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Luiz Felipe Pondé (capítulo 24)1
O conceito psicanalítico de narcisismo é largamente conhecido. Usando o
mito grego de Narciso (o cara que se encanta com a própria imagem e pula na
água em busca dela, se afogando), Freud descreve o que poderíamos chamar
numa língua de mortais "o amor-próprio constitutivo no Eu" (ou eu me amo).
Freud diz que existem dois tipos de narcisismo. Um primário, normal, pelo
qual todo mundo passa, aquele em que o bebê se encontra em estado
indiferenciado – ele, a mãe e o mundo são a mesma coisa, cheia de prazeres e
desprazeres. E existe o secundário ou patológico. Esse é que tem interessado
àqueles que estudam o comportamento contemporâneo.
O narcisismo patológico é aquele que caracteriza as pessoas que
tiveram experiência má de narcisismo primário (a mãe e o mundo a sua volta
não foram legais) e, portanto, quando se rompe essa célula narcísica, ele sai
com baixa reserva de libido narcísica, que é aquela libido (energia psíquica
positiva) que constitui o bebê quando achava que tudo era ele e ele era tudo,
numa espécie de êxtase místico selvagem. Freud chega mesmo a usar a
expressão "sentimento oceânico", para descrever o sentimento dos místicos,
dizendo que esse sentimento não passava de breve retorno ao sentimento
gostoso da célula narcísica bem-sucedida.
Uma pessoa narcísica é uma pessoa com baixíssima autoestima. Sim,
vou usar narcisismo como sinônimo de autoestima para facilitar uma primeira
e essencial compreensão do tema. Ninguém tem uma autoestima plena. O
narcísico tem menos ainda e é um miserável afetivo. O narcísico é aquele que,
1
Transcrição das páginas 161~165 do livro “Filosofia para corajosos” de Luiz Felipe Pondé (Planeta, 2016).
quando leva um fora, desmonta mais que o normal. É o chato de quem
ninguém gosta porque reclama que ninguém gosta dele o tempo todo.
Mas tem uma coisa mais importante na personalidade narcísica. Ele é
incapaz de amar ou investir afetivamente no mundo; ele precisa que os outros
invistam nele o tempo todo e é uma pessoa cansativa. A generosidade e a
gratidão inexistem numa personalidade narcísica.
Incapacidade para o vínculo afetivo abundante é a marca de
uma cultura narcísica, típica do mundo contemporâneo.
E será aí que surgirá o narcisismo como categoria de análise do
comportamento contemporâneo. A cultura do narcisismo, título da obra do
historiador norte-americano Christopher Lasch (1979), inaugurou essa análise.
Mais recentemente, as obras de psicólogos como Jean M. Twenge e W. Keith
Campbell retomam a categoria,
aprofundando a tragédia de uma cultura ingrata e arrogante
como a narcísica.
Uma cultura do narcisismo é marcada pela atomização afetiva e pela negação
contínua dela – como todo sintoma psicanalítico, a cultura do narcisismo
investe em afetos sociais sem ônus cotidiano, como o não ter filhos mas adorar
os índios guarani kaiowás!
Incapacidade de exercer funções de responsabilidade direta por outros
é típico do narcísico. Ao lado disso, essa cultura precisa negar essa miséria
afetiva, e nada melhor do que defender causas [etéreas] como economia
solidária, coletivos artísticos, capitalismo social, alfaces e aborígenes. A
cultura do narcisismo acaba por constituir uma forma de contrato social com
base na negação da solidão e com insegurança afetiva, que é a marca de todo
miserável em autoestima.
Lasch já "prevê", em 1979, a dependência para com o imaginário
publicitário, o culto à celebridade (e nem havia ainda o Facebook), a
infertilidade feminina galopante, a incapacidade de homens e mulheres se
amarem e se entenderem sem guerra, ainda que os especialistas na miséria
do amor heterossexual chamem isso de questão de gênero, a baixa realização
profissional por causa de um excessivo arrivismo financeiro, a instabilidade
nos vínculos, ainda que os picaretas chamem isso de flexibilidade e
espontaneidade. Enfim, Lasch percebe que
o capitalismo tardio e sua tendência a esfarelar tudo o que não
seja produtividade e sucesso nos levariam à uma disfunção
narcísica avassaladora.
Twenge e Campbell veem uma cultura do narcisismo já neste nosso
século XXI. Expressões como generation me ou living in the age of entitlement
(geração eu, ou vivendo numa era dos direitos), que também são títulos dos
livros da pesquisadora Jean Twenge, descrevem esse narcisismo. Nesse
cenário, os narcisistas, de alguma forma, já "tomaram o poder". As escolas no
final do século XX iniciaram sua educação para o narcisismo (como já falei, a
educação perdeu o rumo, não sabe para que lado ir), "ensinando" as crianças
que elas são lindas em si mesmas e que para o seu sucesso seria necessário
que fossem elas mesmas. Grande bobagem, não? Qualquer pessoa um pouco
menos idiota que a média, sabe que ser eu mesmo, não é uma coisa óbvia no
dia a dia, e que se desfaz no primeiro momento em que nossas teorias sobre
nós mesmos e os outros se chocam com a realidade dos fatos. Para um
narcisista, é essencial manter baixo o ônus dos vínculos; do contrário ele
sofrerá muito mais que o normal. Os pais, por sua vez, aderiram de braços
abertos ao projeto, ao ter poucos filhos, ou nenhum, e sempre optando para
os “golden retrievers” no lugar de filhos, dizendo para eles (filhos humanos ou
caninos ou felinos) que eles são mais inteligentes que os outros, e que, no
caso dos filhos humanos, já são conscientes do problema da sustentabilidade
desde o berço. O governo, que não podia se isentar, fará lei sobre o amor aos
filhos, punindo pais que digam "não" aos filhos, pois isso produziria baixa
autoestima.
O cerco se fecha, e autores dirão que uma cura possível seria a
experiência da gratidão. Mas a gratidão é inviável num contrato social em que
o direito a tudo é a base do cotidiano, porque se eu tenho direito a tudo, tudo
que recebo é obrigação daquele que me dá; logo, nunca poderei vivenciar a
ideia de que esse algo que recebo possa ser fruto da graça do mundo.

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  • 1. Luiz Felipe Pondé (capítulo 24)1 O conceito psicanalítico de narcisismo é largamente conhecido. Usando o mito grego de Narciso (o cara que se encanta com a própria imagem e pula na água em busca dela, se afogando), Freud descreve o que poderíamos chamar numa língua de mortais "o amor-próprio constitutivo no Eu" (ou eu me amo). Freud diz que existem dois tipos de narcisismo. Um primário, normal, pelo qual todo mundo passa, aquele em que o bebê se encontra em estado indiferenciado – ele, a mãe e o mundo são a mesma coisa, cheia de prazeres e desprazeres. E existe o secundário ou patológico. Esse é que tem interessado àqueles que estudam o comportamento contemporâneo. O narcisismo patológico é aquele que caracteriza as pessoas que tiveram experiência má de narcisismo primário (a mãe e o mundo a sua volta não foram legais) e, portanto, quando se rompe essa célula narcísica, ele sai com baixa reserva de libido narcísica, que é aquela libido (energia psíquica positiva) que constitui o bebê quando achava que tudo era ele e ele era tudo, numa espécie de êxtase místico selvagem. Freud chega mesmo a usar a expressão "sentimento oceânico", para descrever o sentimento dos místicos, dizendo que esse sentimento não passava de breve retorno ao sentimento gostoso da célula narcísica bem-sucedida. Uma pessoa narcísica é uma pessoa com baixíssima autoestima. Sim, vou usar narcisismo como sinônimo de autoestima para facilitar uma primeira e essencial compreensão do tema. Ninguém tem uma autoestima plena. O narcísico tem menos ainda e é um miserável afetivo. O narcísico é aquele que, 1 Transcrição das páginas 161~165 do livro “Filosofia para corajosos” de Luiz Felipe Pondé (Planeta, 2016).
  • 2. quando leva um fora, desmonta mais que o normal. É o chato de quem ninguém gosta porque reclama que ninguém gosta dele o tempo todo. Mas tem uma coisa mais importante na personalidade narcísica. Ele é incapaz de amar ou investir afetivamente no mundo; ele precisa que os outros invistam nele o tempo todo e é uma pessoa cansativa. A generosidade e a gratidão inexistem numa personalidade narcísica. Incapacidade para o vínculo afetivo abundante é a marca de uma cultura narcísica, típica do mundo contemporâneo. E será aí que surgirá o narcisismo como categoria de análise do comportamento contemporâneo. A cultura do narcisismo, título da obra do historiador norte-americano Christopher Lasch (1979), inaugurou essa análise. Mais recentemente, as obras de psicólogos como Jean M. Twenge e W. Keith Campbell retomam a categoria, aprofundando a tragédia de uma cultura ingrata e arrogante como a narcísica. Uma cultura do narcisismo é marcada pela atomização afetiva e pela negação contínua dela – como todo sintoma psicanalítico, a cultura do narcisismo investe em afetos sociais sem ônus cotidiano, como o não ter filhos mas adorar os índios guarani kaiowás! Incapacidade de exercer funções de responsabilidade direta por outros é típico do narcísico. Ao lado disso, essa cultura precisa negar essa miséria afetiva, e nada melhor do que defender causas [etéreas] como economia solidária, coletivos artísticos, capitalismo social, alfaces e aborígenes. A cultura do narcisismo acaba por constituir uma forma de contrato social com base na negação da solidão e com insegurança afetiva, que é a marca de todo miserável em autoestima. Lasch já "prevê", em 1979, a dependência para com o imaginário publicitário, o culto à celebridade (e nem havia ainda o Facebook), a
  • 3. infertilidade feminina galopante, a incapacidade de homens e mulheres se amarem e se entenderem sem guerra, ainda que os especialistas na miséria do amor heterossexual chamem isso de questão de gênero, a baixa realização profissional por causa de um excessivo arrivismo financeiro, a instabilidade nos vínculos, ainda que os picaretas chamem isso de flexibilidade e espontaneidade. Enfim, Lasch percebe que o capitalismo tardio e sua tendência a esfarelar tudo o que não seja produtividade e sucesso nos levariam à uma disfunção narcísica avassaladora. Twenge e Campbell veem uma cultura do narcisismo já neste nosso século XXI. Expressões como generation me ou living in the age of entitlement (geração eu, ou vivendo numa era dos direitos), que também são títulos dos livros da pesquisadora Jean Twenge, descrevem esse narcisismo. Nesse cenário, os narcisistas, de alguma forma, já "tomaram o poder". As escolas no final do século XX iniciaram sua educação para o narcisismo (como já falei, a educação perdeu o rumo, não sabe para que lado ir), "ensinando" as crianças que elas são lindas em si mesmas e que para o seu sucesso seria necessário que fossem elas mesmas. Grande bobagem, não? Qualquer pessoa um pouco menos idiota que a média, sabe que ser eu mesmo, não é uma coisa óbvia no dia a dia, e que se desfaz no primeiro momento em que nossas teorias sobre nós mesmos e os outros se chocam com a realidade dos fatos. Para um narcisista, é essencial manter baixo o ônus dos vínculos; do contrário ele sofrerá muito mais que o normal. Os pais, por sua vez, aderiram de braços abertos ao projeto, ao ter poucos filhos, ou nenhum, e sempre optando para os “golden retrievers” no lugar de filhos, dizendo para eles (filhos humanos ou caninos ou felinos) que eles são mais inteligentes que os outros, e que, no caso dos filhos humanos, já são conscientes do problema da sustentabilidade desde o berço. O governo, que não podia se isentar, fará lei sobre o amor aos filhos, punindo pais que digam "não" aos filhos, pois isso produziria baixa autoestima. O cerco se fecha, e autores dirão que uma cura possível seria a experiência da gratidão. Mas a gratidão é inviável num contrato social em que o direito a tudo é a base do cotidiano, porque se eu tenho direito a tudo, tudo que recebo é obrigação daquele que me dá; logo, nunca poderei vivenciar a ideia de que esse algo que recebo possa ser fruto da graça do mundo.