O documento discute como José de Alencar usou elementos da cultura brasileira, incluindo hábitos alimentares e nomes de frutas, para criar imagens que ajudaram a imaginar a nação brasileira. Alencar descreveu detalhadamente a alimentação de personagens como o índio Peri para retratar traços da cultura indígena e regionais. Sua obra usou a comida para transportar símbolos nacionais por mais de um século.
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Os sabores da nação de José de Alencar
1. Ricardo Martins Rizzo
Política,
literatura e José de Alencar
alimentação:
José de Alencar e os sabores dissonantes da nação
U
ma das idéias mais difundidas sobre o imagens reconhecíveis ativamente por todos. Por
que seja uma nação é a de que esta seria essa razão, não é possível imaginar a nação a par-
uma “comunidade imaginada”. O surgi- tir de um vazio. Para que essa imagem apareça,
mento de estados nacionais, a instauração do mo- é necessário “montá-la” com os elementos que já
nopólio do uso legítimo da força sobre um territó- se encontram de alguma forma “prontos” – sejam
rio e um povo determinados, foi sempre um fato eles a língua, a história, os hábitos, a cultura, as
político e cultural que precisou recorrer à imagina- tradições, os costumes, os sabores.
ção para se afirmar como sentido. Essencialmente, Embora imaginada, a nação não é uma cria-
a imaginação era necessária para provar que a ção arbitrária. Ela é decerto um “artefato” políti-
cada nação correspondia uma unidade. E mais: a co; porém, a “arte” envolvida na sua criação diz
tarefa cultural e política de imaginar uma nação – respeito à identificação dos elementos comuns à
isto é, de projetar um ideal de unidade sobre uma coletividade, e à sua projeção em uma narrativa
realidade muitas vezes diversificada e conflitante que seja uma espécie de “biografia coletiva”. Essa
– era também uma tarefa coletiva. A comunidade narrativa deve ter o condão de conduzir – imagi-
imaginária deve ser pensada a cada dia, por toda nariamente – toda a coletividade rumo a um des-
a coletividade, sob risco de desagregação. tino histórico comum.
A imaginação da nação é, por isso, ao mes- Não é por acaso que a arte, em particular a
mo tempo subjetiva e coletiva – converte as ima- literatura, teve sempre uma função tão destacada
gens em valores sociais compartilhados. Para que nessa tarefa de imaginar comunidades e destinos
esses valores tornem-se comuns, devem-se buscar dos povos. A narrativa literária tem a liberdade
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2. José de Alencar produziu um inimigo da pureza do idioma. A sua intenção
era justamente demarcar a diferença do jeito bra-
imagens que atravessaram sileiro de falar e escrever o português. Junto com
mais de um século, a nação, deveria nascer uma língua, diferente da-
quela falada pela ex-metrópole.
transportando símbolos Para explicar por que a língua portuguesa
nacionais. do Brasil deveria ser diferente, Alencar apegava-
se à autoridade da ciência do século XIX, e foi
de organizar e imaginar o passado, dando-lhe encontrar na filologia do alemão Jacob Grimm a
forma e significação novas. No Brasil, com a In- explicação que corroborava o seu desejo naciona-
dependência, os escritores românticos, muitos lista: por influência do meio-ambiente tropical, a
deles proximamente associados à política, preo- própria boca brasileira se tornaria com o tempo
cupados com o resgate/invenção de uma história diferente da boca portuguesa. A começar pelo
nacional, tomaram para si a tarefa de recolher os fato de que a boca brasileira estaria exposta a uma
elementos da nascente nacionalidade brasileira e alimentação exuberante. No prefácio de seu ro-
construir com eles uma imagem coerente e evolu- mance Sonhos d’Ouro, de 1872, Alencar indagava:
tiva do Brasil. “o povo que chupa o caju, a manga, o cambucá
José de Alencar (1829-1877) pode ser con- e a jabuticaba, pode falar uma língua com igual
siderado talvez o mais típico desses escritores, pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve
embora fosse um intelectual de atuação marcada- o figo, a pêra, o damasco e a nêspera?”
mente independente, dono de um projeto políti- Não é acidental o fato de que o escritor, ao
co e cultural muito pessoal. Em seus numerosos querer marcar a diferença do modo brasileiro de
romances e peças teatrais, produziu imagens que falar o português, tenha aludido, na divertida
atravessaram mais de um século, transportando metáfora da influência do meio sobre a língua, a
símbolos nacionais. Pesquisou os elementos da frutas tão brasileiras e de nomes tão marcantes,
nacionalidade, desde a etnografia indígena até os como o caju, o cambucá e a jabuticaba. A tentativa
nomes de frutas, aves, árvores, lugares, e soube é rechear o argumento com a evocação poderosa
como poucos lhes dar uma forma especial – a for- dos fortes sabores nacionais, que vêm embalados
ma de uma unidade viva – pela qual o Brasil, de na pronúncia sonora e franca dos seus nomes. O
tão diferentes raças e regiões, aparecia e se reco- romântico José de Alencar, criador do índio Peri,
nhecia como uma única nação. de heróis e heroínas inteiriços e arrebatados pelo
Um dos elementos mais importantes no destino (metáfora e metafísica da história), foi
grande panorama nacional traçado por José de também um realista que pesquisou e descreveu o
Alencar é a língua – o próprio suporte da cons- que considerava serem os elementos cotidianos e
trução simbólica e literária. Alencar deu à língua históricos da nacionalidade – mas, de todo modo,
portuguesa tonalidades brasileiras, sons indí- elementos presentes na vida concreta da coleti-
genas, jeitos populares, ainda que muitas vezes vidade. Nessa preocupação de registrar a vida
“artificiais”. Registrou sonoridades originais, ino- nacional, Alencar mapeou não apenas costumes
vando na sintaxe e no léxico. Foi duramente cri- e histórias, como também as tradições e particu-
ticado por aqueles que o consideravam, por isso, laridades culinárias de diferentes regiões, classes
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3. e grupos sociais. Os diversos sabores da nação in- do fidalgo, atacada por índios aimorés, a jovem
tegram a atmosfera sensitiva de seus romances e Ceci vaga pela floresta guiada pelo seu fiel pro-
são peças importantíssimas na evocação da nossa tetor Peri, que tenciona levá-la a salvo para o Rio
exuberância nacional. de Janeiro. Deslizando pelos rios, o casal vive seu
A alimentação é ela também um elemento idílio, regado pelo banquete que a natureza pre-
definidor da nacionalidade, ao lado da natureza, para a quem, como Peri, sabe colhê-lo.
da qual descende. Alencar retoma a tradição do
Durante esse tempo, o índio preparava
escrivão Pero Vaz de Caminha, e na terra fértil do
a simples refeição que lhes oferecia a nature-
Brasil identifica o capricho de uma natureza que
za. Deitou sobre uma folha larga os frutos que
previra satisfação para os mais ousados paladares
tinha colhido: eram os araçás, os jambos cora-
– criando até o melão, “esse pepino doce, essa in-
dos, os ingás de polpa macia, os cocos de várias
digestão natural que a terra, mãe carinhosa, tem o
espécies. A outra folha continha favos de uma
cuidado de preparar para os estômagos desejosos
pequena abelha, que fabricara a sua colméia no
de emoções fortes”.
tronco de uma cabuíba, de sorte que o mel puro
O herói mais famoso de Alencar, o índio
e claro tinha perfumes deliciosos; dir-se-ia mel
Peri de O Guarani (que em 2007 completou 150
de flores. O índio tornou côncava uma palma
anos), simboliza, juntamente com Iracema, a “vir-
larga e encheu-a com o suco do ananás, cuja
gem dos lábios de mel” que nomeia outro de seus
fragrância é como a essência do sabor; era o vi-
mais famosos romances, uma comunhão com-
nho que devia servir ao banquete frugal.
pleta com a “natureza americana”. São persona-
gens cujas qualidades refletem atributos daque- Em outra passagem, o índio Peri, tentando
la natureza, e cujos valores elevados encontram vencer os seus inimigos aimorés (inimigos tam-
na riqueza natural a metáfora mais freqüente. O bém da família de sua adorada Ceci), toma o cura-
indianismo de Alencar continha um projeto lite- re, poderoso veneno, e oferece o próprio corpo
rário e historiográfico que o levava a reconstruir contaminado aos canibais aimorés. Não logrando
com escrúpulo quase científico aspectos da vida o intento, cura-se do veneno sugando a seiva de
dos indígenas brasileiros, não sem uma dose de uma árvore. A passagem não deixa de ser um re-
idealização que, para além da convenção estéti- gistro dos hábitos alimentares dos “nativos”, em
ca do Romantismo, correspondia às crenças po- que o canibalismo distingue entre índios nobres
líticas do autor. Nesse registro do indianismo de e índios bárbaros. Em Iracema, é o tema da hospi-
Alencar, encontramos o esforço de descrever os talidade indígena que aproxima o par romântico
elementos concretos que dão vida à vida narrada – a índia tabajara e o colonizador português Mar-
dos índios. A sua alimentação comparece como tim: “Iracema acendeu o fogo da hospitalidade,
um traço marcante e revelador, tanto da inclina- e trouxe o que havia de provisões para satisfazer
ção descritiva como da idealização. a fome e a sede; trouxe o resto da caça; a farinha
Em O Guarani, por exemplo, há uma refei- d’água, os frutos silvestres, os favos de mel e o
ção que marca a aproximação do par romântico vinho de caju e ananás”.
principal – o índio Peri e a jovem branca Ceci, A intimidade de Peri e Iracema com a natu-
filha do fidalgo português D. Antônio de Mariz. reza brasileira se manifesta, como se nota, na sua
Depois do terrível incêndio que destruíra a casa alimentação. Iracema é a guardiã do “segredo da
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4. Jurema”. Assim como Peri conhece os efeitos do costumes, traços da sociedade, que ele pretende
curare, Iracema sabe preparar a bebida feita da Ju- fixar. O herói gaúcho Manuel encarna as virtudes
rema, espécie de árvore “meã, de folhagem espes- do homem da Região Sul do Brasil, e vive a sua
sa”, cujos efeitos alucinógenos garantem sonhos vida típica. Na descrição da sua janta rápida e im-
agradáveis e de significado espiritual. É o pró- provisada, observam-se elementos que formam a
prio Alencar quem explica o entroncamento dos típica culinária sulina:
hábitos alimentares na cultura e religião indíge-
Manuel fez com presteza seus arranjos
nas, por meio das notas explicativas do romance.
para a sesta; e deixando a carne a tostar sobre o
Explica, por exemplo, que a jurema “dá um fruto
fogo, aproximou-se do rio para lavar a mão e o
excessivamente amargo, de cheiro forte, do qual
rosto. A janta foi expedita. Uma grande naca de
juntamente com as folhas e outros ingredientes
carne com alguns punhados de farinha; e água
preparavam os selvagens uma bebida, que tinha
bebida no bocal do estribo, que o rapaz teve o cui-
o efeito do hatchis, de produzir sonhos tão vivos e
dado de lavar para dar-lhe a serventia de copo.
intensos, que a pessoa sentia com delícias e como
se fossem realidade as alucinações agradáveis da Em outra descrição, o momento da refeição
fantasia excitada pelo narcótico”. ajuda a fixar as posições sociais:
O entrelaçamento entre a descrição dos há-
Em uma das extremidades da longa mesa,
bitos alimentares e a vida social dos indígenas é
estavam colocados dois pratos com talheres de
uma constante do indianismo de Alencar, assim
prata destinados ao dono da casa e seu hóspe-
como é também um traço muito presente em seu
de. Diante deles fumegava um grande assado de
romance regionalista. Seu projeto literário, além
couro, e um peixe que enchia a imensa frigideira
de resgatar a memória histórica e étnica da na-
de barro. Havia além disso, ervas e legumes.
cionalidade, também pretende soldar a unidade
do vastíssimo território do Império brasileiro, Essa a disposição no interior da casa se-
derramado pelo continente e ameaçado, durante nhorial. Outra é a refeição dos subalternos: “A
a primeira metade do século XIX, principalmente refeição era parca; churrasco, bocado clássico das
entre 1831 e 188, por revoltas e insurreições se- campanhas sulanas, queijo, origones, ou passas
paratistas, das quais a Revolução Farroupilha, no de pêssego. Manuel comia rapidamente e de ca-
Rio Grande do Sul (1835-185), foi decerto a mais beça baixa”.
longa e ameaçadora. Na caracterização da sociedade gaúcha não
A obra literária de Alencar tem, portanto, poderia faltar menção ao chimarrão, que não dei-
entre outros projetos, o de cobrir completamen- xa de sugerir, no seu consumo quase ritual, certa
te a nação no tempo e no espaço, estabelecendo calma doméstica:
referências, valores e símbolos. Em 1870, Alencar
Terminada a refeição, preparou Jacinti-
publica O Gaúcho, em que retrata os costumes
nha o chimarrão; enquanto Manuel chupava a
do Brasil sulino. Nesse romance, o autor ressalta
bomba, trocaram-se entre as três pessoas da fa-
que “na página imensa do solo nacional, escreve
mília algumas palavras, calmas e compassadas,
a imaginação popular a crônica íntima das gera-
sem efusão, mas também sem o mínimo ressen-
ções” por meio da etimologia topográfica. No en-
timento.
tanto, Alencar descreve também, na página dos
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5. Assim como as notas explicativas de Iracema, O ímpeto realista do romance de Alencar
o romance regionalista de Alencar se faz acompa- faz emergir o mundo da produção que governa
nhar de um glossário, no qual aprendemos que um as relações sociais no Brasil rural do século de-
“assado de couro” gaúcho é a “carne que se assa zenove, embora possamos perceber nas tintas
ainda pegada ao couro que lhe serve de caçarola”. com que são figuradas as refeições brasileiras os
Em outro de seus romances regionalistas, tons ideológicos do autor. Com o mundo da pro-
O Sertanejo, encontramos hábitos algo parecidos dução rural, emerge o tema do trabalho escravo.
com os hábitos gaúchos, e novamente a descrição Afinal, Alencar, como vimos, cuidou de registrar
desses hábitos alimentares dá lugar à fixação das também as comidas socialmente típicas, a comida
desigualdades e escalonamentos sociais. O herói urbana como a rural, a comida histórica, regional,
de O Sertanejo é Arnaldo. Em uma passagem, à comida da casa-grande, e comida de senzala. No
semelhança de Manuel, faz também uma refeição seu romance fazendeiro, de que é exemplo Til, de
ligeira e não obstante representativa da secura do 1872, há uma passagem que descreve minucio-
nordeste brasileiro: “Compunha-se esta de uma samente uma intensa sessão de jongo na senzala
naca de carne-de-vento e alguns punhados de fa- da fazenda. Alencar reproduz os cantos entoados
rinha, que trazia no alforje. De postre um pedaço pelos escravos ao som da batucada enérgica do
de rapadura, regado com água da borracha”. samba. Ouçamos do que eles falam:
Nesse romance, as descrições “culinárias”
Não como inhame cozido;
acentuam com maior expressividade ainda os tra-
Não gosto de milho assado;
ços da sociedade. Note-se, a propósito, a diferen-
Quem me quiser derretido
ça entre a refeição do Capitão Marcos Fragoso e
Me dê mendubi torrado.
a dos trabalhadores rurais, ambas representativas
dos elementos que compõem a alimentação nor- É no contexto de certa forma clandestino
destina: das atividades da senzala que um elemento muito
representativo da culinária brasileira marca a sua
O Capitão Marcos Fragoso banqueteava-
aparição inevitável: “De vez em quando o garra-
se com os seus hóspedes. As viandas já em parte
fão de cachaça corria a roda. Cada um depois de
consumidas indicavam que a ceia estava a ter-
mil trejeitos e negaças dava-lhe o seu chupão, e fa-
minar; e efetivamente os pajens não tardavam
zendo estalar a língua repinicava o saracoteio.” No
em servir o desser, no qual entre os figos, passas
jogo do ficcional, enquanto a beleza das frutas tro-
e nozes do reino trazidas do Recife com a baga-
picais evoca a fertilidade impressionante do vasto
gem, figuravam grande terrinas de coalhada e os
solo nacional, a aspereza da cachaça traduz o delí-
requeijões frutos das primeiras águas. Por outro
rio e a violência de uma formação social realizada,
lado: Os lenhadores voltavam do mato carrega-
a contrapelo, pela fome e sede de liberdade.
dos de feixes, enquanto os companheiros condu-
ziam à bolandeira cestos de mandioca, ainda da
plantação do ano anterior, para a desmancharem
Ricardo Martins Rizzo
em farinha durante o serão. As mulheres livres
Diplomata; Mestre em Ciência Política pela
ou escravas, umas pilavam milho para fazer o Universidade de São Paulo e autor de “Cavalo Marinho
xerém. e outros poemas” (São Paulo: Editora Nankin, 2002).
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