1. 58 | PÚBLICO,SEX11MAR2016
NUNO FERREIRA SANTOS
Com o Alentejo
na alma
E
stamos em 1960 (ou talvez
1962), no verão tórrido de um
Alentejo desprezado pelo poder
salazarista. Abril estava ainda
fora daquele horizonte, aberto
e amplo mas a vários títulos
asfixiante. Uma calma que
apenas estremecia à passagem
esporádica de um ou outro
automóvel com os pneus a
guinchar na curva apertada após uma
longa reta. Os sons das cigarras rompiam
o silêncio e a monotonia daquele território
árido, onde o amarelado da paisagem, o
restolho seco, era apenas rasgado pelo
tapete negro de alcatrão cintilante quase
a derreter-se ao sol abrasador. Mas na
berma da estrada começava a vislumbrar-
se, ao longe, uma poeira anormal em redor
de duas silhuetas que se erguiam lado a
lado com alguma coisa por trás. No início
poderiam confundir-se com miragens
em pleno “deserto” alentejano. Mas
não. Eram bem reais. No seu movimento
compassado percebi pouco depois que
eram cavalos, trazendo atrás de si um
homem acorrentado. Cavalos montados por
aquela guarda, de farda cinzenta e botas
altas, que aterrorizava crianças e ainda mais
os adultos, pelo menos os mais conscientes
das razões da sua miséria e do sufoco da sua
liberdade. Do alto dos seus cavalos brancos,
estas figuras altivas eram a personificação
do poder, em absoluto contraste com o
ser miserável, com as mãos acorrentadas,
curvado e maltrapilho, a desfalecer de sede.
Deram-lhe água, mas só depois de saciar os
cavalos no fontanário à beira da estrada.
Estes mesmos guardas, ou outros seus
comparsas, eram aqueles que regularmente
frequentavam o café-restaurante da família.
Vinham por vezes em grupos de quatro,
recordo-os, grandes e gordos, com ar
carrancudo. Creio agora que percebiam
a raiva silenciosa que causavam à sua
passagem. Sentavam-se num espaço
interior, mais resguardado da casa, e a
mesa, devidamente preparada, com toalhas
de tecido branco, em breve ficava recheada
de iguarias, com vinho, presunto, queijo
e às vezes outros petiscos. Ficavam horas
a comer, mas falavam pouco; e depois de
empanturrados saíam como se fosse da
casa deles. Já se sabia que não pagavam a
despesa, mas pelo menos era de esperar
que tivessem um gesto, ainda que fingido,
de pedir a conta. Assim pensavam as
vítimas daquele saque (os meus pais).
Porém, na maioria das vezes nem isso
acontecia. Entravam e saíam atravessando
o espaço público da taberna, espalhando
um temor respeitoso entre os clientes
domingueiros da Casa de Pasto — o 15
(era esse o nome), um espaço nos fins de
semana sempre
animado por grupos
de homens, na sua
maioria mineiros
que, entre cada
rodada, exprimiam
em coro a sua
amargura, mas
também a força
coletiva através do
agora celebrado
“cante alentejano”.
Aquele
acorrentado atrás
dos cavalos da GNR
poderia ser um
“maltês”, o nome
dado a quem, sem
emprego certo
nem inserção
na comunidade,
procurava o
precário sustento
andando de
monte em monte,
à míngua de uns
dias de trabalho “a
comedias”, como
se dizia, ou seja, em
troca de umas sopas e pouco mais (“come
a dias”, porque havia muitos sem nenhuma
comida, presume-se). Mas como se esse não
fosse já um castigo suficiente, tratava-se de
uma condição considerada não só “ilegal”
como aparentemente ameaçadora para a
ordem vigente. Por isso, o mínimo descuido
era suficiente para que o desgraçado fosse
parar à “pildra”. Pior ainda, para além da
prisão, era a exibição pública da punição
exercida sobre quem fugia de uma suposta
“norma social”, na verdade artificial e só
mantida por um regime ditatorial. Esses
eram os malteses, um nome que na época
carregava um sentido pejorativo que até as
Umalentejano
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oAlentejo
naalma
crianças temiam. Ser diferente já era uma
ameaça que, não apenas o regime mas a
própria comunidade olhava com suspeição.
Mas os outros, aqueles que não andavam
na mina, iam diariamente “à praça”, um
“mercado” de força de trabalho, em sentido
literal, que decorria no largo principal da
aldeia, onde, com alguma sorte, se poderia
ser um dos escolhidos para trabalhar
naquele dia. Trabalhos de sol a sol,
enquanto os da mina, embora produzindo
na escuridão e à luz do gasómetro, tinham
pelo menos um emprego certo.
Estas memórias não se apagam. Nesse
período ocorreram algumas greves nas
minas. Recordo que numa delas a aldeia
inteira andou em alvoroço quando se
soube que a guarda tinha carregado sobre
os mineiros. Umas dezenas foram presos.
Alguns eram de Rio de Moinhos (a aldeia
de que falo) e até um tio meu, soube
depois, tinha sido levado para Lisboa, pela
PIDE. Não ficou muito tempo na prisão,
mas para um homem honrado e por
todos respeitado — um assalariado para
quem a única “subversão” cometida era
trabalhar no duro para alimentar os filhos,
ingerindo aquele pó durante décadas,
que lhe provocaria o cancro que o matou
anos depois —, as “duas chapadas na cara”
que lhe foram dadas por um qualquer
esbirro do regime, para que confessasse os
nomes dos cabecilhas da greve, já foram
um preço inconcebível. A dureza da vida
no Alentejo nesses anos de penúria e
repressão, para quem nasceu e vive como
alentejano, não é uma mera “recordação”,
é sim um elemento que se inscreve na
própria identidade alentejana, pois a sua
força é indissociável da resistência (em
geral silenciada pela ameaça, nos anos de
chumbo do salazarismo). O ressentimento
cultivado por comunidades inteiras, por
terem sido pisadas décadas a fio pelos
DebateAlentejoeidentidade
ElísioEstanque
protegidos do regime, não apagou o afeto,
mas, para um alentejano, este não se
mede pelo palavreado fácil. Pessoalmente
sinto-o no acolhimento, no sorriso largo,
na oferta de guarida ou do almoço, de
braços abertos, em cada viagem às origens.
Cada regresso é como um aconchego no
seio de uma grande família cujos gestos
protetores se perpetuam através das
gerações. As caras de hoje, umas mais
jovens, talvez de terceira geração, outras
mais enrugadas — as que ainda reconheço
—, foram transmutadas pelo tempo, mas é
a mesma família. Felizmente, as conquistas
democráticas devolveram alguma dignidade
ao Alentejo, mas apesar do envelhecimento
demográfico, não apagaram essa força
cultural que hoje é reconhecida em diversos
domínios patrimoniais, com destaque para
os grupos corais ou a viola campaniça.
Os fluxos migratórios dos anos 1960
também marcaram a região e até aqueles
que, como eu, não tiveram de atravessar
fronteiras “a salto” para fugir da miséria (ou
da guerra) foram reinventar a identidade
do Alentejo para outras paragens, menos
rurais mas ainda assim com um agudo
sentido comunitário. Por exemplo, o bairro
de Moscavide, onde vivi na década de 1970,
forneceu-me o contexto suburbano onde
as referências alentejanas se misturavam
com outras origens. A chamada “cintura
industrial de Lisboa” tem uma forte ligação
ao Alentejo, como atestam os diversos
movimentos de solidariedade com as lutas
de mineiros (nomeadamente os de Aljustrel)
e assalariados agrícolas alentejanos. E na
margem sul do Tejo, na CUF, na Lisnave,
na Setenave ou nas povoações de Almada,
Barreiro ou Baixa da Banheira e, de um
modo geral, nos municípios do distrito de
Setúbal, a “marca Alentejo” permanece
bem visível, incluindo nos nomes e noutros
traços culturais reinventados a partir dos
vínculos com a região. A riqueza artesanal,
musical e gastronómica recria-se nas
segundas e terceiras gerações que não
perderam a memória e tudo isso se soma
aos muitos milhares de portugueses que,
não tendo nascido no Alentejo, sentem uma
profunda identificação com a sua cultura e
até com a própria geografia.
Mas a profundidade afetiva e identitária
a que me refiro, apesar de se manifestar no
sentido coletivista e na solidariedade, não
dilui, muito menos apaga, as diferenças
individuais, pelo que, independentemente
dos percursos de cada um, as raízes e as
origens sociais não se escondem nem se
desprezam, nem pelo mais bem-sucedido
cosmopolita ali nascido. Um alentejano
assumido pode ficar ou partir, mas mesmo
quando parte nunca se separa. Caminha
pelo mundo com o Alentejo na alma.
Sociólogo, investigador do Centro de
Estudos Sociais e professor da Faculdade
de Economia da Universidade de Coimbra