O documento discute os Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD), distúrbios nas interações sociais que se manifestam nos primeiros cinco anos de vida. Os TGD incluem diferentes transtornos do espectro autista e causam dificuldades na comunicação e comportamentos repetitivos. A linguagem é fundamental para a constituição do sujeito, e uma falha precoce pode levar a sintomas como estereotipias. A escuta das produções das crianças com TGD é importante para promover a inclusão no campo simbólico.
Grupo Tribalhista - Música Velha Infância (cruzadinha e caça palavras)
Texto tgd
1. Transtornos globais do desenvolvimento
O fato de a nova LDB reservar um capítulo exclusivo para a educação
especial parece relevante para uma área tão pouco contemplada,
historicamente, no conjunto das políticas públicas brasileiras. O relativo
destaque recebido reafirma o direito à educação, pública e gratuita, das
pessoas com deficiência, condutas típicas e altas habilidades. É certo que o
registro legal, por si, não assegura direitos, especialmente numa realidade em
que a educação especial tem reduzida expressão política no contexto da
educação geral, reproduzindo talvez a pequena importância que se concede às
pessoas com necessidades especiais - ao menos aquelas denominadas
deficientes - em nossas políticas sociais. Mas pode-se considerar um avanço
importante em nosso país, onde o acesso à educação das pessoas com
deficiência é escasso e revestido do caráter da concessão e do
assistencialismo.
Neste contexto os Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD) são
distúrbios nas interações sociais recíprocas que costumam manifestar-se nos
primeiros cinco anos de vida. Caracterizam-se pelos padrões de comunicação
estereotipados e repetitivos, assim como pelo estreitamento nos interesses e
nas atividades. Os TGD englobam os diferentes transtornos do espectro
autista, as psicoses infantis, a Síndrome de Asperger, a Síndrome de Kanner e
a Síndrome de Rett. Com relação à interação social, crianças com TGD
apresentam dificuldades em iniciar e manter uma conversa. Algumas evitam o
contato visual e demonstram aversão ao toque do outro, mantendo-se isoladas.
Podem estabelecer contato por meio de comportamentos não-verbais e,
ao brincar, preferem ater-se a objetos no lugar de movimentar-se junto das
demais crianças. Ações repetitivas são bastante comuns. Os Transtornos
Globais do Desenvolvimento também causam variações na atenção, na
concentração e, eventualmente, na coordenação motora. Mudanças de humor
sem causa aparente e acessos de agressividade são comuns em alguns casos.
As crianças apresentam seus interesses de maneira diferenciada e podem fixar
sua atenção em uma só atividade, como observar determinados objetos, por
exemplo. Com relação à comunicação verbal, essas crianças podem repetir as
falas dos outros - fenômeno conhecido como ecolalia - ou, ainda, comunicar-se
por meio de gestos ou com uma entonação mecânica, fazendo uso de jargões.
A linguagem para Lacan (apud SIBEMBERG, 1998, p. 64) O
inconsciente é estruturado como uma linguagem. A linguagem é o eixo central
da constituição do sujeito psíquico. Quando os bebes nascem não têm um
saber instintivo que possa garantir sua sobrevivência assim como os animais.
O universo da criança se organiza em torno das significações produzidas pela
2. linguagem e é por meio desta que o outro transmite à criança o saber sobre o
mundo que a rodeia. É na relação com o outro, representante dos significantes
e da articulação de significações sociais de uma dada cultura, que vai se
organizando um saber sobre si, o objeto e o outro. O primeiro Outro é a mãe,
que através do olhar, do toque e da palavra coloca a criança em um circuito
desejante, conferindo-lhe as significações que ela irá atribuir ao mundo das
coisas e das relações intersubjetivas.
É assim, através da linguagem, na relação com o outro, que a criança
vai construindo seus referenciais imaginários e simbólicos. Se há uma falha
precoce na apresentação dos referentes imaginários e simbólicos, a criança
pode ficar excluída do campo das trocas simbólicas da linguagem, reduzida ao
real do corpo perceptivo não subjetivado. Quando ocorre essa falha é a criança
que não se interessa pela presença do outro e nem apresenta significação
alguma no olhar, pois não recorre à linguagem para perceber as coisas do
mundo, passando a produzir sintomas que aparecem nas estereotipias. É
através da constituição de um sujeito psíquico que a aprendizagem aparece
como consequência de sua inclusão subjetiva no campo significante.
Jerusalinsky (apud SILBEMBERG, 1998, p. 65), aponta quatro
momentos fundamentais para a constituição na criança de sua posição social
de sujeito desejante no campo da linguagem: o conceito de Outro, escrito com
letra maiúscula, em psicanálise lacaniana, designa um lugar simbólico, o
significante, a lei, a linguagem, o inconsciente, que determinam o sujeito, às
vezes de maneira externa a ele, outra de maneira intra-subjetiva em sua
relação com o desejo.
Com o sintoma autista (estereotipias, negativa do olhar do outro,
ausências, formações fóbicas e obsessivas) considerando-o como único
recurso de organização mental que a criança dispõe. Acesso à ordem
especular. Aparecimento da demanda na criança, dirigida ao outro. Introdução
da função simbólica, aparecimento da palavra. A psicanálise ajuda quando o
foco é a linguagem da criança, mas é preciso uma escuta “diferente”, torna-se
necessário operacionalizar esta escuta que pode ser conseguida pela atenção
ao discurso da criança, seja ele o discurso corporal, ou um discurso plástico, ou
mesmo um discurso verbal.
Segundo Laznik-Penot (1997, p.10), “as produções sonoras de uma
criança autista podem ser escutadas, mesmo que não tenham a função de
comunicação, mesmo que não exista ainda a intersubjetividade”, mas, na
escola, muitas vezes, essas produções passam despercebidas ou são até
ignoradas. É comum os professores não apostarem nessa comunicação e por
consequência não a escutarem, ou, se escutadas, tais produções são tomadas
por gritos sem sentido, mera fala ecolalia e se tenta “corrigi-las”. Considera-se
mais pedagógico ocupar as crianças com atividades repetitivas para que
3. fiquem em silencio, do que valorizar e incentivar suas produções sonoras e
tentativas de comunicação. Para Lacan (apud LAZNIK-PENOT, 1997, p.11),
“uma fala é uma fala, porque alguém acredita nela”. E Lazni-Penot
complementa escrevendo que, cabe a alguém fazer a criança perceber que o
que ela diz pode ser mensagem para algum destinatário. A partir daí, a criança
opera toda uma série de processos psíquicos capazes de suprir o que falha em
seu funcionamento mental.
Se uma fala é escutada como uma fala que tem significação, a criança
pode produzir outras deixando desdobrar redes de sentido entre as frases. Nos
estudos iniciais em relação à criança autista, acreditava-se que a linguagem
autística não serviria para comunicar, só repetiam enunciados e que não eram
capazes de usar os pronomes se não os invertendo. Essa ideia trouxe sérias
consequências, e é discutível sob a perspectiva do referencial psicanalítico. Até
hoje, as pessoas se interessam pelos laços afetivos que a criança pode ou não
tecer com o meio, mas negligencia-se a atenção que deve ser dada aos
enunciados da criança. A escuta desses enunciados é rica e pode nos dar
referencias sobre o que deve vir do Outro para que uma criança autista possa
se assumir como sujeito de seu próprio enunciado.
As repetições ou mesmo as trocas pronominais se ligam a elementos
significantes para a criança e, se for dado mais atenção a este tipo de
linguagem pode-se reconhecer representações possíveis tanto no plano
imaginário como no simbólico, ou seja, é possível encontrar algumas
representações inconscientes capazes de constituir um sujeito. Se, ao emitir
um enunciado, a criança encontra a escuta do Outro, em vez de rejeitá-lo como
não pertencendo ao código, passa a reconhecê-lo.
Lacan acrescenta (apud LAZNIK-PENOT, 1997, p. 142) “aceitar ratificar
como mensagem o que acaba de ser proferido, mesmo que a significação deva
permanecer temporariamente em suspenso, indica para a criança que ela pode
ser ouvida para além do se dizer”. Mesmo que inicialmente um enunciado
tenha atravessado a criança e depois tenha saído dela sem que ela possa
destiná-lo a alguém, nem modulá-lo numa demanda qualquer, quando lhe é
devolvido como tendo uma significação, como fazendo mensagem, algo se
inscreve para ela. Pode ser que, mais tarde, a criança possa se identificar com
a fonte deste prazer experimentado pelo Outro.
O professor pode considerar as produções da criança, sejam elas
gestuais, linguageiras, ou qualquer outra forma de produção, como significante,
e portadoras do que, nessas produções, se esboça como formação do
inconsciente. Mas, para que isto ocorra, é preciso que uma pessoa se tome por
destinatário destas produções, mesmo que não lhe tenham sido endereçadas
pela criança, ou seja, é preciso encarnar o lugar do Outro real. Então, apostar
que ela possa não apenas sustentar um discurso que se endereça a um outro,
4. mas, também utilize a linguagem para trabalhar os impossíveis aos quais a
criança se encontra confrontada. Aceitar como mensagem o que foi proferido
pelo aluno, mesmo que a significação deva permanecer temporariamente em
suspenso, indica para a criança que ela pode ser ouvida para além do seu
dizer.
Segundo Sibemberg (1998, p. 70) “Os três eixos sintomáticos do
autismo, ou seja, a falta de linguagem comunicativa, a falta de interação social
e a ausência de brincar imaginativo e simbólico, nos revelam o quanto à
linguagem é constitutiva do sujeito humano”. Considerar esses três eixos pode
colocar a criança na direção de constituí-la num corpo subjetivado e o
professor pode contribuir para tanto compreendendo a função da linguagem e
promovendo o espaço da escuta. É o momento em que se reconhece a
importância da valorização da linguagem verbal ou não verbal e se vislumbra a
possibilidade de o professor contribuir na inserção do aluno no campo
simbólico promovendo a escuta e propondo sua expressão, seja ela pela
linguagem corporal, verbal ou escrita.
A escrita o grande desafio para os professores de alunos com
Transtornos Globais do Desenvolvimento na fase da alfabetização. O desafio é
o de fornecer instrumentos como a leitura e a escrita, dentro das possibilidades
subjetivas e para além das possibilidades cognitivas da criança, e a aposta é
que esses instrumentos serão importantes para o reordenamento simbólico do
aluno. Segundo Kupfer(1997), a maneira como a criança desenvolve seu
processo de construção da escrita testemunha a presença de um sujeito em
trabalho de construção do significante. O exercício de construção da escrita
possibilita a entrada do Outro, que pode fazer emergir o sujeito. É por isso que
a escrita ou tentativas de escrita das crianças autistas muitas vezes se
apresentam como um código carregado de significações. “A aprendizagem da
escrita pode produzir efeitos subjetivantes que não são necessariamente os
mesmos da linguagem falada. É por isso que pode haver aí um sujeito da
escrita antes de se instaurar um sujeito da palavra” (KUPFER, 2000, p.110).
A escrita produz representações diferentes da linguagem oral, ou,
quando se escreve, produz-se um texto que não está ali quando se fala. É
necessário compreender como se dá a articulação entre os processos mentais
e a posição ou presença de um sujeito inconsciente. A criança, desde os seus
primeiros anos de vida, receberá inscrições psíquicas que são marcas
operadas pelos primeiros agentes de humanização, ou seja, os pais. Essas
inscrições se desdobram em inúmeras outras inscrições, sempre em conexão
com a primeira, que é uma marca inicial e que estará presente em todas as
suas escolhas futuras. A aprendizagem, em relação à qual não há nenhuma
demarcação prévia no sujeito, regerá os deslocamentos a partir dessa inscrição
primordial.
5. Para dirigir esses deslocamentos, a criança precisa desenvolver
estruturas mentais em que estarão presentes as marcas primordiais, bem como
também estarão presentes na aprendizagem, nas suas dificuldades em
aprender e no seu estilo próprio de aprender e de escrever. Serão as marcas
que evidenciam a presença de um sujeito. As inscrições não predeterminam
nada da aprendizagem de uma criança, são como se fossem as sombras das
formas nas quais o sujeito vai encaixando os objetos que a experiência da vida
lhe oferece. Se não houver transformações simbólicas, não há espaço para
indagar que posição esse objeto tem na cadeia simbólica do Outro. Não há
conhecimento se o enunciado que o sustenta não tem uma posição simbólica e
está se referindo a um real.
Então, vêm os efeitos avassaladores da psicose, e o que a escola pode
oferecer? Kupfer (2000, p.109) indaga “se não puderem subjetivar-se pelo
ingresso no campo simbólico, o que se faz usualmente pela mão do Outro
falante - os pais -, não seria possível tentar novamente pela mão de um outro,
digamos, escrevente?”. Quando aprendem a escrever, as crianças ganham
certa organização libidinal e podemos perceber uma diminuição da agitação
motora; surgem formas que testemunham a presença de um sujeito em
trabalho de construção do significante. É uma subjetivação por sua condição de
linguagem ou mesmo uma entrada na palavra, quando a escrita surge para
elas. O trabalho de alfabetização consiste em apresentar o universo escrito à
criança autista ou psicótica, fazendo o apelo a um sujeito que parece tender
para esse universo, na busca de se dizer.
A escrita não é uma simples representação da linguagem falada.
Escrever não é só reproduzir o que se fala, é algo mais, e, como exemplo,
existem casos de crianças autistas que escrevem, mas não falam. A maioria
dos métodos de alfabetização usados nas escolas insiste em estabelecer uma
relação entre a aprendizagem e os objetos em si. Mas se afirmamos que na
escrita não há correspondência entre palavra e coisa, o que vemos na escrita
não tem relação direta com o que se percebe num entorno social. O que é
escrito é o traço, e não a percepção é o efeito do trabalho da letra, que se
revela pela instalação da operação significante. Pode-se dizer que a linguagem
da escrita pode produzir efeitos subjetivantes que não são necessariamente os
mesmos da linguagem falada. Lacan (apud JERUSALINSKY, 1997) diz que “o
inconsciente é uma escritura, escritura de letra e não de sentido”. A escritura é
uma sucessão de marcas, resultando na instalação ou constituição do sujeito
do inconsciente. O traço que se revela na escrita já não é mais o traço inscrito
primordialmente, mas é um feixe de relações.