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Como poucas outras instituições na vida americana, o beisebol, o futebol, o
basquete e o hóquei são fatores de coesão social e orgulho cívico. Do
Yankee Stadium em Nova York ao Candlestick Park em San Francisco, os
estádios esportivos são verdadeiras catedrais da nossa religião civil, espaços
públicos que atraem pessoa de diferentes camadas sociais em rituais de
perda e esperança, profanidade e oração.
Mas o esporte profissional não é apenas um fator de identidade cívica. É
também um negócio. E nas últimas décadas o dinheiro tem desalojado o
senso comunitário no mundo dos esportes. Seria um exagero afirmar que os
direitos de nome e os patrocínios empresariais estragaram a experiência de
torcer pelo time local. Mas o fato é que mudar o nome de um marco cívico
altera o seu significado. Esse é um dos motivos pelos quais os torcedores de
Detroit lamentaram quando o Tiger Stadium, batizado com o nome do time,
passou a se chamar Comerica Park (nome de um banco). Por isso também é
que os torcedores dos Broncos de Denver torceram o nariz quando seu
querido Mile High Stadium, profundamente associado ao lugar onde viviam,
passou a ser chamado de Invesco Field (referência à companhia de fundos
mútuos).
Naturalmente, os estádios esportivos são essencialmente lugares atléticos.
Quando os torcedores vão ao estádio, não estão basicamente em busca de
uma experiência cívica. Vão para ver David Ortiz completar um home run no
último tempo ou Tom Brady passar a bola para um gol nos últimos minutos
do jogo. Mas o caráter público do evento não deixa de transmitir um
ensinamento cívico: estamos todos juntos nisso e pelo menos durante
algumas horas compartilhamos um sentimento de enraizamento e orgulho
cívico. À medida que os estádios deixam de ser, sobretudo, marcos
referenciais para se aproximar de painéis publicitários, seu caráter público
vai desaparecendo. E o mesmo talvez aconteça também com os vínculos
sociais e os sentimentos cívicos que eles inspiram.
O ensinamento cívico dos esportes é corroído de maneira ainda mais
acentuada por uma outra tendência que vem acompanhando a ascensão dos
direitos de nome corporativos: a proliferação dos camarotes de luxo. Quando
eu ia aos jogos dos Twins de Minnesota no meado da década de 1960, as
diferenças de preço entre os assentos mais caros e os mais baratos era de
US$ 2. Na verdade na maior parte do século XX, os estádios eram lugares
onde os executivos empresariais sentavam-se lado a lado com os operários,
todo mundo entrava nas mesmas filas para comprar cachorro-quente e
cerveja, e ricos e pobres igualmente se molhavam se chovesse. Nas últimas
décadas, contudo, isso mudou. O advento dos camarotes especiais muito
acima do campo separou os abastados e privilegiados das pessoas comuns
nas tribunas e arquibancadas mais embaixo.
Embora os camarotes de luxo tenham surgido no futurista Astrodome de
Houston em 1965, a tendência começou na verdade quando os Cowboys de
Dallas instalaram suítes de luxo no Texas Stadium na década de 1970. As
empresas pagavam centenas de milhares de dólares para entreter
executivos e clientes em ambientes sofisticados separados da multidão. Na
década de 1980, mais de uma dúzia de times seguiu o exemplo dos
Cowboys, paparicando torcedores endinheirados em poleiros envidraçados
lá no alto. No final dessa década, o Congresso determinou um corte nas
deduções fiscais de que as corporações podiam beneficiar-se ao investir
nesses camarotes, o que, no entanto, não diminuiu a demanda desses
refúgios refrigerados.
As rendas obtidas com a exploração dessas suítes de luxo representavam
um maná financeiro para os times e fomentaram um boom na construção de
estádios na década de 1990. Mas os críticos queixavam-se de que os
camarotes punham a perder a possibilidade de confraternização de classes
representada pelos esportes. “Os camarotes, em que pese o frívolo
aconchego que oferecem”, escreveu Johathan Cohn, “falam de um defeito
essencial da vida social americana: o desejo e mesmo a ânsia das elites de
se separar do resto da multidão(...) Os esportes profissionais, outrora
antídoto para a ansiedade de status, foram cruelmente acometidos pela
doença”.
Frank Deford, articulista de Newsweek, observou que o mais mágico
elemento do esporte popular sempre fora sua “democracia essencial... O
estádio representava uma grande convocação pública, um território
comunitário do século XX, onde podíamos todos nos reunir no entusiasmo
comum” [num grande congraçamento entre as pessoas de todos os níveis].
Mas a recente tendência dos camarotes de luxo “de tal maneira isolou os
chiques da gentalha [do povão] que se poderia dizer que o palácio americano
de esportes passou a representar a mais estratificada distribuição de
assentos do mundo do entretenimento.”
Apesar das críticas, os camarotes tornaram-se elemento familiar na maioria
dos estádios esportivos profissionais, assim como em muitas arenas
universitárias [não na várzea]. O novo Yankee Stadium, inaugurado em
2009, tem três mil lugares a menos do que seu antecessor, mas o triplo de
suítes de luxo. O Red Sox de Boston tem uma lista de espera para as
quarenta suítes no Fenway Park, que chegam a custar US$ 350.000 por
campeonato. Embora os assentos privilegiados nos estádios sejam uma
pequena fração do total de lugares, representam quase 40% dos
rendimentos auferidos com a venda de ingressos de muitos times da primeira
divisão.
(transcrito das páginas 172, 173 e 174 do livro O QUE O DINHEIRO NÃO
COMPRA, de Michael J. Sandel, professor de Harvard, 2012)

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  • 1. Como poucas outras instituições na vida americana, o beisebol, o futebol, o basquete e o hóquei são fatores de coesão social e orgulho cívico. Do Yankee Stadium em Nova York ao Candlestick Park em San Francisco, os estádios esportivos são verdadeiras catedrais da nossa religião civil, espaços públicos que atraem pessoa de diferentes camadas sociais em rituais de perda e esperança, profanidade e oração. Mas o esporte profissional não é apenas um fator de identidade cívica. É também um negócio. E nas últimas décadas o dinheiro tem desalojado o senso comunitário no mundo dos esportes. Seria um exagero afirmar que os direitos de nome e os patrocínios empresariais estragaram a experiência de torcer pelo time local. Mas o fato é que mudar o nome de um marco cívico altera o seu significado. Esse é um dos motivos pelos quais os torcedores de Detroit lamentaram quando o Tiger Stadium, batizado com o nome do time, passou a se chamar Comerica Park (nome de um banco). Por isso também é que os torcedores dos Broncos de Denver torceram o nariz quando seu querido Mile High Stadium, profundamente associado ao lugar onde viviam, passou a ser chamado de Invesco Field (referência à companhia de fundos mútuos). Naturalmente, os estádios esportivos são essencialmente lugares atléticos. Quando os torcedores vão ao estádio, não estão basicamente em busca de uma experiência cívica. Vão para ver David Ortiz completar um home run no último tempo ou Tom Brady passar a bola para um gol nos últimos minutos do jogo. Mas o caráter público do evento não deixa de transmitir um ensinamento cívico: estamos todos juntos nisso e pelo menos durante algumas horas compartilhamos um sentimento de enraizamento e orgulho cívico. À medida que os estádios deixam de ser, sobretudo, marcos referenciais para se aproximar de painéis publicitários, seu caráter público vai desaparecendo. E o mesmo talvez aconteça também com os vínculos sociais e os sentimentos cívicos que eles inspiram. O ensinamento cívico dos esportes é corroído de maneira ainda mais acentuada por uma outra tendência que vem acompanhando a ascensão dos direitos de nome corporativos: a proliferação dos camarotes de luxo. Quando eu ia aos jogos dos Twins de Minnesota no meado da década de 1960, as diferenças de preço entre os assentos mais caros e os mais baratos era de US$ 2. Na verdade na maior parte do século XX, os estádios eram lugares onde os executivos empresariais sentavam-se lado a lado com os operários, todo mundo entrava nas mesmas filas para comprar cachorro-quente e cerveja, e ricos e pobres igualmente se molhavam se chovesse. Nas últimas décadas, contudo, isso mudou. O advento dos camarotes especiais muito acima do campo separou os abastados e privilegiados das pessoas comuns nas tribunas e arquibancadas mais embaixo.
  • 2. Embora os camarotes de luxo tenham surgido no futurista Astrodome de Houston em 1965, a tendência começou na verdade quando os Cowboys de Dallas instalaram suítes de luxo no Texas Stadium na década de 1970. As empresas pagavam centenas de milhares de dólares para entreter executivos e clientes em ambientes sofisticados separados da multidão. Na década de 1980, mais de uma dúzia de times seguiu o exemplo dos Cowboys, paparicando torcedores endinheirados em poleiros envidraçados lá no alto. No final dessa década, o Congresso determinou um corte nas deduções fiscais de que as corporações podiam beneficiar-se ao investir nesses camarotes, o que, no entanto, não diminuiu a demanda desses refúgios refrigerados. As rendas obtidas com a exploração dessas suítes de luxo representavam um maná financeiro para os times e fomentaram um boom na construção de estádios na década de 1990. Mas os críticos queixavam-se de que os camarotes punham a perder a possibilidade de confraternização de classes representada pelos esportes. “Os camarotes, em que pese o frívolo aconchego que oferecem”, escreveu Johathan Cohn, “falam de um defeito essencial da vida social americana: o desejo e mesmo a ânsia das elites de se separar do resto da multidão(...) Os esportes profissionais, outrora antídoto para a ansiedade de status, foram cruelmente acometidos pela doença”. Frank Deford, articulista de Newsweek, observou que o mais mágico elemento do esporte popular sempre fora sua “democracia essencial... O estádio representava uma grande convocação pública, um território comunitário do século XX, onde podíamos todos nos reunir no entusiasmo comum” [num grande congraçamento entre as pessoas de todos os níveis]. Mas a recente tendência dos camarotes de luxo “de tal maneira isolou os chiques da gentalha [do povão] que se poderia dizer que o palácio americano de esportes passou a representar a mais estratificada distribuição de assentos do mundo do entretenimento.” Apesar das críticas, os camarotes tornaram-se elemento familiar na maioria dos estádios esportivos profissionais, assim como em muitas arenas universitárias [não na várzea]. O novo Yankee Stadium, inaugurado em 2009, tem três mil lugares a menos do que seu antecessor, mas o triplo de suítes de luxo. O Red Sox de Boston tem uma lista de espera para as quarenta suítes no Fenway Park, que chegam a custar US$ 350.000 por campeonato. Embora os assentos privilegiados nos estádios sejam uma pequena fração do total de lugares, representam quase 40% dos rendimentos auferidos com a venda de ingressos de muitos times da primeira divisão. (transcrito das páginas 172, 173 e 174 do livro O QUE O DINHEIRO NÃO COMPRA, de Michael J. Sandel, professor de Harvard, 2012)