmo modo que o são os resultados obtidos. Sendo certo que este tipo de problemas se levanta nos mais variados contextos de investigação, é evidente que quanto maior for o grau de envolvimento do investigador com os sujeitos sociais sob observação, mais pertinentes eles se tornam. Por isso, a presente reflexão ganha um significado especial no caso da observação participante realizada na fábrica. Quer os actores ou agentes em estudo, quer o próprio investigador orientam as suas acções e percepções segundo o esquema de disposições sócio-cognitivas e afectivas modeladas pelo mundo vivido das suas experiências e trajectórias. Mas, a acção social não é mera estratégia. O mesmo é dizer que muito embora o comportamento humano obedeça a regularidades e padrões de conduta socialmente inteligíveis e coerentes, não se limita a seguir conscientemente um dado conjunto de regras com vista a alcançar objectivos premeditados (Bourdieu e Wacquant, 1992: 25). Para a sociologia compreensiva de Bourdieu, a principal diferença na estratégia de pesquisa não é entre uma ciência que introduz no seu seio os pressupostos subjectivos do investigador e uma ciência que não os introduz, mas sim entre uma ciência cujos efeitos implícitos passam adiante sem que o investigador se dê conta deles ou uma
  • 3. 8 ciência em que o mesmo está alertado para eles e procura revelá-los o mais abertamente possível de modo a que esses efeitos perversos sejam por ele controlados e incorporados na análise (Bourdieu, 1996: 18). Quando o investigador mergulha no contexto da pesquisa, é necessário procurar os efeitos arbitrários dessa intrusão, os quais são inerentes à própria forma como ele se apresenta. Ele deve tentar situar e contextualizar as expectativas dos observados e, ao mesmo tempo, esclarecer o modo como se estabelece a interacção e as razões que levam, por exemplo, uns a colaborar e outros a recusar colaborar. Nesta mesma linha, outros autores, como Fowler, chamam a atenção para o facto de que, quando o sociólogo trabalha dentro de uma instituição, ele tende a criar mecanismos de protecção contra os enviesamentos a que o seu trabalho está sujeito, incluindo o do próprio estatuto ―soberano‖ do cientista: ―uma condição da compreensão é a constante interrogação dos pressupostos tomados por adquiridos que nos autorizam a mover-nos no mundo social como peixe na água‖ (Fowler, 1996: 11). A reflexividade baseia-se num sentimento e num olhar sociológico que habilita o investigador a perceber e a dirigir no terreno os efeitos da estrutura social em que a pesquisa está a decorrer, mas não se pode dissociar a construção do objecto, do instrumento de construção do objecto e da sua crítica (Bourdieu e Wacquant, 1992: 30). Acresce que o conhecimento é sempre situado e produzido a partir de uma perspectiva parcial que, em situação, canaliza de modo selectivo e definido dimensões sociais diversificadas (concepções de justiça social, por exemplo) que são constitutivas de um contingente de subjectividades (Haraway, 1992). Quer isto dizer que, qualquer que seja a modalidade cognitiva de que falamos, o processo de construção do conhecimento contém sempre uma dimensão autobiográfica, e esta não é redutível à reflexividade, tal como a entende Bourdieu. 1.2.O método de caso alargado: entre a estrutura e a acção O chamado ―método de caso alargado‖ (extended case method) — desenvolvido e aplicado em vários estudos de campo, entre outros, por Boaventura Sousa Santos (1983 e 1995) e Michael Burawoy (1979, 1985 e 1991; Burawoy e Lukács, 1992) — pretende ao mesmo tempo evitar o determinismo e o relativismo, estabelecendo uma causalidade múltipla e interactiva, isto é, olhando os fenómenos a partir de baixo mas tendo presentes as forças externas que os modelam. Não se trata de procurar os micro- fundamentos da macro-estrutura (Collins, 1981) nem os macro-fundamentos da micro-
  • 4. 9 estrutura (Fine, 1991). Trata-se antes de tomar ambas as dimensões como interactuantes, com vista a permitir que a experimentação no terreno possa obrigar à reformulação das teorias e hipóteses existentes acerca do contexto social mais amplo (Burawoy, 1991). Esta orientação metodológica procura em larga medida contrariar os tradicionais métodos positivistas, opondo à generalização pela quantidade e pela uniformização, a generalização pela qualidade e pela exemplaridade. Boaventura Sousa Santos sintetiza bem as suas vantagens na seguinte passagem: ―em vez de reduzir os casos [em estudo] às variáveis que os tornam mecanicamente semelhantes, procura analisar, com o máximo de detalhe descritivo, a complexidade do caso, com vista a captar o que há nele de diferente ou mesmo de único. A riqueza do caso não está no que há nele de generalizável, mas na amplitude das incidências estruturais que nele se denunciam pela multiplicidade e profundidade das interacções que o constituem‖ (Santos, 1983: 11-12). O ―método de caso alargado‖ é discutido por Burawoy em articulação com o método da ―teoria ancorada‖ (grounded theory), tradicionalmente utilizado pelos estudos etnográficos. Ambas as perspectivas incorporam o micro e o macro, considerando estes dois níveis como mutuamente implicados na realidade. A primeira centra-se numa situação social concreta procurando compreender as forças particulares que a moldam, evitando assim o problema da generalização; enquanto a grounded theory pode construir o macro a partir das suas micro generalizações, o método de caso alargado pode fazer emergir generalizações através da teoria reconstruída (Burawoy, 1991: 274). Deste modo, a estrutura é vista como indissociável e reflexivamente ligada às situações, e a sua invocação e explicitação deve ser feita de modo relevante para conferir unidade às situações no quadro de uma realidade estruturada. Através desta abordagem é possível demarcarmo-nos, por um lado, do excessivo relativismo, segundo o qual parece não existir um mundo real, mas apenas múltiplas situações e, por outro lado, do universalismo estruturalista, centrado na procura de características invariantes que tendem a generalizar todas as situações sociais com base nos princípios universais. Enquanto a grounded theory descobre generalizações abstraindo-as do tempo e do espaço, ou seja, pondo em marcha uma estratégia indutiva que leva a explicações genéricas, o método de caso alargado visa construir explicações genéticas, isto é, explicações com base em resultados particulares. ―No modo genético, o significado de um caso refere-se ao que ele nos diz acerca do mundo no qual está inserido. Qual será a
  • 5. 10 verdade acerca do contexto social ou passado histórico para que o nosso caso tenha assumido as características que nós observámos? O significado refere-se aqui ao significado societal. A importância do caso único recai sobre o que ele nos diz sobre a sociedade como um todo mais do que acerca da população de outros casos similares‖ (Burawoy, 1991: 281). Apesar do método de caso alargado também adoptar uma análise situacional, ele evita os efeitos do relativismo e do universalismo, olhando a situação como fortemente modelada a partir de cima. Diferentemente da etnometodologia – que em geral trata o poder sobretudo através dos modos como ele se realiza no interior do micro-contexto, colocando a ênfase nas variáveis que podem ser manipuladas na situação imediata – a presente orientação metodológica não menospreza as forças mais amplas, procurando ver como elas limitam a mudança e criam os meios de dominação na esfera micro. Pretende-se dar conta da generalização ―através da reconstrução das generalizações existentes, isto é, da reconstrução da teoria existente‖ (Burawoy, 1991: 279). Foi justamente no cruzamento entre estas duas lógicas contrárias – o top down e o bottom up – que procurei estudar a classe trabalhadora desta região a partir da interpretação das práticas e subjectividades sociais onde o consentimento e a resistência apareciam como dimensões articuladas entre si2. Por outro lado, pode dizer-se que esta perspectiva metodológica pretende ultrapassar a velha dicotomia entre a estrutura e a capacidade de acção dos sujeitos. Embora, como lembra Giddens, se devam distinguir analiticamente os sujeitos e a estrutura, o que importa é ter presente que a mudança depende das formas de articulação entre ambas as dimensões. Para compreender a transformação há que atender às linhas de continuidade e descontinuidade no tempo e no espaço e conceber os sujeitos não como meros ―suportes‖, mas sim como elementos com ―capacidade de monitorização reflexiva‖ sobre as estruturas em que estão inseridos. Na prática, os sujeitos são parte integrante da estrutura e por isso, embora esta imponha fortes limites e obstáculos ao conhecimento e à acção dos indivíduos, as acções ou reacções que eles desenvolvem face às pressões exteriores são geradoras de mudança, muito embora essa mudança 2 Significa isto pressupor que as formas particulares que assumem as relações entre a classe e a comunidade ou entre a produção e as identidades culturais locais nesta região não se esgotam em si mesmas, podendo antes dizer-nos alguma coisa acerca dos processos de mudança estrutural mais vastos, embora as suas principais linhas de transformação histórica possam assumir formas discrepantes nos níveis nacional e local.
  • 6. 11 possa por vezes ser contrária às suas intenções. É nesse sentido que a estrutura pode ser vista como uma ―ordem virtual‖ que se refere às ―propriedades de estruturação‖ (Giddens, 1989: 13), as quais tendem a assegurar as necessidades de reprodução sistémica, mas, dadas as múltiplas pressões e adaptações que encerram, são obrigadas a uma permanente reconstituição dessas propriedades (Fine, 1991 e 1992; Collins, 1981). Tal como a macro-estrutura e a acção dos actores sociais são duas componentes de um mesmo processo, a estruturação e a mudança têm implicações tanto no nível micro como no macro. A manter-se esta distinção, ela só tem sentido se nos posicionarmos no cruzamento entre os dois níveis para levar a cabo um conhecimento multifacetado e complexo do mundo social mais vasto. É, pois, necessário estabelecer pontes que permitam ver a forma como as dicotomias acção-estrutura e micro-macro, são impregnadas uma pela outra (Fine, 1991: 162). Assim, o poder assume-se aqui como um elemento incontornável. Se nos situamos, por exemplo, no micro nível das organizações, a análise do poder e dos seus efeitos exige que se observe o exercício do constrangimento não só enquanto resultado da interiorização de normas e valores aí sediados, mas ao mesmo tempo enquanto efeitos da estrutura societal que modelam a organização a partir do exterior. Enquanto o constrangimento opera internamente, tanto pela coerção como pela interiorização individual da disciplina, as contingências da realidade exterior operam independentemente da percepção, impondo limites ao sucesso almejado pelo esforço individual de conquista de oportunidades. A exterioridade é a estrutura persistente, em certo sentido incontornável, que exerce os seus efeitos dramáticos sobre os actores, mesmo quando estes não os reconhecem ou o analista não fala deles. É nessa dupla articulação que se afirmam os macro-fundamentos da micro-estrutura (Fine, 1991). Não se trata de os indivíduos não poderem agir ―como eles querem‖, mas sim de ter em conta que a percepção incorpora constrangimentos no comportamento. É o nosso entendimento do mundo material, ou seja, na prática, é a actuação das pessoas num sentido macro-sociológico que está em causa, já que a própria aprendizagem é a leitura do mundo social através de tipificações de situações, de instituições, de ideias, etc., vistas num sentido unitário e concebidas intuitivamente como efeitos da macro- estrutura.
  • 7. 12 2. Contornos de um estudo de caso 2.1. Negociações tácitas com o proprietário da fábrica A empresa onde realizei a observação participante é uma PME com cerca de 60 trabalhadores. A sua escolha ficou a dever-se, por um lado, ao reduzido número de respostas que obtive das cerca de vinte empresas que contactei e, por outro, à receptividade que obtive da parte do seu Director. O número limitado de alternativas de que dispunha para poder escolher a fábrica mais adequada revela, desde logo, alguma coisa acerca do sector industrial do calçado nesta região. Refiro-me não só à fraca sensibilidade dos proprietários para com as questões sociais, mas igualmente à sua habitual desconfiança para com a Universidade e a sociologia, em especial perante a situação ―bizarra‖ de um académico se dispor a trabalhar como operário numa linha de montagem. Em face das dificuldades, aderi sem hesitações à abertura e entusiasmo manifestados por este empresário desde o nosso primeiro contacto. Essa era uma condição decisiva para realizar um trabalho desta natureza, pois deixei de lado a hipótese (por ser inverosímil) de procurar ―emprego‖ numa fábrica sujeitando-me às regras vigentes do mercado de trabalho. O interesse do patrão, o seu espírito jovem e o carácter informal da nossa relação rapidamente me colocaram numa posição de ouvinte privilegiado, a quem ele transmitia as dificuldades, problemas e ―incompreensões‖ que, do seu ponto de vista, se erguiam ao seu esforço de desenvolvimento e modernização da empresa. Como se compreende, adoptei inicialmente uma postura passiva e de ouvinte atento e interessado, manifestando as minhas opiniões com a timidez e a contenção de quem se encontra numa posição de dependência. Contudo, à medida que me fui integrando junto dos trabalhadores e conhecendo por dentro alguns dos problemas laborais, comecei a contrariar por vezes as suas posições quanto à forma de encarar os problemas. O contacto directo com o patrão foi de uma importância decisiva para o decurso da investigação, não só pela cordialidade da relação, mas ainda porque isso me permitiu, numa fase posterior, levar a cabo diversas interpelações e conversas junto dos restantes sectores da empresa, em particular das chefias intermédias (que passarei a nomear por ―encarregados‖ ou ―chefes de secção‖). O processo de autorização que permitiu a realização deste trabalho no interior da fábrica passou por uma negociação tácita que se revestiu de várias nuances e alguma
  • 8. 13 diplomacia. Os objectivos estratégicos que eram perseguidos pelo proprietário, de um lado, e pelo investigador, de outro, apenas parcialmente estavam em sintonia. Da parte do primeiro, era clara a obsessão com a imagem da empresa e a expectativa de que com este estudo o seu estatuto de industrial ―inovador‖ com ―espírito empresarial‖ avançado pudesse sair reforçado. Da minha parte, pretendia pôr em prática uma perspectiva teórica dirigida fundamentalmente às práticas de classe do operariado, aos mecanismos de poder e à natureza ambígua dos comportamentos de resistência e aceitação por parte dos trabalhadores em relação à hierarquia. Tal orientação não poderia de modo algum ser abertamente explicitada porque tal iria, com toda a probabilidade, conduzir a incompreensões e porventura pôr em causa a realização da pesquisa, sobretudo tendo em conta as conotações político-ideológicas que continuam a envolver questões como o poder, a acção colectiva ou, por exemplo, o sindicalismo, dimensões a que a perspectiva teórica subjacente à investigação pretendia captar. A referida ―negociação tácita‖ traduziu-se formalmente na disponibilidade do investigador para realizar, paralelamente, um trabalho de recolha e de ―diagnóstico‖ destinado à empresa e orientado para a melhoria das suas performances produtivas. Esta foi, portanto, uma cedência calculada já que se afastava dos objectivos científicos do estudo. Sendo esse um requisito para assegurar as condições de cooperação que necessitava preservar com o Director da empresa, não podia fugir a ele. Todavia, se no início isso se destinava sobretudo a garantir a necessária margem de manobra para os meus movimentos e contactos dentro da empresa, este novo elemento passou de imediato a fazer parte da análise e ao mesmo tempo passei a encará-lo como um meio que poderia potenciar as implicações práticas do estudo, designadamente no próprio contexto da empresa e das condições de trabalho do colectivo operário. Neste capítulo tudo correu conforme o previsto e no final facultei ao proprietário o prometido ―diagnóstico‖, assinalando diversos pontos críticos e apontando um conjunto de sugestões destinadas a flexibilizar a estrutura organizacional e os canais de comunicação da empresa. Não deixa, contudo, de ser significativa a reacção algo violenta do patrão, quando soube, semanas depois da conclusão do meu trabalho, que tinha participado num debate promovido pelo sindicato onde foram referidos (e depois divulgados na imprensa) alguns dos constrangimentos e práticas autoritárias de que os trabalhadores do calçado são vítimas nas empresas. Apesar de se tratar de um comentário genérico sobre o sector
  • 9. 14 e não obstante o nome da empresa nunca ter sido divulgado, isso não me impediu de ser acusado de estar a ―fazer o jogo do sindicato‖, de ―prejudicar a imagem dos empresários‖ do sector e mesmo de ―traição‖. Em parte, a sua irritação ficou a dever-se aos comentários de outros empresários locais a quem ele próprio teria divulgado a minha presença na empresa, muito provavelmente como forma de reforçar a referida auto-imagem de empresário inovador. 2.2.Entrar no ritmo: esforço físico e adaptação No meu primeiro dia de trabalho saí de casa bastante cedo, num dia de inverno chuvoso e ainda de noite. Alcancei a Zona Industrial localizada junto à entrada sul de S. João da Madeira ainda antes das 8h da manhã. Parei por momentos numa fila de carros a olhar as correrias dos trabalhadores que cruzavam a rua em direcção aos portões das fábricas. A minha ansiedade aumentava com a expectativa de enfrentar pela primeira vez o trabalho na fábrica. O ―choque‖ inicial dos primeiros dias foi particularmente marcante e ilustra um pouco daquilo que são as dificuldades desta metodologia. A entrada na fábrica faz-se normalmente pelas traseiras das instalações. Numa rápida passagem pelos balneários — localizados na mesma divisão da casa de banho —, guarda-se o casaco e o saco com o almoço num armário onde estão também a toalha, o sabonete, papel higiénico, etc., veste-se a bata de trabalho e dirigimo-nos rapidamente para o relógio de ponto, aguardando depois o toque da sirene para iniciar o dia de trabalho. Como era o meu primeiro dia e desconhecia ainda tudo isto, só no intervalo da manhã (10 h) tomei contacto com este local e a primeira impressão que me ficou foi de desagrado, sobretudo pelo mau cheiro e falta de higiene. Nesse dia entrei pela porta da frente e dirigi-me ao encarregado geral, que me aguardava. Trocámos breves impressões mas não adiantei muito sobre o conteúdo do meu trabalho, do qual já estava, aliás, minimamente ao corrente. Limitei-me a adiantar que me interessava sobretudo trabalhar junto dos operários a fim de sentir as dificuldades e exigências da produção na linha de montagem e aceitei de imediato a sugestão que se fizesse uma ficha com o meu nome, destinada ao registo diário das entradas e saídas no relógio de ponto, como acontece com todos os outros. Nesta altura estava preocupado acima de tudo em ter uma actuação discreta e cuidadosa, não divulgando detalhadamente e muito menos logo no início todos os aspectos da observação que pretendia realizar.
  • 10. 15 Recordo com particular nitidez os sentimentos contraditórios que me assaltaram ao mergulhar no ambiente mecanizado e ruidoso das instalações fabris. A agitação e azáfama do pessoal, o barulho das máquinas e descargas de pressão das caixas de aquecimento e refrigeração, os sons dos martelos, o cheiro a óleo e a produtos químicos transmitiram-se uma impressão estranha. Ali estava eu à mercê de uma poderosa engrenagem que parecia já estar a modelar-me, também a mim, desde os primeiros instantes. Assaltaram-se emoções contraditórias, de angústia e curiosidade, de apreensão e expectativa. ―Isto é mesmo a sério‖, pensei. Mas a preocupação em começar não me deixou tempo para reflexões. Após uma rápida explicação do chefe da linha de montagem ocupei o meu posto de trabalho ao lado do tio António, o meu primeiro companheiro, grande conversador e brincalhão apesar dos seus 62 anos de idade. A secção de montagem, onde trabalhei até ao fim é a que ocupa maior número de trabalhadores e a mais importante no processo de fabrico. A ela está ligada também a chamada secção de acabamentos, envolvendo ambas cerca de trinta operários, mulheres e homens, predominantemente jovens. Ao longo da pesquisa realizei diversas tarefas produtivas entre as quais arrancar pregos, riscar as palmilhas, desenformar, dar cola e facear (operações manuais), cardar e prensar os tacões (operações mecânicas). Principalmente na fase inicial o ritmo de trabalho foi extremamente violento em especial se atendermos a que se trabalha (cerca de 9 h por dia) em pé, sob a cadência da linha de montagem semi-automática, cujo andamento varia em função das exigências produtivas e consoante os compromissos quanto ao número de pares a entregar em cada semana. Na semana em que iniciei o meu trabalho vivi momentos de grande ansiedade, nomeadamente quando estive a desenformar sandálias manualmente. Desapertar os atacadores com os dedos da mão, segurar contra o peito e pressionar para dar a folga suficiente, puxar a forma de dentro da sandália e voltar a colocá-la no mesmo tabuleiro, arrumar, contar e registar o número de pares que iam saindo segundo as cores e os modelos. Tudo isto a uma velocidade estonteante, e acima de tudo insustentável face à minha inexperiência e ao défice de calosidade das minhas mãos. Como estava ansioso com a necessidade de mostrar qualidades e predisposto a não ―dar parte de fraco‖ perante os colegas, uma vez que pretendia ser, ou pelo menos parecer, o mais possível igual a eles, fiz todo o esforço por aguentar firme entre o suor e o desespero quando, por vezes, me atrasava e o tio António me gritava do outro lado dos tabuleiros ―agora é
  • 11. 16 você que manda na linha…‖. Nessa noite cheguei a acordar de com dores nos dedos e, ao fim de dois dias tive mesmo de ceder. Dei conta da situação ao encarregado e voltei ao posto anterior. Durante os escassos 10 minutos dos intervalos da manhã e da tarde o cronómetro continuava a marcar os movimentos dos trabalhadores. Apressadamente dirigíamo-nos ao WC para lavar as mãos, de seguida caminhava-se em passada larga para o bar/ refeitório onde, depois de se entrar na rotina e de conquistar a simpatia da D. Amélia (responsável por esse serviço), já tínhamos o café ou a sandes preparada no local habitual do balcão; os restantes 3 ou 4 minutos era o tempo de descomprimir um pouco, caminhar mais lentamente até ao portão, fumar meio cigarro ou trocar duas palavras com o companheiro e regressar ao posto ao toque da campainha. Largar e pegar são gestos completamente automatizados e imediatos. Não há tempo para acabar a tarefa que se tenha em mãos. Ninguém o faz. Para além do posto de trabalho e da correria dos intervalos, as possibilidades de contacto com os trabalhadores ficavam reduzidas à hora do almoço (1 hora apenas) e ao período após a saída, onde a pressa continuava a ser marcante. Por motivos óbvios, almoçava regularmente no refeitório a fim de timidamente me começar a familiarizar com o maior número possível de colegas. Nos primeiros dias recordo-me de ter ocupado uma das mesas mais vazias e estar sentado num dos bancos corridos em frente a uma operária que comia isolada e silenciosa a sua sopa de dentro da marmita. Enquanto olhava para o rosto fechado da minha companheira de ocasião, e para os grupos das mesas vizinhas, partilhava aqueles saborosos momentos de descompressão e sentia um enorme desejo de sossego e alívio por estar momentaneamente fora do torpor dos equipamentos fabris e da azáfama produtiva. Além do silêncio geral, certamente agravado pela presença de um estranho que gerava alguma desconfiança (como se provou depois), notei ainda que a maioria almoçava em menos de um quarto de hora. Por exemplo, enquanto eu ainda me preparava para começar a almoçar já algumas das jovens se aprontavam para arrumar as coisas e limpar a mesa, tentando assim aproveitar a o resto do tempo para descomprimir e passear um pouco pelos arredores da fábrica. Este desejo de paz, esta necessidade de evasão, aparece assim como consequência directa da cadeia de pressões, do stress físico e psicológico a que o processo produtivo nos conduz.
  • 12. 17 2.3. Angústias e dilemas Ao relatar estes episódios da minha vivência na fábrica, que correspondem a pequenos fragmentos do meu Diário de Campo, pretendo dar a conhecer situações que, apesar de serem pontuais, mostram como aquilo que se observa é inseparável daquilo que se sente, e neste caso concreto ilustram a importância do desgaste físico e seus efeitos psíquicos na construção das rotinas e das atitudes perante o trabalho. Uma experiência que, sentida na pele, nos ajuda a perceber algumas das resistências desta colectividade operária, não só quanto à adesão aos objectivos da empresa mas também quanto a uma participação mais activa nas estruturas sindicais. É nessa medida que a vivência da experimentação é tão importante para observar e compreender. A partilha da vida prática com a comunidade em estudo é uma forma de perscrutar o caminho das experiências alheias através da experiência própria ou, para usar as palavras de Bourdieu, é ―uma espécie de exercício espiritual que nos permite alcançar, através do esquecimento do self uma verdadeira transformação do olhar que lançamos sobre os outros‖ (Bourdieu, 1996: 24) Efectivamente, através da relação que estabeleci com os trabalhadores, pude comprovar como os papéis de ―observador‖ e de ―observado‖ se misturam e permanecem em constante conflito. O impacto da minha chegada à fábrica implicou que me tornasse o principal objecto de atenção, de observação e até de ―estudo‖. São estas situações que nos devem levar a pôr em causa a tradicional divisão que tende a tomar os membros da comunidade em estudo como meras instâncias vulneráveis, ingénuas e passivas. Ao penetrarmos no seu universo somos levados a orientar o exercício da pesquisa para a partilha do mundo comum com os nossos parceiros momentâneos e a aceitar que também eles possuem teorias acerca dos outros e de si próprios. Neste sentido, é inevitável e até desejável relativizar a autoridade da ciência para entrar em diálogo com outras formas de conhecimento prático que emanam da experiência empírica da própria colectividade (Burawoy, 1991: 293). No início estava preocupado, antes de mais, em ser capaz de dar resposta às exigências produtivas porque tinha consciência que tudo o resto passaria por aí. Assim, quer a inexperiência técnica quer a ansiedade gerada pelo querer aprender e querer ―estar à altura‖ para melhor poder integrar-me, obrigavam a que a minha atenção se concentrasse quase em exclusivo nas tarefas da produção. Parecia-me impossível conciliar a concentração no trabalho com a observação dos comportamentos dos meus
  • 13. 18 colegas e do funcionamento geral da fábrica. Por um lado, porque demorou algum tempo até que a destreza na realização das operações me permitisse ao mesmo tempo dar atenção ao que se ia passando à minha volta sem que isso perturbasse o meu trabalho, por outro lado porque, conforme me fui apercebendo com o correr do tempo, os trabalhadores desenvolveram os seus mecanismos perceptivos até níveis particularmente sensíveis, conseguindo captar com facilidade tudo aquilo que sai fora das suas tarefas e rotinas normais. Ao contrário do que se passava comigo, que nos primeiros tempos não conseguia conversar nem entender os meus colegas no meio de todo aquele ruído, o meu colega de posto (o tio António), por exemplo, conversava com as operárias dos acabamentos através da linha de montagem e entendia tudo o que elas diziam olhando para os movimentos dos lábios. Qualquer movimento menos usual era em geral detectado à distância mesmo quando, para meu espanto, todos pareciam estar completamente absorvidos na tarefa que tinham em mãos. Quando aparece uma visita na fábrica, quando surge uma discussão, quando alguém entra ou sai do portão a horas fora dos horários normais, quando, por qualquer motivo, alguém se desloca a outra secção ou esteve à conversa com o patrão ou com o encarregado, logo um vasto conjunto de olhares discretos e silenciosos trata de registar pormenorizadamente o referido ―acontecimento‖. Assim, o tratamento dos encarregados, o cumprimento do patrão quando passava na linha de montagem e a facilidade com que se detinha a trocar impressões comigo, foram os primeiros sinais a levantar dúvidas e cautelas. Sinais esses que vêm juntar-se à falta de umas mãos robustas e calejadas, à postura gestual denunciadora de um estatuto social diferente e principalmente à ―maneira de falar‖, conforme mais tarde me confirmaram alguns daqueles que de certo modo se vieram a tornar os meus amigos dentro da empresa. As especulações em meu redor ao longo da primeira semana de trabalho foram diversas: desde ser um engenheiro que estava a aprender as diferentes tarefas para depois assumir uma posição de encarregado, até ser um psicólogo contratado pelo patrão para tentar estudar o pessoal a fim de melhorar a produção, passando por ser um amigo do patrão que vinha para ali aprender com vista a mais tarde abrir uma fábrica e, finalmente, surgiu até o boato de que se trataria de um agente da Polícia Judiciária que se queria infiltrar na indústria do calçado para detectar negócios de tráfico de droga. Este é o momento em que aquilo que os ―observados‖ vêem é mais significativo do que
  • 14. 19 o próprio olhar do ―observador‖. Mas este tipo de respostas revela ao mesmo tempo o muro de obstáculos que de imediato começou a erguer-se entre o investigador e o colectivo dos trabalhadores. O panorama era, nesta altura, de desconfiança e retraimento. Rapidamente me apercebi que esta situação se apoiava, em boa parte, na relação privilegiada que o patrão e os encarregados mantinham comigo. Embora estivesse a cumprir todas as exigências produtivas e disciplinares com o maior rigor, o modo como os responsáveis se dirigiam a mim, a atenção que me dedicavam e certamente também a forma como eu falava com eles indiciavam que era alguém que estava ―do lado deles‖, isto é, do lado do patrão. Como também não foi difícil perceber, nesta fábrica, apesar da fraca ou nula actividade sindical, a clivagem classista era óbvia mesmo no campo das representações e atitudes, ou seja, os trabalhadores funcionavam na base do habitual esquema dicotómico — o ―eles‖ e o ―nós‖ — e deste modo, no jogo diário das interacções esse critério selectivo exigia opções claras. É sabido que a atitude do investigador tem de pautar-se, como assinalei atrás, pela discrição. Pensei então em esclarecer os meus objectivos de pesquisa e mostrar-lhes que o estatuto ―especial‖ que ocupava na fábrica poderia constituir um instrumento capaz de lhes proporcionar algumas vantagens. A ideia de esperar pacientemente que as coisas evoluíssem no bom sentido foi então posta em causa. Era urgente assumir o meu distanciamento perante a direcção da empresa e mostrar alguma solidariedade para com a resistência em surdina que, sob a forma de permanentes queixumes e desabafos, os trabalhadores deixavam transparecer no dia-a-dia. Conversei com a única operária conotada como sindicalista mas, como percebi a sua fraca popularidade, optei por diversificar os contactos, procurando abrir portas sem fechar nenhuma e evitando privilegiar os elementos claramente conotados, fosse como ―sindicalista‖, fosse como ―mau profissional‖ ou como ―graxista‖, por exemplo. A revelação do meu estatuto de investigador era incontornável, quer por razões éticas, quer porque a conquista da confiança exige que se exponham alguns elementos da identidade pessoal, como em qualquer processo de interconhecimento. Comecei, então, a pouco e pouco a emitir opiniões e a fazer perguntas sobre alguns assuntos que surgiam entre os grupos de trabalhadores, desde o desporto aos temas do dia-a-dia de trabalho.
  • 15. 20 Passaram-se momentos de desânimo e só lentamente as oportunidades começaram a surgir. Tentei aproveitá-las da melhor maneira, procurando integrar os pequenos diálogos e conversas informais que surgiam durante as pausas, mas, como grande parte dessa actividade discursiva tinha uma forte componente lúdica, de brincadeira e de subentendidos, à mistura com jogos de sedução e piadas sexistas entre homens e mulheres, era uma tarefa difícil para alguém pouco familiarizado com o meio. De facto, a vertente da informalidade e das brincadeiras mais ou menos corrosivas que a colectividade operária põe em marcha, não é senão o reflexo de um jogo de poderes, como outros estudos já mostraram (Collinson, 1992). E neste caso foi, na verdade, uma das dimensões que mais directamente serviu de critério de selecção no meu processo de aceitação pelo grupo operário. A aprendizagem inicial, apesar de intensa e dolorosa, foi extremamente importante. Desde logo porque me obrigou a questionar alguns dos meus próprios pressupostos. Por exemplo, a tendência para procurar estabelecer conversas ―sérias‖ que fossem claramente orientadas para os objectivos da pesquisa — os conflitos com as chefias, as relações com o sindicato, as opiniões sobre a empresa, etc. — levava sistematicamente ao silêncio ou a respostas evasivas. Ao fim de algum tempo fui obrigado a constatar que, no fundo, estava a querer ver aquilo que não existia e, sem me aperceber disso, a avaliar aquele operariado segundo os velhos parâmetros da militância sindical e os estereótipos tradicionalmente atribuídos à classe operária. À medida que se sucediam os dias e as pequenas ocorrências, fui explicando a alguns trabalhadores os meus objectivos — sublinhando que todas as minhas fontes seriam anónimas — e, a pouco e pouco, comecei a assistir a pequenos desabafos e gestos de revolta que eram abertamente exibidos junto a mim, perante as mais diversas situações laborais e os comportamentos despóticos de alguns encarregados, sinais estes que comprovavam finalmente a minha aceitação no seio do grupo. Alguns sectores da força de trabalho passaram a procurar-me espontaneamente e a pedir a minha opinião sobre diversos assuntos. Mas isso só aconteceu quando se tornou clara a minha postura crítica perante as chefias e, consequentemente, o meu alinhamento cúmplice com as atitudes de descontentamento dos operários, que se repetiam diariamente. Apesar disso, persistiu sempre algum embaraço e retraimento, aspectos que, por um lado, exprimem a distância cultural e de estatuto que nos separava e, por outro, são um sintoma da condição de subordinação. Não apenas a subordinação de classe ou a dupla subordinação no caso
  • 16. 21 das operárias — a condição de classe e a condição feminina — mas também a atitude de dependência cultural de quem, perante um ―académico‖, se sentia mais inclinado a ouvir do que a falar. 2.4. O investigador e os jogos de poder A necessidade de dar atenção aos efeitos perturbadores da minha presença na fábrica deve-se não só ao desejo de controlar a sua interferência nas observações diárias mas também ao seu significado em termos da análise substantiva. Obviamente que me refiro, não a perturbações de ordem funcional mas, apenas, ao impacto simbólico e sociológico introduzido por um elemento estranho e com um estatuto próprio. A forma como procurei compatibilizar o apoio institucional das hierarquias com a aceitação e colaboração dos trabalhadores, além das inúmeras dificuldades que levantou, deu lugar a um processo dinâmico e contraditório que pode ser interpretado à luz da estruturação das relações de poder no interior da fábrica. Desde a desconfiança inicial agravada pela atenção que me dedicavam os chefes de sector e o próprio patrão até à fase final em que foi visível a utilização estratégica que alguns trabalhadores faziam da relação privilegiada que mantinham comigo, passando pelo relacionamento com os encarregados, não é difícil identificar situações que comprovam a forma como o investigador personifica um papel activo na configuração dos jogos e lutas internas, favorecendo em certos casos a sua momentânea transfiguração. As relações com os encarregados podem servir para ilustrar esse jogo. Por exemplo, no que respeita à divulgação dos objectivos da pesquisa tinha sido prevista a necessidade de jogar na ambiguidade, isto é, divulgar o suficiente para clarificar a situação mas sem entrar em detalhes excessivos, potencialmente comprometedores. Apesar de no global ter conseguido uma colaboração aberta da parte dos encarregados, no início notei o cuidado com que observavam a minha conduta junto dos operários. No caso particular do chefe da secção onde eu próprio trabalhei, a nossa relação, embora sempre colaborante, pautou-se por alguma instabilidade e evoluiu ao longo do tempo entre atitudes de curiosidade e aproximação onde cheguei a detectar sinais de reverência, momentos pontualmente reveladores de hostilidade e, noutras alturas, expressões de insegurança e desconforto perante o meu crescente à-vontade com os trabalhadores.
  • 17. 22 Em particular ao longo das últimas três semanas, em que procedi à aplicação de um pequeno inquérito aos trabalhadores — preenchido nos intervalos ou levado para casa e trazido no dia seguinte e onde, entre outras questões, se faziam perguntas sobre a empresa e as relações com as chefias —, terá ficado clara junto dos encarregados a ideia de que na posse daquele tipo de informações a sua posição perante mim estava de algum modo mais vulnerável. Foi também nas últimas semanas que, seguindo a solicitação inicial do proprietário, realizei algumas reuniões com os chefes de secção a fim de retirar daí elementos para a elaboração do relatório de ―diagnóstico‖ que me foi solicitado. Nessas reuniões discutiram-se alguns conceitos de teoria das organizações e da liderança (por mim introduzidos) e debateram-se problemas gerais da empresa (insatisfação do pessoal, relações com o patrão, etc). É claro que, ao pôr em prática estas iniciativas e sabendo-se que tinha para isso o apoio do proprietário, os encarregados foram percebendo que eles próprios estavam a ser objecto de particular atenção. Se, por um lado, isso reforçou de certo modo a sua vulnerabilidade face à posição particular e ―privilegiada‖ em que me encontrava, por outro lado, à medida que o mesmo foi sendo percebido pelos operários, começou a desenvolver-se no seu seio um crescendo de à-vontade onde por vezes transparecia uma ironia latente e um gozo subliminar perante o embaraço de alguns dos encarregados, em particular o do sector da montagem, visível, por exemplo, nas relações que mantinha comigo no posto de trabalho e até na alteração subtil ao seu comportamento, mais comedido e cauteloso, face aos seus subordinados. Para dar um exemplo concreto, na fase final, como o meu trabalho me permitia circular junto das operárias dos acabamentos (pois estava a dar cola nos palmilhados ao longo da linha de montagem), era visível a procura de que comecei a ser alvo por parte delas, para conversarem comigo. Além de já me conhecerem melhor sabiam que podiam fazê-lo sem serem chamadas à atenção, ao contrário do que acontecia quando falavam umas com as outras. Assim, podiam aproveitar para descomprimir face ao stress do ritmo produtivo e ao mesmo tempo era uma forma de afirmação e de pequena vingança dissimulada perante o seu mais directo opressor. Por vezes diziam-me: ―quando você for embora isto vai acabar…‖. 3. Conclusão Se a observação participante é, em qualquer situação de pesquisa, um tipo de metodologia que sempre põe à prova a capacidade de resistência e de integração do investigador, num ambiente como o de uma empresa industrial com estas
  • 18. 23 características, as dificuldades ganham contornos muito próprios. As clivagens são evidentes e sobrepõem-se claramente às orientações ideológicas dos agentes. Os antagonismos estruturais repousam nos recursos incorporados e nas condições objectivas em que os actores se situam no mundo do trabalho, mas reflectem-se nas subjectividades colectivas diferencialmente estruturadas pelos diversos segmentos da força de trabalho. Posicionado entre este conjunto de lógicas e pressões cruzadas, o investigador confronta-se permanentemente com uma exigência de neutralidade nunca totalmente conseguida e os imperativos de solidariedade exigidos pelo elo mais fraco da estrutura de poderes da empresa. É, como vimos, um jogo dinâmico feito de múltiplas subtilezas, que exige um constante esforço de readaptação e onde o próprio papel do cientista no meio desse jogo deve ser questionado e discutido. As dúvidas e inquietações de ordem científica e pessoal que me assaltaram foram sendo diariamente registadas no meu Diário de Campo. Anotar as observações efectuadas constitui um requisito imprescindível para o sucesso de uma observação desta natureza. Escrever o diário todos os dias é essencial. Apesar do esforço suplementar que representa escrever durante pelo menos duas ou três horas após a saída da fábrica – em particular tendo em vista o desgaste físico, e psicológico, de um dia de trabalho na linha de montagem –, essa é uma tarefa decisiva. O trabalho da escrita representa, ele próprio, uma prática reflexiva que, por isso mesmo, vai modelando as condições de envolvimento com o grupo por parte do cientista. Longe de ser uma transcrição, um puro reflexo do que aconteceu, a escrita é uma tradução e uma interpretação. Nessa medida, compatibilizar a ―fidelidade‖ com a ―legibilidade‖ do produto final, conciliar a riqueza sociológica da informação recolhida com a defesa do anonimato dos informantes, são requisitos difíceis de conciliar. O envolvimento com o outro é sempre um processo através do qual os actores sociais se projectam a si mesmos. A esse jogo de espelhos – onde se inscrevem múltiplas dimensões identitárias – não é alheio o cientista social enquanto investigador e observador. Ao procurar dar visibilidade aos observados está, ele próprio, a expor-se e a confrontar o seu saber com os saberes alternativos em estudo. Para ser aceite pela comunidade que estuda tem de participar nesse jogo e negociar as suas próprias representações e os juízos implícitos que se inscrevem nos equipamentos teóricos e metodológicos que leva consigo. Se o conhecimento científico tem de despir-se da sua tradicional postura de autoridade, a prática do envolvimento pode assumir-se como uma
  • 19. 24 via fundamental para a sua reinvenção. A perspectiva auto-reflexiva que aqui procurei adoptar situa-se nessa linha. Referências bibliográficas Bourdieu Pierre (1973), Le Métier de sociologue, Paris, Mouton. Bourdieu Pierre (1996), ―Understanding‖, Theory, Culture and Society, vol. 13, nº 2. Bourdieu Pierre e Wacquant, Loïc (1992), An Invitation to Reflexive Sociology, Chicago, University of Chicago Press. Burawoy, Michael (1979), Manufacturing Consent, Chicago, The University of Chicago Press. Burawoy, Michael (1985), The Politics of Production, Londres, Verso. Burawoy, Michael (1991), Ethnography Unbounded — power and resistence in the modern metropolis, Berkeley, U. of California Press. Burawoy, Michael e Jánus Lukács (1992), The Radiant Past: Ideology and Reality in Hungary’ Road to Capitalism, Chicago, Chicago University Press. Collins, Randall (1981), ―On the Microfoundations of Macrosociology‖, American Journal of Sociology, nº 86. Collinson, David (1992), Managing the Shopfloor - Subjectivity, Masculinity and Workplace Culture, Berlim/Nova Iorque, Walter de Gruyter. Estanque, Elísio (2000), Entre a Fábrica e a Comunidade: subjectividades e práticas de classe no operariado do calçado, Porto, Afrontamento. Fine, Gary Alan (1991), ―On the Macrofoundations of Microsociology‖, The Sociological Quarterly, Vol. 32, nº 2. Fine, Gary Alan (1992), ―Agency, Structure, and Comparative Contexts: Toward a Synthetic Interactionism‖, Symbolic Interaction, vol. 15, nº 1. Fowler, Bridget (1996), ―An Introduction to Pierre Bourdieu‘s ‗Understanding‘‖, Theory, Culture and Society, vol. 13, nº 2. Giddens, Anthony (1989), A Constituição da Sociedade, S. Paulo, Martins Fontes Editora. Haraway, Donna (1992), Primate Visions: Gender, Race and Nature in the World of Modern Science, Londres, Verso Santos, Boaventura de Sousa (1983), ―Os conflitos urbanos no Recife: o caso do ‗Skylab‘‖, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 11. Santos, Boaventura de Sousa (1995), Toward a New Common Sense, Londres/Nova Iorque, Routledge. Schutz, Alfred (1970), On Phenomenology and Social Relations, Chicago, The University of Chicago Press.