1. SÍNTESE DAS CARACTERÍSTICAS LITERÁRIO-ESTILÍSTICAS DA LÍRICA CAMONIANA
DELIMITAÇÃO CRONOLÓGICA
A lírica camoniana insere-se na chamada época clássica da literatura portuguesa (1526,
regresso de Sá de Miranda da sua viagem a Itália ± inícios do século XIX).
CONTEXTO POLÍTICO-SOCIAL
Dentro do contexto histórico clássico, devem salientar-se alguns aspectos:
O período do Renascimento, que introduz a literatura clássica na Europa, é marcado por
alterações políticas e sociais muito significativas.
De forma geral, a sociedade agrária feudal foi substituída, progressivamente, por uma
sociedade mercantil moderna, substituindo-se a burguesia à nobreza como grupo
impulsionador da actividade económica.
Assistiu-se a uma série de progressos técnicos e científicos (invenção da imprensa, por
exemplo). O conhecimento científico foi impulsionado pelos Descobrimentos
portugueses e espanhóis, pelo contacto com outras civilizações.
Os novos conhecimentos estendiam a curiosidade e a intervenção do Homem para fora
dos limites transmitidos pela cultura escolástica medieval e pela tradição religiosa.
INFLUÊNCIAS NA LÍRICA C AMONIANA
Na lírica camoniana coexiste a poética tradicional e o estilo renascentista.
Em Luís de Camões, a tradição do lirismo peninsular coexistiu com a estética clássica
renascentista e o maneirismo que marcaram o seu tempo. Juntamente com a poesia de sabor
trovadoresco, surge uma poesia cujos modelos formais e temática (medida nova) revelam a
cultura humanística e clássica do autor, que soube encontrar em Platão, Petrarca ou Dante um
mentor ou um mestre para o caminho que trilhou e explorou com sabedoria, com entusiasmo e
com a paixão do seu temperamento.
Cantando o amor sublime ou a relação mais fútil, o poeta soube, como poucos, definir-
se e definir a alma humana, oferecendo-nos a sua experiência de vida ou o mundo no seu
desconcerto, com os seus problemas sociais e morais e a eterna questão do mal que aflige a
Humanidade. Os temas da sua lírica são vastos e variados, indo da análise da sua vida interior à
caracterização da realidade do seu tempo ou à busca do dimensionamento do homem universal.
Na poesia com influência clássica e renascentista, fruto das novas ideias trazidas, de
Itália, por Sá de Miranda e António Ferreira, verifica-se um alargamento dos temas e a colocação
do ser humano no centro de todas as preocupações.
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Desta fase, merece destaque o tratamento de certos temas: o Amor platónico, a
saudade, o destino, a beleza suprema, a mudança, o desconcerto do mundo, o elogio dos
heróis, os ensinamentos morais, sociais e filosóficos, a mulher vista à luz do petrarquismo e do
dantismo, a sensualidade, a experiência da vida.
A nível formal, o verso é o da medida nova, com o uso do verso decassílabo heróico
(de acentuação nas 6.ª e 10.ª sílabas) ou sáfico (nas 4.ª, 8.ª e 10.ª), ou ainda, com o uso (menos
frequente) do verso hexassílabo. As formas poéticas mais frequentes são o soneto, a canção, a
sextina, a écloga, a elegia e a ode.
Na lírica camoniana, a medida nova, ou seja, a poesia que segue os modelos
estéticos renascentistas, surge a par da poesia com sabor trovadoresco dos Cancioneiros
(medida velha).
Na poesia de influência tradicional, é evidente o aproveitamento da temática da poesia
trovadoresca e das formas palacianas. Assim, encontramos temas tradicionais e populares (o
amor, a saudade, a beleza da mulher, o contacto com a natureza, a ida à fonte...), o ambiente
cortesão com as suas cousas de folgar e as suas futilidades, o humor. A nível formal, o verso é
o da medida velha: com 5 sílabas métricas (redondilha menor) ou com 7 (redondilha maior). As
formas poéticas mais frequentes são as da poesia palaciana do século anterior: os vilancetes, as
cantigas, as esparsas, e as trovas.
CARACTERÍSTICAS DA CORRENTE TRADICIONAL
As formas poéticas tradicionais: cantigas, vilancetes, esparsas, endechas, trovas...
Uso da medida velha: redondilha menor e maior.
Temas tradicionais e populares; a menina que vai à fonte; o verde dos campos e dos
olhos; o amor simples e natural; a saudade e o sofrimento; a dor e a mágoa; o ambiente
cortesão com as suas ³cousas de folgar´ e as futilidades; a exaltação da beleza de uma
mulher de condição servil, de olhos pretos e tez morena (a ³Barbara, escrava´); a
infelicidade presente e a felicidade passada.
CARACTERÍSTICAS DA CORRENTE RENASCENTISTA
O estilo novo: soneto, canção, écloga, ode, entre outros.
Medida nova: decassílabos.
O amor surge, à maneira petrarquista, como fonte de contradições, entre a vida e a
morte, a água e o fogo, a esperança e o desengano;
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A concepção da mulher, outro tema essencial da lírica camoniana, em íntima ligação
com a temática amorosa e com o tratamento dado à Natureza (³locus amoenus´), oscila
igualmente entre o pólo platónico (ideal de beleza física, espelho da beleza interior),
representado pelo modelo de Laura e o modelo renascentista de Vénus.
GLOSSÁRIO
Canção Forma poética, de origem provençal, constituída por uma série de estrofes
heterométricas e rematadas por uma estrofe mais curta .
Cantigas Composição medieval galego-portuguesa. Destinada a ser cantada, a cantiga conjuga
as palavras e a música, pelo que nos remete para um contexto em que o poema,
enquanto forma literária, não possui autonomia relativamente ao canto e até à dança.
Decassílabo Nome do verso de dez sílabas métricas.
Dolce Stil Nuovo Expressão italiana que significa doce estilo novo. Designa um movimento da poesia
Estilo Novo italiana que surgiu, na Toscana, entre a segunda metade do século XIII e o início do
século XIV, desenvolvido por um grupo de poetas florentinos, como Guido Guinizelli,
Dante Alighieri, Guido Cavalcanti, Lapo Gianni, Gianni Alfani e Cino da Pistoia.
A expressão foi primeiramente utilizada por Dante, na Divina Comédia (capítulo XXIV,
est. 19 do Purgatório), ao evocar o encontro com o poeta florentino Bobagiunta da
Lucca, que se tornara uma alma do Purgatório. Aí, o Poeta, ao reconhecer Dante
como o introdutor das novas rimas, contrapõem-nas com as da sua escola
trovadoresca.
Sucessor da lírica trovadoresca, o dolce stil nuovo apresenta, na poesia, novas
características a nível de conteúdo e forma. Assim, quanto àquele, surgem três
grandes ideias ou topoi.
A primeira ideia consiste numa concepção do amor, já não de acordo com o antigo
modelo de vassalagem, inerente a uma sociedade feudal, mas segundo os princípios
da gentileza, conforme determina o modelo da sociedade burguesa das cidades
italianas. A gentileza, uma qualidade do espírito, que não se transmite com a
linhagem, mas pela virtude individual, permite que o verdadeiro amor se instale
apenas nos corações nobres e puros.
A segunda ideia baseia-se numa nova concepção da mulher amada, vista como
angélica que, com o seu olhar, provoca no homem o desejo de bondade, de perfeição
moral, de gentileza e de elevação espiritual.
A terceira ideia remete para o estado de espírito do enamorado que, pela recordação
da beleza e da imagem angelical da dama, procura encontrar equilíbrio entre o doce
encanto do coração e o receio de ser abandonado ou de se ver privado de tal graciosa
figura.
Relativamente às novas características formais, confere-se grande importância ao
refinamento da forma, pela remoção dos elementos decorativos supérfluos. No que diz
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respeito ao tom da expressão poética, Dante designa-o como doce e suave, pois
as poesias devem espelhar delicadeza, musicalidade e graça. Para permitir uma maior
variedade de tom e de temas, impunha-se o verso de dez sílabas, o decassílabo,
acentuado ou na 4.ª, 8.ª e 10.ª sílabas do verso (verso sáfico), ou na 6.ª e 10.ª sílabas
(verso heróico). Na altura, designava-se hendecassílabo (verso de onze sílabas),
porque, de acordo com o método italiano, quando a última palavra era grave,
considerava-se a sílaba postónica. Relativamente às combinações de versos e
construções estróficas, foram sobretudo cultivados o soneto, a canção, a sextina e as
composições em tercetos e em oitavas.
Em Portugal, é usual confundir o dolce stil nuovo com o movimento petrarquista,
devido a uma simplificação de conceito e dos aspectos formais. O soneto, forma
introduzida em Portugal por Sá de Miranda e, em Espanha, por Boscán, normalmente
considerado como pertencente ao dolce stil nuovo, era já produzido pela Escola
Siciliana, em Itália, desde meados do século XIII.
O dolce stil nuovo pode ser apreciado no livro Vita Nuova de Dante ou nos poemas Al
cor gentil ripara sempre amore de Guido Guinizelli ou Donna mi prega, perch'io
voglio dire... de Guido Cavalcanti, sendo considerada a obra Il Canzoniere de
Petrarca aquela que marca o declive definitivo deste movimento poético.
Écloga Composição pastoril em verso e geralmente dialogada.
Endecha Poema lírico, geralmente melancólico.
Esparsa Poesia composta geralmente de versos de seis sílabas.
Glosa Composição poética em que cada estrofe acaba por um dos versos do mote.
Locus Amoenus Expressão latina que significa lugar ameno. Trata-se de um dos tópicos da literatura
clássica, usado com frequência na época medieval e renascentista e que se opõe a
locus horrendus empregue no Romantismo. O locus amoenus consiste numa
descrição da paisagem ideal, em ambiente de tranquilidade, bucólico ou pastoril.
Verifica-se a recorrência a elementos da natureza, como árvores, fontes, pássaros e
todos os elementos sensoriais a eles associados, tais como o perfume das flores, o
cromatismo da paisagem, o canto das aves. Este tipo de descrição surge
primeiramente em Petrónio, Teócrito e Virgílio, neste último, sobretudo na sua poesia
bucólica. O tema do locus amoenus é ainda escolhido para as descrições do retorno
do homem à natureza, à felicidade e ao Paraíso perdido. Na literatura portuguesa,
podemos encontrar alguns exemplares desde tipo de descrição na Fábula do
Mondego de Sá de Miranda e no soneto de Camões, A formosura desta fresca
serra.
Maneirismo Estilo artístico que se desenvolveu primeiro na Itália no fim do séc. XVI e no séc. XVII
e constitui uma transição do renascentismo para a arte barroca.
Mote Pensamento expresso em um ou mais versos para ser desenvolvido na glosa.
Ode Subgénero lírico cultivado, segundo modelos greco-latinos, desde o Renascimento até
à época contemporânea, com os temas mais diversos (heróicos, amorosos, etc.) e
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esquemas métricos também diferentes, mas caracterizando-se pela eloquência,
solenidade e elevação de estilo.
Petrarquismo Movimento literário italiano que aparece no século XV e se prolonga até ao século
XVII, influenciando toda a poesia europeia. Este movimento procura imitar a poesia
amorosa de Petrarca, um poeta italiano que representa a transição entre os trovadores
provençais e os poetas do dolce stil nuovo e a poesia do Renascimento.
Tendo como impulsionadores Matteo Maria Boiardo e Iacopo Sannazzaro, o
Petrarquismo caracteriza-se por uma retoma da temática amorosa, dos recursos
estilísticos e do vocabulário utilizados por Petrarca. A obra, que se torna referência da
poesia lírica de Petrarca, é Il Canzonière.
Este movimento atinge o seu apogeu, no século XVI, com Pietro Bembo que lança
uma edição corrigida de Il Canzonière e que compila, em Prose della Volgar Língua
(1525), o uso literário da língua vulgar, apresentando a linguagem de Petrarca como
um modelo da língua poética. É, então, que a poética petrarquista começa a
influenciar o resto da Europa, transformando-se num exemplo de perfeição formal e da
nova sensibilidade poética.
A nível temático, o amor é visto como um serviço que transporta o enamorado a um
estado de elevação. O amor pode não só provocar, no jovem apaixonado, o gosto na
dor amorosa, como também conduzi-lo à luta entre a razão e o desejo ou à
perturbação emocional perante a amada. O amor pode ainda provocar uma análise
introspectiva sobretudo sobre os paradoxos do sentimento amoroso, levando o
enamorado a caminhadas melancólicas por entre serras e campos desertos, entre
outros tópicos.
Quanto à forma, Petrarca introduz inovações métricas (hendecassílabo),
principalmente nos sonetos e canções. Para além disso, procura impor, nas suas
poesias, uma linguagem e um estilo simples, mas sem vulgarismo e fingimentos. O
soneto e a canção tinham já sido cultivados na poesia da escola siciliana e no dolce
stil nuovo, mas é Petrarca que projecta essas formas poéticas para um elevado nível
de perfeição.
O Petrarquismo influencia poetas de França (Pierre Ronsard e os da Plêiade), de
Inglaterra (Thomas Wyatt e Henry Howard Surrey), de Portugal (Sá de Miranda,
Camões) e de Espanha, sobretudo, de forma vigorosa nos séculos XVI e XVII.
Poesia Palaciana Designação que se atribui usualmente à poesia legada pelo Cancioneiro Geral de
Garcia de Resende (século XVI), dado o seu local de produção: a corte.
Poesia Trovadoresca Designação que se refere ao lirismo desenvolvido na área galego-portuguesa entre
finais do século XII e meados do século XIV.
Redondilha maior Nome do verso de sete sílabas métricas.
Redondilha menor Nome do verso de cinco sílabas métricas.
Soneto Composição poética formada de catorze versos dispostos em duas quadras seguidas
de dois tercetos.
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Trova Composição poética ligeira, de carácter mais ou menos popular.
Vénus Segundo a mitologia romana, é a deusa da formosura e do amor. Na mitologia grega
corresponde a Afrodite. Vénus era filha do Céu e da Terra. Também se diz que era
filha do Mar e que Saturno preparou o seu nascimento, formando-a da espuma das
águas. E há ainda quem afirme que era filha de Júpiter e da ninfa Dione, sua
concubina. Conta-se que Vénus, logo após o seu nascimento, foi arrebatada para o
céu, em grande pompa, pelas deusas Horas, que presidiam às estações, e todos os
deuses a acharam tão formosa, que a designaram deusa do amor e cada um deles
queria desposá-la.
Foi Vulcano que a recebeu por mulher, por ter forjado os raios com que Júpiter
combateu os Gigantes, que queriam apoderar-se do céu. Mas Vénus, não podendo
suportar o marido pela sua grande fealdade, entregou-se à vida dissoluta e teve
muitos amantes, entre os quais Marte, filho de Juno e deus da guerra, de quem teve
Cupido. Vulcano, que a surpreendeu com Marte, cercou o lugar com uma rede
invisível e convocou todos os deuses para que presenciassem o espectáculo.
Vénus também desposou Anquises, príncipe troiano, de quem teve Eneias, que, já
homem partiu com uma grande armada para a Itália, para aí fundar um novo império.
Vénus presidia a todas as festas de prazer e divertimento, sempre acompanhada das
três Graças.
Representa-se geralmente com Cupido, seu filho, sobre um coche puxado por pombos
ou por cisnes.
Vilancete Composição poética, composta geralmente sobre um mote, em verso de pequena
medida e de carácter campesino.
Bibliografia consultada para a realização do glossário:
Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-12-30]. Disponível em: http://www.infopedia.pt/
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