O mito é sempre um postulado simbólico e, como tal, precisa ser decodificado e revelar a realidade escondida em sua dimensão simbólica. Hoje se considera o mito como um meio que representa uma forma acabada e complexa daquilo que pode ser chamado de linguagem simbólica ou significativa que o sujeito humano usa para exprimir-se.
1. Criando nossos mitos: a perspectiva de McAdams12
“Mito é um discurso mentiroso que exprime a verdade, em imagens.” Já Platão
usava o mythos como mentira, em oposição ao logos que exprime a verdade. Da
mesma forma considerava a imagem (eidolon que significa ídolo) aparência
sensível unicamente acessível ao espírito humano. Essa compreensão do mito
foi modificada pelos neoplatônicos, que consideravam o mito também como
alegoria e meio de chegar ao verdadeiro, assim como a imagem sensível é um
meio para se chegar às ideias. O estudo dos mitos tem uma longa história, como
John Middleton afirma:
Eles foram estudados por folcloristas, interessados principalmente nos motives, sua
evolução e distribuição; por psicólogos, interessados no que pode ser descoberto a
partir deles sobre a psique individual; por linguistas; por historiadores da religião,
interessados principalmente nas religiões mundiais; e, por ultimo, por antropólogos.
O mito é sempre um postulado simbólico e, como tal, precisa ser decodificado e
revelar a realidade escondida em sua dimensão simbólica.
Hoje se considera o mito como um meio que representa uma forma acabada e
complexa daquilo que pode ser chamado de linguagem simbólica ou significativa
que o sujeito humano usa para exprimir-se. Tudo aquilo que dá sentido e valor
ao homem existente, tudo aquilo que o expressa, passa por essa linguagem
simbólica. Podemos dizer então que a verdade do mito é uma verdade simbólica.
Ela propõe para o mundo, para a vida e para as relações humanas um sentido
que não pode se impor nem explicar, mas que está presente e de alguma forma
expressa uma verdade subentendida. Podemos dizer que, à medida que um
mito se revela vivo e fascinante para um indivíduo, significa que ele exprime para
esse sujeito algumas de suas razões de viver, uma maneira de compreender o
mundo, a vida, bem como sua própria situação em tal contexto histórico.
McAdams inicia a introdução de seu livro com o seguinte trecho:
Se você quiser me conhecer, então você deve conhecer minha história, porque minha
história define quem sou eu. E se eu quero conhecer-me, para obter insigth sobre o
significado de minha própria vida, então eu também devo conhecer minha própria
história. Eu devo olhar, em todas suas particularidades, a narrativa do eu – o mito
pessoal – que eu tenho tacitamente ou inconscientemente, composto ao longo dos
meus anos. É uma história que eu continuo a revisar, e fala para mim mesmo (e às
vezes para os outros) como eu estou vivendo.
Ao longo de sua obra, discute a formação dos mitos pessoais: “Nós todos somos
contadores de histórias, cada um de nós provê suas experiências dispersas e às
vezes confusas com um senso de coerência, arrumando os episódios de nossas
vidas dentro de uma história”. Através de nossos mitos pessoais, descobrimos o
que é verdade e o que é significativo para nossa vida.
A tese do autor é que cada um de nós, para conhecer-se, cria uma história
heroica de si mesmo. Cada um de nós constrói consciente ou inconscientemente
seu mito pessoal. Mito pessoal é, antes de tudo, um tipo especial de história que
1
Texto transcrito pelo Professor Giba Canto (pgs 126~131) do livro “CONHECER-SE, UM DESAFIO: ASPECTOS DO
DESENVOLVIMENTO HUMANO” do Padre Deolino Pedro Baldisera (Editora Paulinas, 2015).
2
McAdams, D.P. “THE STORIES WE LIVE BY” (The Guilford Press, 1993).
2. cada um de nós constrói naturalmente, integrando as diferentes partes de nós
mesmos e de nossa vida dentro de um significativo e convincente todo. “Um mito
pessoal é um ato de imaginação que é um modelo de integração de nossas
lembranças passadas, percepções do presente e antecipações do futuro.” A
história é uma espécie de pacote natural que usamos para organizar muito
diferentes tipos de informações. A história contada permite de uma maneira
singular expressar a nós mesmos e o nosso mundo para os outros. E as
palavras-chave são “sínteses” de experiências e conteúdos, são "entrelinhas",
carregadas de significados das histórias pessoais, de nossas arenas e de
nossas posições-chave, que permitem dar um sentido ao que vivemos, da forma
como vivemos.
DIFERENTES FORMAS MÍTICAS
McAdams defende a ideia de que cada um de nos cria um mito pessoal e que,
em todos seus detalhes, não há outro igual no mundo. Contudo, ressalva que,
embora possa haver uma multiplicidade de diferentes histórias, se poderia dizer
que há um número limitado de formas básicas dentro das quais se pode
analisá-las. Elas podem ser resumidas em quatro grandes formatos gerais:
comédia, romântica, trágica, irônica.
As duas primeiras mostram um tom narrativo otimista, enquanto as duas últimas
sugerem um tom pessimista.
A comédia pode ser comparada à estação da primavera. A mensagem central
parece ser: a cada um de nós é dada a oportunidade de encontrar a felicidade e
evitar a dor e a culpa na vida. Cada um de nos tem a oportunidade de procurar
um final feliz para a história da vida que vivemos e contamos.
Na romântica predomina um tom de otimismo. Enquanto a comédia afirma a
alegria da vida cotidiana (doméstica) e o amor, a romântica celebra o
excitamento da aventura e da conquista. Corresponde à estação verão que, no
calor favorece a paixão. O tema central de um mito romântico envolve o
mover-se de uma aventura para outra, com o objetivo final emergindo vitorioso e
iluminado. O herói é visto de forma grandiosa, como alguém especial, sábio,
mais virtuoso que a maioria dos demais, que passa por vicissitudes, mas no final
da história é um vencedor!
Na trágica o tom narrativo é pessimista (outono): o tempo vai passando e indo na
direção da morte. As histórias trágicas dizem respeito a deuses e heróis
moribundos, caindo em desgraça, sacrificando a si mesmos e aceitando o
isolamento (Édipo). Nos mitos pessoais, o assunto central trágico é evitar ou
amenizar os absurdos da vida, que ameaçam esmagar mesmo os maiores seres
humanos. A mensagem central é: nós somos sempre confrontados por
inesperados absurdos nos quais encontramos o sofrimento e o prazer, a tristeza
e a felicidade, e estes estão sempre misturados. O mundo não é confiável. As
melhores intenções caminharão para a ruína.
Na irônica (estação inverno), as histórias caminham para o triunfo do caos. Os
mitos irônicos são como um quebra-cabeca cuja solução está sempre
escondida. Eles lembram as tentativas falhas para resolver os mistérios da vida.
3. Então, o tom narrativo pessimista e emoções negativas predominam e geram
confusão e tristeza. O tema central: “Na vida nos deparamos com ambiguidades
que são maiores do que nós e que estão, na maior parte, além de nossa
compreensão”. (música: Tristeza do Jeca3
).
McAdams observa que nenhuma história é pura tragédia ou comédia. Há uma
mistura. Porém, a mistura normalmente ocorre entre a comédia e a romântica ou
entre a trágica e a irônica.
Nossos mitos pessoais, narrados em nossas histórias, envolvem uma
reconstrução imaginária do passado à luz de um futuro previsível. São criações
subjetivas e ilusões no sentido positivo ou negativo.
Desde a infância, vamos acumulando um tesouro que se esconde dentro de uma
variedade de símbolos personalizados e objetivos fantasiados.
Para entender nossos próprios mitos, precisamos explorar a maneira única com
que eles foram elaborados por cada um de nós, como empregamos a
imaginação para dar sentido àquilo que somos e como entendemos nossa
própria história.
O psicólogo Jerome Bruner argumenta que o ser humano entende o mundo de
dois modos diferentes. O primeiro ele denomina de “modo paradigmático” de
pensamento. Nesse modo ele procura compreender as experiências em termos
de refinadas razões, análises, provas lógicas e observações empíricas. O
segundo modo é o “modo narrativo” de pensamento, que diz respeito aos
desejos humanos, suas necessidades e objetivos. Nesse modo nós lidamos com
as “vicissitudes das intenções humanas no tempo”.
O primeiro modo é próprio do cientista que procura “dizer não mais do que os
fatos significam”. Procura-se determinar as relações entre causa e efeito a fim de
explicar os eventos e ajudar a predizer e controlar a realidade. Com este
paradigma é difícil compreender o sentido dos desejos humanos, aspirações e
condutas sociais. Os eventos humanos são muitas vezes ambíguos e resistem a
uma interpretação fechada de causa e efeito. Os poetas e novelistas são exímios
“narradores de histórias”, e eles “'dizem mais do que podem dizer”. Nesse
segundo modo narrativo, os níveis emocionais, os significados simbólicos, têm
lugar para manifestar-se.
Fazendo uma aplicação desses dois modos – paradigmático e narrativo – às
palavras-chave, pode-se pensar que as explicações que o indivíduo dá
conscientemente para suas palavras-chave correspondem ao modo
paradigmático – em que o indivíduo tem uma explicação racional do porque
escolhe determinada frase – por exemplo, por que prefere determinada frase do
evangelho! O modo narrativo, por sua vez, inclui e pode expressar o sentido
inconsciente que há na palavra ou frase-chave escolhida, que está mais ligada à
experiência emocional – às memórias afetivas – ao eu latente – do que ao
significado lógico. Nesse sentido poderíamos dizer que o leitmotiv são formas
abreviadas de “histórias que vivemos” (“The stories we live by”).
3
Letra da música: Prá você quero contar; O meu sofrer e a minha dor; Eu sou como um sabiá; Que quando canta é só
tristeza... Lá no mato tudo é triste; Desde o jeito de falar; Pois o Jeca quando canta; Dá vontade de chorar...