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44 • Público • Quinta-feira, 3 de Agosto de 2017
do Norte é uma democracia (o que gerou
polémica no próprio seio do partido, diga-se
em abono da sua democraticidade interna),
e mais recentemente (fevereiro de 2014) o
PCP votou isolado no Parlamento contra
a condenação dos crimes cometidos por
aquele regime despótico. Na campanha
presidencial de 2016 foi patético o tergiversar
de Edgar Silva (candidato do PCP) no
debate televisivo com Marisa Matias (BE)
a propósito de uma pergunta direta sobre
o mesmo assunto. Já o caso de Angola,
designadamente a mediatização que foi
dada ao protesto pacífico de um grupo
de jovens, cujo principal protagonista, o
músico Luaty Beirão, esteve em greve de
fome durante mais de um mês, revelou
divisões claras entre o PCP e o Bloco, com
o primeiro a ficar inicialmente calado e os
bloquistas a assumirem uma solidariedade
ativa, denunciando o regime cleptocrático de
Eduardo dos Santos.
No Parlamento, o
PC não ficou isolado
nem acompanhou
PS e BE nas suas
propostas de
condenação,
preferindo votar
ao lado da direita
por considerar que
tal voto visava “pôr
em causa o normal
funcionamento
das instituições
angolanas”.
A terrível
situação que
atinge a Venezuela
é mais um caso
emblemático dos
equívocos de alguns
setores da esquerda
portuguesa. Há cerca
de um ano, Mariana
Mortágua, realçando
ESPAÇOPÚBLICO
A situação na Venezuela é
mais um caso emblemático
dos equívocos de setores da
esquerda portuguesa
ElísioEstanque
Entre o populismo
e o euroceticismo
P
ode dizer-se que o populismo se
define como um discurso baseado
em juízos simplistas e dicotomias
fáceis. Diz-se ao povo (às massas)
o que ele espera ouvir, sabendo-
se que o senso comum popular é
fundado no princípio maniqueísta
que divide a sociedade entre os
bons e os maus. Portanto, como
afirmou um dos seus teóricos (Cas
Mudde, 2004), o populismo pretende acima
de tudo “agradar aos eleitores/povo e assim
‘comprar’ o seu apoio em vez de procurar —
racionalmente — a ‘melhor opinião’”. Muito
já foi dito sobre populismo e nacionalismo e
muito está por dizer.
Pode distinguir-se o populismo de direita
do de esquerda, com base sobretudo nos
objetivos enunciados, ou seja, oportunidades
individuais e primazia do mercado (no
caso da direita liberal) e, por outro lado,
mais igualdade e mais políticas sociais
(no caso da esquerda). A defesa do povo
contra as elites e a alusão a uma identidade
“autêntica” (nacional ou local) que emana
da comunidade podem ser, e são, elementos
partilhados pelos populismos de direita
e de esquerda. Entre a esquerda ganhou
visibilidade a posição do Podemos, em
Espanha, quando o seu líder assumiu
(num desafio a E. Laclau, outro teórico do
assunto) que ser ou não populista depende
se se está no poder ou na oposição. Se
estás na oposição e queres construir novos
sujeitos políticos “hay que ser-lo”, diria
Iglesias. Quando se governa, termina o
populismo e pode ter lugar uma espécie de
“compromisso histórico” (à la Berlinguer).
Essa atitude ambivalente exprime-se na
fórmula estar “com um pé dentro e outro
fora” das instituições. Podemos e BE
partilham esse princípio, enquanto o PC
está dentro fingindo estar fora, no seu estilo
esquizofrénico.
Uma outra vertente dos equívocos da
esquerda radical (nomeadamente no
caso de Portugal) é no que se refere aos
alinhamentos internacionais. Quer o PCP
quer o BE têm revelado posições ambíguas,
o que, eventualmente, se liga ao facto de
estarem agora no arco do poder. Quanto ao
primeiro, paira ainda no ar a célebre máxima
de um seu dirigente (Bernardino Soares)
quando, em 2003, afirmou ter “dúvidas”
quanto a considerar se o regime da Coreia
os indicadores positivos conseguidos pelo
chavismo, como a redução significativa da
pobreza e a melhoria na educação e saúde —
dados factuais conhecidos, mas insuficientes
para justificar o resto —, afirmava, no
Esquerda.net, que “o Governo da Venezuela
cometeu erros graves: retirou poderes
ao Parlamento, diminuiu a democracia,
permitiu a corrupção em volta do petróleo
e foi incapaz de construir uma rede de
serviços públicos alicerçada numa economia
diversificada. A Revolução Bolivariana
degrada-se a olhos vistos”. “Erros graves.”
Do Bloco espera-se mais. No momento em
que escrevo acabo de ler o comunicado
do PCP sobre a eleição para uma nova
Assembleia Constituinte na Venezuela. O tom
eufórico é um hino a Maduro, exaltando este
“ato de afirmação democrática” contra “o
ataque ao povo venezuelano pelos Estados
Unidos e União Europeia”. O número oficial
de votantes foi expressivo (41,5%), mas os
observadores internacionais duvidam da
veracidade dos mesmos. Numa afirmação
curiosa de respeito pela democracia eleitoral
(as manifestações boas são só as nossas...)
e de condenação dos protestos de massas
neste país durante meses seguidos, onde já
morreram mais de uma centena de pessoas,
em luta aberta contra a fome e o populismo
chavista do atual governo, o PCP congratula-
se e parece ter sido o primeiro a fazê-lo, o
que diz bem do seu entusiasmo. Tudo culpa
da quebra do preço do petróleo e dos EUA?
Excelente exemplo de uma análise populista.
O curioso é constatar a dualidade de
critérios. E isto não vale apenas para os
comunistas. Quando, na Europa ou nos EUA,
as manifestações de rua são consideradas
progressistas, na Venezuela são tidas
como golpistas, alegadamente a mando
das potências ocidentais e da CIA, que
manipulam milhões de jovens em protesto
dia após dia. Tirando uns quantos inocentes,
todos sabemos que os interesses petrolíferos
são em muitos casos decisivos, tal como o
Algumas
destas
posições
danossa
esquerda,
sãoapenaso
reversodoseu
visceralanti-
europeísmo
Sociólogo;professordaFaculdadede
EconomiadaUniversidadedeCoimbra
são — e foram no passado — os interesses
geoestratégicos das grandes potências. A
conversa de que “é ao povo que cabe decidir
o seu próprio futuro” é uma proclamação
de pura retórica, tão válida hoje como em
Portugal em 1975, tão válida na Venezuela
como na Hungria (Orban fez algo semelhante
a Maduro), no Afeganistão, na Líbia, no Irão
ou na Ucrânia. Ou não será?...
Já agora, convém lembrar o
posicionamento destas correntes no atual
cenário internacional, com a crítica a Trump
pelo meio (foi ele, de resto, quem mais
ajudou a colocar o tema na ordem do dia),
mas em que as suas ligações perigosas com
o amigo Putin ou as iniciativas imperialistas
deste (Ucrânia) e atividades criminosas a
seu mando ou com a anuência do Kremlin
(nos EUA ou na UE) em diversas matérias,
nomeadamente o conhecido apoio a forças
neofascistas (Le Pen), merecem apenas a
condescendência e o silêncio.
Em suma, algumas destas posições da
nossa esquerda (com algumas exceções,
importa sublinhar) no alinhamento com
regimes populistas, como o de Chávez-
Maduro ou outros que vão no mesmo
sentido, são apenas o reverso do seu
visceral antieuropeísmo. No discurso,
porque a prática é diferente. Não falo da
atitude crítica à atual UE e aos poderes
tecnocráticos e forças neoliberais a que se
sujeitou por culpa própria. Apontar a crítica
radical às instituições e promover uma
outra Europa, uma Europa transparente,
democrática, solidária e fundada na
cidadania transnacional é o que pretendem
os europeístas genuínos. Essa é também uma
bandeira da esquerda. De outra esquerda.
Vale a pena referir, por exemplo, nomes
como Yanis Varoufakis ou Rui Tavares, para
exemplificar vozes que são ao mesmo tempo
inequivocamente europeístas e de esquerda.
E no campo da social-democracia muitas
opiniões (incluindo o PS e o próprio António
Costa) vão no mesmo sentido.
Já o alinhamento com Mélenchon e a
diabolização de Macron revelam, de facto, o
poderoso efeito populista no seio daquelas
forças políticas, condimentado com algum
dogmatismo de quem ainda finge acreditar
em “amanhãs que cantam”. Trata-se de
um fingimento cínico porque muitas das
posições mais extremadas vêm, justamente,
de quem se apraz em beneficiar do sistema
democrático “burguês” e retirar vantagens
das instituições europeias. Bastaria
confrontar o discurso das várias lideranças
populistas da América Latina ou do Leste
europeu, por exemplo, com o volume (e
a sede) das suas contas bancárias para se
perceber o que é o populismo.
CARLOS GARCIA RAWLINS/REUTERS