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Judith Revel
MICHELFOUCAULT
CONCEITOS ESSENCIAlS
~
claraluzEDITORA
Juclith Revel
MICHELFOUCAULT
CONCEITOS ESSENCIAIS
Tradução: Carlos Piovezani Filho e Nilton Milanez
Revisão Técnica: Maria do Ro ário Gregolin
$claraluz
EDITORA
Título original:
Le Vocabulaire de Foucault
© Ellipses Édition Marketing S.A., 2002
32, rue Bargue 75740 Paris cedex 15
ISBN 2-7298-1088-9
Diagramação
Malra Valencise
Capa
Dez e Dez Mu/timeios
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca do ICMC/USP
R449m Revel, Judith.
Michel Foucault: conceitos essenciais / Judith Revel ;
tradução Maria do Rosário Gregolin, Nilton Milanez,
Carlo Piovesani. - São Carlos : Claraluz, 2005.
96 p.; 21 cm
ISBN 85-88638-09-6
I. Teoria de Foucault. 2. Linguagem - Filosofia.
3. Análise do discurso. L Gregolin, Maria do Rosário, trad.
11.Milanez, Nilton, trad. 1II. Piovesani, Carlos, trad. IV. Título.
EDITORA CLARALUZ
Rua Rafael de A. Sampaio Vidal, 1217
CEP 13560-390 - Centro / São Carlos - SP
FonelFax: (16) 3374 8332
Site: www.editoraclaraluz.com.br
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou
transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em banco de
dados sem permissão da Editora Claraluz Ltda.
© Editora Claraluz, São Carlos, 2005
Conceitos Essenciais
Acontecimento 13
Arqueologia 16
Arquivo 18
Atualidade 20
Aufklarung 22
Autor 24
Biopolitica 26
Controle 29
Corpos (investimento politico dos) 31
Cuidado de si / Técnicas de si 33
Disciplina 35
Discurso 37
Dispositivo 39
Episteme 41
E tética (da existência) .43
tica 45
Expêriencia 47
Exterior 50
Genealogia 52
Governamentalidade 54
Guerra 56
História 58
Loucura 62
Norma 65
Poder 67
Problematização 70
Razão / Racionalidade 72
Resistência / Tran gressão 74
Saber / Saberes 77
Sexualidade 80
Subjetivação (processo de) 82
Sujeito / Subjetividade 84
Verdade / Jogos de verdade 86
Apresentação
A obra de Miche l Foucault é complexa: nela
freqüentem ente sublinhou-se a grande variedade dos campos
de investigação, a espanto a escritura barroca, os empréstimos
de outras disciplinas, as voltas e reviravoltas, as mudanças de
terminologia, a vocação simultaneamente f.tlosófica e jornali tica
- numa palavra, nada que possa parecer com aquilo que a
tradição nos habituou a conceber como um sistema filosófico.
Um vocabulário de Foucault que apresenta seus conceitos essenciais
se inscreve ne sa mesma diferença, visto que ele apresenta,
absolutamente ao mesmo tempo, a retomada de conceitos
filosóficos herdados de outros pensamentos - e, por vezes,
largamente desviados de seu sentido inicial -, a criação de
conceitos inéditos e a elevação de termos emprestados da
linguagem comum à dignidade f.tlosófica; por outro lado, é um
vocabulário que emerge freqüentem ente a partir de práticas e que
se propõe como gerador de práticas: isso ocorre porque um
arsenal conceitual; é, literalmente (gostava de lembrar Foucault),
uma "caixa de ferramentas". Enfim, antes de ser fixado
I NT: Dits et écrits foi publicado, no França, pela Gallimard (1994, 04 volumes),
sob a direção de Oaniel Oefert e François Ewald com a colaboração de Jacques
Lagrange. A edição brasileira de Ditos e Escritos, organizada por Manoel Barros da
Morta, foi publicada, em 05 volumes, pela Forense Universitária, entre 2002 e
2004.
definitivamente no livros, o vocabulário se forja e e modela no
laboratório da obra: o enorme corpus de textos esparsos reunidos
sob o título de Ditos e escritos' fornece, desse ponto de vista, um
resumo formidável do trabalho de produção de conceitos que
implica o exercício do pensamento; essa é a razão pela qual, na
maior parte dos casos, se encontrará aqui neste livro referências
aos textos de Ditos e escritos. É preciso igualmente sublinhar que
esse laboratório do pensamento não é somente o lugar onde se
criam conceitos, mas, freqüentemente, também o lugar onde,
num movimento de reviravolta que está sempre presente em
Foucault, eles passaram num segundo tempo pelo crivo de uma
crítica interna: os termos são, portanto, produzidos, fixados,
depois reexaminados e abandonados, modificados ou ampliados
num movimento contínuo de retomada e de deslocamento.
Este livro, no qual proponho a definição de conceitos
essenciais de Foucault sob a forma de um vocabulário em ordem
alfabética, precisou considerar tudo is o ao mesmo tempo. Tarefa
árdua, certamente, já que procurei não estancar esse movimento
e, ao mesmo tempo, pretendi tornar compreensível a coerência
fundamental da reflexão foucaultiana. Foi necessário, portanto,
operar escolhas - freqüentemente difíceis - a fim de tornar
visíveis as passagens essenciais des a problematização contínua;
e, na medida do possível, tentei tecer sistematicamente, por
meio de um jogo de remissões, a trama a partir da qual o percurso
filosófico de Foucault podia ser visualizado na complexidade
de suas ramificações e de suas reviravoltas. o final de sua vida,
Foucault gostava de falar de "problematização" e não entendia,
nessa idéia, a representação de um objeto pré-existente nem a
criação, por meio do discurso, de um objeto que não existe, mas
"o conjunto de práticas di cursivas ou não-discursivas que faz
entrar alguma coi a no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui
como objeto para o pensamento (quer isso seja sob a forma da
reflexão moral, do conhecimento cientifico, da análise política
etc.)". Ele assim definia, portanto, um exercício crítico do
pensamento que se opõe à idéia de uma pesquisa metódica da
"solução", porque a tarefa da filosofia não é resolver - aí
compreendida a ação de substituir uma solução por outra - mas
"problematizar", não reformar, mas instaurar uma distância
crítica, fazer jogar o "desprendimento".
A maior homenagem que podemos prestar, hoje, a
Foucault é preci amente restituir ao seu pensamento sua
dimensão problemática. Este livro, ao organizar um vocabulário
com os conceitos essenciais de Foucault (muito mais do que um
simples conjunto de termos enumerados segundo a ordem
alfabética) é uma tentativa de reconstituir a diversidade dessas
problematizações - sucessivas ou superpo tas - que fazem a
extraordinária riqueza das análi es foucaultiana .
Judith Revel
Organização do livro
Este livro apresenta conceitos essenciais de Michel
Foucault em forma de verbetes, com três níveis assinalados por
asteriscos:
* definição de base
**definição particularizada que apresenta o desenvolvimentos
do conceito na obra foucaultiana
***definição mais ampla que insere o conceito e o relaciona
com outros no interior da obra de Foucault
CONCEITOS ESSENCIAIS
13
Acontecimento
* Por acontecimento, Foucault entende, antes de tudo de maneira
negativa, um fato para o qual algumas análises históricas se contentam
em fornecer a descrição. O método arqueológico foucaultiano busca,
ao contrário, reconstituir atrás do foto toda uma rede de discursos, de
poderes, de estratégias e de práticas. É, por exemplo, o caso do trabalho
realizado sobre o dossiê Pierre Rioiêre: "reconstituindo es e crime do
exterior [...], como e fosse um acontecimento, e nada além de um
acontecimento criminal, eu creio que nos falta o essencial'". Entretanto,
num segundo momento, o termo "acontecimento" começa a aparecer
em Foucault de maneira positiva, como uma cristalização de
determinações históricas complexas gue ele opõe à idéia de estrutura:
"Admite-se que o e truturali mo tenha sido o esforço mais sistemático
para eliminar, não apenas da etnologia mas de uma série de outras
ciências e até mesmo da história, o conceito de acontecimento. Eu
não vejo guem pode ser mais anti-estrururalista do que eu'". O
programa de Foucault torna-se, portanto, a análise de diferentes redes
e níveis aos quais alguns acontecimentos pertencem. E sa nova
concepção aparece, por exemplo, quando ele define o discurso como
uma érie de acontecimentos, colocando-se o problema da relação
entre os "acontecimentos discursivos" e os acontecimentos de uma
outra natureza (econômicos, sociais, políticos, institucionais).
2 Entretien avec Michel Foucault. Cahiers du Cinéma, n° 271, novembro de 1976.
3 Entrevista com Michel Foucault. In : Fontana, A. e Pasquino, P. Microfisica dei
Potere: interventi politici. Turin : Einaudi, 1977. [Tradução brasileira: Verdade e
poder. ln : Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p.5).
/4 Judith Revel
** É a partir dessa inserção do acontecimento no centro de sua
análises gue Foucault reivindica o estatuto de historiador - talvez,
também porgue, como ele mesmo o observa, o acontecimento não
tenha sido uma categoria filosófica, salvo, talvez, nos estóicos: "O
fato de eu considerar o discurso como uma série de acontecimentos
nos situa automaticamente na dimensão da história f... ]. ão sou
historiador no sentido estrito do termo; mas os historiadores e eu
temos em comum um interesse pelo acontecimento [...1. em a lógica
do sentido, nem a lógica da estrutura são pertinentes para esse tipo de
pesquisa?". É, portanto, por ocasião de uma discussão com os
historiadores! gue Foucault dá a definição de "acontecimentalização":
não uma história aconteci mental, mas a tomada de consciência das
rupturas da evidência induzidas por certos fatos. O gue se trata então
de mostrar é a irrupção de uma "singularidade" não necessária: o
acontecimento gue representa o enclausuramento, o acontecimento
da aparição da categoria de "doenças mentais" etc,
*** A partir da definição de acontecimento como irrupção de uma
singularidade histórica, Foucault vai desenvolver dois discursos. O
primeiro consiste em dizer gue nós repetimos sem o saber os
acontecimentos, "nós os repetimos na nossa atualidade, e eu tento
apreender gual é o acontecimento sob cujo signo nós nascemos, e
gual é o acontecimento gue continua ainda a nos atravessar". A
acontecimentalização da história deve, portanto, se prolongar de
maneira genealógica por uma acontecimentalização de nossa própria
4 Dialogue sur le pouvoir. In: Wade, S. Che; Foucault . Los Angeles: Circabook,
1978. [Tradução brasi leira: Diálogo sobre o poder. In: Ditos e Escritos, vol. IV,p.
258].
5 La poussiêre et le nuage. In: M. Perrot (ed.) L'impossible prison. Paris: Seuil,
1980. [Tradução brasileira: A poeira e a nuvem. In: Ditos e Escritos, vol. IV, p. 323-
334).
Michel Foucault: conceitos essenciais /5
atualidade. O segundo discurso c nsiste precisamente em buscar na
nossa atualidade os traços de uma "ruptura acontecimental" - traço
que Foucault localiza já no texto kantiano consagrado às Luzes, e que
ele crê reencontrar por ocasião da revolução iraniana, em 1979 -
porque está aí, sem dúvida, o valor de ruptura de todas as revoluções:
"A revolução [... ] corre o risco de banalizar-se, mas como
acontecimento cujo próprio conteúdo é importante, sua existência
atesta uma virtualidade permanente e que não pode ser esquecida'".
6 What's is Enlightenment ? In P. Rabinow (êd.). The Foucault Reader. New York:
Pantheon Books, 1984, e Qu'est-ce que les lumiêres? In: Magazine Littéraire, na
207, maio de 1984. [Tradução brasileira: O que são as Luzes? In: Ditos e Escritos,
vol. lI, p. 335-351).
16 Judith Revel
Arqueologia
*0 termo "argueologia" aparece três vezes nos título da obra de
Foucault - ascimento da clínica. Uma arqueologia do olhar médico (1963),As
palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciênciashumanas (1966) eArqueologia
do saber (1969) - e caracteriza até o final dos anos 70 o método de
pesguisa do fJ.iósofo.Uma argueologia não é uma "história" na medida
em que, como se trata de construir um campo histórico, Foucault opera
com diferentes dimensões (filosófica, econômica, científica, politica
etc.) a fim de obter as condiçõe de emergência dos discursos de saber
de uma dada época. Ao invés de estudar a história das idéias em sua
evolução, ele e concentra sobre recortes históricos precisos - em
particular, a idade clássica e o início do século XIX -, a fim de descrever
não somente a maneira pela gual os diferentes saberes locais se
determinam a partir da constituição de novos objetos gue emergiram
num certo momento, mas como eles se relacionam entre si e desenham
de maneira horizontal uma configuração epistêmica coerente.
** e o termo arqueologia nutriu, em dúvida, a identificação de
Foucault com a corrente estruturali ta - na medida em gue ele parecia
evidenciar uma verdadeira estrutura epistêmica da qual os diferentes
saberes não teriam sido enão variantes -, sua interpretação é, na
verdade, bem outra. Como lembra o subtítulo de As palavras e as
coisas, não se trata de fazer a arqueologia, mas Nma arqueologia da ciência
humanas: mais do que uma descrição paradigmática geral, trata-se de
um corte horizontal de mecanismos gue articulam diferentes
acontecimentos discursivos - o aberes locais - ao poder. Essa
articulação, claro, é inteiramente histórica: ela possui uma data de
Michel Foucault: conceitos essenciais J 7
nascimento - e o grande desafio consiste em encarar igualmente a
possibilidade de seu desaparecimento, "como na orla do mar um
rosto de areia'".
*** a "arqueologia", reencontra-se, ao mesmo tempo, a idéia da
arcbê, isto é, do começo, do princípio, da emergência dos objetos de
conhecimento, e a idéia de arquivo - o registro desses objetos. Mas,
da mesma maneira que o arquivo não é o traço morto do passado, a
arqueologia visa, na verdade, ao presente: "Se eu faço isso, é com o
objetivo de saber o que nós somos hoje'". Colocar a que tão da
historicidade dos objeto de saber é, de fato, problematizar nosso
próprio pertencimento, ao mesmo tempo, a um regime de
discursividade dado e a uma configuração do poder. O abandono do
termo "arqueologia" em proveito do conceito de "genealogia", logo
no começo dos anos 70, insistirá obre a necessidade de dirigir a leitura
"horizontal" das discursividades para uma análise vertical- orientada
para o presente - das determinações históricas de nosso próprio regime
de discurso.
1 Les mOIS et les choses. Une archéologie des sciences humaines. Pari: GaJlimard,
1966. [Tradução bra ileira: As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências
humanas. São Paulo: Martins Fonte, 2000, p. 536].
8 Dialogue ur le pouvoir, op. cit. nota 4.
/8 Judith Revel
Arquivo
*"Chamarei de arquivo não a totalidade de textos que foram
conservados por uma civilização, nem o conjunto de traços que
puderam ser salvos de seu desastre, mas o jogo das regras que, numa
cultura, determinam o aparecimento e o desaparecimento de
enunciados, sua permanência e seu apagamento, sua existência
paradoxal de acontecimentose de coisas. Analisar o fatos de di curso no
elemento geral do arquivo é considerá-Ios não ab olutamente como
documentos (de uma significação escondida ou de uma regra de
construção), mas como monumentos: é - fora de qualquer metáfora
geológica, em nenhum assinalamento de origem, sem o menor gesto
na direção do começo de uma arcbê - fazer o que poderíamo chamar,
conforme os direitos lúdicos da etimologia, de alguma coisa como
uma arq/ICologia''9.
**Da Historia da Loucura à Arqueologia do Saber, o arquivo representa,
portanto, o conjunto dos discursos efetivamente pronunciados numa
época dada e que continuam a existir através da história. Fazer a
arqueologia dessa massa documentária é buscar compreender as uas
regras, suas práticas, suas condições e seu funcionamento. Para Foucault,
isso implica, antes de tudo, um trabalho de recuperação do arquivo
geral da época escolhida, isto é, de todos os traço discur ivos
susceptívei de permitir a reconstituição do conjunto das regras que,
num momento dado, definem ao mesmo tempo os limite e as formas
9 Sur I'archéologie des cience. Réponse au Cercle d'épistérnologie. ln: Cahiers
pour I'analyse, n" 9, 1968. [Tradução brasileira: Sobre a Arqueologia da Ciência.
Resposta ao Círculo de Epi temologia. ln: Ditos e Escritos, vol. lI, p. 95].
Michel Foucault: conceitos essenciais J 9
da dizibilidade, da conservação, da memória, da reativação e da
apropriação. O arquivo permite a Foucault, portanto, distinguir-se dos
estruturalistas - pois se trata de trabalhar obre os discursos
considerados como acontecimentos e não sobre o sistema da língua
em geral -, e dos historiadores - uma vez que e esses acontecimentos
não fazem, literalmente, parte de nosso presente, "eles subsistem e
exercem, nessa mesma substância no interior da história, um certo
número de funções manifestas ou secretas". Enfim, se o arquivo é o
corpo da arqueologia, a idéia de constituir um arquivo geral, isto é, de
encerrar num lugar todo os traços produzidos, é, por sua vez,
arqueologicamente datável: o museu e a biblioteca são, certamente,
fenômenos próprios à cultura ocidental do século XIX.
*** A partir do inicio dos anos 70, parece que o arquivo muda de
estatuto em Foucault: em favor de um trabalho direto com os
historiadores (em Pierre Riviere, de 1973; em L'i1JtfJossib/e prison, sob a
direção de Michelle Perrot, de 1978; ou com Arlette Farge, em Le
désordre desfa!JIi/Ies, de 1982), ele reivindica cada vez mais a dimensão
subjetiva de seu trabalho ("E te não é um livro de história. A escolha
que nele se encontrará não seguiu outra regra mais importante do que
meu gosto, meu prazer, uma emoção'?") e se entrega a uma leitura
frequentemente muito literária do que ele chama, às vezes, de "estranhos
poemas". O arquivo funciona, a partir de então, mais como traço de
existência do que como produção discursiva: sem dúvida, porque, na
realidade, Foucault reintroduz nesse momento a noção de subjetividade
em sua reflexão. O paradoxo de uma utilização não histórica das fontes
históricas lhe foi muitas vezes abertamente censurado.
10 La vie des hommes infâmcs. In: Les cahiers du chemim, n? 29,1977. [Tradução
brasileira: A vida dos homens infames. ln: Ditos e Escritos, vol. IV, p.203].
20 Judith Revel
Atualidade
*A noção de atualidade aparece de dua maneiras diferentes em
Foucault. A primeira consiste em destacar como um acontecimento-
por exemplo, a cisão entre loucura e não-loucura - não omente
engendra uma série de discursos, de prática , de comportamentos e
de instituições, mas se estende até nós. "Todo es es acontecimento,
parece-me que os repetimos. ós os repetimos em nossa atualidade e
eu tento compreender qual é o acontecimento que pre idiu nosso
nascimento e qual é o acontecimento que continua, ainda, a nos
atravessar"!'. A passagem da arqueologia à genealogia será, para
Foucault, a ocasião de acentuar ainda mais essa dimensão de
prolongamento da história no presente. A segunda concepção de
atua/idade está estritamente ligada a um comentário que Foucault faz
do texto de Kant, O que é o J/u1JIinis1Jlo?, em 198412
• A análise insi te,
então, sobre o fato de que colocar filosoficamente a questão de sua
própria atualidade - o que faz Kant pela primeira vez - marca, na
realidade, a passagem para a modernidade.
** Foucault desenvolve duas linhas de discurso a partir de Kant.
Para Kant, colocar a questão do pertencimento a sua própria atualidade,
é - comenta Foucault - interrogá-Ia como um acontecimento do qual
se poderia falar em termos de sentido e singularidade, e colocar a
questão do pertencimento a um "nós" que corresponde a essa
11 Sexualité et pouvoir. Conferência na Universidade de Tókio (1978). Retomado
em Dits et Écrits, Paris: Gallimard, J 994, vol. 3., texte n. 233. [Tradução brasileira:
Sexualidade e poder. Ln:Ditos e Escritos, vol. V, p. 56]
12 Ver: What's is Enlightenment ? op. cit. nota 6.
Michel Foucault: conceitos essenciais 21
atualidade, isto é, formular o problema da comunidade da qual fazemos
parte. Mas é preciso igualmente compreender que se retomamos hoje
a idéia kantiana de uma ontologia crítica do presente, não é somente
para compreender o que funda o espaço de nosso discurso, mas para
desenhar os seus limites. Da mesma maneira que Kant "busca uma
diferença: qual a diferença que o hoje introduz em relação a ontem?"!',
devemos, de nossa parte, fazer emergir da contingência histórica, que
nos faz ser o que somos, possibilidades de ruptura e de mudança.
Colocar a questão da atualidade retoma, portanto, a definição do
projeto de uma "crítica prática sob a forma da ultrapassagem
possível"!",
*** "Atualidade" e "presente" são, inicialmente, sinônimos. o
entanto, uma diferença vai se acentuar cada vez mais entre o que, de
um lado, nos precede mas continua, ape ar de tudo, a nos atravessar e
o que, de outro lado, sobrevém, ao contrário, como uma ruptura da
grade epistêmica a que pertencemos e da periodização que ela engendra.
Essa irrupção do "novo", que tanto Focault quanto Deleuze chamam
igualmente de "acontecimento", torna-se, assim, o que caracteriza a
atualidade. O presente, definido por sua continuidade histórica, não é,
ao contrário, interrompido por nenhum acontecimento: ele pode
somente oscilar e se romper dando lugar à instalação de um novo
presente. Se elas representaram um grande problema - particularmente
no momento de publicação de As palavras e as coisas (1966) - nos anos
80, o conceito de "atualidade" permite a Foucault encontrar, enfim, o
meio para integrar as rupturas epistêrnicas.
13 What's is Enlightenrnent ? op. cito nota 6.
14 What's is Enlightenment ? op. cit. nota 6.
22 Judith Revel
Aufklãrung
*0 tema do Alijkltinl11g aparece na obra de Foucault de maneira cada
vez mais insistente a partir de 1978: ele remete sempre ao texto de
Kant, Was ist AuJklàmng?(1784) 15.
A abordagem é complexa: e, de imediato, Foucault consigna à questão
kantiana o privilégio de ter colocado pela primeira vez o problema
filosófico (ou, como o diz Foucault, do "jornalismo filosófico") da
atualidade, o que interessa ao filósofo parece ser, antes de tudo, o
de tino dessa questão na França, na Alemanha e nos países anglo-
saxões. É somente num segundo momento que Foucault transformará
a referência ao texto kantiano numa definição dessa "ontologia critica
do presente", com a qual ele fará seu próprio programa de pesquisa.
**Foucault de envolve, na verdade, três níveis de análise diferentes.
O primeiro busca reconstituir de maneira arqueológica o momento
em que o Ocidente tornou, ao mesmo tempo, sua razão autônoma e
soberana: nesse sentido, a referência às Luzes se insere numa descrição
que a precede (a reforma luterana, a revolução copernicana, a
matematização galileniana da natureza, o pensamento cartesiano, a física
newtoniana etc.) e na qual ela representa o momento da realização
cabal; mas, essa descrição arqueológica está sempre genealogicamente
inclinada para um presente do qual nós participamos ainda: é preciso,
portanto, compreender "o que p de ser seu balanço atual, qual relação
é preciso estabelecer com esse gesto fundador" 16. O segundo tenta
os Was ist Aufklãrung? In: Berlinische Monatsschrift, dezembro 1784. (Tradução
brasileira: KANT, I. Que é "Esclarecimento"? In: Immanuel Kant: Textos Seletos,
Petrópolis: Vozes, 19851.
16 Introdução a Canguilhem, G. On lhe Normal and lhe Pathological, Boston: D.
Reidel, 1978. Retomado em Dits et Écrits, voI. 3, Paris: Gallimard, 1994, texto n"
219.
Michel Foucault: conceitos essenciais 23
compreender a evolução da posteridade do Atifkliinmg nos cliferentes
países e a maneira pela qual ela foi investida em campos cliversos: em
particular, na Alemanha, numa reflexão histórica e politica da sociedade
("dos hegelianos à Escola de Frankfurt e a Lukács, Feuerbach, Marx,
ietzsche e Max Weber"I~; na França, por meio da história das ciências
e da problematização da cliferença entre saber/crença, conhecimento/
religião, científico/pré-científico (Comte e o positivismo, Duhem,
Poincaré, Koyré, Bachelard, Canguilhem). Enfim, o terceiro coloca a
questão de nosso próprio presente: "Kant não busca compreender o
presente a partir de uma totalidade ou de uma realização futura. Ele
busca uma cliferença: qual a cliferença que ele introduz hoje em relação
ao ontem"18? É essa busca da cliferença que caracteriza não somente
"a atitude da modernidade", mas o ethos que nos é próprio.
***0 comentário de Kant esteve no centro de um debate com
Habermas, infelizmente interrompido pela morte de Foucault, As
leituras que os dois filósofos dão à questão das Luzes são
diametralmente opostas, em particular, porque Habermas busca, na
verdade, definir, a partir da referência kantiana, as conclições requeridas
para uma comunidade lingüistica ideal, isto é, a unidade da razão crítica
e do projeto social. Em Foucault, o problema da comunidade não é
condição de possibilidade de um novo universalismo, mas a
conseqüência direta da ontologia do presente: "para o filósofo, colocar
a questão do pertencimento a esse presente, não será mais,
absolutamente, colocar a questão de seu pertencimento a uma doutrina
ou a uma traclição; não será mais, simplesmente, colocar a questão de
seu pertencimento a uma comunidade humana em geral, mas aquela
de seu pertencimento a um certo "nós", a um nós que se relaciona
com um conjunto cultural característico de sua própria atualidade"?".
17 Introdução a Canguilhem, G. 011 lhe Normal nnd lhe Pathological, op.cit. nota 16.
IR What is Enlightenrnent? op. cit. nota 6.
19 What's enlightenment?, op. cit. nota 6.
24 Judith Revel
Autor
*Em 1969, Foucault faz uma conferência sobre a noção de autor que
se abre com essas palavras: " 'Que importa quem fala?' essa
indiferença se afirma o principio ético, talvez o mais fundamental, da
escrita contemporânea'F". Essa critica radical da idéia de autor - e
mai geralmente do par autor/obra - vale ao mesmo tempo como
diagnóstico sobre a literatura (em particular, na tripla esteira de
Blanchot, do novo romance e da nova crítica), e como método
foucaultiano de leitura arqueológica: com efeito, e reencontramos
frequentemente a teorização desse "lugar vazio" em alguns escritores
gue Foucault comenta na época, é igualmente verdadeiro que a análise
a que se dedica o filósofo em As Palavras e as Coisas procura, por sua
vez, aplicar ao arquivo, isto é, à historia, o princípio de uma leitura das
"massas de enunciados" ou "planos discursivos", que não estavam
"bem acentuados pelas unidades habituais do livro, da obra e do
autor"?'. Desse ponto de vista, o início de A Ordem do Discurso dá
continuidade à reflexão sobre um fluxo de fala que seria ao mesmo
tempo historicamente determinado e não-individualizado, e que ditaria
as condições de fala do próprio Foucault na sua aula inaugural no
Col/egede France:"Gostaria de perceber que no momento de falar uma
voz sem nome me precedia há muito tempo"22.
**Do ponto-de-vista do método, Foucault está aparentemente
bastante próximo do que fez Barthes na mesma época, porque a análise
estrutural da narrativa não se refere à psicologia, à biografia pessoal
20 Qu'est-ce qu'un auteur? In: Bulletin de Ia Société Française de Philosophie, junho-
setembro 1969. [Tradução brasileira: O que é um autor? In: Ditos e Escritos, vol. 111,
~. 2641·
I Qu'est-ce qu'un auteur?, op. cit. nota 20.
n L 'ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971. [Tradução brasileira: A ordem do
discurso. São Paulo: Loyola, 1996 , p. 5] .
Michel Foucaul(· conceitos essenciais 25
ou às características subjetivas do autor, mas às estruturas internas do
texto e ao jogo de sua articulação. É provavelmente a partir da
constatação dessa "vizinhança" metodológica (que o aproxima
igualmente de Althusser, de Lévy- trauss ou de Durnézil) que se tem
geralmente associado Foucault à corrente estruturalista. Em Foucault,
entretanto, a busca de estrutura lógicas e tá marcada por uma veia
blanchotiana particular ("a obra comporta sempre, por assim dizer, a
morte do autor: no mesmo momento em que se escreve, se
desaparece'P') que, além da simples referência à caducidade histórica
de uma categoria que se havia acreditado até então incontornável, leva
Foucault a uma análise das relações que envolvem a linguagem e a
morte. À descrição do apagamento de uma noção da qual ele descreve
historicamente a constituição e os rnecani mos, depois a dissolução (e,
por i so, a noção de autor recebe o mesmo tratamento que aquela de
"sujeito"); Foucault acrescenta, assim, ao mesmo tempo a identificação
de seu próprio estatuto de fala e a problematização de uma experiência
da escritura concebida como passagem ao limite.
***Essa influência blanchotiana o levará, ao longo dos anos 60, e à
margem dos grandes livros, a e deter sobre um certo número de
"casos" literários que p ssuem todos um parentesco com a loucura (e
estamos ainda bem longe das propo tas da História da LoIfCllra) ou
com a morte. Foucault comentará, então, Hôlderlin e erval, Roussel
e Artaud, Flaubert e Klossowski, e até mesmo alguns escritores
próximos do grupo Te! Que!, sublinhando-lhes o valor exemplar: "A
linguagem, entâ , tomou sua e tatura soberana: ela surge como vinda
de alhures, de lá onde ninguém fala; mas só existe obra se, remontando
seu próprio discur o, ela fala na direção dessa ausência"?'.
23 Interview avec Michel Foucault, Bonniers Liuerãre Magasin, Stockholrn, n" 3,
março de 1968. Retomado em Dits e Écrits, vol.l, texto n" 54.
24.Le 'non' du pére. In : Critique n" 178, março de 1962. [Tradução bra ileira: O
não do pai. In: Ditos e Escritos, vol. I, p. 200].
26 Judith Revel
Biopolítica
*0 termo "biopolítica" designa a maneira pela qual o poder tende a
se transformar, entre o fim do século XVIII e o começo do século
XlX, a fim de governar não somente os indivíduos por meio de um
certo número de procedimentos disciplinares, mas o conjunto dos
viventes constituidos em população: a biopolítica - por meio dos
biopoderes locais - se ocupará, portanto, da gestão da saúde, da
higiene, da alimentação, da sexualidade, da natalidade etc., na medida
em que elas se tornaram preocupações políticas.
** A noção de biopolítica implica uma aruilise histórica do quadro
de racionalidade política no qual ela aparece, isto é, o nascimento do
liberalismo. Por liberalismo é preciso entender um exercício do governo
que não somente tende a maximizar seus efeitos, reduzindo ao máximo
seus custos, sobre o modelo da produção industrial, mas que afirma
arriscar-se empre a governar demais. Mesmo que a "razão do Estado"
tivesse buscado desenvolver seu poder por meio do crescimento do
Estado, "a reflexão liberal não parte da existência do Estado,
encontrando no governo um meio de atingir essa finalidade que ele
seria para si mesmo; mas da sociedade que vem a estar numa relação
complexa de exterioridade e de interioridade em relação ao Estado"25.
Esse novo tipo de governamentalidade, que não é redutível nem a
uma análise jurídica nem a uma leitura econômica (ainda que uma e
25 Naissance de Ia biopolitique. ln : Annuaire du Collêge de France, 79 année.
Chaire d'histoire des systêrns de pensée, année 1978-1979, 1979. [Tradução
brasileira: Nascimento da biopolítica. 1n: Resumo dos Cursos do College de France
(/970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 911-
Michel Foucault: conceitos essenciais 27
outra aí estejam ligadas), se apresenta, por conseqüência, como uma
tecnologia do p der que se dá um novo objeto: a "população". A
população é um conjunto de seres vivos e coexistentes que apresentam
traços biológicos e patológicos particulares e cuja própria vida é
suscetível de ser controlada a fim de assegurar uma melhor gestão da
força de trabalho: « A descoberta da população é, ao mesmo tempo
que a descoberta do indivíduo e do corpo modelável, o outro grande
nó tecnológico ao redor do qual os procedimentos políticos do
Ocidente são transformados. Inventou-se, nesse momento, o que eu
chamarei, por oposição à anátomo-política que acabei de mencionar,
de biopolítica". Enquanto a disciplina se dá como anátomo-política
dos corpos e se aplica essencialmente aos indivíduos, a biopolítica
representa uma "grande medicina social" que se aplica à população a
fim de governar a vida: a vida faz, portanto, parte do campo do
poder.
***A noção de biopolítica levanta dois problemas. O primeiro está
ligado a uma contradição que se encontra no próprio Foucault: nos
primeiros textos onde aparece o termo, ele parece estar ligado ao que
os alemães chamaram no século XIX de PolizeiwissC11schaft, isto é, a
manutenção da ordem e da disciplina por meio do crescimento do
Estado. Mas, em eguida, a biopolítica parece, ao contrário, assinalar
o momento de ultrapassagem da tradicional dicotornia Estado/
sociedade, em proveito de uma economia política da vida em geral.
É dessa segunda formulação que nasce o outro problema: trata-se de
pensar a biopolítica como um conjunto de biopoderes ou, antes, na
medida em que dizer que o poder investiu a vida significa igualmente
26 Les mailles du pouvoir, conferência na Universidade da Bahia, 1976. Ln:Barbárie,
n° 4 e n? 5, 1981. Retomado em Dits et Écrits, vol. 4, texto n° 297.
28 Judith Revel
que a vida é um poder, pode-se localizar na própria vida - isto é,
certamente, no trabalho e na linguagem, mas também no corpo, nos
afetos, nos desejos e na sexualidade - o lugar de emergência de um
contra-poder, o lugar de uma produção de ubjetividade que se daria
como momento de desassujeitamento? esse ca o, o tema da
biopolítica seria fundamental para a reformulação ética da relação
com o político que caracteriza as últimas análises de Foucault; mais
ainda: a biopolitica representaria exatamente o momento de passagem
do político ao ético. Como o admite Foucault, em 1982, "a análise, a
elaboração, a retomada da questão das relações de poder e do
'agonismo' entre relações de poder e intransitividade da liberdade,
são uma tarefa política incessante [...] é exatamente esta a tarefa política
inerente a toda existência social?".
27 Le sujet et le pouvoir. In: Dreyfus, H. e Rabinow. P. Michel Foucault: Beyond
Structuralism and Hermeutics. Chicago: The University of Chicago Pres , 1982.
(Tradução bra ileira: Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Foren e Univer itária, 1995].
Miche! Foucault: conceitos essenciais 29
Controle
*0 termo "controle" aparece no vocabulário de Foucault de maneira
cada vez mais fregüente a partir de 1971-72. Designa, num primeiro
momento, uma série de mecanismos de vigilância gue aparecem entre
os séculos XVIII e XIX e gue têm como função não tanto punir o
desvio, mas corrigi-lo, e, sobretudo, preveni-lo: "Toda a penalidade
do século XIX transforma-se em controle, não apenas sobre aquilo
gue fazem os indivíduos - está ou não em conformidade com a lei? -
mas sobre aquilo gue eles podem fazer, gue eles são capazes de fazer,
daquilo gue eles estão sujeitos a fazer, daquilo gue eles estão na irninência
de fazer"28. Essa extensão do controle social corresponde a uma "nova
distribuição espacial e social da rigueza industrial e agrícola"29: é a
formação da sociedade capitalista, isto é, a necessidade de controlar
os fluxos e a repartição espacial da mão de obra, levando em
consideração necessidades da produção e do mercado de trabalho,
gue torna nece sária uma verdadeira ortopedia social, para a gual o
desenvolvimento da policia e da vigilância das populações são os
instrumentos essenciais.
**0 controle social passa não somente pela justiça, mas por uma
série de outros poderes laterais (as instituições psicológicas, psiguiátricas,
criminológicas, médicas, pedagógicas; a gestão dos corpos e a
instituição de uma politica da saúde; os mecanismos de assistência, as
associações filantrópicas e os patrocinadores etc.) gue se articulam em
dois tempos: trata-se, de um lado, de constituir populações nas quais os
28 La vérité et les formes juridiques. Conferência na universidade do Rio de Janeiro,
maio, 1973. Retomado em: Dits et Écrits, vol.2, texto n° 139.[Tradução brasileira:
A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 1999].
29 La vérité et les forme juridique , op. cit. nota 28.
30 Judith Revel
indivíduos serão inseridos - o controle é essencialmente uma economia
do poder que gerencia a sociedade em função de modelos normativos
globais integrados num aparelho de Estado centralizado - ; mas, de
outro, trata-se igualmente de tornar o poder capilar, isto é, de instalar
um sistema de individualizacão que se destina a modelar cada individuo
e a gerir sua existência. Esse duplo aspecto do controle social (governo
das populações/governo pela individualização) foi particularmente
estudado por Foucault no caso do funcionamento das instituições de
saúde e do discurso médico do século XIX, mas também na análise
das relações entre a sexualidade e a repressão no primeiro volume da
História da Sexualidade (A vontade de saber).
*..~~Toda a ambigüidade do termo "controle" deve-se ao fato de
que, a partir dos anos 80, Foucault deixa subentender que ele o entende
como um mecanismo de aplicação do poder diferente da disciplina.
É em parte sobre esse ponto que se efetua a reviravolta programática
da Histôria da Sexualidade, entre a publicação do primeiro volume (1976)
e aquele dos dois últimos (1984): "o controle do comportamento
sexual tem uma forma completamente diferente da forma disciplinar
que se encontra, por exemplo, nas escolas. ão se trata de modo
algum do mesmo assunto"?", A interiorização da norma, patente na
gestão da sexualidade, corresponde ao mesmo tempo a uma
penetração extremamente fina do poder nas malhas da vida e à sua
subjetivação. A noção de controle, uma vez tomada independentemente
das análises disciplinares, conduz então Foucault ao mesmo tempo
em direção a uma "ontologia critica da atualidade" e a uma análise
dos modos de subjetivação que estarão no centro de seu trabalho nos
anos 80.
30 Interview de Michel Foucault. In : Krisis, rnars 1984. [Tradução brasileira:
Entrevista com Michel Foucault. In : Di/os e Escritos, vol. I, p. 338].
Mjchel Foucault: conceitos essenciais 3J
Corpos (investimento político dos)
*"Houve, no curso da idade clássica, toda uma descoberta do corpo
como objeto e alvo do poder'?': as análises de Foucault nos anos 70
buscam antes de tudo compreender como se passou de uma
concepção do poder em que se tratava o corpo como uma superfície
de inscrição de suplícios e de penas a uma outra que buscava, ao
contrário, formar, corrigir e reformar o corpo. Até o final do século
XVIII, o controle social do corpo passa pelo castigo e pelo
enclausuramento: "Com os príncipes, o suplício legitimava o poder
absoluto, sua 'atrocidade' se desdobrava sobre os corpos, porque o
corpo era a única riqueza acessivel'P"; em contra partida, nas instâncias
de controle que aparecem desde o início do século XIX, trata-se, antes
de tudo, de gerir a racionalização e a rentabilidade do trabalho industrial
pela vigilância do corpo da força de trabalho: "Para que um certo
liberali mo burguês tenha sido possível no nível das instituições, foi
preciso, no nível do que eu chamo de micro-poderes, um investimento
muito mais forte dos indivíduos, foi preciso organizar o
esquadrinhamento dos corpos e dos comportamentos=".
**"Foi um problema de corpo e de materialidade - uma questão de
física - que proporcionou a grande renovação da época: nova forma
de materialidade tomada pelo aparelho de produção, novo tipo de
contato entre esse aparelho e o que o fez funcionar; novas exigências
impostas aos indivíduos como forças produtivas [...] é um capítulo na
31 Surveiller e/ Punir. Pari: Gallimard, 1975, p. 138. [Tradução brasileira: Vigiar e
punir. Petrópolis/RJ: Vozes, 1987J.
32 La prision vue par un philosophc (rançais. In: L 'Europeo, n° 1515, abril de 1975.
[Tradução brasileira: A prisão vista por um filósofo francês. In : Di/os e Escritos, vol.
[V, p. 154J.
3] Sur Ia sellette. In : Les Nouvelles Littéraires, n? 2477, março de 1975. Retomado em
Dits e/ Écrits, vol. 2, texto n° 152.
32 Judith Revel
história do corpo'?". Sobre essa base, Foucault vai desenvolver sua
análise em duas direções: a primeira corresponde a uma verdadeira
"física do poder" ou, como a designará mais tarde o filósofo, uma
anátomo-politica, uma ortopedia social, isto é, um estudo das estratégias e
das práticas por meio das quais o poder modela cada indivíduo desde
a escola até a usina; a segunda corresponde, por sua vez, a uma biopo/ítico,
isto é, à gestão política da vida: não se trata mais de redomesticar e de
vigiar os corpos dos indivíduo, mas de gerir as "populações",
instituindo verdadeiros programas de administração da saúde, da higiene
etc.
***Quando Foucault começa a pesquisar a sexualidade, ele toma,
entretanto, consciência de duas coisa : de uma parte, é a partir de uma
rede de somato-poderque nasce a sexualidade "como fenômeno histórico
e cultural no qual nós nos reconhecemos'J", e não a partir de uma
penetração moral das consciências: é preciso, portanto, fazer sua história;
de outra parte, a atualidade da questão das relações entre o poder e os
corpos é essencial: pode-se recuperar seu próprio corpo? A questão é
ainda mais pertinente na medida em que Foucault participa, na mesma
época, das discussõe sobre o movimento homossexual e que é "essa
luta pelos corpos que faz com que a sexualidade seja um problema
polftico'P". O corpo representa desde então um foco da resistência ao
poder, uma outra vertente dessa "biopolítica" que se torna o centro
da análises do filó ofo no final dos anos 70.
34 La societé punitive. In : Annuaire du Collêge de France, 1972-1973. [Tradução
brasileira: A sociedade punitiva. Resumo dos Cursos do College de France (1970-
1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 41].
35 Les rapports de pouvoir passent à I'intérieur des corps. In: La Quinzaine Littéraire,
n° 247, janeiro de 1977. Retomado em Dits et Écrits, vol. 3, texto n? 197.
36 Sexualité et politique. In : Combat, n" 9274, abril de 1974. [Tradução bra ileira:
Sexualidade e política. ln: Ditos e Escritos, vol. V, p. 26-36].
Michel Foucault· conceitos essenciais 33
Cuidado de si / Técnicas de si
* o início dos anos 80, o tema do cuidado de S1 aparece no
vocabulário de Foucault no prolongamento da idéia de
governamentalidade. À análise do governo dos outros segue, com
efeito, aquela do governo de si, isto é, a maneira pela qual os sujeito
se relacionam consigo mesmos e tornam possível a relação com o
outro. A expressão "cuidado de si", que é uma retomada do epimeleia
heauto« que se encontra, em particular, no Primeiro A/cebíades, de Piatão,
indica, na verdade, o conjunto das experiências e das técnicas que o
sujeito elabora e que o ajuda a transformar-se a si mesmo. o período
helenístico e romano sobre o qual se concentra rapidamente o interesse
de Foucault, o cuidado de si inclui a máxima délfica gf1âtbi seautou, mas
a ela não se reduz: o epime/eia beauto« corresponde antes a um ideal
ético (fazer de sua vida um objeto de tekhnê, uma obra de arte) que a
um projeto de conhecimento em sentido estrito.
**A análi e do cuidado de si permite, na verdade, estudar dois
problemas. O primeiro consiste em compreender, em particular, como
o nascimento de um certo número de técnicas ascéticas a partir do
conceito clás ico de cuidado de si foi, posteriormente, atribuído ao
cristianismo." enhuma habilidade técnica ou profissional pode ser
adquirida, em exercício; nem se pode aprender a arte de viver, a technê
to« biou, em uma ascese que deve ser tomada como um treinamento
de si por si"r. Qual é, então, o elemento que diferencia a ética greco-
17 À propos de Ia génealogie de I'éthique : un aperçu du travail em cours. In: Rabinow,
P. e Dreyfu , H. Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeutics. Chicago:
The University of Chicago Press, 1982. [Tradução brasileira: A propósito da genealogia
da ética: uma revisão do trabalho. In: Rabinow. P. e Dreyfus, H. Michel Foucault, 1111/0
trajetôria filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro:
Foren e niversitária. 1995. p. 2721.
34 Judith Revel
romana da moral pastoral cristã; e não é precisamente na articulação
do cuidado de si com os apbrodisia que se pode compreender essa
passagem da ética greco-romana à moral pastoral cristã? O segundo
problema concerne, na verdade, à história desses aphrodisia como campo
de investigação específico da relação com o si: trata- e de buscar
apreender como os indivíduos foram levados a exercer sobre si
mesmos e sobre os outros "uma hermenêutica do desejo na qual seu
comportamento sexual esteve, sem dúvida, envolvido, mas não,
certamente, como domínio exclusivo", e de analisar os diferentes jogos
de verdade utilizados no movimento de constituição do si como sujeito
do desejo.
***Na Antigüidade clássica, o cuidado de si não está em oposição
ao cuidado dos outros: ele implica, ao contrário, relações complexas
com os outros porque é importante, para o homem livre, incluir na
sua "boa conduta" uma justa maneira de governar sua mulher, suas
crianças ou sua casa. O ethos do cuidado de si é, portanto, igualmente
uma arte de governar os outros e, por isso, é essencial saber tomar
cuidado de si para poder bem governar a cidade. É sobre esse ponto,
e não sobre a dimensão ascética da relação consigo, que se efetua a
ruptura da pastoral cristã: o amor a si torna-se a raiz de diferentes
falhas morais e o cuidado dos outros implica, doravante, uma renúncia
de si no transcurso da vida terrena.
Michel Foucault: conceilos essenciais 35
Disciplina
* Iodalidade de aplicação do poder que aparece entre o final do
século XVIII e o início do éculo XIX. O "regime disciplinar"
caracteriza-se por um certo número de técnicas de coerção que exercem
um esquadrinhamento sistemático do tempo, do espaço e do
movimento do indivíduos e que atingem particularmente as atitudes,
os gestos, os corpos: "Técnicas de individualização do poder. Como
vigiar alguém, como controlar sua conduta, seu comportamento, suas
atitudes, como intensificar sua performance, multiplicar suas
capacidades, como colocá-Io no lugar onde ele será mais útil"38. O
discurso da disciplina é estranho à lei ou à regra jurídica derivada da
soberania: ela produz um discurso sobre a regra natural, isto é, .obre
a norma.
**Os procedimentos disciplinares se exercem mais sobre o. processos
da atividade do que sobre seus resultados e "a sujeição constante de
suas força. [...] impõe uma relação de docilidade-utilidade'P", As
"disciplinas" não nascem, com certeza, verdadeiramente no século
XVIII - elas se encontram desde há muito tempo nos conventos, nas
forças armada , nas oficina -, mas Foucault procura compreender
de que maneira elas tornaram-se, num determinado momento,
fórmulas gerais de dominação. "O momento histórico das disciplinas
é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que não visa
somente ao crescimento de suas habilidades, nem ao incremento de
sua sujeição, mas à formação de uma relação que no mesmo mecanismo
o torna tanto mais obediente quanto mais útil ele for, e inversamente't'",
"Lc mailles du pouvoir. op. cit. nota 26.
19 Surveiller et Punir, op. cit. nora 31.
10 Surveiller et Punir, op. cit. nota 31.
36 Judirh Revel
Essa "anatomia politica" investe então sobre as escolas, os hospitais,
os lugares de produção, e mais geralmente sobre todo espaço fechado
que possa permitir a gestão dos indivíduos no espaço, sua repartição
e sua identificação. O modelo de uma gestão disciplinar perfeita está
proposto por meio da formulação benthaminiana do "panóptico",
lugar de enclausuramento onde os princípios de visibilidade total, de
decomposição das massas em unidades e de sua reordenação complexa
segundo uma hierarquia rigorosa permitem submeter cada indivíduo
a uma verdadeira economia do poder: numerosas instituições
disciplinares - prisões, escolas, asilos - possuem ainda hoje uma
arquitetura panóptica, isto é, um espaço caracterizado, de uma parte,
pelo enclausuramento e pela repressão dos indivíduos, e, de outra,
por um abrandamento do funcionamento do poder.
***0 modelo disciplinar foi, sem dúvida, em parte con truído em
torno da experiência que Foucault teve, a partir de 1971-72, no interior
do GIP (Grupo de Informação sobre as Prisões). É somente entre a
publicação de Vzgiar epnnir (1975) e os cursos do Collêge de France,
de 1978-79, que Foucault começa a trabalhar num outro modelo de
aplicação do poder, o controle, que trabalha ao mesmo tempo a
descrição da interiorização da norma e da estrutura reticular das técnicas
de assujeitamento, a gestão das populações e as técnicas de si. Essa
passagem de uma leitura disciplinar da história moderna para uma
leitura "contemporânea" do controle social correspondeu, no final
dos anos 70, a um nítido engajamento naquilo que Foucault chamou
de "antologia da atualidade".
Michel Foucault: conceitos es enciai 37
Discurso
*0 discurso designa, em geral, para Foucault, um conjunto de
enunciados que podem pertencer a campos diferentes, mas que
obedecem, apesar de tudo, a regras de funcionamento comuns. Essas
regras não são omente lingüísticas ou formais, mas reproduzem um
certo número de cisões historicamente determinada (por exemplo, a
grande separação entre razão/ desrazão): a "ordem do discur o"
própria a um período particular possui, portanto, uma função
normativa e reguladora e coloca em funcionamento mecanismos de
organização do real por meio da pr dução de saberes, de estratégias
e de práticas.
**0 interes e de Foucault pelos "planos discursivos" foi
imediatamente duplo. De um lado, tratava-se de analisar as marcas
di cursivas, procurando isolar as leis de funcionamento independente
da natureza e das condições de enunciação, o que explica o interesse
de Foucault, na mesma época, pela gramática, pela lingüística e pelo
formalismo: "foi original e importante a descoberta de que aquilo
que se faz com a linguagem - poesia, literatura, filosofia, discurso em
geral- obedece a um certo número de leis e de regularidades internas:
as leis e as regularidades da linguagem. O caráter lingüístico dos fato
de linguagem foi uma de coberta muito importante":"; mas, de outro,
tratava- e de descrever a transformação dos tipo de discurso nos
séculos À'VII e XVIII, isto é, de historicizar o procedimentos de
identificação e de classificação próprios de se período: nesse sentido,
4' La vérité et les forme juridique , op. cit. nota 28.
38 Judith Revel
a arqueologia foucaultiana dos discursos não é apenas uma análise
lingüistica, mas uma interrogação sobre as condições de emergência
de dispositivos discursivos que sustentam práticas (como em História
da Loucllt(1)ou as engendram (como em As Palavras e as Coisas ou em
A arq/leologia do Saber). esse sentido, Foucault substitui o par
saussureano língua/fala por duas oposições que ele faz funcionar
alternativamente: o par discurso/linguagem, no qual o discurso é,
paradoxalmente, o que é renitente à ordem da linguagem em geral (é,
por exemplo, o caso do "esoterismo estrutural" de Raymond Roussel)
- e é preciso notar que o próprio Foucault anulará essa oposição,
intitulando sua aula inaugural no Collêge de France como A Ordem do
Discurso, em 1971; e o par discurso/ fala, no qual () discurso se torna o
eco lingüístico da articulação entre saber e poder, e no qual a fala,
como instância subjetiva, encarna, ao contrário, uma prática de
resistência à "objetivação discur iva" .
***0 aparente abandono do tema do discurso depois de 1971, em
proveito de uma análise das práticas e das estratégias, corresponde ao
que Foucault descreve como a passagem de uma arqueologia a uma
"dinastia do saber": não mais somente a descrição de um regime de
discursividade e de sua eventual transgressão, mas a análise "da relação
que existe entre esses grandes tipos de discurso e as condições históricas,
as condições econômicas, a condições politicas de seu aparecimento
e de sua forrnação't'". Ora, esse deslocamento, que embasa a passagem
metodológica da arqueologia à genealogia, permite problematizar as
condições do desaparecimento do "discurso": () tema das práticas de
resistência, onipresente em Foucault a partir dos anos 70, possui, na
realidade, uma origem discursiva .
• 2 De I'archéologie à Ia dynastique. Entretien avec S. Hasurni, scpiernbre 1972.
Retomado em Dits et Écrits, vol. 3, texto n" 119. [Tradução brasileira: Da arqueologia
à dinástica. In: Ditos e Escritos. vol. IV, p. 491.
Michel Foucault: conceitos essenciais 39
Dispositivo
*0 termo "dispositivos" aparece em Foucault nos anos 70 e designa
inicialmente os operadores materiais do poder, isto é, as técnicas, as
estratégias e as formas de assujeitamento utilizadas pelo poder. A partir
do momento em que a análise foucaultiana se concentra na questão
do poder, o filósofo insiste sobre a importância de se ocupar não
"do edifício jurídico da soberan.ia, dos aparelhos do Estado, das
ideologias que o acornpanham'r", mas dos mecanismos de dominação:
é essa escolha metodológica que engendra a utilização da noção de
"dispositivos". Eles são, por definição, de natureza heterogênea: trata-
se tanto de discursos quanto de práticas, de instituições quanto de
táticas moventes: é assim que Foucault chega a falar, segundo o caso,
de "dispositivos de poder", de "dispositivos de saber", de
"dispositivos disciplinares", de "dispositivos de sexualidade" etc.
**0 aparecimento do termo "dispositivo" no vocabulário conceitual
de Foucault está provavelmente ligado à ua utilização por Deleuze e
Guattari no .Anti-Édipo (1972): é, pelo menos, o que deixa entender o
prefácio que Foucault escreveu em 1977 para a edição americana do
livro, visto que ele aí ob erva "a noções em aparência abstratas de
multiplicidades, de fluxos, de dispositivos e de rarnificaçõe "44.
Posteriormente, o termo receberá uma acepção cada vez mais ampla
(mesmo que, no começo, Foucault somente utilize a expressão
4,ll faut défendre Ia société, Paris: Seuil, 1997. [Tradução brasileira: Em defesa da
sociedade. Curso no College de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,
1999].
44 Prefácio a Deleuze, G. e Guauari, F. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia.
New York: Viking Press, 1977. Retomado em Dits et Écrits, vol. 3, texto n" 189.
40 Judith Revel
"dispositivo de poder") e cada vez mais precisa, até ser objeto de
uma reflexão completa após A uontade de saber (1976), em que a
expressão "dispositivo de sexualidade" é central: um dispositivo é
"um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetõnicas, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,
morais, filantrópicas. ~m suma: o dito e o não-dito l..']'O dispositivo
é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos'r". O problema
é, então, para Foucault, o de interrogar tanto a natureza dos diferentes
dispositivos que ele encontra quanto sua função estratégica.
*** a verdade, a noção de dispositivo substitui pouco a pouco
aquela de episteme, empregada por Foucault, de um modo absolutamente
particular, em As palavras e as coisas e até o final dos anos 60. Com
efeito, a episteme é um dispositivo especificamente discursivo, enquanto
o "dispositivo", no sentido que Foucault explorará dez anos mais
tarde, contém igualmente instituições e práticas, isto é, "todo o social
não-discursivo "46.
4j Le jeu de Michel Foucault. Ornicar? Bulletin périodique du champ [reudien. n"
10, julho de 1977. (Tradução brasileira: Sobre a história da sexualidade. In:
Microftsica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999, p. 244).
46 Le jeu de Michel Foucault, op. cit. nota 45.
Mjchel Foucault: conceitos essenciais 41
Episteme
*0 termo "episterne" está no centro das análises de As Palavras e as
Coisas (1966) e deu lugar a numerosos debates na medida em que a
noção é, ao mesmo tempo, diferente da de "sistema" - que Foucault
praticamente nunca utiliza antes que sua cadeira no Collêge de France
fosse, a seu pedido, rebatizada, em 1971, como "cadeira de história
dos sistemas de pensamento" - e da de "estrutura". Por episteme,
Foucault designa, na realidade, um conjunto de relações que liga tipos
de discursos e que corresponde a uma dada época histórica: "são
todos esses fenômenos de relações entre as ciências ou entre os
diferentes discursos científicos que constituem aquilo que eu denomino
a episteme de uma época":"
**Os mal-entendidos engendrados nos anos 60 pelo u o da noção
devem-se a dois motivos: de um lado, interpreta-se a episteme como
um sistema unitário, coerente e fechado, isto é, como uma coerção
hi tórica, que implica uma sobredeterminação rígida dos discursos; e,
de outro lado, acusa-se Foucault de um certo relativismo histórico,
isto é, ele foi instado a explicar a ruptura epistêrnica e a descontinuidade
gue a pa sagem de uma episteme a outra necessariamente implica. obre
o primeiro ponto, Foucault responde que a episteme de uma época não
é "a soma de seus conhecimentos ou o estilo geral de suas pe guisas,
mas o desvio, as distâncias, as oposições, as diferenças, as relações de
seus múltiplos discur os científicos: a episteme não é tona espécie degratlde
4? Le problêrnes de Ia culture. Un débat Foucault-Preli. In: 11Bimestre, n? 22-23,
setembro-dezembro. 1972. Retomado em Dits et Écrits, vol. 2, texto n? 109.
42 Judith Revel
teoria subiacente, é um espaço de dispersão, é um campo aberto l... 1 a episteme
nào é lima cobertura de história comum a todas as ciências; é um jogo
simultâneo de remanêndas especificas"48. [ais do que uma forma geral da
consciência, Foucault descreve, portanto, um feixe de relações e de
deslocamentos; não um sistema, mas a proliferação e a articulação de
múltiplos sistemas que remetem uns aos outros. Sobre o segundo
ponto, Foucault reivindica, por meio do uso da noção, a substituição
da questão abstrata da mudança (particularmente viva, na época, para
os historiadores) por aquela dos "diferentes tipos de transformação":
"substituir, enfim, o tema do devir (forma geral, elemento abstrato,
causa primeira e efeito universal, mistura confusa do idêntico e do
novo) pela análise das transformações em sua especificidade":".
***0 abandono da noção de episteme corresponde ao de locamento
do interesse de Foucault, de objetos estritamente discursivos a realidades
não-discursivas - práticas, estratégias, instituições etc: "Em As Palaoras
e as Coisas, querendo fazer uma história da epistelJle, permanecia num
impasse. Agora, gostaria de mostrar que o c1ue chamo de dispositivo
é algo muito mais geral que compreende a episteme. Ou melhor, que a
episteme é um dispositivo especificam nte discursivo, diferentemente
do dispositivo, que é discursivo e não-discursivo, sendo seus elementos
muito mais heterogêneos":".
4H Réponse à une questiono ln: Esprit, na 371, maio 1968. Retomado em Dits
et Écrits, vol. I, texto N° 58.
49 Réponse à une question, op. cit. nota 48.
50 Le jeu de Michel Foucault. op. cit. nota 45.
Michel Foucaull: conceitos essenciais 43
Estética (da existência)
*0 tema de uma "estética da existência" aparece muito nitidamente
em Foucault no momento da aparição dos dois últimos volumes da
História da Sexualidade, em 1984. Foucault faz, com efeito, a descrição
de dois tipos de moral radicalmente diferentes, uma moral greco-
romana dirigida para a ética e por meio da qual se trata de Jazer de SIIa
vida lima obra de arte, e uma moral cristã no interior da qual se trata, ao
contrário, essencialmente, de obedecer a um código: "Se me interessei
pela Antigüidade, foi porque, por toda uma série de razões, a idéia de
uma moral como obediência a um código de regras está
desaparecendo, já desapareceu. E a esta ausência de moral corresponde,
deve corresponder uma busca que é aquela de uma estética da
existência'?'. Os temas da ética e da estética da existência estão portanto
estreitamente ligados.
**A "estética" da existência ligada à moral antiga marca em Foucault
o retorno ao tema da invenção de si (Jàzer de sua vida lima obra de alte):
uma problematização a que ele já havia chegado em filigrana num
certo número de textos "literários" nos anos 60 (por exemplo, no
H.aYfJ/ond Roussel, mas igualmente nas análises consagradas a Brisset e a
Wolfson), e que ele retoma vinte anos mais tarde por meio de uma
dupla série de discursos. A primeira, no interior da História da
Sexualidade, está essencialmente ligada à problematização da ruptura
que representa a "pastoral cristã" em relação à ética grega; a segunda
passa, em contrapartida, pela análise da "atitude da rnodernidade"
51 Une esthétique de I'existence. In: Le Monde, 15-16 de julho de 1984. [Tradução
bra ilera: Uma estética da existência. In: Ditos e Escritos, vol V, p. 290].
44 Judith Revel
(por meio da retomada do texto kantiano sobre as Luzes) e faz da
invenção de si uma das características dessa atitude: a modernidade
não é somente a relação com o presente, mas a relação consigo mesmo,
na medida em que "ser moderno não é aceitar a si mesmo tal como
se é no fluxo dos momentos que passam; é tomar a si mesmo como
objeto de uma elaboração complexa e dura: o que Baudelaire chama,
de acordo com o vocabulário da época, de 'dandismo't'F, A estética
da existência é, ao mesmo tempo, o que Foucault localiza fora da
influência da pastoral cristã (temporalmente: o retorno aos Gregos;
espacialmente: o interesse contemporâneo de Foucault pelo zen e pela
cultura japonesa) e o que deve, de novo, caracterizar a relação que nó
mantemos com a nossa própria atualidade.
***0 tema da estética da existência como produção inventiva de si
não marca, entretanto, um retorno à figura do sujeito soberano,
fundador e universal, nem a um abandono do campo político: "penso,
pelo contrário, que o sujeito se constitui através das práticas de sujeição
ou, de maneira mais autônoma, através de práticas de liberação't". A
estética da existência, na medida em que ela é uma prática ética de
produção de subjetividade, é, ao mesmo tempo, assujeitada e resistente:
é, portanto, um gesto eminentemente político.
~2 What's enlightenment? , op. cit. nota 6.
S3 Une e thétique de l'exi tence, op. eu, nota 51.
Michel Foucaull: conceitos essenciais 45
,
Etica
* os últimos volume da História da sexualidade, Foucault distingue
claramente entre o que é preciso entender por "moral" e o que significa
"ética' . A moral é, em sentido amplo, um conjunto de valores e de
regras de ação que são propostas ao indivíduos e aos grupos por
meio de diferentes aparelhos prescritivos (a família, as instituições
educativas, as Igrejas etc.); essa moral engendra uma "moralidade dos
comportamentos", isto é, uma variação individual mais ou menos
consciente em relação ao sistema de prescrições do código moral.
Por outro lado, a ética concerne à maneira pela qual cada um constitui
a si mesmo como sujeito moral do código: "Dado um código de
condutas [...], há diferentes maneiras de o indivíduo 'conduzir-se'
moralmente, diferentes maneiras para o indivíduo, ao agir, não operar
simplesmente como agente, mas im como sujeito moral dessa ação"?'.
**A toda ética corresponde a determinação de uma "substância
ética", isto é, a maneira pela qual um indivíduo faz de si mesmo a
matéria principal de sua conduta moral; da mesma maneira, ela implica
necessariamente um modo de sujeição, isto é, a maneira pela qual um
individuo se relaciona com uma regra ou com um sistema de regras e
experimenta a obrigação de colocá-Ias em ação. A ética greco-romana
que descreve Foucault, em particular no segundo volume da História
da Sexualidade (O uso dosprazeres), tem por substância ética os apbrodisia
e seu modo de sujeição é uma e colha pessoal estético-politica (não se
trata tanto de respeitar um código quanto de "fazer da sua vida uma
54 Usage des plaisirs et techniques de sai. ln: Le Débat, n? 27, novembro 1983.
[Tradução brasileira: O Uso dos Prazere e a Técnicas de Si. In : Ditos e Escritos,
vol, V. p. 211-212).
46 Judith Revel
obra de arte"). Em contrapartida, a moral cristã funciona não sobre a
escolha mas sobre a obediência, não sobre os apbrodisia (que são ao
mesmo tempo o prazer, o desejo e os atos), mas sobre a "carne" (que
coloca entre parênteses tanto o prazer quanto o desejo): com o
cristianismo, "o modo de sujeição é, então, a lei divina. E creio que até
mesmo a substância ética mudou, porque ela não é mais constituida
pela apbrodisia, mas pelo desejo, pela concupiscência, pela carne etc.?".
***0 termo ética aparece pela primeira vez de maneira realmente
significativa em 1977, em um texto obre O .Anti-Édipo de Deleuze e
Guatarri: "Eu diria que O Anti-Édipo (perdoem-me os autores) é um
livro de ética, o primeiro livro de ética que se escreveu na França
depois de muito tempo?". E é interessante constatar que Foucault
caracteriza da mesma maneira, alguns anos mais tarde, sua própria
História da Sexllalidade: "se, por 'ética' entender-se a relação que o
indivíduo estabelece consigo mesmo, eu diria que tende a ser uma
ética, ou, pelo menos, tentarei mostrar o que poderia ser uma ética do
comportamento sexual"?". E para além da sexualidade, o projeto de
uma "ontologia crítica da atualidade" recebe, às vezes, a formulação
de uma "política como uma ética": isso quer dizer que o interesse
foucaultiano pela ética, nos ano 80, longe de ser o fim da
problematização filosófica e histórica das estratégias do poder e de
sua aplicação aos indivíduos, re-propõe a análise do campo político a
partir da constituição ética dos sujeitos, a partir da produção da
subjetividade.
55 A propos de Ia généalogie de l'éthique : un aperçu du travail cn cours, op. cit.
nota 37.
56 Prefácio a Deleuze, G. e Guartari, F. Anti-Oedipus, op. cit. nota 44.
57 Une interview de Michel Foucault par Stephen Riggins. In: Ethos, vol. &, n° 2.
1983. Retomado em Dits et Écrits. vol 4, texto n° 336.
Michel Foucault: conceitos essenciais 47
Expêriencia
*A noção de experiência e tá presente ao longo de todo o percurso
filosófico de Foucault, mas ela passa por importantes modificações
no decorrer dos anos. e é verdade que, de maneira geral, "a
experiência é alguma coisa da qual saímos transforrnados't", Foucault
refere-se, inicialmente, a uma experiência que deve muito, ao mesmo
tempo, a Bataille e a Blanchot: no cruzamento de uma experiência do
limite e de uma experiência da linguagem considerada como
"experiência do exterior", ele procura, com efeito, definir - em
particular no domínio da literatura - uma experiência do ilimitado, do
intransponível, do impossivel, isto é, daquilo que afronta, na realidade,
a loucura, a morte, a noite ou a sexualidade, ao aprofundar, na espessura
da linguagem, seu próprio espaço de fala. um segundo momento,
muito diferentemente, a experiência se torna para Foucault a única
maneira de distinguir a genealogia ao mesmo tempo de uma
abordagem empírica ou positivista e de uma análise teórica: se algumas
problematizacõe nascem de uma experiência (por exemplo, a e critura
de Vigiar e Punir depois da experiência do Grupo de Informação
sobre as Prisões e, mais amplamente, depois de 1968), é no sentido de .
que o pensamento filosófico de Foucault é verdadeiramente uma
experimentação: ele dá, com efeito, a ver o movimento da constituição
histórica dos discursos, das práticas, das relações de poder e das
subjetividades, e é devido a essa relação com a genealogia que a
5N Entretien avec Michel Foucault (avec Ducio Trombadori, Paris, 1978). In: 1/
Contributo, 4 année, n. I. Retomado em Dits et Écrits, vol. 4, 1994, texte n. 281.
48 Judith Revel
experiência sai dela mesma modificada: "Meu problema é o de fazer
eu mesmo - e de convidar os outros a fazerem comigo, por meio de
um conteúdo histórico determinado - uma experiência daquilo que
nós somos, daquilo que é não omente o nosso passado mas também
o nosso presente, uma experiência de nossa modernidade de tal
maneira que dela saiamos transformados."?
**Enquanto a experiência fenomenológica (à qual Foucault se refere
ainda, em parte, nos seus textos dos anos 50) procura, na realidade,
"retomar a significação da experiência cotidiana para compreender
de que maneira o sujeito que eu sou é realmente fundador, em suas
funções transcendentais, daquela experiência e de suas significações't'",
a referência a ietzsche, a Bataille e a Blanchot permite, ao contrário,
definir a idéia de uma experiência-limite que arranca o sujeito dele
mesmo e lhe impõe sua fragmentação ou sua dissolução. Assim, torna-
se evidente que a referência a Bataille seja essencial e que Foucault
censure os surrealistas, mesmo reconhecendo que Breton tenha tentado
percorrer experiência limites, por tê-Ias mantido em um espaço da
psique. O fato de construir-se a partir do apagamento do sujeito faz
com que essa idéia da experiência como passagem ao limite não esteja, na
realidade, tão distante das outras análi es de Foucault nos anos 60: ele
atualiza nela o horizonte desenhado pelo final de As Palatras e as Coisas
- O possível desaparecimento do homem ao mesmo tempo como
consciência autônoma e como objeto de conhecimento privilegiado:
"uma experiência está prestes a nascer onde o que está em jogo é o
59 Entretien avec Michel Foucault (avec Ducio Trombadori), op. cit. nota 58.
60 Entretien avec Michel Foucault (avec Ducio Trombadori), op. cit. nota 58.
Michel Foucault: conceitos essenciaj; 49
nosso pensamento; sua iminência já visível, mas absolutamente vazia,
não pode ainda ser nomeada"?'.
***Se é verdade que a maior parte das análises de Foucault na ce de
uma experiência pe soal - como ele mesmo reconhece - elas não
podem, de maneira alguma, serem reduzidas a isso. Ao contrário,
Foucault coloca-se como tarefa a reformulação da noção de
experiência, ampliando-a para além do si (um i já maltratado pela
crítica dos filósofos do sujeito): a experiência é algo que se dá
solitariamente, mas que é plena somente na medida em (lue escapa à
pura subjetividade, isto é, que outros podem cruzá-Ia ou atravessá-Ia.
A partir dos anos 70, é, pois, sobre o terreno de uma prática coletiva
- i to é, no campo político - que Foucault procura situar o problema
da experiência como momento de transformação: o termo passará,
então, a ser associado ao mesmo tempo à resistência aos dispositivos
de poder (experiência revolucionária, experiência de lutas, exp riência
de sublevação) e aos processos de subjetivaçâo.
61 La folie, l'absence d'ceuvre, La Table Ronde, n° 196 : Situation de Ia psychiatrie,
1964, retomado em Dits et Écrits, vol. I, texto n° 25. [Tradução brasileira: A
loucura, a ausência da obra. In : Ditos e Escritos, vol. I, p. 219].
50 Judith Revel
Exterior
*Em 1966, num texto consagrado a Maurice Blanchot'" Foucault
define a "experiência do exterior" corno a dissociação do "eu penso"
e do "eu falo": a linguagem deve enfrentar o desaparecimento do
sujeito que fala e inscrever seu lugar vazio corno fonte de sua própria
expansão indefinida. A linguagem escapa, então, "ao modo de ser do
discurso - ou seja, à dinastia da representação - e o discurso literário
se desenvolve a partir dele mesmo, formando urna rede em que cada
ponto, distinto dos outros, à distância mesmo dos mais próximos,
está situado em relação a todos num espaço que ao mesmo tempo os
abriga e os separa'r".
**Essa passagem ao exterior como desaparecimento do sujeito que
fala e, contemporaneamente, como aparição do próprio ser da
linguagem, caracteriza para Foucault uma espécie de linhagem marginal
da cultura ocidental, cujo pensamento "será necessário um dia tentar
definir as formas e as categorias fundamentais". De Sade a Hôlderlin,
de ietzche a Mallarmé, de Artaud a Bataille e a Klossowski, trata-se
sempre de considerar essa passagem ao exterior, isto é, ao mesmo
tempo a fragmentação da experiência da interioridade e o
descentramento da linguagem em direção ao seu próprio limite: nesse
sentido, segundo Foucault, Blanchot parece ter conseguido tirar da
linguagem a reflexividade da consciência e transformado a ficção em
uma dissolução da narração que valoriza "o interstício das imagens".
O paradoxo dessa palavra sem raiz e sem fundações, que se revela
62 La pensée du dehors. In: Critique, n. 229, 1966. [Tradução brasileira: O
pensamento do exterior. ln: Ditos e Escritos, vol. Hl, p. 219-242).
63 La pensée du dehors, op. cit. nota 62.
Michel Foucaull: conceitos essenciais 5/
como deslizamento e como murmúrio, como divisão e como
dispersão, é que ela representa um avanço em direção ao que nunca
recebeu linguagem - a própria linguagem, que não é nem reflexão
nem ficção, mas jorro infinito - ou seja, oscilação indefinida entre a
origem e a morte.
***0 tema do exterior é interessante, ao mesmo tempo, porque
interliga o autores do quai Foucault se ocupa no mesmo período -
a "linhagem do exterior", da qual Blanchot seria a encarnação mais
evidente - e porque forma um contra ponto radical com aquilo que o
filósofo se aplica a de crever, no mesmo momento, em seus livros.
Com efeito, quando Foucault sublinha o risco de reconduzir a
experiência do exterior à dimensão da interioridade e a dificuldade de
dotá-Ia de uma linguagem que lhe seja fiel, ele se refere à fragilidade
desse "exterior": não há exterior possível numa descrição arqueológica
dos dispositivos discursivos tal como apresentada em As pala/Iras e as
Coisas. Será somente bem mais tarde que Foucault deixará de pensar o
"exterior" como uma passagem ao limite ou como uma pura
exterioridade, e que ele lhe dará um lugar no seio mesmo da ordem
do discurso: a oposição não será, portanto, mais entre o de dentro e o
de fora, entre o reino do sujeito e o murmúrio anônimo, mas entre a
linguagem objetivada e a palavra de resistência, entre o sujeito e a
subjetividade, isto é, aquilo que Deleuze chamará "a dobra". dobra
- e o termo já fora., estranhamente, utilizado por Foucault em 1966 -
, é o fim da opo ição dentro/fora, porque é o exterior do dentro. E
Foucault conclui: "l...] estarnos sempre no interior. A margem é um
mito. A fala do exterior é um sonho que não paramos de repetir"?'.
64 L'extension sociale de Ia norme. In: Politique Hebdo, nO212, março de 1976.
Retomado em Dits et Écrits, vol. 3. texto n° 173.
52 Judirh Reve!
Genealogia
*Desde a publicação deAs Palavrase as Coisas(1966), Foucault qualifica
seu projeto de arqueologia das ciências humanas mais como uma
"genealogia nietzschiana" do que como uma obra estruturalista. Esse
conceit é retomado e precisado, em 1971, em um texto sobre
ietzsche: a genealogia é uma pesquisa histórica que se opõe ao
"desdobramento meta-histórico das significações ideais e das
indefinidas teologias'", que se opõe à unicidade da narrativa histórica e
à busca da origem, e que procura, ao contrário, a "singularidade dos
acontecimentos fora de qualquer finalidade monótona'?". A genealogia
trabalha, portanto, a partir da diversidade e da dispersão, do acaso
dos começos e dos acidentes: ela não pretende voltar ao tempo para
restabelecer a continuidade da história, mas procura, ao contrário,
restituir os acontecimentos na sua singularidade.
**0 enfoque genealógico não é, no entanto, um simples ernpirismo,
"nem tampouco um positivisrno, no sentido habitual do termo". Trata-
se, de fato, de ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não
legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia depurá-
los, hierarquizá-Ios, ordená-Ios em nome de um conhecimento
verdadeiro [...]. As genealogias não são, portanto, retornos positivistas
a uma forma de ciência mais atenta ou mais exata; as genealogias são
mais exatamente anti-aênaasí'", O método genealógico é, portanto,
65 Nietzche, Ia généalogie, l'histoire, In: Dits et Écrits, vol. 2, texto n? 84. [Tradução
brasileira: Nietzsche, a Genealogia, a História. In: Ditos e Escritos, vol. lI, p. 261].
66 Nietzche, Ia généalogie, l'histoire, op. cit. nota 65.
Michel Foucault: conceitos essenciais 53
uma tentativa de desassujeitar os saberes hi tórico ,isto é, de torná-los
capazes de oposição e de luta contra "a ordem do discurso"; isso
significa que a genealogia não bu ca somente no passado a marca de
acontecimento ingulares, mas que ela se coloca hoje a questão da
possibilidade dos acontecimentos: "ela deduzirá da contingência que
nos fez ser o que somos, a possibilidade de não mai ser, fazer ou
pensar o que somos, fazemos ou pensarnos'r".
***A genealogia permite apreender de maneira coerente o trabalho
de oucault desde os primeiros textos (antes que o conceito de
genealogia começasse a ser empregado) até os últimos. Foucault inclica,
com efeito, que há três domínios possíveis de genealogia: uma antologia
histórica de nó -rnesrnos em nossas relações com a verdade, que
permite nos constituirmos como sujeitos de conhecimento; nas nossas
relações com um campo de poder, que permite nos constituirmos
como sujeitos que agem sobre os outros; e em nossas relações com a
moral, que permite nos constituirmos como agente éticos. "Todos
o três [eixos possíveis para a genealogia] estavam presentes, embora
de forma um tanto confu a, em História da Loucura. Estudei o eixo da
verdade em astimento da Clínica e As Palavras e as Coisas. Desenvolvi o
eixo do poder em Vigiar e Punir, e o eixo moral em História da
eXllalidade"69.
67 Cour du 7 janvier 1976. In: Microfisica dei potere. Torino : Enaudi, 1977.
[Tradução brasileira; Genealogia e Poder. 111: Microfisica do Poder. Rio de Janeiro :
Graal,1999,p.17I].
68 What's enlightenment?, op. cit. nota 6.
69 À propos de Ia génealogie de I'éthique: un aperçu du travail em cours, op. cit.
nota 37.
54 Judith Revel
Governamentalidade
* A partir de 1978, em seu curso no Co//ege de France, Foucault analisa
a ruptura que se produziu entre o final do século XVI e o início do
século À'VII e que marca a passagem de uma arte de governar herdada
da Idade Iédia, cujos princípios retomam a virtudes morais
tradicionais (sabedoria, justiça, respeito a Deus) e o ideal de medida
(prudência, reflexão), para uma arte de governar cuja racionalidade
tem por princípio e campo de aplicação o funcionamento do Estado:
a "governamentalidade" racional do Estado. Essa "razão do Estado"
não é entendida como a suspensão imperativa das regras pré-existentes,
mas como uma nova matriz de racionalidade que não tem a ver nem
com o soberano de justiça, nem com o modelo maquiavélico do
Príncipe.
**"Por e sa palavra 'governarrientalidade', eu quero dizer três coisas.
Por governamentalidade, eu entendo o conjunto constituído pelas
instituições, procedimento, análises e reflexõe , cálculos e táticas que
permitem exercer essa forma bastante específica e complexa de poder,
que tem por alvo a população, como forma principal de aber a
economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos
de segurança. Em segundo lugar, por governarnentalidade, entendo a
tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante
muito tempo, à preeminência desse tipo de poder que se pode chamar
de "governo" sobre todos os outros - soberania, disciplina etc [...1.
Enfim, por governamentalidade, eu creio que seria preciso entender o
resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade
Média, que se tornou nos séculos XVI e XVII Estado administrativo,
Michel Foucault: conceitos essenciais 55
foi pouco a pouco 'governamentalizado,>7O. A nova
governamentalidade da razão do Estado se apóia sobre dois grandes
conjuntos de saberes e de tecnologias políticas, uma tecnologia político-
militar e uma "policia". o cruzamento dessas duas tecnologias,
encontra-se o comércio e a circulação interestatal da moeda: "é do
enriquecimento pelo comércio que se espera a possibilidade de
aumentar a população, a mão-de-obra, a produção e a exportação, e
de se dotar de armas fortes e numerosas. O par população-riqueza
foi, na época do mercantilismo e da cameralistica, o objeto privilegiado
da nova razão governamental,,71. Esse par está no fundamento da
formação de uma "economia política",
*** A governamentalidade moderna coloca pela pnmeJra vez o
problema da "população", isto é, não a soma dos sujeitos de um
território, o conjunto de sujeitos de direito ou a categoria geral da
"espécie humana", mas o objeto construído pela gestão politica global
da vida dos indivíduo (biopolítica). Essa biopolítica implica,
entretanto, não somente uma gestão da população, mas um controle
das estratégias que os indivíduos, na sua liberdade, podem ter em
relação a eles mesmos e uns em relação aos outros. As tecnologias
governamentais concernem, portanto, também ao governo da
educação e da transformação dos indivíduos, àquele das relações
familiares e àquele das instituições. Épor essa razão que Foucault estende
a análise da governamentalidade dos outro para uma análise do
governo de si: "Eu chamo 'governamentalidade' o encontro entre as
técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si"n.
70 La gouvernamentalité. Cours ou Collêge de France, 1977-1978: Sécurité. territoire,
population, 4a aula, 10
de fevereiro de 197 . ln: Dits et Écrits, vol. 3, texto n" 239.
[Tradução brasileira: A Governamentalidade. In: Microjísica do Poder. Rio de Janeiro:
Graal, 1999, p. 291-292J.
71Sécurité, territcire. population [ Segurança. território e população. ln: Resumo dos
Cursos do Collêge de France (/970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.
841·
72 Lcs techniques de soi. ln : Technologies of lhe Sel]. A Seminar with M. FOI/caI/lI.
Massachuseus, U.P., [988. Retomado em Dits et Écrits, vol. 4, texto n'' 363.
56 Judith Revel
Guerra
*Foucault se interessa pela guerra durante um período relativamente
breve, entre 1975 e 1977, e de maneira extremamente intensa, pois ele
lhe consagra um ano de curso no Collêge de France". A primeira
referência à guerra limita-se a inverter a fórmula clausewitziana?' a fim
de descrever a situação da crise international criada pelos choques
petrolíferos: "a política é a continuação da guerra por outros meios"75.
Dessa forma, Foucault retoma teoricamente o tema da guerra na
medida em que, sendo o poder essencialmente uma relação de forças,
os esquemas de análise do poder "não devem ser emprestados da
psicologia ou da sociologia, mas da estratégia. E da arte da guerra"76.
Essa afirmação, reformulada de maneira interrogativa, torna-se o
coração do curso "Em defesa da sociedade": se a noção de
"estratégia" é essencial para fazer a análise dos dispositivos de saber e
de poder, e se ela permite, em particular, analisar as relações de poder
por meio das técnicas de dominação, pode-se, então, dizer que a
dominação não é outra coisa senão uma forma continuada da guerra?
**A questão de saber se a guerra pode valer como grade de análise
das relações de poder se subdivide em vários problemas: a guerra é
731/ faut défendre Ia soeiété, op. cit. nota 43.
74 NT: Foucault alude ao aforisma de Carl Von Clausewitz (trad. francesa De Ia
guerre. Paris: Minuit, 1955): "a guerra não é mais do que a continuação da política
por outros meios".
75 La politique est Ia continuation de Ia guerre par d'autres moyens. ln: L'imprévu,
n? J, janvier 1975. Retomado em Dits e! Écrits, vol. 2, texto n? J 48.
76 Michel Foucault, l'illégalisme et l'art de punir. In: La Presse, n° 80, 3 avril 1976.
Retomado em Dits et Écrits, vol. 3, texte n" 175.
Michel Foucault: conceitos essenciais 57
um estado primeiro do qual derivam todos os fenômenos de
dominação e de hierarquização social? Os processos de antagonismo
e de lutas, sejam eles individuais ou de classe, são reconduzíveis ao
modelo geral da guerra? As instituições e os procedimentos militares
são o coração das instituições políticas? E, sobretudo, quem primeiro
pensou que a guerra era a continuação da política por outros meios, e
desde quando? O curso, que se alongou sobre a ruptura entre o direito
de paz e de guerra característico do poder medieval e a concepção
politica da guerra a partir do século XVII, procura, es encialmente,
responder à última questão; po teriormente, o modelo da guerra é
abandonado em proveito de um modelo mais complexo de análise
das relações de poder: a "governamentalidade".
***Foucault localiza no século XVII um discurso histórico-politico
- "muito diferente do discurso filosófico-jurídico ordenado pelo
problema da soberania'?" - que transforma a guerra num fundo
permanente de todas as instituições de poder. a França, esse discurso,
que foi desenvolvido em particular por Boulainvilliers, afirma que a
guerra presidiu o nascimento dos Estados: não a guerra imaginária e
ideal imaginada pelos filósofos do estado da natureza - "para Hobbes,
é a não-guerra que funda um Estado e lhe dá sua forma,,78
- mas
urna guerra real, uma "batalha" da qual, no mesmo ano, [/igiar e Punir
nos incita a ouvir o' estrondo surdo".
77 11[aut défendre Ia societé, op.cit. nota 43.
7811 faut défendre Ia societé, op.cit. nota 43.
58 Judirh Revel
História
*Ainda que o termo "história" apareça em numerosas retomadas
nos títulos das obras de Foucault, ele recobre, na verdade, três eixos
de discursos distintos. O primeiro consiste numa retomada explícita
de ietzsche, isto é, absolutamente ao me mo tempo, da crítica da
história concebida como contínua, linear, provida de uma origem e
de um te/os, e da crítica do discurso dos historiadores como "história
monumental" e supra-histórica, É, portanto, essa leitura nietzschiana
que impulsiona Foucault a adotar, desde o começo dos anos 70, o
termo "genealogia": trata-se de reencontrar a descontinuidade e o
acontecimento, a singularidade e os acasos, e de formular um tipo de
enfoque que não pretende reduzir a diversidade histórica, mas que
dela seja o eco. O segundo eixo corresponde à formulação de um
verdadeiro "pensamento do acontecimento" - de maneira muito
próxima do que faz Deleuze na mesma época -, isto é, à idéia de uma
história menor feita de uma infinidade de traços silenciosos, de narrativas
de vidas minúsculas, de fragmentos de existências - donde o interesse
de Foucault pelos arquivos. O terceiro eixo se desenvolve precisamente
a partir dos arquivos e induz Foucault a colaborar com um certo
número de historiadore , isto é, ao mesmo tempo, a problematizar o
que deveria ser a relação entre a filo ofia e a história (ou, mais
exatamente, entre a prática filosófica e a prática histórica) uma vez
aídos da tradicional divergência filo ofia da história/história da
filosofia, e a interrogar, de maneira crítica, a evolução da historiografia
francesa desde os anos 60.
Michel Foucaull: conceitos essenciais 59
** a verdade, parece que o discurso de Foucault oscila entre duas
posições: de uma parte, a história não é uma duração, mas "uma
multiplicidade de durações que se emaranham e se envolvem umas
nas outras [...] o estruturalismo e a história permitem abandonar essa
grande mitologia biológica da história e da duração -9" - o que resulta
em afirmar que apenas um enfoque que faça jogar a continuidade das
séries como chave de leitura das descontinuidades contempla, na
verdade, "os acontecimentos que, de outro modo, não apareceriam"?",
O acontecimento não é em si fonte da descontinuidade; mas é o
cruzamento de uma história seria I e de uma história aconteci mental -
série e acontecimento não constituem o fundamento do trabalho
histórico, mas seu resultado a partir do tratamento de documentos e
arquivos - gue permite fazer emergir, ao mesmo tempo, dispositivos e
pontos de ruptura, planos de discurso e falas singulares, estratégias de
poder e focos de resi tência etc. "Acontecimento: é preciso entendê-
10 não como uma decisão, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas
como uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um
vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma
dominação que se enfraquece, se amplia e se envenena e uma outra
que faz sua entrada, mascarada"?". Por outro lado, essa reivindicação
de uma história que funcionaria não como análise do passado e da
duração, mas como iluminação das transformações e do
acontecimentos, define-se por vezes como uma verdadeira "história
aconteci mental" por meio da referência a um certo número de
79 Revenir à l'Histoire, In : Paidéia, n° 11, fevereiro de 1972. Retomado em Dits et
Écrits, vol. 2, texto n'' 103. [Tradução brasileira: Retornar à história. In: DiTOS e
Escritos, vol. 11, p.293-2941.
RII Revcnir à l'Histoire, op. cit. nota 79.
RI Nictzche, Ia généalogie, l'histoire, op. cit. nota 65.
60 Judith Revel
historiadores que estudaram o cotidiano, a sensibilidade, os afetos
(Foucault cita várias vezes Le Roy Ladurie, Ariês e Mandrou); e mesmo
se ele reconheceu na Escola dos Annales - e, em particular, Marc
Bloch e depois Fernand Braudel - o mérito de ter multiplicado as
durações e redefinido o acontecimento não como um segmento de
tempo, mas como o ponto de intersecção de durações diferentes, não
é menos verdade que Foucault acabou por opor seu próprio trabalho
sobre o arquivo à história social das classificações que caracteriza para
ele uma boa parte da historiografia francesa desde os anos 60: "Entre
a história social e as análises formais do pensamento, há uma via, uma
pista - talvez muito estreita - a do historiador do pensarnento't'". É a
possibilidade dessa "pista estreita" que alimentará o debate sempre
vivo entre Foucault e os historiadores e que motivará uma colaboração
ocasional com alguns dentre eles (desde o grupo de historiadores que
trabalhou no dossiê Pierre Riviere, até Arlette Farge e Michelle Perrot).
***0 tema da história como interrogação sobre as transformações
e sobre os acontecimentos está estreitamente ligado àquele da atualidade.
e a história não é memória, mas genealogia, então a análise histórica
não é, na verdade, senão a condição de possibilidade de uma ontologia
crítica do presente. Essa posição deve, entretanto, evitar dois obstáculos
- que correspondem, de fato, às duas grandes objeções que foram
feitas a Foucault durante sua vida, concernentes à sua relação com a
história -: a utilização de uma busca histórica não implica uma
"ideologia do retorno" (Foucault não se ocupa da ética greco-romana
a fim de dar um "modelo a seguir" que se trataria de atualizar),mas
82 Verité, pouvoir e soi. In: Tecnhologies of the Self. A Seminar with M. Foucault.
Massachusetts, U.P., 1988. [Tradução brasileira: Verdade, Poder e si mesmo. In:
Ditos e Escritos, vol. V, p. 295].
Michel Foucaull: conceilos essenciais 61
uma historicização de nosso próprio olhar apartir do que nós não somos
mais; a história deve nos proteger de um "historicismo que invoca o
passado para resolver os problemas do presente't'". É esse duplo
problema que se reencontra nos textos que Foucault consagra, no fim
de sua vida, à análise do texto "O que são as Luzes?", de Kant: trata-
se de se defender, ao mesmo tempo, da acusação de apologia do
passado e de relativismo histórico, o que Foucault faz em particular
no debate - interrompido pela morte - com Haberrnas'".
83 Espace, savoir, pouvoir. Entretien avec P. Rabinow. In: Sky/ine, março de 1982.
Retomado em Dits et Écrits, vol. 4, texto n° 310.
84 NT: As críticas formuladas por Habermas a Foucault estão expres as,
principalmente em La modernité: un project inachevé (Critique 1981, p. 950-967)
e em Une f1éche dans le coeur du temps présent (Critique, 1986, p. 794-9).
62 Judith Revel
Loucura
*0 tema da loucura está, certamente, no centro da Histôria da Loacura
que Foucault publica em 1961: trata-se, com efeito, de analisar a maneira
pela qual, no século ÀrvII, a cultura clássica rompeu com a representação
medieval de uma loucura, ao mesmo tempo, circulante (a figura da
"nau dos loucos'') e considerada como o lugar imaginário da passagem
(do mundo ao trás-mundo, da vida à morte, do tangível ao segredo
etc.). Ao contrário, a idade clássica define a loucura a partir de uma
separação vertical entre a razão e a desrazão: ela a constirui, portanto,
não mais como aquela zona indeterminada que daria acesso às forças
do desconhecido (a loucura como um para além do saber, isto é, ao
mesmo tempo, como ameaça e como fascinação), mas como o Outro
da razão segundo o discurso da própria razão. A loucura como
desrazão é a definição paradoxal de um espaço gerido pela razão no
interior de seu próprio campo que ela reconhece como outro.
**A narrativa dessa cisão fundadora de inclusão passa por um certo
número de procedimentos e de instiruições que possuem uma história.
O objetivo de Foucault nunca foi, entretanto, o de fazer a história do
enclausuramento e do asilo, mas do discurso que constirui os loucos
como objetos de saber - isto é, desse estranho laço entre razão e
desrazão que autoriza a primeira a produzir um discurso de saber
sobre a segunda. Trata-se, por conseqüência, de fazer antes de tudo a
história de um poder: "o que estava implicado, antes de tudo, nessas
relações de poder, era o direito absoluto da não-loucura sobre a
loucura. Direito transcrito em termos de competência, exercendo-se
sobre a ignorância, de bom senso, de acesso à realidade, corrigindo os
erros (ilusões, alucinações, fantasmas), da normalidade, impondo-se à
Michel Foucault: conceitos essenciais 63
desordem e ao desvio'". Esse triplo poder constitui a loucura como
objeto de conhecimento, e é por essa razão que é preci o então fazer
a história das modificações dos di cursos sobre a loucura: do grande
enclausuramento - invenção de um lugar inclusivo da exclusão - à
aparição de uma ciência médica da loucura (da "doença mental" à
psiquiatria contemporânea), Foucault faz, na verdade, a genealogia de
uma das faces possíveis dessa forma singular do poder-saber que é o
conhecimento. Compreende-se então porque o discurso de Foucault
foi rapidamente associado à antipsiquiatria de Laing e Cooper, de
Basaglia, ou - mais tardiamente - ao .Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari,
isto é, aos discursos que criticam a ligação entre conhecimento/
assujeitamento na prática psiquiátrica: "É possível que a produção da
verdade da loucura possa se efetuar em formas que não sejam as de
relação de conhecimentoê't'". A leitura da história da loucura como
hi tória da constituição do poder-saber impulsiona Foucault a utilizar
a figura do asilo como paradigma geral da análise das relações de
poder na sociedade até o começo dos anos 70. A passagem para uma
outra formulação do poder permite então compreender o abandono
relativo do tema da loucura em proveito do tema mais geral da
medicalização (o controle como medicina social): não somente porque
no momento em que o enclausuramento não dava a ver senão o
paradoxo de um conhecimento que joga contemporaneamente com
a exclusão (espacial) e com a inclusão (discursiva), a figura do hospital
permite integrar a maneira pela qual, a partir do começo do século
XIX, o poder pas a a gerir a vida (sob a forma de biopoderes); mas
também porque Foucault abandona uma concepção puramente
8~ Le pouvoir psychiatrique. In: Annuaire du Collêge de France. Chaire d'histoire
des syst êmes de pensée . année 1973-1974. [Tradução brasileira: O poder
psiquiátrico. In: Resumo dos Cursos do Collêge de France (/970-/982). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 561.
86 Le pouvoir psychiatrique, op. cit. nota 85.
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Michel Foucault: os conceitos essenciais

  • 1.
  • 3. Juclith Revel MICHELFOUCAULT CONCEITOS ESSENCIAIS Tradução: Carlos Piovezani Filho e Nilton Milanez Revisão Técnica: Maria do Ro ário Gregolin $claraluz EDITORA
  • 4. Título original: Le Vocabulaire de Foucault © Ellipses Édition Marketing S.A., 2002 32, rue Bargue 75740 Paris cedex 15 ISBN 2-7298-1088-9 Diagramação Malra Valencise Capa Dez e Dez Mu/timeios Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca do ICMC/USP R449m Revel, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais / Judith Revel ; tradução Maria do Rosário Gregolin, Nilton Milanez, Carlo Piovesani. - São Carlos : Claraluz, 2005. 96 p.; 21 cm ISBN 85-88638-09-6 I. Teoria de Foucault. 2. Linguagem - Filosofia. 3. Análise do discurso. L Gregolin, Maria do Rosário, trad. 11.Milanez, Nilton, trad. 1II. Piovesani, Carlos, trad. IV. Título. EDITORA CLARALUZ Rua Rafael de A. Sampaio Vidal, 1217 CEP 13560-390 - Centro / São Carlos - SP FonelFax: (16) 3374 8332 Site: www.editoraclaraluz.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em banco de dados sem permissão da Editora Claraluz Ltda. © Editora Claraluz, São Carlos, 2005
  • 5. Conceitos Essenciais Acontecimento 13 Arqueologia 16 Arquivo 18 Atualidade 20 Aufklarung 22 Autor 24 Biopolitica 26 Controle 29 Corpos (investimento politico dos) 31 Cuidado de si / Técnicas de si 33 Disciplina 35 Discurso 37 Dispositivo 39 Episteme 41 E tética (da existência) .43 tica 45 Expêriencia 47 Exterior 50 Genealogia 52 Governamentalidade 54
  • 6. Guerra 56 História 58 Loucura 62 Norma 65 Poder 67 Problematização 70 Razão / Racionalidade 72 Resistência / Tran gressão 74 Saber / Saberes 77 Sexualidade 80 Subjetivação (processo de) 82 Sujeito / Subjetividade 84 Verdade / Jogos de verdade 86
  • 7. Apresentação A obra de Miche l Foucault é complexa: nela freqüentem ente sublinhou-se a grande variedade dos campos de investigação, a espanto a escritura barroca, os empréstimos de outras disciplinas, as voltas e reviravoltas, as mudanças de terminologia, a vocação simultaneamente f.tlosófica e jornali tica - numa palavra, nada que possa parecer com aquilo que a tradição nos habituou a conceber como um sistema filosófico. Um vocabulário de Foucault que apresenta seus conceitos essenciais se inscreve ne sa mesma diferença, visto que ele apresenta, absolutamente ao mesmo tempo, a retomada de conceitos filosóficos herdados de outros pensamentos - e, por vezes, largamente desviados de seu sentido inicial -, a criação de conceitos inéditos e a elevação de termos emprestados da linguagem comum à dignidade f.tlosófica; por outro lado, é um vocabulário que emerge freqüentem ente a partir de práticas e que se propõe como gerador de práticas: isso ocorre porque um arsenal conceitual; é, literalmente (gostava de lembrar Foucault), uma "caixa de ferramentas". Enfim, antes de ser fixado I NT: Dits et écrits foi publicado, no França, pela Gallimard (1994, 04 volumes), sob a direção de Oaniel Oefert e François Ewald com a colaboração de Jacques Lagrange. A edição brasileira de Ditos e Escritos, organizada por Manoel Barros da Morta, foi publicada, em 05 volumes, pela Forense Universitária, entre 2002 e 2004.
  • 8. definitivamente no livros, o vocabulário se forja e e modela no laboratório da obra: o enorme corpus de textos esparsos reunidos sob o título de Ditos e escritos' fornece, desse ponto de vista, um resumo formidável do trabalho de produção de conceitos que implica o exercício do pensamento; essa é a razão pela qual, na maior parte dos casos, se encontrará aqui neste livro referências aos textos de Ditos e escritos. É preciso igualmente sublinhar que esse laboratório do pensamento não é somente o lugar onde se criam conceitos, mas, freqüentemente, também o lugar onde, num movimento de reviravolta que está sempre presente em Foucault, eles passaram num segundo tempo pelo crivo de uma crítica interna: os termos são, portanto, produzidos, fixados, depois reexaminados e abandonados, modificados ou ampliados num movimento contínuo de retomada e de deslocamento. Este livro, no qual proponho a definição de conceitos essenciais de Foucault sob a forma de um vocabulário em ordem alfabética, precisou considerar tudo is o ao mesmo tempo. Tarefa árdua, certamente, já que procurei não estancar esse movimento e, ao mesmo tempo, pretendi tornar compreensível a coerência fundamental da reflexão foucaultiana. Foi necessário, portanto, operar escolhas - freqüentemente difíceis - a fim de tornar visíveis as passagens essenciais des a problematização contínua; e, na medida do possível, tentei tecer sistematicamente, por meio de um jogo de remissões, a trama a partir da qual o percurso filosófico de Foucault podia ser visualizado na complexidade de suas ramificações e de suas reviravoltas. o final de sua vida,
  • 9. Foucault gostava de falar de "problematização" e não entendia, nessa idéia, a representação de um objeto pré-existente nem a criação, por meio do discurso, de um objeto que não existe, mas "o conjunto de práticas di cursivas ou não-discursivas que faz entrar alguma coi a no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o pensamento (quer isso seja sob a forma da reflexão moral, do conhecimento cientifico, da análise política etc.)". Ele assim definia, portanto, um exercício crítico do pensamento que se opõe à idéia de uma pesquisa metódica da "solução", porque a tarefa da filosofia não é resolver - aí compreendida a ação de substituir uma solução por outra - mas "problematizar", não reformar, mas instaurar uma distância crítica, fazer jogar o "desprendimento". A maior homenagem que podemos prestar, hoje, a Foucault é preci amente restituir ao seu pensamento sua dimensão problemática. Este livro, ao organizar um vocabulário com os conceitos essenciais de Foucault (muito mais do que um simples conjunto de termos enumerados segundo a ordem alfabética) é uma tentativa de reconstituir a diversidade dessas problematizações - sucessivas ou superpo tas - que fazem a extraordinária riqueza das análi es foucaultiana . Judith Revel
  • 10. Organização do livro Este livro apresenta conceitos essenciais de Michel Foucault em forma de verbetes, com três níveis assinalados por asteriscos: * definição de base **definição particularizada que apresenta o desenvolvimentos do conceito na obra foucaultiana ***definição mais ampla que insere o conceito e o relaciona com outros no interior da obra de Foucault
  • 12.
  • 13. 13 Acontecimento * Por acontecimento, Foucault entende, antes de tudo de maneira negativa, um fato para o qual algumas análises históricas se contentam em fornecer a descrição. O método arqueológico foucaultiano busca, ao contrário, reconstituir atrás do foto toda uma rede de discursos, de poderes, de estratégias e de práticas. É, por exemplo, o caso do trabalho realizado sobre o dossiê Pierre Rioiêre: "reconstituindo es e crime do exterior [...], como e fosse um acontecimento, e nada além de um acontecimento criminal, eu creio que nos falta o essencial'". Entretanto, num segundo momento, o termo "acontecimento" começa a aparecer em Foucault de maneira positiva, como uma cristalização de determinações históricas complexas gue ele opõe à idéia de estrutura: "Admite-se que o e truturali mo tenha sido o esforço mais sistemático para eliminar, não apenas da etnologia mas de uma série de outras ciências e até mesmo da história, o conceito de acontecimento. Eu não vejo guem pode ser mais anti-estrururalista do que eu'". O programa de Foucault torna-se, portanto, a análise de diferentes redes e níveis aos quais alguns acontecimentos pertencem. E sa nova concepção aparece, por exemplo, quando ele define o discurso como uma érie de acontecimentos, colocando-se o problema da relação entre os "acontecimentos discursivos" e os acontecimentos de uma outra natureza (econômicos, sociais, políticos, institucionais). 2 Entretien avec Michel Foucault. Cahiers du Cinéma, n° 271, novembro de 1976. 3 Entrevista com Michel Foucault. In : Fontana, A. e Pasquino, P. Microfisica dei Potere: interventi politici. Turin : Einaudi, 1977. [Tradução brasileira: Verdade e poder. ln : Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p.5).
  • 14. /4 Judith Revel ** É a partir dessa inserção do acontecimento no centro de sua análises gue Foucault reivindica o estatuto de historiador - talvez, também porgue, como ele mesmo o observa, o acontecimento não tenha sido uma categoria filosófica, salvo, talvez, nos estóicos: "O fato de eu considerar o discurso como uma série de acontecimentos nos situa automaticamente na dimensão da história f... ]. ão sou historiador no sentido estrito do termo; mas os historiadores e eu temos em comum um interesse pelo acontecimento [...1. em a lógica do sentido, nem a lógica da estrutura são pertinentes para esse tipo de pesquisa?". É, portanto, por ocasião de uma discussão com os historiadores! gue Foucault dá a definição de "acontecimentalização": não uma história aconteci mental, mas a tomada de consciência das rupturas da evidência induzidas por certos fatos. O gue se trata então de mostrar é a irrupção de uma "singularidade" não necessária: o acontecimento gue representa o enclausuramento, o acontecimento da aparição da categoria de "doenças mentais" etc, *** A partir da definição de acontecimento como irrupção de uma singularidade histórica, Foucault vai desenvolver dois discursos. O primeiro consiste em dizer gue nós repetimos sem o saber os acontecimentos, "nós os repetimos na nossa atualidade, e eu tento apreender gual é o acontecimento sob cujo signo nós nascemos, e gual é o acontecimento gue continua ainda a nos atravessar". A acontecimentalização da história deve, portanto, se prolongar de maneira genealógica por uma acontecimentalização de nossa própria 4 Dialogue sur le pouvoir. In: Wade, S. Che; Foucault . Los Angeles: Circabook, 1978. [Tradução brasi leira: Diálogo sobre o poder. In: Ditos e Escritos, vol. IV,p. 258]. 5 La poussiêre et le nuage. In: M. Perrot (ed.) L'impossible prison. Paris: Seuil, 1980. [Tradução brasileira: A poeira e a nuvem. In: Ditos e Escritos, vol. IV, p. 323- 334).
  • 15. Michel Foucault: conceitos essenciais /5 atualidade. O segundo discurso c nsiste precisamente em buscar na nossa atualidade os traços de uma "ruptura acontecimental" - traço que Foucault localiza já no texto kantiano consagrado às Luzes, e que ele crê reencontrar por ocasião da revolução iraniana, em 1979 - porque está aí, sem dúvida, o valor de ruptura de todas as revoluções: "A revolução [... ] corre o risco de banalizar-se, mas como acontecimento cujo próprio conteúdo é importante, sua existência atesta uma virtualidade permanente e que não pode ser esquecida'". 6 What's is Enlightenment ? In P. Rabinow (êd.). The Foucault Reader. New York: Pantheon Books, 1984, e Qu'est-ce que les lumiêres? In: Magazine Littéraire, na 207, maio de 1984. [Tradução brasileira: O que são as Luzes? In: Ditos e Escritos, vol. lI, p. 335-351).
  • 16. 16 Judith Revel Arqueologia *0 termo "argueologia" aparece três vezes nos título da obra de Foucault - ascimento da clínica. Uma arqueologia do olhar médico (1963),As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciênciashumanas (1966) eArqueologia do saber (1969) - e caracteriza até o final dos anos 70 o método de pesguisa do fJ.iósofo.Uma argueologia não é uma "história" na medida em que, como se trata de construir um campo histórico, Foucault opera com diferentes dimensões (filosófica, econômica, científica, politica etc.) a fim de obter as condiçõe de emergência dos discursos de saber de uma dada época. Ao invés de estudar a história das idéias em sua evolução, ele e concentra sobre recortes históricos precisos - em particular, a idade clássica e o início do século XIX -, a fim de descrever não somente a maneira pela gual os diferentes saberes locais se determinam a partir da constituição de novos objetos gue emergiram num certo momento, mas como eles se relacionam entre si e desenham de maneira horizontal uma configuração epistêmica coerente. ** e o termo arqueologia nutriu, em dúvida, a identificação de Foucault com a corrente estruturali ta - na medida em gue ele parecia evidenciar uma verdadeira estrutura epistêmica da qual os diferentes saberes não teriam sido enão variantes -, sua interpretação é, na verdade, bem outra. Como lembra o subtítulo de As palavras e as coisas, não se trata de fazer a arqueologia, mas Nma arqueologia da ciência humanas: mais do que uma descrição paradigmática geral, trata-se de um corte horizontal de mecanismos gue articulam diferentes acontecimentos discursivos - o aberes locais - ao poder. Essa articulação, claro, é inteiramente histórica: ela possui uma data de
  • 17. Michel Foucault: conceitos essenciais J 7 nascimento - e o grande desafio consiste em encarar igualmente a possibilidade de seu desaparecimento, "como na orla do mar um rosto de areia'". *** a "arqueologia", reencontra-se, ao mesmo tempo, a idéia da arcbê, isto é, do começo, do princípio, da emergência dos objetos de conhecimento, e a idéia de arquivo - o registro desses objetos. Mas, da mesma maneira que o arquivo não é o traço morto do passado, a arqueologia visa, na verdade, ao presente: "Se eu faço isso, é com o objetivo de saber o que nós somos hoje'". Colocar a que tão da historicidade dos objeto de saber é, de fato, problematizar nosso próprio pertencimento, ao mesmo tempo, a um regime de discursividade dado e a uma configuração do poder. O abandono do termo "arqueologia" em proveito do conceito de "genealogia", logo no começo dos anos 70, insistirá obre a necessidade de dirigir a leitura "horizontal" das discursividades para uma análise vertical- orientada para o presente - das determinações históricas de nosso próprio regime de discurso. 1 Les mOIS et les choses. Une archéologie des sciences humaines. Pari: GaJlimard, 1966. [Tradução bra ileira: As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fonte, 2000, p. 536]. 8 Dialogue ur le pouvoir, op. cit. nota 4.
  • 18. /8 Judith Revel Arquivo *"Chamarei de arquivo não a totalidade de textos que foram conservados por uma civilização, nem o conjunto de traços que puderam ser salvos de seu desastre, mas o jogo das regras que, numa cultura, determinam o aparecimento e o desaparecimento de enunciados, sua permanência e seu apagamento, sua existência paradoxal de acontecimentose de coisas. Analisar o fatos de di curso no elemento geral do arquivo é considerá-Ios não ab olutamente como documentos (de uma significação escondida ou de uma regra de construção), mas como monumentos: é - fora de qualquer metáfora geológica, em nenhum assinalamento de origem, sem o menor gesto na direção do começo de uma arcbê - fazer o que poderíamo chamar, conforme os direitos lúdicos da etimologia, de alguma coisa como uma arq/ICologia''9. **Da Historia da Loucura à Arqueologia do Saber, o arquivo representa, portanto, o conjunto dos discursos efetivamente pronunciados numa época dada e que continuam a existir através da história. Fazer a arqueologia dessa massa documentária é buscar compreender as uas regras, suas práticas, suas condições e seu funcionamento. Para Foucault, isso implica, antes de tudo, um trabalho de recuperação do arquivo geral da época escolhida, isto é, de todos os traço discur ivos susceptívei de permitir a reconstituição do conjunto das regras que, num momento dado, definem ao mesmo tempo os limite e as formas 9 Sur I'archéologie des cience. Réponse au Cercle d'épistérnologie. ln: Cahiers pour I'analyse, n" 9, 1968. [Tradução brasileira: Sobre a Arqueologia da Ciência. Resposta ao Círculo de Epi temologia. ln: Ditos e Escritos, vol. lI, p. 95].
  • 19. Michel Foucault: conceitos essenciais J 9 da dizibilidade, da conservação, da memória, da reativação e da apropriação. O arquivo permite a Foucault, portanto, distinguir-se dos estruturalistas - pois se trata de trabalhar obre os discursos considerados como acontecimentos e não sobre o sistema da língua em geral -, e dos historiadores - uma vez que e esses acontecimentos não fazem, literalmente, parte de nosso presente, "eles subsistem e exercem, nessa mesma substância no interior da história, um certo número de funções manifestas ou secretas". Enfim, se o arquivo é o corpo da arqueologia, a idéia de constituir um arquivo geral, isto é, de encerrar num lugar todo os traços produzidos, é, por sua vez, arqueologicamente datável: o museu e a biblioteca são, certamente, fenômenos próprios à cultura ocidental do século XIX. *** A partir do inicio dos anos 70, parece que o arquivo muda de estatuto em Foucault: em favor de um trabalho direto com os historiadores (em Pierre Riviere, de 1973; em L'i1JtfJossib/e prison, sob a direção de Michelle Perrot, de 1978; ou com Arlette Farge, em Le désordre desfa!JIi/Ies, de 1982), ele reivindica cada vez mais a dimensão subjetiva de seu trabalho ("E te não é um livro de história. A escolha que nele se encontrará não seguiu outra regra mais importante do que meu gosto, meu prazer, uma emoção'?") e se entrega a uma leitura frequentemente muito literária do que ele chama, às vezes, de "estranhos poemas". O arquivo funciona, a partir de então, mais como traço de existência do que como produção discursiva: sem dúvida, porque, na realidade, Foucault reintroduz nesse momento a noção de subjetividade em sua reflexão. O paradoxo de uma utilização não histórica das fontes históricas lhe foi muitas vezes abertamente censurado. 10 La vie des hommes infâmcs. In: Les cahiers du chemim, n? 29,1977. [Tradução brasileira: A vida dos homens infames. ln: Ditos e Escritos, vol. IV, p.203].
  • 20. 20 Judith Revel Atualidade *A noção de atualidade aparece de dua maneiras diferentes em Foucault. A primeira consiste em destacar como um acontecimento- por exemplo, a cisão entre loucura e não-loucura - não omente engendra uma série de discursos, de prática , de comportamentos e de instituições, mas se estende até nós. "Todo es es acontecimento, parece-me que os repetimos. ós os repetimos em nossa atualidade e eu tento compreender qual é o acontecimento que pre idiu nosso nascimento e qual é o acontecimento que continua, ainda, a nos atravessar"!'. A passagem da arqueologia à genealogia será, para Foucault, a ocasião de acentuar ainda mais essa dimensão de prolongamento da história no presente. A segunda concepção de atua/idade está estritamente ligada a um comentário que Foucault faz do texto de Kant, O que é o J/u1JIinis1Jlo?, em 198412 • A análise insi te, então, sobre o fato de que colocar filosoficamente a questão de sua própria atualidade - o que faz Kant pela primeira vez - marca, na realidade, a passagem para a modernidade. ** Foucault desenvolve duas linhas de discurso a partir de Kant. Para Kant, colocar a questão do pertencimento a sua própria atualidade, é - comenta Foucault - interrogá-Ia como um acontecimento do qual se poderia falar em termos de sentido e singularidade, e colocar a questão do pertencimento a um "nós" que corresponde a essa 11 Sexualité et pouvoir. Conferência na Universidade de Tókio (1978). Retomado em Dits et Écrits, Paris: Gallimard, J 994, vol. 3., texte n. 233. [Tradução brasileira: Sexualidade e poder. Ln:Ditos e Escritos, vol. V, p. 56] 12 Ver: What's is Enlightenment ? op. cit. nota 6.
  • 21. Michel Foucault: conceitos essenciais 21 atualidade, isto é, formular o problema da comunidade da qual fazemos parte. Mas é preciso igualmente compreender que se retomamos hoje a idéia kantiana de uma ontologia crítica do presente, não é somente para compreender o que funda o espaço de nosso discurso, mas para desenhar os seus limites. Da mesma maneira que Kant "busca uma diferença: qual a diferença que o hoje introduz em relação a ontem?"!', devemos, de nossa parte, fazer emergir da contingência histórica, que nos faz ser o que somos, possibilidades de ruptura e de mudança. Colocar a questão da atualidade retoma, portanto, a definição do projeto de uma "crítica prática sob a forma da ultrapassagem possível"!", *** "Atualidade" e "presente" são, inicialmente, sinônimos. o entanto, uma diferença vai se acentuar cada vez mais entre o que, de um lado, nos precede mas continua, ape ar de tudo, a nos atravessar e o que, de outro lado, sobrevém, ao contrário, como uma ruptura da grade epistêmica a que pertencemos e da periodização que ela engendra. Essa irrupção do "novo", que tanto Focault quanto Deleuze chamam igualmente de "acontecimento", torna-se, assim, o que caracteriza a atualidade. O presente, definido por sua continuidade histórica, não é, ao contrário, interrompido por nenhum acontecimento: ele pode somente oscilar e se romper dando lugar à instalação de um novo presente. Se elas representaram um grande problema - particularmente no momento de publicação de As palavras e as coisas (1966) - nos anos 80, o conceito de "atualidade" permite a Foucault encontrar, enfim, o meio para integrar as rupturas epistêrnicas. 13 What's is Enlightenrnent ? op. cito nota 6. 14 What's is Enlightenment ? op. cit. nota 6.
  • 22. 22 Judith Revel Aufklãrung *0 tema do Alijkltinl11g aparece na obra de Foucault de maneira cada vez mais insistente a partir de 1978: ele remete sempre ao texto de Kant, Was ist AuJklàmng?(1784) 15. A abordagem é complexa: e, de imediato, Foucault consigna à questão kantiana o privilégio de ter colocado pela primeira vez o problema filosófico (ou, como o diz Foucault, do "jornalismo filosófico") da atualidade, o que interessa ao filósofo parece ser, antes de tudo, o de tino dessa questão na França, na Alemanha e nos países anglo- saxões. É somente num segundo momento que Foucault transformará a referência ao texto kantiano numa definição dessa "ontologia critica do presente", com a qual ele fará seu próprio programa de pesquisa. **Foucault de envolve, na verdade, três níveis de análise diferentes. O primeiro busca reconstituir de maneira arqueológica o momento em que o Ocidente tornou, ao mesmo tempo, sua razão autônoma e soberana: nesse sentido, a referência às Luzes se insere numa descrição que a precede (a reforma luterana, a revolução copernicana, a matematização galileniana da natureza, o pensamento cartesiano, a física newtoniana etc.) e na qual ela representa o momento da realização cabal; mas, essa descrição arqueológica está sempre genealogicamente inclinada para um presente do qual nós participamos ainda: é preciso, portanto, compreender "o que p de ser seu balanço atual, qual relação é preciso estabelecer com esse gesto fundador" 16. O segundo tenta os Was ist Aufklãrung? In: Berlinische Monatsschrift, dezembro 1784. (Tradução brasileira: KANT, I. Que é "Esclarecimento"? In: Immanuel Kant: Textos Seletos, Petrópolis: Vozes, 19851. 16 Introdução a Canguilhem, G. On lhe Normal and lhe Pathological, Boston: D. Reidel, 1978. Retomado em Dits et Écrits, voI. 3, Paris: Gallimard, 1994, texto n" 219.
  • 23. Michel Foucault: conceitos essenciais 23 compreender a evolução da posteridade do Atifkliinmg nos cliferentes países e a maneira pela qual ela foi investida em campos cliversos: em particular, na Alemanha, numa reflexão histórica e politica da sociedade ("dos hegelianos à Escola de Frankfurt e a Lukács, Feuerbach, Marx, ietzsche e Max Weber"I~; na França, por meio da história das ciências e da problematização da cliferença entre saber/crença, conhecimento/ religião, científico/pré-científico (Comte e o positivismo, Duhem, Poincaré, Koyré, Bachelard, Canguilhem). Enfim, o terceiro coloca a questão de nosso próprio presente: "Kant não busca compreender o presente a partir de uma totalidade ou de uma realização futura. Ele busca uma cliferença: qual a cliferença que ele introduz hoje em relação ao ontem"18? É essa busca da cliferença que caracteriza não somente "a atitude da modernidade", mas o ethos que nos é próprio. ***0 comentário de Kant esteve no centro de um debate com Habermas, infelizmente interrompido pela morte de Foucault, As leituras que os dois filósofos dão à questão das Luzes são diametralmente opostas, em particular, porque Habermas busca, na verdade, definir, a partir da referência kantiana, as conclições requeridas para uma comunidade lingüistica ideal, isto é, a unidade da razão crítica e do projeto social. Em Foucault, o problema da comunidade não é condição de possibilidade de um novo universalismo, mas a conseqüência direta da ontologia do presente: "para o filósofo, colocar a questão do pertencimento a esse presente, não será mais, absolutamente, colocar a questão de seu pertencimento a uma doutrina ou a uma traclição; não será mais, simplesmente, colocar a questão de seu pertencimento a uma comunidade humana em geral, mas aquela de seu pertencimento a um certo "nós", a um nós que se relaciona com um conjunto cultural característico de sua própria atualidade"?". 17 Introdução a Canguilhem, G. 011 lhe Normal nnd lhe Pathological, op.cit. nota 16. IR What is Enlightenrnent? op. cit. nota 6. 19 What's enlightenment?, op. cit. nota 6.
  • 24. 24 Judith Revel Autor *Em 1969, Foucault faz uma conferência sobre a noção de autor que se abre com essas palavras: " 'Que importa quem fala?' essa indiferença se afirma o principio ético, talvez o mais fundamental, da escrita contemporânea'F". Essa critica radical da idéia de autor - e mai geralmente do par autor/obra - vale ao mesmo tempo como diagnóstico sobre a literatura (em particular, na tripla esteira de Blanchot, do novo romance e da nova crítica), e como método foucaultiano de leitura arqueológica: com efeito, e reencontramos frequentemente a teorização desse "lugar vazio" em alguns escritores gue Foucault comenta na época, é igualmente verdadeiro que a análise a que se dedica o filósofo em As Palavras e as Coisas procura, por sua vez, aplicar ao arquivo, isto é, à historia, o princípio de uma leitura das "massas de enunciados" ou "planos discursivos", que não estavam "bem acentuados pelas unidades habituais do livro, da obra e do autor"?'. Desse ponto de vista, o início de A Ordem do Discurso dá continuidade à reflexão sobre um fluxo de fala que seria ao mesmo tempo historicamente determinado e não-individualizado, e que ditaria as condições de fala do próprio Foucault na sua aula inaugural no Col/egede France:"Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo"22. **Do ponto-de-vista do método, Foucault está aparentemente bastante próximo do que fez Barthes na mesma época, porque a análise estrutural da narrativa não se refere à psicologia, à biografia pessoal 20 Qu'est-ce qu'un auteur? In: Bulletin de Ia Société Française de Philosophie, junho- setembro 1969. [Tradução brasileira: O que é um autor? In: Ditos e Escritos, vol. 111, ~. 2641· I Qu'est-ce qu'un auteur?, op. cit. nota 20. n L 'ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971. [Tradução brasileira: A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996 , p. 5] .
  • 25. Michel Foucaul(· conceitos essenciais 25 ou às características subjetivas do autor, mas às estruturas internas do texto e ao jogo de sua articulação. É provavelmente a partir da constatação dessa "vizinhança" metodológica (que o aproxima igualmente de Althusser, de Lévy- trauss ou de Durnézil) que se tem geralmente associado Foucault à corrente estruturalista. Em Foucault, entretanto, a busca de estrutura lógicas e tá marcada por uma veia blanchotiana particular ("a obra comporta sempre, por assim dizer, a morte do autor: no mesmo momento em que se escreve, se desaparece'P') que, além da simples referência à caducidade histórica de uma categoria que se havia acreditado até então incontornável, leva Foucault a uma análise das relações que envolvem a linguagem e a morte. À descrição do apagamento de uma noção da qual ele descreve historicamente a constituição e os rnecani mos, depois a dissolução (e, por i so, a noção de autor recebe o mesmo tratamento que aquela de "sujeito"); Foucault acrescenta, assim, ao mesmo tempo a identificação de seu próprio estatuto de fala e a problematização de uma experiência da escritura concebida como passagem ao limite. ***Essa influência blanchotiana o levará, ao longo dos anos 60, e à margem dos grandes livros, a e deter sobre um certo número de "casos" literários que p ssuem todos um parentesco com a loucura (e estamos ainda bem longe das propo tas da História da LoIfCllra) ou com a morte. Foucault comentará, então, Hôlderlin e erval, Roussel e Artaud, Flaubert e Klossowski, e até mesmo alguns escritores próximos do grupo Te! Que!, sublinhando-lhes o valor exemplar: "A linguagem, entâ , tomou sua e tatura soberana: ela surge como vinda de alhures, de lá onde ninguém fala; mas só existe obra se, remontando seu próprio discur o, ela fala na direção dessa ausência"?'. 23 Interview avec Michel Foucault, Bonniers Liuerãre Magasin, Stockholrn, n" 3, março de 1968. Retomado em Dits e Écrits, vol.l, texto n" 54. 24.Le 'non' du pére. In : Critique n" 178, março de 1962. [Tradução bra ileira: O não do pai. In: Ditos e Escritos, vol. I, p. 200].
  • 26. 26 Judith Revel Biopolítica *0 termo "biopolítica" designa a maneira pela qual o poder tende a se transformar, entre o fim do século XVIII e o começo do século XlX, a fim de governar não somente os indivíduos por meio de um certo número de procedimentos disciplinares, mas o conjunto dos viventes constituidos em população: a biopolítica - por meio dos biopoderes locais - se ocupará, portanto, da gestão da saúde, da higiene, da alimentação, da sexualidade, da natalidade etc., na medida em que elas se tornaram preocupações políticas. ** A noção de biopolítica implica uma aruilise histórica do quadro de racionalidade política no qual ela aparece, isto é, o nascimento do liberalismo. Por liberalismo é preciso entender um exercício do governo que não somente tende a maximizar seus efeitos, reduzindo ao máximo seus custos, sobre o modelo da produção industrial, mas que afirma arriscar-se empre a governar demais. Mesmo que a "razão do Estado" tivesse buscado desenvolver seu poder por meio do crescimento do Estado, "a reflexão liberal não parte da existência do Estado, encontrando no governo um meio de atingir essa finalidade que ele seria para si mesmo; mas da sociedade que vem a estar numa relação complexa de exterioridade e de interioridade em relação ao Estado"25. Esse novo tipo de governamentalidade, que não é redutível nem a uma análise jurídica nem a uma leitura econômica (ainda que uma e 25 Naissance de Ia biopolitique. ln : Annuaire du Collêge de France, 79 année. Chaire d'histoire des systêrns de pensée, année 1978-1979, 1979. [Tradução brasileira: Nascimento da biopolítica. 1n: Resumo dos Cursos do College de France (/970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 911-
  • 27. Michel Foucault: conceitos essenciais 27 outra aí estejam ligadas), se apresenta, por conseqüência, como uma tecnologia do p der que se dá um novo objeto: a "população". A população é um conjunto de seres vivos e coexistentes que apresentam traços biológicos e patológicos particulares e cuja própria vida é suscetível de ser controlada a fim de assegurar uma melhor gestão da força de trabalho: « A descoberta da população é, ao mesmo tempo que a descoberta do indivíduo e do corpo modelável, o outro grande nó tecnológico ao redor do qual os procedimentos políticos do Ocidente são transformados. Inventou-se, nesse momento, o que eu chamarei, por oposição à anátomo-política que acabei de mencionar, de biopolítica". Enquanto a disciplina se dá como anátomo-política dos corpos e se aplica essencialmente aos indivíduos, a biopolítica representa uma "grande medicina social" que se aplica à população a fim de governar a vida: a vida faz, portanto, parte do campo do poder. ***A noção de biopolítica levanta dois problemas. O primeiro está ligado a uma contradição que se encontra no próprio Foucault: nos primeiros textos onde aparece o termo, ele parece estar ligado ao que os alemães chamaram no século XIX de PolizeiwissC11schaft, isto é, a manutenção da ordem e da disciplina por meio do crescimento do Estado. Mas, em eguida, a biopolítica parece, ao contrário, assinalar o momento de ultrapassagem da tradicional dicotornia Estado/ sociedade, em proveito de uma economia política da vida em geral. É dessa segunda formulação que nasce o outro problema: trata-se de pensar a biopolítica como um conjunto de biopoderes ou, antes, na medida em que dizer que o poder investiu a vida significa igualmente 26 Les mailles du pouvoir, conferência na Universidade da Bahia, 1976. Ln:Barbárie, n° 4 e n? 5, 1981. Retomado em Dits et Écrits, vol. 4, texto n° 297.
  • 28. 28 Judith Revel que a vida é um poder, pode-se localizar na própria vida - isto é, certamente, no trabalho e na linguagem, mas também no corpo, nos afetos, nos desejos e na sexualidade - o lugar de emergência de um contra-poder, o lugar de uma produção de ubjetividade que se daria como momento de desassujeitamento? esse ca o, o tema da biopolítica seria fundamental para a reformulação ética da relação com o político que caracteriza as últimas análises de Foucault; mais ainda: a biopolitica representaria exatamente o momento de passagem do político ao ético. Como o admite Foucault, em 1982, "a análise, a elaboração, a retomada da questão das relações de poder e do 'agonismo' entre relações de poder e intransitividade da liberdade, são uma tarefa política incessante [...] é exatamente esta a tarefa política inerente a toda existência social?". 27 Le sujet et le pouvoir. In: Dreyfus, H. e Rabinow. P. Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeutics. Chicago: The University of Chicago Pres , 1982. (Tradução bra ileira: Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Foren e Univer itária, 1995].
  • 29. Miche! Foucault: conceitos essenciais 29 Controle *0 termo "controle" aparece no vocabulário de Foucault de maneira cada vez mais fregüente a partir de 1971-72. Designa, num primeiro momento, uma série de mecanismos de vigilância gue aparecem entre os séculos XVIII e XIX e gue têm como função não tanto punir o desvio, mas corrigi-lo, e, sobretudo, preveni-lo: "Toda a penalidade do século XIX transforma-se em controle, não apenas sobre aquilo gue fazem os indivíduos - está ou não em conformidade com a lei? - mas sobre aquilo gue eles podem fazer, gue eles são capazes de fazer, daquilo gue eles estão sujeitos a fazer, daquilo gue eles estão na irninência de fazer"28. Essa extensão do controle social corresponde a uma "nova distribuição espacial e social da rigueza industrial e agrícola"29: é a formação da sociedade capitalista, isto é, a necessidade de controlar os fluxos e a repartição espacial da mão de obra, levando em consideração necessidades da produção e do mercado de trabalho, gue torna nece sária uma verdadeira ortopedia social, para a gual o desenvolvimento da policia e da vigilância das populações são os instrumentos essenciais. **0 controle social passa não somente pela justiça, mas por uma série de outros poderes laterais (as instituições psicológicas, psiguiátricas, criminológicas, médicas, pedagógicas; a gestão dos corpos e a instituição de uma politica da saúde; os mecanismos de assistência, as associações filantrópicas e os patrocinadores etc.) gue se articulam em dois tempos: trata-se, de um lado, de constituir populações nas quais os 28 La vérité et les formes juridiques. Conferência na universidade do Rio de Janeiro, maio, 1973. Retomado em: Dits et Écrits, vol.2, texto n° 139.[Tradução brasileira: A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 1999]. 29 La vérité et les forme juridique , op. cit. nota 28.
  • 30. 30 Judith Revel indivíduos serão inseridos - o controle é essencialmente uma economia do poder que gerencia a sociedade em função de modelos normativos globais integrados num aparelho de Estado centralizado - ; mas, de outro, trata-se igualmente de tornar o poder capilar, isto é, de instalar um sistema de individualizacão que se destina a modelar cada individuo e a gerir sua existência. Esse duplo aspecto do controle social (governo das populações/governo pela individualização) foi particularmente estudado por Foucault no caso do funcionamento das instituições de saúde e do discurso médico do século XIX, mas também na análise das relações entre a sexualidade e a repressão no primeiro volume da História da Sexualidade (A vontade de saber). *..~~Toda a ambigüidade do termo "controle" deve-se ao fato de que, a partir dos anos 80, Foucault deixa subentender que ele o entende como um mecanismo de aplicação do poder diferente da disciplina. É em parte sobre esse ponto que se efetua a reviravolta programática da Histôria da Sexualidade, entre a publicação do primeiro volume (1976) e aquele dos dois últimos (1984): "o controle do comportamento sexual tem uma forma completamente diferente da forma disciplinar que se encontra, por exemplo, nas escolas. ão se trata de modo algum do mesmo assunto"?", A interiorização da norma, patente na gestão da sexualidade, corresponde ao mesmo tempo a uma penetração extremamente fina do poder nas malhas da vida e à sua subjetivação. A noção de controle, uma vez tomada independentemente das análises disciplinares, conduz então Foucault ao mesmo tempo em direção a uma "ontologia critica da atualidade" e a uma análise dos modos de subjetivação que estarão no centro de seu trabalho nos anos 80. 30 Interview de Michel Foucault. In : Krisis, rnars 1984. [Tradução brasileira: Entrevista com Michel Foucault. In : Di/os e Escritos, vol. I, p. 338].
  • 31. Mjchel Foucault: conceitos essenciais 3J Corpos (investimento político dos) *"Houve, no curso da idade clássica, toda uma descoberta do corpo como objeto e alvo do poder'?': as análises de Foucault nos anos 70 buscam antes de tudo compreender como se passou de uma concepção do poder em que se tratava o corpo como uma superfície de inscrição de suplícios e de penas a uma outra que buscava, ao contrário, formar, corrigir e reformar o corpo. Até o final do século XVIII, o controle social do corpo passa pelo castigo e pelo enclausuramento: "Com os príncipes, o suplício legitimava o poder absoluto, sua 'atrocidade' se desdobrava sobre os corpos, porque o corpo era a única riqueza acessivel'P"; em contra partida, nas instâncias de controle que aparecem desde o início do século XIX, trata-se, antes de tudo, de gerir a racionalização e a rentabilidade do trabalho industrial pela vigilância do corpo da força de trabalho: "Para que um certo liberali mo burguês tenha sido possível no nível das instituições, foi preciso, no nível do que eu chamo de micro-poderes, um investimento muito mais forte dos indivíduos, foi preciso organizar o esquadrinhamento dos corpos e dos comportamentos=". **"Foi um problema de corpo e de materialidade - uma questão de física - que proporcionou a grande renovação da época: nova forma de materialidade tomada pelo aparelho de produção, novo tipo de contato entre esse aparelho e o que o fez funcionar; novas exigências impostas aos indivíduos como forças produtivas [...] é um capítulo na 31 Surveiller e/ Punir. Pari: Gallimard, 1975, p. 138. [Tradução brasileira: Vigiar e punir. Petrópolis/RJ: Vozes, 1987J. 32 La prision vue par un philosophc (rançais. In: L 'Europeo, n° 1515, abril de 1975. [Tradução brasileira: A prisão vista por um filósofo francês. In : Di/os e Escritos, vol. [V, p. 154J. 3] Sur Ia sellette. In : Les Nouvelles Littéraires, n? 2477, março de 1975. Retomado em Dits e/ Écrits, vol. 2, texto n° 152.
  • 32. 32 Judith Revel história do corpo'?". Sobre essa base, Foucault vai desenvolver sua análise em duas direções: a primeira corresponde a uma verdadeira "física do poder" ou, como a designará mais tarde o filósofo, uma anátomo-politica, uma ortopedia social, isto é, um estudo das estratégias e das práticas por meio das quais o poder modela cada indivíduo desde a escola até a usina; a segunda corresponde, por sua vez, a uma biopo/ítico, isto é, à gestão política da vida: não se trata mais de redomesticar e de vigiar os corpos dos indivíduo, mas de gerir as "populações", instituindo verdadeiros programas de administração da saúde, da higiene etc. ***Quando Foucault começa a pesquisar a sexualidade, ele toma, entretanto, consciência de duas coisa : de uma parte, é a partir de uma rede de somato-poderque nasce a sexualidade "como fenômeno histórico e cultural no qual nós nos reconhecemos'J", e não a partir de uma penetração moral das consciências: é preciso, portanto, fazer sua história; de outra parte, a atualidade da questão das relações entre o poder e os corpos é essencial: pode-se recuperar seu próprio corpo? A questão é ainda mais pertinente na medida em que Foucault participa, na mesma época, das discussõe sobre o movimento homossexual e que é "essa luta pelos corpos que faz com que a sexualidade seja um problema polftico'P". O corpo representa desde então um foco da resistência ao poder, uma outra vertente dessa "biopolítica" que se torna o centro da análises do filó ofo no final dos anos 70. 34 La societé punitive. In : Annuaire du Collêge de France, 1972-1973. [Tradução brasileira: A sociedade punitiva. Resumo dos Cursos do College de France (1970- 1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 41]. 35 Les rapports de pouvoir passent à I'intérieur des corps. In: La Quinzaine Littéraire, n° 247, janeiro de 1977. Retomado em Dits et Écrits, vol. 3, texto n? 197. 36 Sexualité et politique. In : Combat, n" 9274, abril de 1974. [Tradução bra ileira: Sexualidade e política. ln: Ditos e Escritos, vol. V, p. 26-36].
  • 33. Michel Foucault· conceitos essenciais 33 Cuidado de si / Técnicas de si * o início dos anos 80, o tema do cuidado de S1 aparece no vocabulário de Foucault no prolongamento da idéia de governamentalidade. À análise do governo dos outros segue, com efeito, aquela do governo de si, isto é, a maneira pela qual os sujeito se relacionam consigo mesmos e tornam possível a relação com o outro. A expressão "cuidado de si", que é uma retomada do epimeleia heauto« que se encontra, em particular, no Primeiro A/cebíades, de Piatão, indica, na verdade, o conjunto das experiências e das técnicas que o sujeito elabora e que o ajuda a transformar-se a si mesmo. o período helenístico e romano sobre o qual se concentra rapidamente o interesse de Foucault, o cuidado de si inclui a máxima délfica gf1âtbi seautou, mas a ela não se reduz: o epime/eia beauto« corresponde antes a um ideal ético (fazer de sua vida um objeto de tekhnê, uma obra de arte) que a um projeto de conhecimento em sentido estrito. **A análi e do cuidado de si permite, na verdade, estudar dois problemas. O primeiro consiste em compreender, em particular, como o nascimento de um certo número de técnicas ascéticas a partir do conceito clás ico de cuidado de si foi, posteriormente, atribuído ao cristianismo." enhuma habilidade técnica ou profissional pode ser adquirida, em exercício; nem se pode aprender a arte de viver, a technê to« biou, em uma ascese que deve ser tomada como um treinamento de si por si"r. Qual é, então, o elemento que diferencia a ética greco- 17 À propos de Ia génealogie de I'éthique : un aperçu du travail em cours. In: Rabinow, P. e Dreyfu , H. Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeutics. Chicago: The University of Chicago Press, 1982. [Tradução brasileira: A propósito da genealogia da ética: uma revisão do trabalho. In: Rabinow. P. e Dreyfus, H. Michel Foucault, 1111/0 trajetôria filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Foren e niversitária. 1995. p. 2721.
  • 34. 34 Judith Revel romana da moral pastoral cristã; e não é precisamente na articulação do cuidado de si com os apbrodisia que se pode compreender essa passagem da ética greco-romana à moral pastoral cristã? O segundo problema concerne, na verdade, à história desses aphrodisia como campo de investigação específico da relação com o si: trata- e de buscar apreender como os indivíduos foram levados a exercer sobre si mesmos e sobre os outros "uma hermenêutica do desejo na qual seu comportamento sexual esteve, sem dúvida, envolvido, mas não, certamente, como domínio exclusivo", e de analisar os diferentes jogos de verdade utilizados no movimento de constituição do si como sujeito do desejo. ***Na Antigüidade clássica, o cuidado de si não está em oposição ao cuidado dos outros: ele implica, ao contrário, relações complexas com os outros porque é importante, para o homem livre, incluir na sua "boa conduta" uma justa maneira de governar sua mulher, suas crianças ou sua casa. O ethos do cuidado de si é, portanto, igualmente uma arte de governar os outros e, por isso, é essencial saber tomar cuidado de si para poder bem governar a cidade. É sobre esse ponto, e não sobre a dimensão ascética da relação consigo, que se efetua a ruptura da pastoral cristã: o amor a si torna-se a raiz de diferentes falhas morais e o cuidado dos outros implica, doravante, uma renúncia de si no transcurso da vida terrena.
  • 35. Michel Foucault: conceilos essenciais 35 Disciplina * Iodalidade de aplicação do poder que aparece entre o final do século XVIII e o início do éculo XIX. O "regime disciplinar" caracteriza-se por um certo número de técnicas de coerção que exercem um esquadrinhamento sistemático do tempo, do espaço e do movimento do indivíduos e que atingem particularmente as atitudes, os gestos, os corpos: "Técnicas de individualização do poder. Como vigiar alguém, como controlar sua conduta, seu comportamento, suas atitudes, como intensificar sua performance, multiplicar suas capacidades, como colocá-Io no lugar onde ele será mais útil"38. O discurso da disciplina é estranho à lei ou à regra jurídica derivada da soberania: ela produz um discurso sobre a regra natural, isto é, .obre a norma. **Os procedimentos disciplinares se exercem mais sobre o. processos da atividade do que sobre seus resultados e "a sujeição constante de suas força. [...] impõe uma relação de docilidade-utilidade'P", As "disciplinas" não nascem, com certeza, verdadeiramente no século XVIII - elas se encontram desde há muito tempo nos conventos, nas forças armada , nas oficina -, mas Foucault procura compreender de que maneira elas tornaram-se, num determinado momento, fórmulas gerais de dominação. "O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que não visa somente ao crescimento de suas habilidades, nem ao incremento de sua sujeição, mas à formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto mais útil ele for, e inversamente't'", "Lc mailles du pouvoir. op. cit. nota 26. 19 Surveiller et Punir, op. cit. nora 31. 10 Surveiller et Punir, op. cit. nota 31.
  • 36. 36 Judirh Revel Essa "anatomia politica" investe então sobre as escolas, os hospitais, os lugares de produção, e mais geralmente sobre todo espaço fechado que possa permitir a gestão dos indivíduos no espaço, sua repartição e sua identificação. O modelo de uma gestão disciplinar perfeita está proposto por meio da formulação benthaminiana do "panóptico", lugar de enclausuramento onde os princípios de visibilidade total, de decomposição das massas em unidades e de sua reordenação complexa segundo uma hierarquia rigorosa permitem submeter cada indivíduo a uma verdadeira economia do poder: numerosas instituições disciplinares - prisões, escolas, asilos - possuem ainda hoje uma arquitetura panóptica, isto é, um espaço caracterizado, de uma parte, pelo enclausuramento e pela repressão dos indivíduos, e, de outra, por um abrandamento do funcionamento do poder. ***0 modelo disciplinar foi, sem dúvida, em parte con truído em torno da experiência que Foucault teve, a partir de 1971-72, no interior do GIP (Grupo de Informação sobre as Prisões). É somente entre a publicação de Vzgiar epnnir (1975) e os cursos do Collêge de France, de 1978-79, que Foucault começa a trabalhar num outro modelo de aplicação do poder, o controle, que trabalha ao mesmo tempo a descrição da interiorização da norma e da estrutura reticular das técnicas de assujeitamento, a gestão das populações e as técnicas de si. Essa passagem de uma leitura disciplinar da história moderna para uma leitura "contemporânea" do controle social correspondeu, no final dos anos 70, a um nítido engajamento naquilo que Foucault chamou de "antologia da atualidade".
  • 37. Michel Foucault: conceitos es enciai 37 Discurso *0 discurso designa, em geral, para Foucault, um conjunto de enunciados que podem pertencer a campos diferentes, mas que obedecem, apesar de tudo, a regras de funcionamento comuns. Essas regras não são omente lingüísticas ou formais, mas reproduzem um certo número de cisões historicamente determinada (por exemplo, a grande separação entre razão/ desrazão): a "ordem do discur o" própria a um período particular possui, portanto, uma função normativa e reguladora e coloca em funcionamento mecanismos de organização do real por meio da pr dução de saberes, de estratégias e de práticas. **0 interes e de Foucault pelos "planos discursivos" foi imediatamente duplo. De um lado, tratava-se de analisar as marcas di cursivas, procurando isolar as leis de funcionamento independente da natureza e das condições de enunciação, o que explica o interesse de Foucault, na mesma época, pela gramática, pela lingüística e pelo formalismo: "foi original e importante a descoberta de que aquilo que se faz com a linguagem - poesia, literatura, filosofia, discurso em geral- obedece a um certo número de leis e de regularidades internas: as leis e as regularidades da linguagem. O caráter lingüístico dos fato de linguagem foi uma de coberta muito importante":"; mas, de outro, tratava- e de descrever a transformação dos tipo de discurso nos séculos À'VII e XVIII, isto é, de historicizar o procedimentos de identificação e de classificação próprios de se período: nesse sentido, 4' La vérité et les forme juridique , op. cit. nota 28.
  • 38. 38 Judith Revel a arqueologia foucaultiana dos discursos não é apenas uma análise lingüistica, mas uma interrogação sobre as condições de emergência de dispositivos discursivos que sustentam práticas (como em História da Loucllt(1)ou as engendram (como em As Palavras e as Coisas ou em A arq/leologia do Saber). esse sentido, Foucault substitui o par saussureano língua/fala por duas oposições que ele faz funcionar alternativamente: o par discurso/linguagem, no qual o discurso é, paradoxalmente, o que é renitente à ordem da linguagem em geral (é, por exemplo, o caso do "esoterismo estrutural" de Raymond Roussel) - e é preciso notar que o próprio Foucault anulará essa oposição, intitulando sua aula inaugural no Collêge de France como A Ordem do Discurso, em 1971; e o par discurso/ fala, no qual () discurso se torna o eco lingüístico da articulação entre saber e poder, e no qual a fala, como instância subjetiva, encarna, ao contrário, uma prática de resistência à "objetivação discur iva" . ***0 aparente abandono do tema do discurso depois de 1971, em proveito de uma análise das práticas e das estratégias, corresponde ao que Foucault descreve como a passagem de uma arqueologia a uma "dinastia do saber": não mais somente a descrição de um regime de discursividade e de sua eventual transgressão, mas a análise "da relação que existe entre esses grandes tipos de discurso e as condições históricas, as condições econômicas, a condições politicas de seu aparecimento e de sua forrnação't'". Ora, esse deslocamento, que embasa a passagem metodológica da arqueologia à genealogia, permite problematizar as condições do desaparecimento do "discurso": () tema das práticas de resistência, onipresente em Foucault a partir dos anos 70, possui, na realidade, uma origem discursiva . • 2 De I'archéologie à Ia dynastique. Entretien avec S. Hasurni, scpiernbre 1972. Retomado em Dits et Écrits, vol. 3, texto n" 119. [Tradução brasileira: Da arqueologia à dinástica. In: Ditos e Escritos. vol. IV, p. 491.
  • 39. Michel Foucault: conceitos essenciais 39 Dispositivo *0 termo "dispositivos" aparece em Foucault nos anos 70 e designa inicialmente os operadores materiais do poder, isto é, as técnicas, as estratégias e as formas de assujeitamento utilizadas pelo poder. A partir do momento em que a análise foucaultiana se concentra na questão do poder, o filósofo insiste sobre a importância de se ocupar não "do edifício jurídico da soberan.ia, dos aparelhos do Estado, das ideologias que o acornpanham'r", mas dos mecanismos de dominação: é essa escolha metodológica que engendra a utilização da noção de "dispositivos". Eles são, por definição, de natureza heterogênea: trata- se tanto de discursos quanto de práticas, de instituições quanto de táticas moventes: é assim que Foucault chega a falar, segundo o caso, de "dispositivos de poder", de "dispositivos de saber", de "dispositivos disciplinares", de "dispositivos de sexualidade" etc. **0 aparecimento do termo "dispositivo" no vocabulário conceitual de Foucault está provavelmente ligado à ua utilização por Deleuze e Guattari no .Anti-Édipo (1972): é, pelo menos, o que deixa entender o prefácio que Foucault escreveu em 1977 para a edição americana do livro, visto que ele aí ob erva "a noções em aparência abstratas de multiplicidades, de fluxos, de dispositivos e de rarnificaçõe "44. Posteriormente, o termo receberá uma acepção cada vez mais ampla (mesmo que, no começo, Foucault somente utilize a expressão 4,ll faut défendre Ia société, Paris: Seuil, 1997. [Tradução brasileira: Em defesa da sociedade. Curso no College de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999]. 44 Prefácio a Deleuze, G. e Guauari, F. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia. New York: Viking Press, 1977. Retomado em Dits et Écrits, vol. 3, texto n" 189.
  • 40. 40 Judith Revel "dispositivo de poder") e cada vez mais precisa, até ser objeto de uma reflexão completa após A uontade de saber (1976), em que a expressão "dispositivo de sexualidade" é central: um dispositivo é "um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetõnicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. ~m suma: o dito e o não-dito l..']'O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos'r". O problema é, então, para Foucault, o de interrogar tanto a natureza dos diferentes dispositivos que ele encontra quanto sua função estratégica. *** a verdade, a noção de dispositivo substitui pouco a pouco aquela de episteme, empregada por Foucault, de um modo absolutamente particular, em As palavras e as coisas e até o final dos anos 60. Com efeito, a episteme é um dispositivo especificamente discursivo, enquanto o "dispositivo", no sentido que Foucault explorará dez anos mais tarde, contém igualmente instituições e práticas, isto é, "todo o social não-discursivo "46. 4j Le jeu de Michel Foucault. Ornicar? Bulletin périodique du champ [reudien. n" 10, julho de 1977. (Tradução brasileira: Sobre a história da sexualidade. In: Microftsica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999, p. 244). 46 Le jeu de Michel Foucault, op. cit. nota 45.
  • 41. Mjchel Foucault: conceitos essenciais 41 Episteme *0 termo "episterne" está no centro das análises de As Palavras e as Coisas (1966) e deu lugar a numerosos debates na medida em que a noção é, ao mesmo tempo, diferente da de "sistema" - que Foucault praticamente nunca utiliza antes que sua cadeira no Collêge de France fosse, a seu pedido, rebatizada, em 1971, como "cadeira de história dos sistemas de pensamento" - e da de "estrutura". Por episteme, Foucault designa, na realidade, um conjunto de relações que liga tipos de discursos e que corresponde a uma dada época histórica: "são todos esses fenômenos de relações entre as ciências ou entre os diferentes discursos científicos que constituem aquilo que eu denomino a episteme de uma época":" **Os mal-entendidos engendrados nos anos 60 pelo u o da noção devem-se a dois motivos: de um lado, interpreta-se a episteme como um sistema unitário, coerente e fechado, isto é, como uma coerção hi tórica, que implica uma sobredeterminação rígida dos discursos; e, de outro lado, acusa-se Foucault de um certo relativismo histórico, isto é, ele foi instado a explicar a ruptura epistêrnica e a descontinuidade gue a pa sagem de uma episteme a outra necessariamente implica. obre o primeiro ponto, Foucault responde que a episteme de uma época não é "a soma de seus conhecimentos ou o estilo geral de suas pe guisas, mas o desvio, as distâncias, as oposições, as diferenças, as relações de seus múltiplos discur os científicos: a episteme não é tona espécie degratlde 4? Le problêrnes de Ia culture. Un débat Foucault-Preli. In: 11Bimestre, n? 22-23, setembro-dezembro. 1972. Retomado em Dits et Écrits, vol. 2, texto n? 109.
  • 42. 42 Judith Revel teoria subiacente, é um espaço de dispersão, é um campo aberto l... 1 a episteme nào é lima cobertura de história comum a todas as ciências; é um jogo simultâneo de remanêndas especificas"48. [ais do que uma forma geral da consciência, Foucault descreve, portanto, um feixe de relações e de deslocamentos; não um sistema, mas a proliferação e a articulação de múltiplos sistemas que remetem uns aos outros. Sobre o segundo ponto, Foucault reivindica, por meio do uso da noção, a substituição da questão abstrata da mudança (particularmente viva, na época, para os historiadores) por aquela dos "diferentes tipos de transformação": "substituir, enfim, o tema do devir (forma geral, elemento abstrato, causa primeira e efeito universal, mistura confusa do idêntico e do novo) pela análise das transformações em sua especificidade":". ***0 abandono da noção de episteme corresponde ao de locamento do interesse de Foucault, de objetos estritamente discursivos a realidades não-discursivas - práticas, estratégias, instituições etc: "Em As Palaoras e as Coisas, querendo fazer uma história da epistelJle, permanecia num impasse. Agora, gostaria de mostrar que o c1ue chamo de dispositivo é algo muito mais geral que compreende a episteme. Ou melhor, que a episteme é um dispositivo especificam nte discursivo, diferentemente do dispositivo, que é discursivo e não-discursivo, sendo seus elementos muito mais heterogêneos":". 4H Réponse à une questiono ln: Esprit, na 371, maio 1968. Retomado em Dits et Écrits, vol. I, texto N° 58. 49 Réponse à une question, op. cit. nota 48. 50 Le jeu de Michel Foucault. op. cit. nota 45.
  • 43. Michel Foucaull: conceitos essenciais 43 Estética (da existência) *0 tema de uma "estética da existência" aparece muito nitidamente em Foucault no momento da aparição dos dois últimos volumes da História da Sexualidade, em 1984. Foucault faz, com efeito, a descrição de dois tipos de moral radicalmente diferentes, uma moral greco- romana dirigida para a ética e por meio da qual se trata de Jazer de SIIa vida lima obra de arte, e uma moral cristã no interior da qual se trata, ao contrário, essencialmente, de obedecer a um código: "Se me interessei pela Antigüidade, foi porque, por toda uma série de razões, a idéia de uma moral como obediência a um código de regras está desaparecendo, já desapareceu. E a esta ausência de moral corresponde, deve corresponder uma busca que é aquela de uma estética da existência'?'. Os temas da ética e da estética da existência estão portanto estreitamente ligados. **A "estética" da existência ligada à moral antiga marca em Foucault o retorno ao tema da invenção de si (Jàzer de sua vida lima obra de alte): uma problematização a que ele já havia chegado em filigrana num certo número de textos "literários" nos anos 60 (por exemplo, no H.aYfJ/ond Roussel, mas igualmente nas análises consagradas a Brisset e a Wolfson), e que ele retoma vinte anos mais tarde por meio de uma dupla série de discursos. A primeira, no interior da História da Sexualidade, está essencialmente ligada à problematização da ruptura que representa a "pastoral cristã" em relação à ética grega; a segunda passa, em contrapartida, pela análise da "atitude da rnodernidade" 51 Une esthétique de I'existence. In: Le Monde, 15-16 de julho de 1984. [Tradução bra ilera: Uma estética da existência. In: Ditos e Escritos, vol V, p. 290].
  • 44. 44 Judith Revel (por meio da retomada do texto kantiano sobre as Luzes) e faz da invenção de si uma das características dessa atitude: a modernidade não é somente a relação com o presente, mas a relação consigo mesmo, na medida em que "ser moderno não é aceitar a si mesmo tal como se é no fluxo dos momentos que passam; é tomar a si mesmo como objeto de uma elaboração complexa e dura: o que Baudelaire chama, de acordo com o vocabulário da época, de 'dandismo't'F, A estética da existência é, ao mesmo tempo, o que Foucault localiza fora da influência da pastoral cristã (temporalmente: o retorno aos Gregos; espacialmente: o interesse contemporâneo de Foucault pelo zen e pela cultura japonesa) e o que deve, de novo, caracterizar a relação que nó mantemos com a nossa própria atualidade. ***0 tema da estética da existência como produção inventiva de si não marca, entretanto, um retorno à figura do sujeito soberano, fundador e universal, nem a um abandono do campo político: "penso, pelo contrário, que o sujeito se constitui através das práticas de sujeição ou, de maneira mais autônoma, através de práticas de liberação't". A estética da existência, na medida em que ela é uma prática ética de produção de subjetividade, é, ao mesmo tempo, assujeitada e resistente: é, portanto, um gesto eminentemente político. ~2 What's enlightenment? , op. cit. nota 6. S3 Une e thétique de l'exi tence, op. eu, nota 51.
  • 45. Michel Foucaull: conceitos essenciais 45 , Etica * os últimos volume da História da sexualidade, Foucault distingue claramente entre o que é preciso entender por "moral" e o que significa "ética' . A moral é, em sentido amplo, um conjunto de valores e de regras de ação que são propostas ao indivíduos e aos grupos por meio de diferentes aparelhos prescritivos (a família, as instituições educativas, as Igrejas etc.); essa moral engendra uma "moralidade dos comportamentos", isto é, uma variação individual mais ou menos consciente em relação ao sistema de prescrições do código moral. Por outro lado, a ética concerne à maneira pela qual cada um constitui a si mesmo como sujeito moral do código: "Dado um código de condutas [...], há diferentes maneiras de o indivíduo 'conduzir-se' moralmente, diferentes maneiras para o indivíduo, ao agir, não operar simplesmente como agente, mas im como sujeito moral dessa ação"?'. **A toda ética corresponde a determinação de uma "substância ética", isto é, a maneira pela qual um indivíduo faz de si mesmo a matéria principal de sua conduta moral; da mesma maneira, ela implica necessariamente um modo de sujeição, isto é, a maneira pela qual um individuo se relaciona com uma regra ou com um sistema de regras e experimenta a obrigação de colocá-Ias em ação. A ética greco-romana que descreve Foucault, em particular no segundo volume da História da Sexualidade (O uso dosprazeres), tem por substância ética os apbrodisia e seu modo de sujeição é uma e colha pessoal estético-politica (não se trata tanto de respeitar um código quanto de "fazer da sua vida uma 54 Usage des plaisirs et techniques de sai. ln: Le Débat, n? 27, novembro 1983. [Tradução brasileira: O Uso dos Prazere e a Técnicas de Si. In : Ditos e Escritos, vol, V. p. 211-212).
  • 46. 46 Judith Revel obra de arte"). Em contrapartida, a moral cristã funciona não sobre a escolha mas sobre a obediência, não sobre os apbrodisia (que são ao mesmo tempo o prazer, o desejo e os atos), mas sobre a "carne" (que coloca entre parênteses tanto o prazer quanto o desejo): com o cristianismo, "o modo de sujeição é, então, a lei divina. E creio que até mesmo a substância ética mudou, porque ela não é mais constituida pela apbrodisia, mas pelo desejo, pela concupiscência, pela carne etc.?". ***0 termo ética aparece pela primeira vez de maneira realmente significativa em 1977, em um texto obre O .Anti-Édipo de Deleuze e Guatarri: "Eu diria que O Anti-Édipo (perdoem-me os autores) é um livro de ética, o primeiro livro de ética que se escreveu na França depois de muito tempo?". E é interessante constatar que Foucault caracteriza da mesma maneira, alguns anos mais tarde, sua própria História da Sexllalidade: "se, por 'ética' entender-se a relação que o indivíduo estabelece consigo mesmo, eu diria que tende a ser uma ética, ou, pelo menos, tentarei mostrar o que poderia ser uma ética do comportamento sexual"?". E para além da sexualidade, o projeto de uma "ontologia crítica da atualidade" recebe, às vezes, a formulação de uma "política como uma ética": isso quer dizer que o interesse foucaultiano pela ética, nos ano 80, longe de ser o fim da problematização filosófica e histórica das estratégias do poder e de sua aplicação aos indivíduos, re-propõe a análise do campo político a partir da constituição ética dos sujeitos, a partir da produção da subjetividade. 55 A propos de Ia généalogie de l'éthique : un aperçu du travail cn cours, op. cit. nota 37. 56 Prefácio a Deleuze, G. e Guartari, F. Anti-Oedipus, op. cit. nota 44. 57 Une interview de Michel Foucault par Stephen Riggins. In: Ethos, vol. &, n° 2. 1983. Retomado em Dits et Écrits. vol 4, texto n° 336.
  • 47. Michel Foucault: conceitos essenciais 47 Expêriencia *A noção de experiência e tá presente ao longo de todo o percurso filosófico de Foucault, mas ela passa por importantes modificações no decorrer dos anos. e é verdade que, de maneira geral, "a experiência é alguma coisa da qual saímos transforrnados't", Foucault refere-se, inicialmente, a uma experiência que deve muito, ao mesmo tempo, a Bataille e a Blanchot: no cruzamento de uma experiência do limite e de uma experiência da linguagem considerada como "experiência do exterior", ele procura, com efeito, definir - em particular no domínio da literatura - uma experiência do ilimitado, do intransponível, do impossivel, isto é, daquilo que afronta, na realidade, a loucura, a morte, a noite ou a sexualidade, ao aprofundar, na espessura da linguagem, seu próprio espaço de fala. um segundo momento, muito diferentemente, a experiência se torna para Foucault a única maneira de distinguir a genealogia ao mesmo tempo de uma abordagem empírica ou positivista e de uma análise teórica: se algumas problematizacõe nascem de uma experiência (por exemplo, a e critura de Vigiar e Punir depois da experiência do Grupo de Informação sobre as Prisões e, mais amplamente, depois de 1968), é no sentido de . que o pensamento filosófico de Foucault é verdadeiramente uma experimentação: ele dá, com efeito, a ver o movimento da constituição histórica dos discursos, das práticas, das relações de poder e das subjetividades, e é devido a essa relação com a genealogia que a 5N Entretien avec Michel Foucault (avec Ducio Trombadori, Paris, 1978). In: 1/ Contributo, 4 année, n. I. Retomado em Dits et Écrits, vol. 4, 1994, texte n. 281.
  • 48. 48 Judith Revel experiência sai dela mesma modificada: "Meu problema é o de fazer eu mesmo - e de convidar os outros a fazerem comigo, por meio de um conteúdo histórico determinado - uma experiência daquilo que nós somos, daquilo que é não omente o nosso passado mas também o nosso presente, uma experiência de nossa modernidade de tal maneira que dela saiamos transformados."? **Enquanto a experiência fenomenológica (à qual Foucault se refere ainda, em parte, nos seus textos dos anos 50) procura, na realidade, "retomar a significação da experiência cotidiana para compreender de que maneira o sujeito que eu sou é realmente fundador, em suas funções transcendentais, daquela experiência e de suas significações't'", a referência a ietzsche, a Bataille e a Blanchot permite, ao contrário, definir a idéia de uma experiência-limite que arranca o sujeito dele mesmo e lhe impõe sua fragmentação ou sua dissolução. Assim, torna- se evidente que a referência a Bataille seja essencial e que Foucault censure os surrealistas, mesmo reconhecendo que Breton tenha tentado percorrer experiência limites, por tê-Ias mantido em um espaço da psique. O fato de construir-se a partir do apagamento do sujeito faz com que essa idéia da experiência como passagem ao limite não esteja, na realidade, tão distante das outras análi es de Foucault nos anos 60: ele atualiza nela o horizonte desenhado pelo final de As Palatras e as Coisas - O possível desaparecimento do homem ao mesmo tempo como consciência autônoma e como objeto de conhecimento privilegiado: "uma experiência está prestes a nascer onde o que está em jogo é o 59 Entretien avec Michel Foucault (avec Ducio Trombadori), op. cit. nota 58. 60 Entretien avec Michel Foucault (avec Ducio Trombadori), op. cit. nota 58.
  • 49. Michel Foucault: conceitos essenciaj; 49 nosso pensamento; sua iminência já visível, mas absolutamente vazia, não pode ainda ser nomeada"?'. ***Se é verdade que a maior parte das análises de Foucault na ce de uma experiência pe soal - como ele mesmo reconhece - elas não podem, de maneira alguma, serem reduzidas a isso. Ao contrário, Foucault coloca-se como tarefa a reformulação da noção de experiência, ampliando-a para além do si (um i já maltratado pela crítica dos filósofos do sujeito): a experiência é algo que se dá solitariamente, mas que é plena somente na medida em (lue escapa à pura subjetividade, isto é, que outros podem cruzá-Ia ou atravessá-Ia. A partir dos anos 70, é, pois, sobre o terreno de uma prática coletiva - i to é, no campo político - que Foucault procura situar o problema da experiência como momento de transformação: o termo passará, então, a ser associado ao mesmo tempo à resistência aos dispositivos de poder (experiência revolucionária, experiência de lutas, exp riência de sublevação) e aos processos de subjetivaçâo. 61 La folie, l'absence d'ceuvre, La Table Ronde, n° 196 : Situation de Ia psychiatrie, 1964, retomado em Dits et Écrits, vol. I, texto n° 25. [Tradução brasileira: A loucura, a ausência da obra. In : Ditos e Escritos, vol. I, p. 219].
  • 50. 50 Judith Revel Exterior *Em 1966, num texto consagrado a Maurice Blanchot'" Foucault define a "experiência do exterior" corno a dissociação do "eu penso" e do "eu falo": a linguagem deve enfrentar o desaparecimento do sujeito que fala e inscrever seu lugar vazio corno fonte de sua própria expansão indefinida. A linguagem escapa, então, "ao modo de ser do discurso - ou seja, à dinastia da representação - e o discurso literário se desenvolve a partir dele mesmo, formando urna rede em que cada ponto, distinto dos outros, à distância mesmo dos mais próximos, está situado em relação a todos num espaço que ao mesmo tempo os abriga e os separa'r". **Essa passagem ao exterior como desaparecimento do sujeito que fala e, contemporaneamente, como aparição do próprio ser da linguagem, caracteriza para Foucault uma espécie de linhagem marginal da cultura ocidental, cujo pensamento "será necessário um dia tentar definir as formas e as categorias fundamentais". De Sade a Hôlderlin, de ietzche a Mallarmé, de Artaud a Bataille e a Klossowski, trata-se sempre de considerar essa passagem ao exterior, isto é, ao mesmo tempo a fragmentação da experiência da interioridade e o descentramento da linguagem em direção ao seu próprio limite: nesse sentido, segundo Foucault, Blanchot parece ter conseguido tirar da linguagem a reflexividade da consciência e transformado a ficção em uma dissolução da narração que valoriza "o interstício das imagens". O paradoxo dessa palavra sem raiz e sem fundações, que se revela 62 La pensée du dehors. In: Critique, n. 229, 1966. [Tradução brasileira: O pensamento do exterior. ln: Ditos e Escritos, vol. Hl, p. 219-242). 63 La pensée du dehors, op. cit. nota 62.
  • 51. Michel Foucaull: conceitos essenciais 5/ como deslizamento e como murmúrio, como divisão e como dispersão, é que ela representa um avanço em direção ao que nunca recebeu linguagem - a própria linguagem, que não é nem reflexão nem ficção, mas jorro infinito - ou seja, oscilação indefinida entre a origem e a morte. ***0 tema do exterior é interessante, ao mesmo tempo, porque interliga o autores do quai Foucault se ocupa no mesmo período - a "linhagem do exterior", da qual Blanchot seria a encarnação mais evidente - e porque forma um contra ponto radical com aquilo que o filósofo se aplica a de crever, no mesmo momento, em seus livros. Com efeito, quando Foucault sublinha o risco de reconduzir a experiência do exterior à dimensão da interioridade e a dificuldade de dotá-Ia de uma linguagem que lhe seja fiel, ele se refere à fragilidade desse "exterior": não há exterior possível numa descrição arqueológica dos dispositivos discursivos tal como apresentada em As pala/Iras e as Coisas. Será somente bem mais tarde que Foucault deixará de pensar o "exterior" como uma passagem ao limite ou como uma pura exterioridade, e que ele lhe dará um lugar no seio mesmo da ordem do discurso: a oposição não será, portanto, mais entre o de dentro e o de fora, entre o reino do sujeito e o murmúrio anônimo, mas entre a linguagem objetivada e a palavra de resistência, entre o sujeito e a subjetividade, isto é, aquilo que Deleuze chamará "a dobra". dobra - e o termo já fora., estranhamente, utilizado por Foucault em 1966 - , é o fim da opo ição dentro/fora, porque é o exterior do dentro. E Foucault conclui: "l...] estarnos sempre no interior. A margem é um mito. A fala do exterior é um sonho que não paramos de repetir"?'. 64 L'extension sociale de Ia norme. In: Politique Hebdo, nO212, março de 1976. Retomado em Dits et Écrits, vol. 3. texto n° 173.
  • 52. 52 Judirh Reve! Genealogia *Desde a publicação deAs Palavrase as Coisas(1966), Foucault qualifica seu projeto de arqueologia das ciências humanas mais como uma "genealogia nietzschiana" do que como uma obra estruturalista. Esse conceit é retomado e precisado, em 1971, em um texto sobre ietzsche: a genealogia é uma pesquisa histórica que se opõe ao "desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teologias'", que se opõe à unicidade da narrativa histórica e à busca da origem, e que procura, ao contrário, a "singularidade dos acontecimentos fora de qualquer finalidade monótona'?". A genealogia trabalha, portanto, a partir da diversidade e da dispersão, do acaso dos começos e dos acidentes: ela não pretende voltar ao tempo para restabelecer a continuidade da história, mas procura, ao contrário, restituir os acontecimentos na sua singularidade. **0 enfoque genealógico não é, no entanto, um simples ernpirismo, "nem tampouco um positivisrno, no sentido habitual do termo". Trata- se, de fato, de ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia depurá- los, hierarquizá-Ios, ordená-Ios em nome de um conhecimento verdadeiro [...]. As genealogias não são, portanto, retornos positivistas a uma forma de ciência mais atenta ou mais exata; as genealogias são mais exatamente anti-aênaasí'", O método genealógico é, portanto, 65 Nietzche, Ia généalogie, l'histoire, In: Dits et Écrits, vol. 2, texto n? 84. [Tradução brasileira: Nietzsche, a Genealogia, a História. In: Ditos e Escritos, vol. lI, p. 261]. 66 Nietzche, Ia généalogie, l'histoire, op. cit. nota 65.
  • 53. Michel Foucault: conceitos essenciais 53 uma tentativa de desassujeitar os saberes hi tórico ,isto é, de torná-los capazes de oposição e de luta contra "a ordem do discurso"; isso significa que a genealogia não bu ca somente no passado a marca de acontecimento ingulares, mas que ela se coloca hoje a questão da possibilidade dos acontecimentos: "ela deduzirá da contingência que nos fez ser o que somos, a possibilidade de não mai ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensarnos'r". ***A genealogia permite apreender de maneira coerente o trabalho de oucault desde os primeiros textos (antes que o conceito de genealogia começasse a ser empregado) até os últimos. Foucault inclica, com efeito, que há três domínios possíveis de genealogia: uma antologia histórica de nó -rnesrnos em nossas relações com a verdade, que permite nos constituirmos como sujeitos de conhecimento; nas nossas relações com um campo de poder, que permite nos constituirmos como sujeitos que agem sobre os outros; e em nossas relações com a moral, que permite nos constituirmos como agente éticos. "Todos o três [eixos possíveis para a genealogia] estavam presentes, embora de forma um tanto confu a, em História da Loucura. Estudei o eixo da verdade em astimento da Clínica e As Palavras e as Coisas. Desenvolvi o eixo do poder em Vigiar e Punir, e o eixo moral em História da eXllalidade"69. 67 Cour du 7 janvier 1976. In: Microfisica dei potere. Torino : Enaudi, 1977. [Tradução brasileira; Genealogia e Poder. 111: Microfisica do Poder. Rio de Janeiro : Graal,1999,p.17I]. 68 What's enlightenment?, op. cit. nota 6. 69 À propos de Ia génealogie de I'éthique: un aperçu du travail em cours, op. cit. nota 37.
  • 54. 54 Judith Revel Governamentalidade * A partir de 1978, em seu curso no Co//ege de France, Foucault analisa a ruptura que se produziu entre o final do século XVI e o início do século À'VII e que marca a passagem de uma arte de governar herdada da Idade Iédia, cujos princípios retomam a virtudes morais tradicionais (sabedoria, justiça, respeito a Deus) e o ideal de medida (prudência, reflexão), para uma arte de governar cuja racionalidade tem por princípio e campo de aplicação o funcionamento do Estado: a "governamentalidade" racional do Estado. Essa "razão do Estado" não é entendida como a suspensão imperativa das regras pré-existentes, mas como uma nova matriz de racionalidade que não tem a ver nem com o soberano de justiça, nem com o modelo maquiavélico do Príncipe. **"Por e sa palavra 'governarrientalidade', eu quero dizer três coisas. Por governamentalidade, eu entendo o conjunto constituído pelas instituições, procedimento, análises e reflexõe , cálculos e táticas que permitem exercer essa forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, como forma principal de aber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. Em segundo lugar, por governarnentalidade, entendo a tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, à preeminência desse tipo de poder que se pode chamar de "governo" sobre todos os outros - soberania, disciplina etc [...1. Enfim, por governamentalidade, eu creio que seria preciso entender o resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade Média, que se tornou nos séculos XVI e XVII Estado administrativo,
  • 55. Michel Foucault: conceitos essenciais 55 foi pouco a pouco 'governamentalizado,>7O. A nova governamentalidade da razão do Estado se apóia sobre dois grandes conjuntos de saberes e de tecnologias políticas, uma tecnologia político- militar e uma "policia". o cruzamento dessas duas tecnologias, encontra-se o comércio e a circulação interestatal da moeda: "é do enriquecimento pelo comércio que se espera a possibilidade de aumentar a população, a mão-de-obra, a produção e a exportação, e de se dotar de armas fortes e numerosas. O par população-riqueza foi, na época do mercantilismo e da cameralistica, o objeto privilegiado da nova razão governamental,,71. Esse par está no fundamento da formação de uma "economia política", *** A governamentalidade moderna coloca pela pnmeJra vez o problema da "população", isto é, não a soma dos sujeitos de um território, o conjunto de sujeitos de direito ou a categoria geral da "espécie humana", mas o objeto construído pela gestão politica global da vida dos indivíduo (biopolítica). Essa biopolítica implica, entretanto, não somente uma gestão da população, mas um controle das estratégias que os indivíduos, na sua liberdade, podem ter em relação a eles mesmos e uns em relação aos outros. As tecnologias governamentais concernem, portanto, também ao governo da educação e da transformação dos indivíduos, àquele das relações familiares e àquele das instituições. Épor essa razão que Foucault estende a análise da governamentalidade dos outro para uma análise do governo de si: "Eu chamo 'governamentalidade' o encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si"n. 70 La gouvernamentalité. Cours ou Collêge de France, 1977-1978: Sécurité. territoire, population, 4a aula, 10 de fevereiro de 197 . ln: Dits et Écrits, vol. 3, texto n" 239. [Tradução brasileira: A Governamentalidade. In: Microjísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999, p. 291-292J. 71Sécurité, territcire. population [ Segurança. território e população. ln: Resumo dos Cursos do Collêge de France (/970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 841· 72 Lcs techniques de soi. ln : Technologies of lhe Sel]. A Seminar with M. FOI/caI/lI. Massachuseus, U.P., [988. Retomado em Dits et Écrits, vol. 4, texto n'' 363.
  • 56. 56 Judith Revel Guerra *Foucault se interessa pela guerra durante um período relativamente breve, entre 1975 e 1977, e de maneira extremamente intensa, pois ele lhe consagra um ano de curso no Collêge de France". A primeira referência à guerra limita-se a inverter a fórmula clausewitziana?' a fim de descrever a situação da crise international criada pelos choques petrolíferos: "a política é a continuação da guerra por outros meios"75. Dessa forma, Foucault retoma teoricamente o tema da guerra na medida em que, sendo o poder essencialmente uma relação de forças, os esquemas de análise do poder "não devem ser emprestados da psicologia ou da sociologia, mas da estratégia. E da arte da guerra"76. Essa afirmação, reformulada de maneira interrogativa, torna-se o coração do curso "Em defesa da sociedade": se a noção de "estratégia" é essencial para fazer a análise dos dispositivos de saber e de poder, e se ela permite, em particular, analisar as relações de poder por meio das técnicas de dominação, pode-se, então, dizer que a dominação não é outra coisa senão uma forma continuada da guerra? **A questão de saber se a guerra pode valer como grade de análise das relações de poder se subdivide em vários problemas: a guerra é 731/ faut défendre Ia soeiété, op. cit. nota 43. 74 NT: Foucault alude ao aforisma de Carl Von Clausewitz (trad. francesa De Ia guerre. Paris: Minuit, 1955): "a guerra não é mais do que a continuação da política por outros meios". 75 La politique est Ia continuation de Ia guerre par d'autres moyens. ln: L'imprévu, n? J, janvier 1975. Retomado em Dits e! Écrits, vol. 2, texto n? J 48. 76 Michel Foucault, l'illégalisme et l'art de punir. In: La Presse, n° 80, 3 avril 1976. Retomado em Dits et Écrits, vol. 3, texte n" 175.
  • 57. Michel Foucault: conceitos essenciais 57 um estado primeiro do qual derivam todos os fenômenos de dominação e de hierarquização social? Os processos de antagonismo e de lutas, sejam eles individuais ou de classe, são reconduzíveis ao modelo geral da guerra? As instituições e os procedimentos militares são o coração das instituições políticas? E, sobretudo, quem primeiro pensou que a guerra era a continuação da política por outros meios, e desde quando? O curso, que se alongou sobre a ruptura entre o direito de paz e de guerra característico do poder medieval e a concepção politica da guerra a partir do século XVII, procura, es encialmente, responder à última questão; po teriormente, o modelo da guerra é abandonado em proveito de um modelo mais complexo de análise das relações de poder: a "governamentalidade". ***Foucault localiza no século XVII um discurso histórico-politico - "muito diferente do discurso filosófico-jurídico ordenado pelo problema da soberania'?" - que transforma a guerra num fundo permanente de todas as instituições de poder. a França, esse discurso, que foi desenvolvido em particular por Boulainvilliers, afirma que a guerra presidiu o nascimento dos Estados: não a guerra imaginária e ideal imaginada pelos filósofos do estado da natureza - "para Hobbes, é a não-guerra que funda um Estado e lhe dá sua forma,,78 - mas urna guerra real, uma "batalha" da qual, no mesmo ano, [/igiar e Punir nos incita a ouvir o' estrondo surdo". 77 11[aut défendre Ia societé, op.cit. nota 43. 7811 faut défendre Ia societé, op.cit. nota 43.
  • 58. 58 Judirh Revel História *Ainda que o termo "história" apareça em numerosas retomadas nos títulos das obras de Foucault, ele recobre, na verdade, três eixos de discursos distintos. O primeiro consiste numa retomada explícita de ietzsche, isto é, absolutamente ao me mo tempo, da crítica da história concebida como contínua, linear, provida de uma origem e de um te/os, e da crítica do discurso dos historiadores como "história monumental" e supra-histórica, É, portanto, essa leitura nietzschiana que impulsiona Foucault a adotar, desde o começo dos anos 70, o termo "genealogia": trata-se de reencontrar a descontinuidade e o acontecimento, a singularidade e os acasos, e de formular um tipo de enfoque que não pretende reduzir a diversidade histórica, mas que dela seja o eco. O segundo eixo corresponde à formulação de um verdadeiro "pensamento do acontecimento" - de maneira muito próxima do que faz Deleuze na mesma época -, isto é, à idéia de uma história menor feita de uma infinidade de traços silenciosos, de narrativas de vidas minúsculas, de fragmentos de existências - donde o interesse de Foucault pelos arquivos. O terceiro eixo se desenvolve precisamente a partir dos arquivos e induz Foucault a colaborar com um certo número de historiadore , isto é, ao mesmo tempo, a problematizar o que deveria ser a relação entre a filo ofia e a história (ou, mais exatamente, entre a prática filosófica e a prática histórica) uma vez aídos da tradicional divergência filo ofia da história/história da filosofia, e a interrogar, de maneira crítica, a evolução da historiografia francesa desde os anos 60.
  • 59. Michel Foucaull: conceitos essenciais 59 ** a verdade, parece que o discurso de Foucault oscila entre duas posições: de uma parte, a história não é uma duração, mas "uma multiplicidade de durações que se emaranham e se envolvem umas nas outras [...] o estruturalismo e a história permitem abandonar essa grande mitologia biológica da história e da duração -9" - o que resulta em afirmar que apenas um enfoque que faça jogar a continuidade das séries como chave de leitura das descontinuidades contempla, na verdade, "os acontecimentos que, de outro modo, não apareceriam"?", O acontecimento não é em si fonte da descontinuidade; mas é o cruzamento de uma história seria I e de uma história aconteci mental - série e acontecimento não constituem o fundamento do trabalho histórico, mas seu resultado a partir do tratamento de documentos e arquivos - gue permite fazer emergir, ao mesmo tempo, dispositivos e pontos de ruptura, planos de discurso e falas singulares, estratégias de poder e focos de resi tência etc. "Acontecimento: é preciso entendê- 10 não como uma decisão, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas como uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se amplia e se envenena e uma outra que faz sua entrada, mascarada"?". Por outro lado, essa reivindicação de uma história que funcionaria não como análise do passado e da duração, mas como iluminação das transformações e do acontecimentos, define-se por vezes como uma verdadeira "história aconteci mental" por meio da referência a um certo número de 79 Revenir à l'Histoire, In : Paidéia, n° 11, fevereiro de 1972. Retomado em Dits et Écrits, vol. 2, texto n'' 103. [Tradução brasileira: Retornar à história. In: DiTOS e Escritos, vol. 11, p.293-2941. RII Revcnir à l'Histoire, op. cit. nota 79. RI Nictzche, Ia généalogie, l'histoire, op. cit. nota 65.
  • 60. 60 Judith Revel historiadores que estudaram o cotidiano, a sensibilidade, os afetos (Foucault cita várias vezes Le Roy Ladurie, Ariês e Mandrou); e mesmo se ele reconheceu na Escola dos Annales - e, em particular, Marc Bloch e depois Fernand Braudel - o mérito de ter multiplicado as durações e redefinido o acontecimento não como um segmento de tempo, mas como o ponto de intersecção de durações diferentes, não é menos verdade que Foucault acabou por opor seu próprio trabalho sobre o arquivo à história social das classificações que caracteriza para ele uma boa parte da historiografia francesa desde os anos 60: "Entre a história social e as análises formais do pensamento, há uma via, uma pista - talvez muito estreita - a do historiador do pensarnento't'". É a possibilidade dessa "pista estreita" que alimentará o debate sempre vivo entre Foucault e os historiadores e que motivará uma colaboração ocasional com alguns dentre eles (desde o grupo de historiadores que trabalhou no dossiê Pierre Riviere, até Arlette Farge e Michelle Perrot). ***0 tema da história como interrogação sobre as transformações e sobre os acontecimentos está estreitamente ligado àquele da atualidade. e a história não é memória, mas genealogia, então a análise histórica não é, na verdade, senão a condição de possibilidade de uma ontologia crítica do presente. Essa posição deve, entretanto, evitar dois obstáculos - que correspondem, de fato, às duas grandes objeções que foram feitas a Foucault durante sua vida, concernentes à sua relação com a história -: a utilização de uma busca histórica não implica uma "ideologia do retorno" (Foucault não se ocupa da ética greco-romana a fim de dar um "modelo a seguir" que se trataria de atualizar),mas 82 Verité, pouvoir e soi. In: Tecnhologies of the Self. A Seminar with M. Foucault. Massachusetts, U.P., 1988. [Tradução brasileira: Verdade, Poder e si mesmo. In: Ditos e Escritos, vol. V, p. 295].
  • 61. Michel Foucaull: conceilos essenciais 61 uma historicização de nosso próprio olhar apartir do que nós não somos mais; a história deve nos proteger de um "historicismo que invoca o passado para resolver os problemas do presente't'". É esse duplo problema que se reencontra nos textos que Foucault consagra, no fim de sua vida, à análise do texto "O que são as Luzes?", de Kant: trata- se de se defender, ao mesmo tempo, da acusação de apologia do passado e de relativismo histórico, o que Foucault faz em particular no debate - interrompido pela morte - com Haberrnas'". 83 Espace, savoir, pouvoir. Entretien avec P. Rabinow. In: Sky/ine, março de 1982. Retomado em Dits et Écrits, vol. 4, texto n° 310. 84 NT: As críticas formuladas por Habermas a Foucault estão expres as, principalmente em La modernité: un project inachevé (Critique 1981, p. 950-967) e em Une f1éche dans le coeur du temps présent (Critique, 1986, p. 794-9).
  • 62. 62 Judith Revel Loucura *0 tema da loucura está, certamente, no centro da Histôria da Loacura que Foucault publica em 1961: trata-se, com efeito, de analisar a maneira pela qual, no século ÀrvII, a cultura clássica rompeu com a representação medieval de uma loucura, ao mesmo tempo, circulante (a figura da "nau dos loucos'') e considerada como o lugar imaginário da passagem (do mundo ao trás-mundo, da vida à morte, do tangível ao segredo etc.). Ao contrário, a idade clássica define a loucura a partir de uma separação vertical entre a razão e a desrazão: ela a constirui, portanto, não mais como aquela zona indeterminada que daria acesso às forças do desconhecido (a loucura como um para além do saber, isto é, ao mesmo tempo, como ameaça e como fascinação), mas como o Outro da razão segundo o discurso da própria razão. A loucura como desrazão é a definição paradoxal de um espaço gerido pela razão no interior de seu próprio campo que ela reconhece como outro. **A narrativa dessa cisão fundadora de inclusão passa por um certo número de procedimentos e de instiruições que possuem uma história. O objetivo de Foucault nunca foi, entretanto, o de fazer a história do enclausuramento e do asilo, mas do discurso que constirui os loucos como objetos de saber - isto é, desse estranho laço entre razão e desrazão que autoriza a primeira a produzir um discurso de saber sobre a segunda. Trata-se, por conseqüência, de fazer antes de tudo a história de um poder: "o que estava implicado, antes de tudo, nessas relações de poder, era o direito absoluto da não-loucura sobre a loucura. Direito transcrito em termos de competência, exercendo-se sobre a ignorância, de bom senso, de acesso à realidade, corrigindo os erros (ilusões, alucinações, fantasmas), da normalidade, impondo-se à
  • 63. Michel Foucault: conceitos essenciais 63 desordem e ao desvio'". Esse triplo poder constitui a loucura como objeto de conhecimento, e é por essa razão que é preci o então fazer a história das modificações dos di cursos sobre a loucura: do grande enclausuramento - invenção de um lugar inclusivo da exclusão - à aparição de uma ciência médica da loucura (da "doença mental" à psiquiatria contemporânea), Foucault faz, na verdade, a genealogia de uma das faces possíveis dessa forma singular do poder-saber que é o conhecimento. Compreende-se então porque o discurso de Foucault foi rapidamente associado à antipsiquiatria de Laing e Cooper, de Basaglia, ou - mais tardiamente - ao .Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, isto é, aos discursos que criticam a ligação entre conhecimento/ assujeitamento na prática psiquiátrica: "É possível que a produção da verdade da loucura possa se efetuar em formas que não sejam as de relação de conhecimentoê't'". A leitura da história da loucura como hi tória da constituição do poder-saber impulsiona Foucault a utilizar a figura do asilo como paradigma geral da análise das relações de poder na sociedade até o começo dos anos 70. A passagem para uma outra formulação do poder permite então compreender o abandono relativo do tema da loucura em proveito do tema mais geral da medicalização (o controle como medicina social): não somente porque no momento em que o enclausuramento não dava a ver senão o paradoxo de um conhecimento que joga contemporaneamente com a exclusão (espacial) e com a inclusão (discursiva), a figura do hospital permite integrar a maneira pela qual, a partir do começo do século XIX, o poder pas a a gerir a vida (sob a forma de biopoderes); mas também porque Foucault abandona uma concepção puramente 8~ Le pouvoir psychiatrique. In: Annuaire du Collêge de France. Chaire d'histoire des syst êmes de pensée . année 1973-1974. [Tradução brasileira: O poder psiquiátrico. In: Resumo dos Cursos do Collêge de France (/970-/982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 561. 86 Le pouvoir psychiatrique, op. cit. nota 85.