2. SRLMR TRNNUS
MUCHRll
LEITURAS
CI~G
FILOSÓFICAS
Aristóteles e o logos, Barbara Cassil1
Aristóteles no século XX, Enrico Berti
Da nahneza, José Gabriel dos Santos
Diálogos com a cultura contemporânea, W.M
Eric Weil e a compreensão do nosso tempo, Marcelo Perine
Filosofia a partir de seus problemas (A), 2" ed.,
Mario Ariei González Porta
Filosofia da ciência - introdução ao jogo e a suas regras, 8" ed.,
Rubem Alves
Filosofia da natureza (A), Jacques Maritail1
Foucault, simplemente - textos rennidos, Salma TamJUs Mucllail
Metáfora viva (A), Paul Ricoeur
1ovilllento sofista (O), G. B. K.erferd
l'iilismo (O), Franco Volpi
Ofício do filósofo estóico (O), RacheI Gazolla
Ordem do discurso (A), 10" cd., Michell''oucault
Para não ler ingenuamente uma tragédia grega, Rachei GazoUa
Quc é a filosofia antiga? (O), Pierre Hadot
Razõcs dc Aristóteles (As), 2" ed., Enrico Berti
Saber dos antigos - terapia para os tempos atuais, 2.' ed.,
FOUCRULT,
SIMPLESMENTE
·~2xtQS :-eL:f"":id:i5
Giovallni Reale
Sete lições sobre o ser, 2" ed, Jacques Maritain
Sobre O político de Platão, Comeljus Castoriadjs
Sócrates ou o despertar da consciência, fean-Toel Duhot
Tempo e razão - 1.600 anos das confissões de Agostinho,
Carlos Arthur A. Nascimel1to
Transformação da filosofia, vol. 1, Karl-Otto Apel
Transformação clJ filosofia, vol. 2, Karl-Otto Apel
Vontadc de crer (A), William James
PUCRS/BCE
1111111111111111111111
0.968.999-2
4. OEMOCRRCIA COMO PRÁTICA
Rlgumas reflexões a partir de Mich~1 Foucault
e Cornelius Castoriadis ...
..................... 109
o •••••••••••••
..... COMO NA OALA DO MAR. UM AOSTO DE AAEIA··
Notas sobre maio de 68 .. .......... .....
RPRESENTRÇÃO
115
MICHEL FOUCAULT E O DILACERAMENTO DO AUTOA ........... 123
BIBLlOGAAFIA
........... 133
o pensamento de Michel Foucaulr é um pensamento
plural.
Também seus escritos têm a marca da diversidade de temas e de
abordagens. Percorrê-los exige uma dedicação cuidadosa para
que se possa enfrentar esta diversidade e, ao mesmo tempo, dar
conta de sua inventividade e de sua densidade conceitual. Por
outro lado, ao percorrê-los, o próprio pensamento é instigado a
tornar-se múltiplo e igualmente afinado com a inventividade e
o rigor. Os textos reunidos neste livro exprimem esse caráter.
Em sua maioria são conferências, artigos e capítulos de livros já
publicados. Como reunião de textos dispersos, o livro comporta suas próprias diversidades, não deixando de formar, no entanto, uma unidade dotada de significado.
Relativamente às diversidades, trata-se, em primeiro lugar,
de um livro escrito em diferentes momentos. Os textos que o
compõem expressam a marca temporal dos momentos em que
foram produzidos, revelada por vezes na eleição dos Çlbjetos
tratados e, por outras, na contextualização das análises. Também os temas discutidos são diversos. À semelhança dos escritos de Foucault, a abordagem de temas como o ensino, a cultura, o poder, a história, a loucura, as instituições, a democracia,
a filosofia, não permite que se determine, para este livro, a preapresentação
! 7
5. sença de um único objeto. Por fim, o caráter dos textos é igualmente diverso. Alguns possuem um sentido mais geral, pois,
tratando de métodos, periodizações e problemas centrais dos
escritos de Foucault, servem de iniciação à sua leitura. Outros,
mais específicos, realizam análises detidas sobre temas precisos, favorecendo a compreensão de um pensamento tão profundo e complexo quanto instigante.
A unidade de significado do livro, por sua vez, deve-se à
natureza dos textos que o constituem. Resultado de uma leitura e de uma análise detidas dos escritos de Michel Foucault,
este livro tem sua índole vinculada ao ensino. Todos os textos
nele reunidos ou nasceram de aulas ministradas por sua autora
ou destinavam-se a prepará-las. Talvez por este motivo sejam
tão didáticos, pois na medida em que discutem diferentes aspectos do pensamento de Foucault, acima de tudo, esclarecem
o leitor a seu respeito.
Desse modo, aos leitores deste livro diverso, escrito em
muitos tempos, desdobrado em muitos temas, será possível
apreender um pensamento que tem muito a dizer ao nosso presente. Assim como dizer Foucaul~ simplesmente implica tantas
outras coisas - como a pluralidade do pensamento, a diversificação das abordagens, a profundidade das análises -, a leitura
desta simples reunião de textos tem muito a nos propor e ensinar.
Márcio Alves da Fonseca
Professor do Departamento de Filosofia da PUC/SP
A TRAJETÓRIA DE
MICHEL FOUCAULr
Mas o que é filosofar hoje em dia (... ) senão o trabalho critico do
pensamento sobre o pensamento? Senão (... ) tentar saber de que
maneira e até onde seria possível pensar diferentemente
em vez de leptimar o que já se sabe?
M. FOUCAULT, O uso dos prazeres, 13.
A trajetória intelectual de Michel Foucault (1926-1984)
pode ser inscrita entre 1961, quando saiu seu primeiro grande
livro, e 1984, com seus últimos livros publicados. Os estudiosos de Foucault, como também ele próprio, reconhecem, com
certo consenso, uma repartição possível dessa trajetória em três
momentos. O primeiro, conhecido como período da "arqueologia", é voltado principalmente para questões relativas à constituição dos saberes e inclui os principais livros publicados na
década de 1960: A história da loucura (1961), O nascimento da clínica (1963), As palavras e as coisas (1966) e A arqueologia do saber
(1969). O segundo mamemo, conhecido como períodó da "ge* Este texto é uma versão modificada de aula ministrada no curso
"Michel Foucault - Razão e Desrazão", na Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais em abril de1991. Foi publicado na Revista Extensão, Belo
Horizonte, PUC/MG, v. 2, n. 1, fev. 1992.
8 I Foucault. simplesmente
a trajetória de Michel Foucault
I 9
6. nealogia", é centrado sobre questões relativas aos mecanismos
do poder e inclui os principais livros da década de 1970: Vigiar
e punir (1975) e o volume I da História da sexualidade, intitulado
A vontade de saber (1976). O terceiro momento trata de questões
relativas à constituição do sujeito ético e inclui os volumes II e
III da História da sexualidade, intitulados, respectivamente, O uso
dos prazeres e O cuidado de si (1984(
Tomando esta repartição como ponto de partida e roteiro,
centrada na descrição dos discursos, não porém quaisquer discursos, mas aqueles considerados científicos e, mais particularmente, os das chamadas ciências humanas ("o saber que se deu
por domínio este curioso objeto que é o homem").
Observe-se que esta descrição histórica dos discursos não é
feita nem à maneira do "comentário", nem ao modo de uma
análise lingüística. O comentário é uma espécie de discurso segundo a duplicar o discurso comentado, buscando fazer surgir
temaremos esboçar os traços que caracterizam esses três momentos, assim como suas aproximações e diferenças. Com a
transcrição da seleção de passagens em que, a cada vez, o próprio Foucault declara suas preocupações e seus propósitos, faremos iniciar a abordagem de cada um desses momentos.
alguma verdade implícita no dito explícito do discurso primeiro. Supõe, por um lado, alguma origem mais remota a ser reencontrada e um sentido oculto a ser decifrado; e supõe, por outro lado, que esta origem e este sentido - mais essencial e, ao
mesmo tempo, mudo - de algum modo atravessam o sentido
explícito, nele dormitam, a fim de que possam ser trazidos à luz
pelo comentário. Supõe, pois, um conteúdo de significações
"já-dito" e, simultaneamente, "jamais-dito"3. Nas análises de
Foucault, ao contrário, os discursos são tomados em sua positividade, como "fatos", e trata-se de buscar não sua origem ou
seu sentido secreto, mas as condições de sua emergência, as
regras que presidem seu surgimento, seu funcionamento, suas
mudanças, seu desaparecimento, em determinada época, assim
como as novas regras que presidem a formação de novos discursos em outra época. A análise lingüística, por sua vez, diz
respeito à língua como sistema formal que rege a formulação
tanto de enunciados efetivamente realizados como a dos que,
em tese e em número infinito, poderiam vir a ser constituídos.
Já a descrição foucaultiana dos fatos discursivos se limita a enunciados já formulados que compõem as formações discursivas, e
quer estabelecer não as regras formais de sua inteligibilidade,
mas o jogo de regras que define as condições de possibilidade
do aparecimento, das transformações e do desaparecimento
•••
Em texto de 1968, assim descrevia Foucault os propósitos
de suas primeiras investigações: "determinar, nas suas dimensões diversas, o que deve ter sido na Europa, desde o século
XVII, o modo de existência dos discursos e singularmente dos
discursos científicos (... ) para que se constitua o saber que é
nosso hoje e, de maneira mais precisa, o saber que se deu por
domínio este curioso objeto que é o homem,,2.
O primeiro momento de seus escritos tem, portanto, um
enfoque explicitamente histórico ("na Europa, desde o século
XVII" ... até "o saber que é nosso hoje") e a preocupação está
1. A este conjunco devem ser acrescencadas ainda duas situações ocorridas após a morte de Foucault: a publicação, em 1994, dos Dits et écrits (são
quatro volumosos livros que reúnem textos dispersos, conferências, artigos,
aulas etc. que Foucault produzir~ e realizara em diversos países), e, ainda
mais recencemence, a gradativa edição dos cursos que Foucault ministrou no
Collêge de France entre os anos 1970 e 1984 (foram ministrados treze cursos),
cuja publicação foi iniciada em 1997.
2. FOUCAULT, M., "Resposta a uma Questão", Revista Tempo Brasileiro, 28
(Epistemologia), trad. de M. da Glória R da Silva, Rio de Janeiro, jan/mar,
1972.79.
10 I Foucault, simplesmente
3. Cf. FOUCAULT, M., "Resposta ao Círculo de Epistemologia", in Estruturalismo e Teoria da Linguagem, trad. Luís Felipe Baeta Neves, Petrópolis, Vozes,
1971, 21; ver também L'Archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969, 36.
a trajetória de Michel Foucault
! 11
7. de tais ou quais discursos, e não de outros, numa época dada e
numa dada sociedade, jogo este que é, portanto, variável num
curso histórico marcado por diferenças e descontinuidades.
Pode-se chamar a esse "jogo de regras" de epistéme de uma época, seu a priori histórico, ou ainda o solo onde são constituídas
as formações discursivas historicamente realizadas e que compõem as diferentes configurações no espaço do saber. Assim é,
por exemplo, que em As palavras e as coisas as análises mostram
como na Europa dos séculos XVII e XVIII emergem determinadas formações discursivas que vão constituir a gramática geral,
a história natural e a análise das riquezas, enquanto no século
XIX vão surgir a filologia, a biologia e a economia, de que as
primeiras não são meras precursoras. Estabelecer esse jogo ou
conjunto de regras que, numa determinada época e para uma
determinada sociedade, autoriza o que é permitido dizer, como
se pode dizê-lo, quem pode dizê-lo, a que instituições isso se
vincula etc., enfim, o que deve ser reconhecido como verdadeiro
e o que deve ser excluído como desqualificável, eis o procedimento que Foucault chama de "arqueologia".
Mas não é, genericamente, de quaisquer discursos que
Foucault trata. Interessam-lhe os que constituem o campo do
saber considerado científico e, dentro dele, a região das chamadas
ciências humanas. Ele mesmo nos adverte de que a demarcação
desse donúnio é uma escolha de certo modo hipotética, "uma
primeira aproximação" ou "um primeiro esboço,,4. Trata-se de
uma circunscrição relativa, e duplamente relativa. Por um lado,
a demarcação do domínio não limita o ãmbito de aplicabilidade
da arqueologia que poderia, em tese, ser usada em outros campos
do saber. Por outro, essa de~arcação não pretende definir, salvaguardar ou confirmar os contornos do próprio domínio escolhido; pelo contrário, o campo do saber assim assumido como obje4. FOUCAULT, M., "Resposta ao Círculo de Epistemologia", in Estruturalismo e Teoria da Linguagem, 27; ver também L'Archéologie du savoir, 43.
12 I Foucault. simolesmente
to de investigação pode precisamente esfacelar-se sob o efeito da
própria análise. "Nada me prova", diz Foucault, "que os reencontrarei (esses domínios do saber eleitos como área de investigação)
ao termo da anãlise, nem que descobrirei o princípio de sua delimitação e de sua individualização. Do mesmO modo, nada me
prova que tal descrição poderá dar conta da cienrificidade (ou da
não-cientificidade) desses conjuntos discursivos que assumi como
ponto de ataque e que apresentam todos, no início, certa presunção de racionalidade científica"s A escolha do domínio, portanto, nem limita o método nem delimita o próprio domínio
escolhido. Trata-se tão-somente de "um privilégio de partida,,6.
•••
E contudo é um privilégio. Será nos escritos posteriores
que se tornarão mais claros os motivos de semelhante eleição.
Em uma passagem de 1976, a respeito dos escritos do segundo
momento de sua trajetória, Foucault assim declarava: "O que
tentei investigar, de 1970 até agora, grosso modo, foi o como do
poder; tentei discernir os mecanismos existentes entre dois pontos de referência, dois limites: por um lado, as regras de direito
que delimitam formalmente o poder e, por outro, oS efeitos de
verdade que este poder produz, transmite e que por sua vez
reproduzem-no,,7.
Ora, é a investigação sobre os discursos científicos - e entre
eles sobre "os que têm por domínio este curioso objeto que é o
homem" - que melhor lhe permite trazer à tona "os mecanismos existentes" entre exercícios de poder e produção de saberes reconhecidos como verdadeiros. Com efeito, são regiões do
L'Archéologie du savoir, 53-54.
"Resposta ao Círculo de Epistemologia", in Estruturalismo e Teoria da Linguagem, 27; ver também L'Archéologie du savoir, 43.
7. FOUCAULT, M., "Soberania e disciplina", in Microfísica do poder,
trad. Maria Teresa de Oliveira e Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal,
1979,179.
5. FOUCAULT, M.,
6. FOUCAULT, M.,
a trajetória de Michel Foucault
I 13
8. saber cujo terreno é mais movediço, mais claramente aberto a
combates e cuja história, por isso mesmo, pode ter mais "eficácia política"8.
Trata-se, agora, de evidenciar as articulações entre saber e
poder, mediados, por assim dizer, pelo que podemos chamar
de modos de produção da verdade. Por "verdade" deve-se
entender não "o conjunto de coisas verdadeiras a descobrir ou
a fazer aceitar", mas "o conjunto de regras segundo as quais se
distingu~ o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder"9. E, assim como a "verdade" de que se
trata não é nenhuma essência universal, mas "regras" historicamente diferenciáveis, também o poder não deve ser compreendido como uma "idéia" ou uma "identidade teórica", mas como
exercício, como prática, que só existe em sua "concretude", multifacetado e cotidiano 10.
Ora, compreende-se que é sobre os discursos científicos, e,
particularmente sobre os das ciências humanas, que vai incidir
a investigação, uma vez que, se toda sociedade tem seu regime
de verdade com efeitos de poder, em nossa sociedade a produção da verdade é regulamentada por regras que autorizam a
eleição dos discursos reconhecidos como científicos e a conseqüente exclusão de outros saberes, que qualificam os objetos
dignos de saber, os sujeitos aptos a produzi-los, as instituições
apropriadas, e cujos efeitos de poder, particularmente no caso
das ciências humanas, são sobretudo disciplinar e normalizar.
Nesse momento de seus escritos, Foucault amplia o âmbito das análises: de análises quase sempre mais preocupadas com
discursos ou interdiscursos, passa a priorizar seu cruzamento
"Sobre a geografia", in Microfisica do poder, 154.
M., "Verdade e poder", in Microfisica do poder, 13.
10. Ver, a este respeito, por exemplo, em Microftsica do poder:. "Introdução" (de R. Machado), XVI; "Verdade e poder", 6; "Os Intelectuais e o poder",
75-76; "Poder-Corpo", 149; "Genealogia e poder", 175; "Soberania e disciplina", 183-185; "O olho do poder", 221; "Sobre a história da sexualidade", 251.
8. FOVCAULT, M.,
9. FOUCAULT,
III I Foucault. Simplesmente
com a trama das instituições e práticas sociais, como faz principalmente em sua história do nascimento das prisões (Vigiar e
punir). Abandona, praticamente, a noção de epistéme pela noção
mais complexa de "dispositivo estratégico", entendendo-se que,
enquanto a epistéme é também um dispositivo - ou, antes, um
elemento prioritariamente discursivo do dispositivo -, o dispositivo, prioritariamente de natureza estratégica, envolve articulações entre elementos heterogêneos, discursivos e extradiscursivos, tais como práticas jurídicas, projetos arquitetônicos,
instituições sociais diversas. Quando Foucault passa a explicitar esse momento de sua investigação, passa também a definilo menos como "arqueologia", para denominá-lo "genealogia".
Assim, arqueologia e genealogia se distinguem ao mesmo
tempo em que guardam, de certo modo, a mesma natureza e o
mesmo teor. Mais de uma vez Foucault afirma que os propósitos explícitos nos escritos da fase genealógica já estavam presentes, mas não percebidos, nos primeiros escritos. Mas adverte
também que uma mudança ocorreu na condução das análises.
"Enquanto a arqueologia", escreve ele, "é o método para a análise da discursividade local, a genealogia é a tática que, a partir
da discursividade local assim descrita, ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta discursividade"l1. Poder-seia dizer que a arqueologia é como englobada e ampliada na
genealogia e que, enquanto a arqueologia efetua uma análise
descritiva veiculando uma denúncia, a genealogia constrói uma
política de resistência e de luta. A denominação "genealogia"
será mantida por Foucault ao referir-se ao terceiro e último
momento de sua trajetória. Mas com outras transformações.
***
Em entrevista concedida pouco antes de sua morte, assim
se exprimiu Foucault a respeito de seus últimos escritos: "Ten11. FOUCAULT, M.,
"Genealogia e poder", in Microftsica do Poder, 172.
a trajeto ria de Michel Foucault
I
15
9. to responder a um problema 'preciso: nascimento de uma moral, de uma moral enquanto reflexão sobre a sexualidade, sobre
o desejo, o prazer,,12.
Entre a publicação do volume I da História da sexualidade A vontade de saber (1976) - e a dos volumes II e 1II - O uso dos
prazeres e O cuidado de si (1984) - passaram-se oito anos. Neste
intervalo, Foucault alterou radicalmente o plano inicial previsto para a obra. Uma mudança importante ocorreu relativamente ao período histórico estudado. Como nos livros anteriores,
continua a fazer filosofia fazendo pesquisa histórica. Mas agora a cronologia é outra. Até então as histórias que escrevera
atravessavam, quase sempre, um percurso que ia desde o final
do Renascimento (por volta do século XVI) até a nossa Modernidade (séculos XIX e XX), com realce para a chamada Idade
Clãssica (séculos XVII e XVIII), buscando trazer à luz as transformações que marcaram a passagem do Renascimento à Idade
Clássica e, principalmente, as que assinalaram a passagem do
final da Idade Clãssica à Modernidade, na direção, pois, de compreender nosso presente. O projeto inicial da História da sexualidade anunciava um percurso histórico semelhante. Porém,
como reconhece o próprio Foucault, a pergunta que ele então
se colocou - "Por que tínhamos feito da sexualidade uma experiência moral?" - levou-o a procurar mais "atrás" pelo "nascimento de uma moral", detendo-se então na Antiguidade grega
e greco-romana, nos últimos séculos antes de Cristo e nos primeiros séculos da era cristã 13 .
12. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier- últimas entrevis·
tas, org. de C. H. ESCOBAR, trad. Ana Maria de A Lima e M. da Glória R da
Silva, Rio de Janeiro, Taurus, 1984, 75.
13. Cf. BARBEDEITE, G. eSCALA, A., "O retorno da moral", in O Dossierúltimas entrevistas, 136; R BELLOUR, "Um devaneio moral", in O Dossier - últi·
mas entrevistas, 86; FOUCAULT, M., História da sexualidade, voI. 11, O uso dos prazeres, trad. M. T. da Costa Albuquerque, Rio de Janeiro, Graal, 1984, "Introdução", 16.
16 I Foucault. simplesmente
A alteração na cronologia foi acompanhada por mudanças
teóricas e deslocamentos de temas. Agora, o foco das investigações será o sujeito, não porém como aquele "curioso objeto" de
um domínio de saber, mas como sujeito ético, indivíduo que se
constitui a si mesmo, tomando então a relação a si e aos outros, enquanto "sujeito do desejo"14, como espaço de referência.
Nesse enfoque, a perspectiva que ele privilegia não é a dos
códigos morais, jurídicos ou religiosos, ou a das leis definidoras do que é permitido ou interditado, mas a da conduta, do
modo de comportar-se ou das posições em face de códigos e
leis, daquilo, enfim, que Foucault chama de "práticas de si",
"técnicas da vida", "artes da existência"ls.
Ao privilegiar essa perspectiva, a investigação permite melhor aproximar dados da Antiguidade de problemas de nossa
atualidade, mantendo, assim, a característica da genealogia de
compreender o presente. A este propósito, eis algumas observações de Foucaulr: "O que me impressionou é que na ética grega
as pessoas se preocupavam com sua conduta moral, sua ética,
suas ligações com elas próprias e com os outros muito mais do
que com problemas religiosos (... ). A segunda observação é que
a ética não estava relacionada a nenhum sistema social - ou
pelo menos legal-institucional (... ). O terceiro ponto a observar
é que o que os preocupava, seu tema, era constituir um tipo de
ética que era uma estética da existência". E as aproximações
que em seguida faz: ''(. .. ) eu me pergunto se nosso problema
atualmente não é, de certa maneira, semelhante a este, desde
que a maioria de nós já não acredita que a ética esteja fundada
na religião, e nem quer um sistema legal que interfira na nossa
moral pessoal, privada (... ). Estou interessado nessa semelhança
de problemas"16.
14. Cf. FOUCAULT, M., O uso do prazeres, "Introdução", 10-11.
15. Cf. ibid., 15.
16. DREYFUS, H. L. e RABINOW, P., "Sobre a genealogia da ética: uma
visão do trabalho em andamento", in O Dossier - últimas entrevistas, 43-44.
a traietória de Michel Foucault
I 17
10. Mudanças, pois, na cronologia, nos temas, na visão teórica,
que o próprio Foucault faz questão de reconhecer. Aliás, ao primeiro tópico da "Introdução" de O uso dos prazeres dá o título
"Modificações". Em outra passagem realça essas diferenças, juntando sugestivamente as duas pontas de sua trajetória, da História da loucura à História da sexualidade: "A propósito da loucura,
parti do 'problema' que ela podia constituir num certo contexto
social, político e epistemológico: o problema que a loucura colocava para os outros. Aqui, parti do problema que o comportamento sexual podia colocar aos próprios indivíduos (... ). Em um
caso, tratava-se em suma de saber como se 'governava' os loucos, agora como 'governar-se' a si próprio". E conclui apontando para aproximações: "São, em resumo, duas vias de acesso
inversas em direção a uma mesma questão: como se forma uma
'experiência' onde estão ligadas a relação a si e aos outros"l?
Com efeito, na passagem dos momentos anteriores ao último, as semelhanças também existem. E elas têm pelo menos
dois eixos comuns. Primeiro, há, em todos eles, um mesmo
propósito de base: escrever "a história das relações que o pensamento mantém com a verdade"18. Dito de outro modo, todos
os escritos são sustentados por uma mesma pergunta de fundo: "Através de quais jogos de verdade o homem se dá seu ser
próprio a pensar quando se percebe como louco (A história da
loucura), quando se olha como doente (O nascimento da clínica),
quando reflete sobre si como ser vivo, ser falante e ser trabalhador (As palavras e as coisas), quando se julga e se pune enquanto criminoso (Vigiar e punir)? Através de quais jogos de
verdade o ser humano se reconheceu como homem de desejo
(História da sexualidade)?"!'.
Um segundo eixo desses escritos está em certo ângulo a
partir do qual os temas são abordados. Todos eles se direcionam a "problematizações". Aliás, o segundo tópico da "Introdução" de O uso dos prazeres tem por título "As formas de problematização". Eis ainda uma passagem em que esse eixo comum
é explicitado: "Em A história da loucura a questão era saber como
e porque a loucura, num dado momento, foi problematizada
através de uma certa prática institucional e um certo aparelho
de conhecimento. Do mesmo modo, em Vigiar e punir, tratavase de analisar as mudanças na problematização das relações
entre delinqüência e castigo através de práticas penais e instituições penitenciárias no fim do século XVIII e no início do
século XIX. Agora, como se problematiza a atividade sexual?,,20.
Os dois eixos comuns, por sua vez ~ o propósito de fazer a
história das relações entre pensamento e verdade e o ângulo das
problematizações~, articulam-se entre si, já que por "problematização" deve-se entender "o conjunto de práticas discursivas ou
não-discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro
e do falso e a constitui como objeto para o pensamento JJ21 .
•••
A partir daqueles eixos de aproximação pode-se, finalmente, compreender a reunião dos três momentos da trajetória de
Foucault em um mesmo conjunto, sem contudo escamotear
suas diferenças: o primeiro momento interroga o que habitualmente se entende por "progresso do conhecimento", conduzindo à análise das práticas discursivas constitutivas dos saberes
reconhecidos como verdadeiros; o segundo interroga o que habitualmente se entende por "poder", conduzindo à análise dos
mecanismos de exercícios dos poderes relacionados à produção
de saberes; o terceiro momento interroga o que habitualmente
17. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier - últimas entrevistas, 76.
18. Ibid., 75.
19. FOUCAULT, M., O uso dos prazeres, "Introdução", 12 (os títulos entre
parênteses foram acrescentados por nós).
20. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier- últimas entrevistas, 76.
21. Ibid., 76.
18 ! Foucault. simplesmente
a trajetória de Michel Foucault
l
I 19
11. se entende por "sujeito", conduzindo à análise da "constituição
de si mesmo como sujeito"22. Ou pode-se, inversamente, enumerar os momentos dessa trajetória acent~ando as diferenças
sem necessariamente perder suas conjunções: trata-se, como
indica um estudioso de Foucault, de três campos ou continentes
de reflexão, um mais marcadamente epistemológico, outro político, outro étic023 ; ou trata-se, como se exprime o mesmo Foucault, de três ordens de problemas, "o da verdade, o do poder e
o da conduta individual"24.
De todo modo, a reconstituição da trajetória desse pensamento, quer se lhe acentuem os momentos, quer se lhe realce o
conjunto, faz nela perceber a presença daqueles traços com que
Foucault desenha o perfil, hoje, do intelectual e que, em certas
passagens, ele descreve como exigências, por exemplo, assim
expressas: "Conseguir pensar algo que não seja o que se pensava antes,,25; "ser capaz permanentemente de se desprender de si
mesmo"26; "pensar diferentemente do que se pensa e perceber
diferentemente do que se vê,,27.
Semelhanças e dessemelhanças, aproximações e diferenças
compõem assim um tipo de pensamento - a que se pode chamar filosofia - que duvida do estabelecido, que abala o habitual e que, por isso mesmo, expõe a si próprio à mobilidade e
dispõe-se constantemente a se recompor.
22. Cf. FOUCAULT, M., O uso dos prazeres, "Introdução", 11.
23. Cf. EWALD, F., "Michel Foucault", in O Dossier - últimas entrevistas, 71.
24. BARBEDElTE, G. eSCALA, A., "O retorno da moral", in O Dossierúltimas entrevistas, 129.
25. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier- últimas entrevistas, 74.
26. Ibid., 81.
27. FOUCAULT, M., O uso dos prazeres, "Introdução", 13.
20 I Foucault. simplesmente
11
A FILOSOFIA COMO
CRíTICA DA CULTURA
Filosofia e/ou história?*
A título de introdução, lembremos um conhecido problema
afrontado por Husserl e muitas vezes explorado por MerleauPonty. Poderia receber ele formulações diversas, todas elas, porém, contrapondo dois pólos ou dois termos: trata-se do antagonismo ou da correlação entre idéia e fato, ou entre essência e
experiência, ou ainda entre interioridade e exterioridade, ou mesmo entre subjetividade e objetividade, e que constituiria a base
do antagonismo ou da correlação entre o pensamento filosófico e a elaboração científica. Esta, como se sabe, é uma questão
a que Merleau-Ponty dedica vários textos nos quais trata particularmente das relações entre a filosofia e as ciências humanas.
Basta evocar, por exemplo, Le philosophe et la sociologie, Éloge de la
philosophie, Risumés de cours) como ainda os opúsculos Les sciences
de l'hommeet la phénoménologie e Le métaphysique dans l'homme. Ne* Este texto reproduz, com algumas alterações, comunicação apresentada no V Simpósio Nacional da Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas (SEAF), em Belo Horizonte, em novembro de 1981. Foi publicado em
Cadernos PUC, n. 13, São Paulo, EducfCortez, 1982. Posteriormente, foi
republicado com o acréscimo de "Discussão" em Epistemologia das Ciências
Sociais, (FAVARETIO, C. F., BOGus, L. N., VERAS, M. B. orgs.), Série Cadernos
pue, n. 19, São Paulo, Educ, 1984.
a filosofia como critica da cultura
I 21
12. les, o autot aborda aquela questão do ângulo das relações entre,
por um lado, a filosofia e, por outro, a psicologia, as ciências da
linguagem, a história, a sociologia. Em quase todos esses ensaios, retoma a questão desde onde Husserl a tinha levantado e
a conduz na direção da superação do impasse. Interessa-nos, para
introduzir nosso estudo, resumir alguns aspectos de sua posição a respeito da filosofia e da história. Primeiramente, Merleau-Ponty rejeita certas alternativas que confundem ou falseiam
O conceito de história e que fazem da filosofia e da história "tradições rivais"l. Não há que escolher, por exemplo, entre uma
filosofia que postula uma consciência fora do tempo, "desligada de todo interesse pelo fato", e as '''filosofias da história', que,
ao contrário, inserem no curso das coisas uma lógica oculta",
como que a predeterminá-I02 • Alternativas deste teor podem incorporar seja uma "ilusão retrospectiva", projetando as categorias de hoje na leitura do passado, seja uma "ilusão prospectiva", reduzindo os fatos à imediatez de seu presente sem qualquer abertura para o futur0 3 • Ademais, pressupõem isolados
entre si "o fato e o homem interior", "a história e o intemporal,,4, elegendo, numa verdadeira "guerra fria", ou bem o "mito
da filosofia" ou bem a "idolatria da objetividade"5. Em contrapartida, Merleau-Ponry afirmará que é precisamente pela nossa
inerência a uma determinada situação, pela nossa inserção numa
cultura particular, que podemos realizar o movimento de comL MERLEAu-PONTY, M.) Éloge de la philosophie, in Éloge de la philosophie et
autres essais. Paris, Gallimard, 1960, 56. A idéia da "rivalidade" aparece igualmente em outros textos. Por exemplo, em "Le métaphysique dans l'homme",
in Sens et non-sens, Paris, Nagel, 1965, 171; ou em "Le philosophe et la sociologie", in Éloge de la philosophie et au"tres essais, 112.
2. MERLEAU-PONIT, M., "Máteriaux pour une théorie de l'histoire", in
Résumés de cours (ColJege de France), Paris, Gallimard, 1968,43.
3. Ibid., 45.
4. Ibid., 43.
5. Cf MERLEAU-PONTY, M., "Le philosophe et la sociologie", in Éloge.
113-114; "Le métaphysique dans l'homme", in Sensetnon-sens, 160.
22 I Foucault, simplesmente
preensão de outras situações e de outras formações culturais. Se
nossa particularidade nos limita é também, paradoxalmente, o
único meio de acesso à compreensão de outras situações particulares com as quais podemos nos comunicar enquanto variantes da nossa6• Ou seja, é nossa experiência de sujeitos situados,
pela qual vivenciamos uma "co-existência histórica"?, que impede, por um lado, a submissão da história à força de uma lógica
todo-poderosa e atemporal e, por outro, a sua redução a uma
reunião de fatos circunstanciais e sem significação. Nessa medida, história e filosofia serão não apenas solidárias, mas ainda
mutuamente indispensáveis. Uma história que se estreitasse a
um relato empírico dos fatos sem buscar compreender-lhes a
significação através do concurso da filosofia "não saberia, literalmente, do que ela fala", assim como uma filosofia que sobrevoasse os fatos "só desembocaria em verdades formais, isto é,
em erros"s. Assim, se para Merleau-Poncy só "haverá história na
medida em que houver uma lógica na contingência, uma razão
na desrazão"9, pode-se completar que só haverá filosofia se os
sentidos ou as verdades que ela busca forem procurados no seio
do devir, na trama histórica dos acontecimentos.
Merleau-Ponty atribuía assim certa inerência entre o trabalho do historiador e o do filósofo. Não foi, é claro, a primeira
nem a última vez que um pensador travou relações entre filosofia e história. Mas a peculiaridade está, cremos, em que neste
caso as relações não são tão sistemáticas a ponto de conduzir
finalmente à anulação de uma sob o jugo da outra; e sobretudo
6. Cf MERLEAU-PONTY, M., "Le philosophe et la sociologie", in Éloge
137; "Le métaphysique dans l'homme", in Sens et non-sens, 162; Ciências do
homem e fenomenologia, trad. S. T. Muchail, São Paulo, Saraiva, 1973,61.
7. MERLEAU-PONTY, M., Ciências do homem e fenomenologia, 69.
8. MERLEAU-PONTY, M., "Le métaphysique dans l'homme", in Sens et nonsens, 171.
9. MERLEAU-PONTY, M., "Matériaux pour une théorie de l'histoire", in
Résumés des Cours, 46.
a filosofia como critica da cultura
I 23
13. nem tão precisas que desfaçam certa ambigüidade a atravessar,
na prática, o intercâmbio entre ambas. Ora, a nosso ver, é essa
certa ambigüidade que, além de marcar uma postura fortemente anti dogmática, parece abrir espaço para a possibilidade da
eventual reunião das duas atividades numa mesma prática. E é
essa a prática que, ao que parece, é executada nos escritos his-
tórico-filosóficos de Michel Foucault.
A partir destas considerações iniciais, tentemos ver como o
próprio Foucault compreende seu trabalho enquanto filosofia e
enquanto história e, em seguida, em que sentido se poderia dizer que algo como uma crítica da cultura permeia esse trabalho.
É sempre difícil tentar encaixar os escritos de Michel Foucault em classificações estabelecidas do saber, buscando desenhar seus traços eventualmente inalteráveis ou circunscrever
características invariáveis. Questões dessa ordem são amplamente discutidas por estudiosos de Foucault. Não nos importa
aqui reproduzi-las, mas acentuar o lado francamente positivo
dessa "resistência" à classificação. É que esses e~ritos assumem
um caráter por assim dizer flutuante, que atesta uma evasão
sadia em relação a todo dogmatismo. Podemos dizer que Poucault escreve com segurança sobre suas próprias incertezas e
toda vez que aborda o trajeto de sua produção é pata questionálo. Já no final da "Introdução" de A arqueologia do saber escrevera
ele: "Não me perguntem quem sou e não me digam para permanecer o mesmo: isso é moral de estado civil; ela rege nossos
papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever"lO. E
num debate a propósito do primeiro volume da História da sexualidade, depois de a ele referir-se como um "livro-programa
tipo queijo gruyere, cheio de buracos para que neles possamos
nos alojar", escreve: "Não quis dizer - 'Eis o que penso', pois
ainda não estou muito seguro quanto ao que formulei (... ). O
que existe de incerto no que escrevi é certamente incerto (... ). E
10 FOUCAULT, M., L'Archélogie du savoir, Paris, Gallimard, 1969,28.
2'-1
j Foucault, Simplesmente
não estou certo quanto ao que escreverei nos próximos volumes"; chama-o de "discurso hipotético" e, mais de uma vez, de
"jogo"ll. Em outras passagens afirma o caráter parcial e ziguezagueante de suas investigações 12 . Noutra ainda, justifica ter
gostado de determinada entrevista pelo fato de ter mudado de
opinião "entre o começo e o fim,,13. Salvaguardadas estas observações, não será porém artificioso afirmar que os escritos de
Poucault têm a ver com a história e têm a ver com a filosofia.
Ele próprio parece situar a si mesmo em ambas. Não são poucas as vezes em que se refere a seu trabalho de historiador.
Quando, por exemplo, rejeitando ao intelectual o papel de "conselheiro" na militância política e designando-lhe, ao contrário,
a função mais modesta de "fornecer os instrumentos de análise", conclui dizendo ser "este, hoje, essencialmente, o papel do
historiador"14. Por outro lado, quando, durante uma entrevista, após a observação de que "em muitos momentos você se
definiu como historiador", lhe é perguntado por que 'historiador' e não 'filósofo"', sua resposta indica que a questão da filosofia hoje não deixa de ser igualmente uma questão de história:
"é a questão deste presente que é o que somos,,15. Noutra ocasião, já mais claramente afirmará: "E mesmo que eu diga que
não sou filósofo, se for da verdade que me ocupo, eu sou apesar
de tudo filósofo", realçando porém que a questão da verdade
que ele coloca é a de perscrutar "qual é sua história, quais são
seus efeitos, como isso se entrelaça com as relações de poderJJ16 .
Ou ainda, ao referir-se às mudanças ocorridas desde algum tem11 FOUCAULT, M., "Sobre a História da sexualidade", in Microfisica do
poder, incrod. e org. de Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal, 19'(9, 243.
Ver também 259.
12 Cf. FOUCAULT, M., "Soberania e disciplina", in Microfisica do poder, 180.
13 FOUCAULT, M., "Sobre a geografia", in Microfisica do poder, 164.
14. FOUCAULT, M., "Poder.Corpo", in Microfisica do poder, 151.
15. FOUCAULT, M., "Não ao sexo rei", in Microfisica do poder, 239.
16. FOUCAULT, M., "Sobre a geografia", in Microfisica do poder, 156.
a filosofia como crítica da cultura
I
25
14. po na escrita da história, Foucault faz ver que a história do
Ocidente "não é dissociável da maneira pela qual a 'verdade' é
produzida e assinala seus efeitos", deixando claro que é seu
propósito fazer "a história da 'verdade' - do poder próprio aos
discursos aceitos como verdadeiros"!7.
Eis, pois, que filosofia e história se entrelaçam num mesmo
trabalho que se pretende história da produção da "verdade". Mas
que história e que verdade? Ou melhor, de que tipo de história
esse filósofo que se ocupa da verdade é hoje o historiador?
Afastemos, de início, os traços de uma história que Foucault não elabora. Já no Prefácio a O nascimento da clínica (1963)
aponta dois recursos tradicionais que rejeita e chama-os de "estético" e "psicológico". O primeiro consiste em descrever uma
história das idéias fundada em analogias estabelecidas pelo
historiador, quer no curso sucessivo do tempo (buscando detectar "gêneses, filiações, parentescos, influências"), quer no
âmbito interno de uma época (buscando captar seu espírito,
sua Weltanschauung etc.). O segundo consiste em buscar "interpretar" os fatos no sentido de encontrar como que por detrás
deles suas razões mais secretas, uma lógica escondida, como se
os fatos fossem sempre uma espécie de "alegoria" a dizer outra
coisa que não eles próprios!8. É basicamente a esses mesmos
recursos que também se refere noutro texto, quando recusa a
elaboração da história tanto por um método que procede pelo
"recurso histórico-transcendental" (isto é, que quer encontrar,
por meio de todo acontecimento, de toda manifestação histórica, as linhas de sua origem, apontando assim em direção a
um horizonte sempre longínquo e cada vez mais recuável) como
por um método que procede pelo "recurso empírico ou psicológico" (isto é, que quer "interpretar" as significações explícitas
dos fatos objetivando fazer falar, por meio deles, um "sentido
17.
18.
FOUCAULT,
FOUCAULT,
M., "Não ao sexo rei", in Microfúica do poder; 239-23l.
M., Naissance de la clinique, Paris, PUF, 1972, Préface, XIII.
26 I Foucault. simplesmente
oculto" de que supostamente estariam carregadosr 9 . Esses procedimentos têm em comum o uso da técnica que lhes é apropriada, a saber, o tratamento dos textos na forma de "comentários", capazes que seriam de trazer à luz a suposta origem e o
suposto segredo que o discurso explícito implicitamente conteria. Mais ainda, esses procedimentos cunham a história com a
marca unitária do contínuo e da sub}etividade. São próprios
às histórias "do espírito" e às histórias "globais". Com efeito,
uma "história do espírito" é precisamente aquela que, mediante a "decifração" dos textos, quer desvelar a "consciência", as
"intenções" ou o "espírito" que os teriam inspirado20 ; uma "história global" é precisamente aquela que, na dispersão dos fatos
e documentos, quer encontrar "vestígios" que permitam traçar
uma linha contínua, uma direção única, que expliquem, de modo uniforme e homogêneo, as multiplicidades e as transformações. Trata-se sempre, nesses casos, de histórias "evolutivas" ou
"progressivas", que não pensam as "diferenças" mas "as continuidades ininterruptas JJ2 ! de uma teleologia segura. Ainda mais,
assegurando a linearidade do progresso, essas histórias salvaguardam a unidade soberana do sujeito, "consciência histórica" que se constitui em núcleo unificador ou centro originário
capaz de reunir em si a explicação e, portanto, a dissolução da
heterogeneidade, da multiplicidade, da dispersão. Ao se salvar
a linha segura da continuidade histórica, de algum modo salvase ao mesmo tempo a consciência como seu eixo: "Querer fazer
da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciência humana o assunto originário de todo devi r e de toda prática
são as duas faces de um mesmo sistema de pensament,?JJ22.
19. Cf. FOUCAULT, M., "Resposta a uma questão", Tempo Brasileiro) 28,
Rio de Janeiro, 1972,59.
20. Ibid., 65.
21. FOUCAULT, M., L'Archélogie du savoir, 21.
22. Ibid., 22.
a filosofia como critica da cultura
I 27
15. Nem histórias do espírito, nem histórias globais, as histórias que Foucault escreve são, como ele mesmo as chama, "histórias gerais,,23 entendidas como descrição dos fatos em sua singularidade de acontecimentos, em suas correlações, em suas
transformações, em seus desaparecimentos; são histórias que,
no lugar de uma teleologia da continuidade e do progresso,
buscam antes "detectar a incidência das interrupções"24, de sorte que se antes a descontinuidade equivalia ao "impensável",
que por ser impensável devia ser suprimido e desintegrado mediante sua integração numa explicação continuísta, passa agora
a ser "um dos elementos fundamentais da análise histórica"25.
O deslocamento é explícito: "Uma descrição global encerra todos os fenômenos em torno de um centro único - princípio,
significação, espírito, visão do mundo, forma de conjunto; uma
história geral desdobraria, ao contrário, o espaço de uma dispersão"26. Concomitantemente, as histórias que Foucault escreve desfocam a categoria da consciência e se voltam para as análises dos discursos considerados quer em suas correlações internas, isto é, interdiscursivas, quer em suas relações com o extradiscursivo, isto é, com as práticas e as instituições sociais.
À prática desse procedimento Foucault chamou primeiramente "arqueologia" e posteriormente "genealogia". Sem dúvida, reporta a Nietzsche não só o termo "genealogia", como o
modo de seu uso. Nesse uso, contrapõe a genealogia compreendida como "história efetiva" (Wirkliche Historie) à história tradicional dos historiadores. Faz ver que esta última "reintroduz
(e supõe sempre) o ponto de vista supra-histórico: uma história
que reria por função recolher em uma totalidade bem fechada
sobre si mesma a diversidade, enfim reduzida, do tempo; uma
23. Cf. ibid., 17.
24. Ibid., I!.
25. FOVCAULT, M., "Réponse au Cercle d'épistémologie", Cahiers pour
l'analyse, 9, Paris, Seuil, 1968, 10.
26. FOUCAULT, M., L'Archéologie du savoir, 19.
28 I Foucault. Simplesmente
história que nos permitiria nos reconhecermos em toda parte e
dar a todos os deslocamentos passados a forma da reconciliação; uma história que lançaria sobre o que está atrás dela um
olhar de fim de mundo,m. A "história efetiva", ao contrário, a
genealogia, "reintroduz no devir tudo o que se tinha acreditado
imortal no homem"; reintroduz "o descontínuo em nosso próprio ser,,28. A história tradicional, em sua perseguição da origem
(Ursprung), considerando "acidentais todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces"29,
pretende recuar ao reencontro de uma identidade enfim desvelada, essência única e sempre a mesma. Para a genealogia, ao
contrário, não há por trás da trama histórica qualquer identidade pura de um sentido ou de uma essência; o que existe é precisamente a multiplicidade de fisionomias, como tantas máscaras sob as quais não há um rosto a ser desmascarado: "A genealogia é um carnaval organizado"30. Recolhamos estes traços da
história praticada por Foucault na seleção de algumas passagens em que ele explicita o perfil da genealogia. Primeiro, ela
recusa a identidade das origens e a segurança das teleologias: "A
genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profun-
da do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao
contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações
ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da
'origem"'31. Segundo, ela desvia o enfoque antropológico em
direção aos discursos que compõem os saberes: "É isto que eu
chamaria de genealogia, isto é, uma forma de história que
dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domí27.
FOUCAULT,
M., "Nietzsche, a genealogia e a história", in Microftsica do
poder, 26.
28. Ibid., 27.
29. Ibid., 17.
30. Ibid., 34. É interessante observar a freqüência no uso deste tipo de
metáfora: carnaval, máscara, bastidores, disfarce, cena, cenário, teatro, jogo etc.
31. Ibid., 16.
a filosofia como crítica da cultura
I 29
16. nios de objeto etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja ele
transcendente com relação ao campo de acontecimentos, seja
perseguindo sua identidade vazia ao longo da história"32. Terceiro, ela não está preocupada com o "progresso": "Tenho esta
precaução de método, este ceticismo radical mas sem agressividade que se dá por princípio não tomar o ponto em que nos
encontramos por final de um progresso que nos caberia reconstituir com precisão na história. Isto é, ter em relação a nós mesmos, a nosso presente, ao que somos, ao aqui e agora, este ceticismo que impede que se suponha que tudo isto é melhor ou
que é mais do que o passado (... ). E não digo que a humanidade
não progrida. Digo que considero um mau método colocar o
problema 'por que progredimos?'. O problema é 'como isto se
passa?'. E o que se passa agora não é forçosamente melhor, ou
mais elaborado, ou melhor elucidado do que o que se passou
antes,,33. Finalmente, despida de origens, teleologias, sujeito constituinte e progresso evolutivo, a genealogia descreve uma história marcada pela descontinuidade dos acontecimentos, entendendo-se por "acontecimento", "não uma decisão, um tratado,
um reino, ou uma batalha, mas uma relação de forças", forças
que "no jogo da história não obedecem nem a uma destinação,
nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta", acaso do jogo que
"não é simples sorteio", mas antes "risco sempre renovado (... )"34.
Mas a prática deste procedimento na escrita da história não
é também movida ao acaso de um capricho. Afinal, por que
tantas "inversões"? Com efeito, não se trata pura e simplesmente de efetuar substituições de algum modo arbitrárias: a continuidade pela descontinuidade, a uniformidade pela dispersão, a
linearidade pela diferença; nem de trocar o núcleo "consciência"
por outro chamado "discursos". Ao contrário, essa orientação
32. FOUCAULT, M., "Verdade e poder", in Microfisica do poder, 7.
33. FOUCAULT, M., "Sobre a prisão", in Microfisica do poder; 140.
34. FOUCAULT, M., "Nierzsche, a genealogia e a história", in Microfoica do
poder, 28.
30 ! Foucault. simplesmente
conferida ao entendimento e à escrita da história, longe de ser
inocente, funciona como uma "estratégia" porque calcada num
comprometimento crítico com pretensões a uma eficácia política. Ouçamo-lo mais uma vez: "Uma edição do Petit Larousse que
acaba de sair diz: 'Foucault: um filósofo que funda sua teoria da
história na descontinuidade'. Isto me deixa pasmado (... ). Meu
problema não foi absolutamente dizer: viva a descontinuidade,
estamos nela e nela ficamos; mas colocar a questão: como é
possível que se tenha, em certos momentos e em certas ordens
do saber, estas mudanças bruscas, estas precipitações de evolução, estas transformações que não correspondem à imagem tranqüila e continuísta que normalmente se faz? Mas o importante
em tais mudanças não é se serão rápidas ou de grande amplitude, ou melhor, esta rapidez e esta amplitude são apenas o sinal
de outras coisas: uma modificação nas regras de formação dos
enunciados aceitos como cientificamente verdadeiros"35.
Ora, é precisamente a eleição, para domínio da investigação histórica, daquilo que é aceito "como cientificamente verdadeiro" que nos encaminha à abordagem dos vínculos dessa
história com a questão da verdade enquanto assunto da filosofia, e daí à compreensão do que chamamos seu comprometimento crítico com a cultura.
Com efeito, ao privilegiar os acontecimentos discursivos
como campo de análise, Foucault restringe a região de seus estudos: entre os discursos, aqueles que são reconhecidos como
científicos e, entre estes, os que compõem a região mais cambiante e imprecisa que é constituída pelos saberes das chamadas
ciências humanas. Essa escolha é, sem dúvida, uma estratégia. E
essa estratégia se aloja no ponto de cruzamento entre a questão
da verdade e os mecanismos do poder. Por um lado, ocupar-se,
enquanto filósofo, com a questão da verdade significa aqui não
ir em busca de uma essência a ser descoberta, mas descrever e
35. FOUCAULT, M., "Verdade e poder", in Microftsica do poder, 3-4.
a filosofia como crítica da cultura
j
31
17. analisar os modos como a "verdade" vem sendo historicamente
produzida; trata-se, precisamente, daquele estabelecimento do
jogo de regras - regras que são transformáveis de uma sociedade para outra, de uma época para a outra - que autoriza a
qualificação de objetos, de sujeitos, de instituições, para a produção de saberes reconhecíveis como verdadeiros. Por outro lado,
e ao mesmo tempo, ocupar-se, enquanto filósofo, com a questão da verdade encarada segundo seus modos históricos de produção é ocupar-se também do vínculo circular que ela mantém
com os modos de exercício do poder: "o exercício do poder cria
perpetuamente saber e, inversamente, o saber acarreta efeitos de
poder"36. Assim, podemos dizer que, se a "verdade" é "efeito" do poder das regras segundo as quais determinados saberes têm a
competência para a verdade, essa competência lhes atribui, por
seu turno, os direitos de uso do poder (em seu nome se distingue
não só o verdadeiro e o falso, como o permitido e o interditado,
o correto e o errado, o normal e o patológico etc.). Eis a pergunta de "filosofia política" que Foucault se coloca: "Em uma sociedade como a nossa, que tipo de poder é capaz de produzir discursos de verdade dotados de efeitos tão poderosos?,,37
Ora, posto que em nossas sociedades ocidentais são os
discursos reconhecidos como científicos os que compõem os
saberes aceitos como verdadeiros, é desses saberes que tratará a
genealogia. E posto que é a região das chamadas ciências humanas a que melhor ou mais claramente permite fazer ver aquele
entrelaçamento entre regime de verdade e regime de poder, na
medida em que ela envolve saberes cujo "perfil epistemológico", por ser "pouco definido"38, abriga "combates, linhas de
força, pontos de confronto, tensões"39, é sobre ela que vai particularmente recair a invesrlgação.
36. FOUCAULT, M., "Sobre a prisão", in Microfisica do poder, 142.
37. FOUCAULT, M., "Soberania e disciplina", in Microfísica do poder, 179.
38. FOUCAULT, M., "Verdade e poder", in Microfísica do poder, l.
39. FOUCAULT, M., "Sobre a geografia", in Microfísica do poder, 154.
32 I Foucault. Simplesmente
Nesse sentido pois, ocupando-se da análise das relações entre
saber e poder que, mediados pela verdade, mutuamente se produzem e se reproduzem, a genealogia pretende constituir-se em
foco de crítica e em instrumento de resistência. Quer propor
"um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táticas atuais,,40. E isso duplamente. Busca, por um lado, recuperar,
num trabalho que exige paciência e erudição, conteúdos históricos que foram subestimados ou silenciados pelo saber "qualificado" das histórias tradicionais: mostra, por exemplo, de que
modo a pretensão ao estatuto científico dos saberes sobre o
homem lhes imprime as marcas do exercício do poder, atribuindo ao sujeito detentor do conhecimento sobre o homem a "competência" que autoriza o domínio de seus "objetos", dissociando
assim o sujeito do conhecimento que "possui a verdade" de seus
"objetos" que "nada sabem"; descreve, em face das histórias da
Razão e do mesmo, a história da Desrazão e do Outro, revelando os mecanismos correlatos de exclusão, de enclausuramento e de redução ao silêncio; faz emergir, pela análise do nascimento das prisões, conteúdos históricos que evidenciam o poder na forma da disciplina etc. Por outro lado, é aliada da recuperação de saberes considerados "ingênuos, hierarquicamente
inferiores, saberes abaixo do nível da cientificidade" (por exemplo, do doente, do enfermeiro, do delinqüente etc.)". "A genealogia seria portanto, com relação ao projeto de uma inscrição
dos saberes na hierarquia de poderes próprios à ciência, um
empreendimento para libertar a sujeição dos saberes históricos,
isto é, torná-los capazes de oposição e de luta contra a coerção
de um discurso teórico, unitário, formal e científico."42
Mais ainda: lembremos que enquanto a arqueologia pretendia realçar principalmente as epistémes) isto é, o nível das
40. FOUCAULT, M.) "Genealogia e poder", in Microfísica do poder, 171.
41. Ibid., 170.
42. Ibid., 172.
a filosofia como critica da cultura
I 33
18. correlações interdiscursivas, a genealogia se dirige não somente
ou sobretudo aos discursos, como ainda a suas relações com as
estruturas sociais. Lê-se, por exemplo, numa passagem de Vigiar
e punir: "O sistema carceral reúne numa mesma figura discursos e arquiteturas, regulamentos coercitivos e proposições científicas ... ,,43. Do mesmo teor, Foucault não rejeita a afirmação
que lhe é dirigida por um entrevistador: "Você mostrou como
o saber psiquiátrico trazia consigo, pressupunha, exigia a reclu-
são asilar, como o saber disciplinar trazia consigo o modelo da
prisão, a medicina de Bichat o espaço do Hospital e a economia
política a estrutura da fábrica"44. Entende-se assim que, ao estabelecer a história da constituição dos saberes explicitando seu
vínculo com exercícios do poder, a genealogia os considera como
peças nas tramas de uma rede - por ele chamada de "dispositivo" - que envolve tanto as inter-relações dos saberes como
suas articulações com as práticas institucionais.
Ora, sem entrarmos na pluralidade possível de acepções
que podem ser cobertas pelo termo "cultura", nem nos diferentes ângulos sob os quais pode ser abordado e, menos ainda, nas
muitas questões que suscita, poderíamos considerar "cultura",
de um modo tão geral quanto simples, o conjunto de saberes
teóricos e de práticas sociais que compõem o quadro em que se
move uma determinada sociedade e cujos limites lhe demarcam
as possibilidades de "nomear, falar, pensar,,45. É nesse sentido
que não nos parece abusivo reconhecer nos trabalhos históricofilosóficos de Foucaulr algo a que poderíamos chamar uma
crítica da cultura ou, pelo menos, da cultura "qualificada".
E, finalmente, não há que se esquecer que, contudo, essa
crítica da cultura, esse trab~lho filosófico de constituição de
43. FOUCAULT, M., Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975,276.
44. Cf. "Sobre a geografia", in Microfísica do poder, 16l.
45. FOUCAULT, M., Les Mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, Préface,
11. É aliás numa concepção assim bem ampla que o termo é freqüentemente
usado neste Prefácio.
34 I
Foucau!t. simplesmente
um "saber histórico das lutas" é, ele próprio, (saber", partícipe
da "história" e da "cultura". Daí o cuidado insistente de Fou-
caulr em não se vir a rransformar a análise realizada pelas genealogias em outro saber centralizador ou monopolizador da
"verdade" e, portanto, habilitado para o poder. Assim, em oposição às teorias gerais e globalizantes, a crítica tem um caráter
local e específico 46 • Em oposição ao teórico "legislador", Foucault sonha "com o intelectual destruidor das evidências e das
universalidades"47. "Neste sentido", escreve Roberto Machado,
«nem a arqueologia, nem, sobretudo, a genealogia têm por
objetivo fundar uma ciência, construir uma teoria ou se constituir como sistema: o programa que elas formulam é o de realizar análises fragmentárias e transformáveis."48
Essa mobilidade que é constitutiva da postura mesma das
investigações de Foucault vem confirmar aquela distância de
quaisquer dogmatismos a que inicialmente nos referíamos. E
permite que reencontremos, a respeito da filosofia e da história, bem como das relações entre ambas, alguns aspectos que
apontávamos em nossas primeiras considerações em torno de
Merleau-Ponty. E pelo menos dois aspectos. Recusando a alternativa entre uma história atravessada por um sentido teleológico e uma história desprovida de sentido porque concebida como
um conglomerado de fatos, Merleau-Ponty recusava igualmente tanto a ininteligibilidade da história como as pretensões "de
uma História Universal inteiramente desdobrada diante do historiador como o seria sob o olhar de Deus,,49. As histórias que
Foucault escreve, além de avessas a qualquer aspiração de universalidade, assumem, na prática, aquela simultaneidade entre
46. Cf. principalmente "Verdade e poder", "Genealogia e poder", "Os
intelectuais e o poder", in Microfísica ...
47. FOUCAULT, M., "Não ao sexo rei", in Microfisica do poder, 242.
48. MACHADO R., "Introdução", in Microfísica do poder, XIII.
49. MERLEAU-POl.'TY, M., "Le métaphysique dans l'homme", in Sens et
non·sens 158, Ver também, Éloge ... , 59.
J
a filosofia como crítica da cultura
I
35
19. a ausência de um sentido único e a presença de inteligibilidade,
agora, porém, conduzindo este aparente paradoxo a uma nova
direção: "A história não tem 'sentido', o que não quer dizer que
seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve
poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a
inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas"50. Segundo,
e conseqüentemente, afirmando que é pela inerência a uma
situação histórica particular que podemos compreender a significação de outras situações que compõem a trama da história, Merleau-Ponty se opunha ('ao ideal de um espectador absoluto, de um conhecimento sem ponto de vista,,51. Afinal, nem
"ilusão retrospectiva", nem "ilusão prospectiva". "Saber perspectivo", eis como Foucault (na descrição da genealogia nietzschiana) caracteriza a história: os historiadores que perseguem a
neutra objetividade de uma consciência isenta e soberana "procuram, na medida do possível, apagar o que pode revelar, em
seu saber, o lugar de onde eles olham, o momento em que eles
estão, o partido que eles tomam - o incontrolável de sua paixão"; já o "saber perspectivo", ao contrário, "sabe que é perspectivo", "olha de um determinado ângulo, com o propósito deliberado de apreciar, de dizer sim ou não", "é um olhar que sabe
tanto de onde olha como o que olha"52.
Por ser "perspectivo", e se saber assim, elaborado a partir
da cultura que o torna possível, olha-a criticamente, mas a olha
de dentro dela; e justamente por isso é também visado por seu
mesmo olhar crítico, de sorte que, se provoca deslocamentos,
há que se dispor, ele próprio, a deslocar-se.
50. FOUCAULT, M., "Verdade e poder", in Microfísica do poder, 5.
51. MERLEAu-PONTY, M., "Le philosophe et la sociologie", in Éloge.. , 136.
52. FOUCA.uLT, M., "Nieczsche, a genealogia e a história", in Microfoica do
poder, 30.
36 I Foucault. Simplesmente
111
O MESMO E O OUTRO
Faces da história da loucura*
De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas
a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto
possível, o descaminho daquele que conhece? Existem
momentos na vida nos quais a questão de saber se se pode pensar
diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é
indispensável para continuar a olhar ou a refletir.
M. FOUCAULT, o uso dos prazeres, 13.
Foucault faz filosofia fazendo pesquisa histórica. As histórias que escreve desenvolvem-se no espaço do Ocidente, e o
tempo que percorrem é quase sempre aquele que vai desde o final do Renascimento (por volta do século XVI) até a nossa
Modernidade (séculos XIX e XX), atravessando com realce a
chamada Idade Clássica (séculos XVII e XVIII).
É possível sugerir que a questão que, genericamente, podemos denominar "do outro e do mesmo" se estenda como
um pano de fundo dessas histórias. Comecemos, pois, por
propô-la, partindo de uma ilustração que está nas primeiras
... Conferência apresentada na VII Semana de Estudos em Filosofia da
Universidade Metodista de Piracicaba, em agosto de 1994. Publicaclaem Foucault
e a destruição das evidências (MARlGUELA, M., org.), Piracicaba, Unimep, 1995.
o mesmo e o outro
j
37
20. páginas do Prefácio de As palavras e as coisas. Trara-se da reromada de uma classificação dos animais, citada por Jorge L.
Borges, supostamente extraída de uma enciclopédia chinesa.
Segundo esta classificação, "os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d)
leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j)
inumeráveis, k) desenhados com um pincel fino de pêlo de
camelo, I) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que
de longe parecem moscasJ1 1.
Esta classificação reúne de modo incongruente categorias
sem nexo que, a nós, parecem impossíveis de "nomear, falar, pensar,,2. Ora, a possibilidade e a impossibilidade de "nomear, falar,
pensar" podem ser analisadas em torno de três termos: ordem)
lugar, espaço. Com efeito, há uma ordem que, naquela classificação, parece vincular a seqüência das classes nela reunidas, a saber, a série alfabética. Mas, justamente, é esta ordem que ali parece não "caber". A estranheza da ordem está em sua articulação
com a ausência de lugar capaz de permitir a reunião das classes e
sua ordenação, ainda que meramente alfabética: "O absurdo arruína o e (ordem) da enumeração, marcando de impossibilidade
o em (lugar) onde se repartem as coisas enumeradas"3.
Ordem e lugar, porém, dependem de um espaço homogêneo e comum dentro do qual somente ou sobre o qual as
coisas possam ser localizáveis e ordenáveis, espaço que torna
possível nomeá-las, dizê-las, pensá-las. Assim, é a justaposição
desse e (ordem), desse em (lugar) e desse sobre (espaço) que
instaura, para nós, a estranheza dessa classificação 4 . Estranheza, porém, para nós. Afinal, aquela classificação de animais
1. FOUCAULT, M., I..es mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, "Préface", 7.
2. Ibid., 11.
3. Ibid., 9.
4. Ibid., 8.
38
I Foucau!t. simplesmente
não é, por assim dizer, "ausente" de espaço; antes, repousa
sobre outro espaço: "A China ... não é justamente o lugar privilegiado do espaço?JJ5
Eis o "outro" em seu sentido mais amplo: limite de pensamento e de linguagem para uma cultura, aquilo que a circunda
por fora e lhe escapa, simultaneamente, estranho e exterior.
Mas, a partir daí, pode-se também entender o "outro" em
seu sentido estrito: aquilo que, de dentro dos quadros de uma
cultura, a limita por dentro, diferença que lhe é inclusa, simultaneamente interna e estrangeira. É nesse sentido que a História da loucura é uma história do "outro": história daquilo que
pertence à nossa cultura - pensável, nomeável, dizível portanto -, mas constantemente ameaçado de submissão aos critérios do "mesmo", precisamente porque ameaçador; história "daquilo que para uma cultura é ao mesmo tempo interior e estranho, a ser, portanto, excluído (para conjurar-lhe o perigo interior), encerrando-o, porém (para reduzir-lhe a alteridade)"6.
Nossa exposição pretende tão-somente retraçar, em resumo, alguns aspectos dessa história7 • No conjunto do livro, a
descrição da experiência da loucura durante o período renascentista ocupa não mais que as 55 páginas do capítulo inicial.
É à experiência clássica - cuja vertente institucional é o Hospital Geral - e à experiência moderna - cuja vertente institucional é o Asilo - que, substancial e minuciosamente, se dedicam
as mais de 600 páginas do livro em suas três partes (as duas
primeiras ocupando-se da Idade Clássica e a terceira da nossa
Modernidade). Nas pretensões reduzidas desta exposição 5. Ibid., 10.
6. Ibid., 15.
7. Para uma reconstituição mais completa do livro, leia-se MACHADO, R.,
Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault, Rio de Janeiro, Graal,
1982 (cf. "Arqueologia da percepção", 57-95). Também ROUANET, S. P., "A
gramática do homicídio", in O homem e o discurso (A arqueologia de Michel Foucault), Rio. de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1971.
o mesmo e o outro
I
39
21. pincelar algumas faces ou facetas da história desse "outro" que
é a loucura no Ocidente -, escolhemos tratar os três períodos
em proporções diversas às do livro. Por isso mesmo, e evitando
o risco de um resumo por demais empobrecedor, a abordagem da Idade Clássica e da Modernidade será apenas pautada
em algumas passagens em que o próprio Foucault fornece descrições mais amplas desses dois momentos. Por motivos análogos, a recomposição dessas "facetas" será organizada em dois
tópicos ou subi tens.
•••
Leprosários e navios
Ao término da Idade Média, nos limiares do Renascimento
(por volta dos fins do século XIV), começa o esvaziamento daquelas casas de "exclusão" e "purificação"s que se haviam multiplicado às portas das cidades medievais: os leprosários. A lepra
regride, não como resultado de práticas médicas, antes por força
da segregação dos leprosos (e, portanto, do contágio) e do final
das Cruzadas (e, portanto, do contato com focos de infecção do
Oriente). Com efeito, a lepra não era experimentada como "assunto médico", a ser "suprimida" e "curada". Era, antes, uma
espécie de testemunho do mal ao mesmo tempo que de sua expiação. Requeria, pois, o gesto ritual da cisão, rito que segregava
e, simultaneamente, sacralizava, gesto que excluía e, simultaneamente, purificava: "O pecador que abandona o leproso à sua
porta abre-lhe a salvação,,9.
A lepra regride, os leprosários se esvaziam. Porém, os "valores" e as "imagens"lO, as "estruturas" e as "formas"ll que, du8. FOUCAULT, M., Historie de la falie à l'âge classique, 2 a ed., Paris, Gallimard, 1972, 13.
9. Ib;d., 16.
Ia. Ib;d., 15.
11. Ib;d., 16.
40 I Foucault. Simplesmente
rante a Idade Média, estão vinculados à instituição do leprosário
e ao personagem do leproso vão persistir; exclusão e purificação, segregação e sacralidade, reclusão e salvação serão transpostas, séculos mais tarde, para outras instituições - muitas
vezes nos mesmos lugares que antes abrigavam os leprosos - e
para outros personagens. Entre eles, o louco.
Assim, a loucura, de certo modo, assumirá, no decurso de
uma longa sucessão histórica, uma espécie de papel de herdeira
da lepra!'. Contudo, numa sucessão histórica longa, isto é, cerca de dois séculos mais tarde (por volta da segunda metade do
século XVII e no século XVIII), na chamada Idade Clássica. Antes
disso, porém, no intermédio entre o final da Idade Média e o
início da Idade Clássica, ou seja, no chamado período renascentista (por volta dos séculos XV a XVII), ela ocupará outra
posição, ou melhor, circulará sem posição fixa.
Era freqüente nas composições literárias e pictóricas do
Renascimento a imagem de navios que transportavam "heróis
imaginários", "modelos éticos", "tipos sociais" cuja viagem simbolizava seu "destino" ou sua "verdade"I3. Assim, títulos de obras
literárias incluíam, por exemplo, a Nau dos principes e das batalhas
de nobreza, a Nau das damas virtuosas, como também a Nau dos
loucos. Mas, em meio a essa onda literária e pictórica, a Nau
dos loucos guardava uma singular peculiaridade: a de existir realmente. De fato, expulsos das cidades, entregues a mercadores,
peregrinos ou marinheiros, os loucos vagavam, numa existência "errante"14. Para Foucault, esse "gesto que expulsa" está próximo do "rito,,15; a figura da nau carrega o simbolismo da água
que purifica e da navegação que é passagem. Água e navegação
cumprem, assim, o papel de manter o louco como "prisioneiro
em meio à mais livre e mais aberta das rotas: solidame~te preso
12.
13.
14.
15.
Ib;d.,
Ib;d.,
Ib;d.,
Ib;d.,
18.
19.
19.
16.
o mesmo e o outro
I 41
22. à infinita encruzilhada. Ele é o Passageiro por excelência, isto é,
o prisioneiro da Passagem,,16.
A ambigüidade dessa simbologia corresponde à ambigüidade da experiência renascentista da loucura, uma experiência
que envolvia duas vertentes simultâneas: um lado trágico, fascinante e cósmico; um lado crítico, irônico e moral. O "fascínio
do trágico" transparece sobretudo nas imagens pictóricas: são
figuras fantásticas, humano-animalescas, que mostram a bestia-
humanas, ocupa cada vez mais o primeiro plano na experiência
da loucura, deixando na sombra o silêncio verbal e fascinante
das imagens trágicas carregadas de forças cósmicas. Sem dúvida, observa Foucault, essa ocultação jamais abolirá inteiramente a experiência do trágico: "esse desaparecimento não é uma
derrocada"l9. Nos séculos seguintes e até hoje, o trágico da loucura subsistirá na obscuridade, como que "nas noites dos pensamentos e dos sonhos", como que "às escondidas" e "em vigí-
lidade presente no coração do homem, impregnadas de um
saber hermético que anuncia a ameaça da desordem e do fim
do mundo e ao qual só os loucos têm acesso. Ao mesmo tempo,
lia", de tal modo que, malgrado o predomínio cada vez maior
do racional, a presença subterrânea do trágico será pressentida
e testemunhada como que em erupções esporádicas (Nietzsche, Van Gogh, Artaud, Goya, Sade são alguns exemplos desses
pressentimentos e testemunhos).
Mas, no curso da história, a predominância do saber crítico sobre o trágico, marcando o domínio da razão sobre a loucura, assinala o fim da experiência renascentista, abrindo o limiar da Idade Clássica e, a partir dela, os caminhos que conduzirão à experiência moderna da loucura, num deslocamento
que vai da Nau ao Hospital, do Hospital ao Asilo.
a "ironia da crítica", que transparece sobretudo nas composições literárias e filosóficas, no verbo, no texto, na palavra: ali, a
loucura aparece como motivo de sátira ou de escárnio, não
mais como detentora dos segredos ocultos do cosmos, mas como mal e fraqueza humanos, de onde nascem a ambição dos
políticos, a avareza dos ricos, a presunção dos sábios (O Elogio
da loucura, de Erasmo, por exemplo, reserva, "na ronda de loucos, um largo lugar para homens de saber" - gramáticos, poetas, escritores, jurisconsultos, filósofos, teólogos etc.).l?
As duas vertentes da experiência renascentista da loucura,
simbolizadas pictórica e literariamente, certamente se entrecruzam: há temas morais nos quadros de]. Bosch; e Montaigne
sugere que loucura é fiar-se apenas na razão ls . Gradativamente,
porém, os dois pólos se distanciam e o elemento crítico ganha
relevo sobre o trágico. A ironia crítica, prioritária no texto, no
verbo, na palavra, voltada para a racionalidade e a moralidade
16. Ibid., 22.
17. Ibid., 34. Entre as expressões pictóricas incluem-se obras de]. Bosch,
Brueghel, Dürer; entre as expressões lingüísticas, obras de Brant, Erasmo,
Montaigne.
18. O mastro da Nau dos Loucos de]. Bosch é a figura da árvore: árvore proibida da sabedoria à qual só os loucos têm acesso; mas é também
árvore "moral" do bem e do mal.
42
1 Foucault. simplesmente
Hospitais e asilos
No começo do século XVII a loucura adentrou os muros da
cidade; internalizada, torna-se "familiar" em um mundo que lhe
é "estranhamente hospitaleiro"20. Não mais vagará: "Ei-la amarrada, solidamente, no meio das coisas e das pessoas. Retida e
mantida. Não mais nau, mas hospital"21. Não mais, com Montaigne, a crítica à presunção da razão, mas, com Descartes, o
banimento da loucura do caminho que conduz à certeza22 • A
19. FOUCAULT, M., Historie de la folie .. ,39.
20. Ibid., 54-55.
21. Ibid., 53.
22. Enquanto em Montaigne a loucura é incorporada ao caminho que
conduz à verdade, em Descartes são incorporados os erros dos sentidos e a
ilusão dos sonhos, mas a loucura é excluída.
o mesmo e o outro
, t:..'
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I 43
'.'
23. desordem irracional do trágico submete-se à ordem do racional. Demarcada por oposição à razão, a loucura é transformada
em desrazão, desrazão que, séculos mais tarde, se transmutará em doença mental.
No século XVII são fundados os Hospitais Gerais que constituem a estrutura visível e a forma institucional da cisão entre
razão e desrazão. O Hospital Geral de Paris, por exemplo, que
data de 1656, por decreto real sob Luís XIV, agrupava em uma
única administração estabelecimentos já existentes com fins
diversificados (como, entre outros, a Salpêtriere, que antes abrigava um arsenal, ou a Bicêtre, antes destinada a recolher inválidos de guerra). Como em Paris, em toda a França, na Alemanha, na Inglaterra, são fundadas instituições para o internamento, muitas delas estabelecidas nos antigos leprosários. E, assim
como os leprosários, os Hospitais Gerais, ainda que incluíssem visitas médicas em seu sistema de funcionamento, não
tinham propósito terapêutico:
"O classicismo inventou o internamento um pouco como a Idade Média a segregação dos leprosos; o lugar deixado vazio por
estes foi ocupado por personagens novos no mundo europeu:
são os 'internados'. O leprosário não tinha um sentido apenas
médico; muitas outras funções eram desempenhadas neste gesto de banimento que abria espaços malditos. O gesto que interna não é mais simples: ele também tem significações políticas,
sociais, religiosas, econômicas, morais,>23.
Os "novos personagens" que ocupam esses estabelecimentoS são apresentados em diversas passagens e em listagens mais
ou menos longas. Com base nessas várias referências, podem ser
assim identificados: pobres, v~gabundos, correcionários, desem-
pregados, jovens que perturbam o repouso da família ou dilapidam seus bens, devassos, pródigos, enfermos, libertinos, filhos
ingratos, pais dissipadores, prostitutas, homossexuais, mágicos,
23. Ibid., 64.
44 I Foucault. simplEsmente
suicidas, portadores de doenças venéreas, blasfemadores, alquimistas, pretensas feiticeiras e, também, insensatos, cabeças alienadas, espíritos transtornados ... Numa palavra, "homens de des-
razão"24. Diferentemente dos leprosos da Idade Média, que eram
"portadores do visível brasão do mal", os "novos proscritos da
Idade Clássica carregam os estigmas mais secretos da desrazão"25.
Diferentemente dos viajantes das naus renascentistas, que
vagando por toda parte eram uma presença igualmente "vaga",
mais pressentida que percebida, os hóspedes do Hospital Geral
são instalados, localizados, tornados "presença concreta" no
horizonte de uma «realidade social" que demarca explicitamente a cisura entre a razão e a desrazã0 26 •
É lá, nesse espaço aberto pelo classicismo, cuja expressão
institucional foi o internamento, é lá, de dentro dele, que a
loucura será mais tarde "destacada", "individualizada", "isolada" e, enfim, "asilada", transportando consigo, porém, para os
tempos da Modernidade, os traços que marcavam os diferentes
grupos com que até então se avizinhava. A designação posterior e moderna da loucura como alienação e depois como doença
mental não será o resultado direto de uma espécie de progresso
do conhecimento. Sua condição de possibilidade encontra-se
lá, naquele gesto que produzira a alienação, isto é, que segregara, que colocara a distância, que "alienara" a desrazão. É porque
já "distanciada", já segregada, que a loucura poderá, na Modernidade, ser "separada" como objeto possível de conhecimento,
numa esfera que será não mais da desrazão, mas da alienação e
da doença mental:
"anexando ao domínio da desrazão, ao lado da loucura, as proibições sexuais, as interdições religiosas, as liberdades do pensamento e do coração, o classicismo formava uma experiência mo24. Ibid., II 7.
25. Ibid., 1I9.
26. Ibid., 117.
o mesmo e o outro
I
4S
24. ral da desrazão que serve, no fundo, de solo para o nosso conhecimento 'científico' da doença mental. Por esse distanciamento,
por essa dessacralização, perfaz ele uma aparência de neutralidade que já é comprometida, porque só alcançada no propósito inicial de uma condenação"27.
Assim, não se pode pretender simplesmente que a loucura
será um dia tornada "objeto" de conhecimento por ter sido,
então, liberada das "velhas participações religiosas e éticas em
que a Idade Média a tomava,,2B. Antes de se tornar ~'objeto" de
conhecimento e ser configurada como patologia, ela passou
pelo internamento do período classicista, e o internamento não
consistiu numa forma possível de "conhecimento" da loucura,
mas em seu exílio e em seu silêncio: "Não é importante para a
nossa cultura que a desrazão só tenha podido tomar-se objeto
de conhecimento na medida em que previamente foi objeto de
ex-comunicação?"29,
Uma leitura histórica simplista e linear poderia talvez prevalecer-se do fato de que durante esses 150 anos - entre a Idade
Média e o Renascimento até a nossa Modernidade, calcada na
repartição entre razão e desrazão e misturando indiscriminadamente os insensatos aos demais grupos "associais" - a experiência clássica da loucura não foi uniforme. É que, além dos
Hospitais Gerais, havia também hospitais comuns (Hôtel-Dieu
em Paris, Bethlém em Londres, por exemplo), onde, embora em
número extremamente menor, se internavam loucos com perspectivas de tratamento e de cura, diferentemente das casas de
internamento, em que as perspectivas eram antes de correção)
castigo e repressão. Nos hospitais comuns, as decisões procediam de julgamentos médicos e o louco tinha um estatuto de
"sujeito juridicamente incapaZ,,30) eximido, portanto, de respon27.
28.
29.
30.
46
Ibid.,
Ibid.,
Ibid.,
Ibid.,
121.
119.
119.
146.
I Foucault, simplesmente
sabilidades sociais. Nas casas de internamento, as decisões competiam às autoridades sociais (magistrados, bispos, polícia) e o
louco tinha o estatuto de "sujeito social") perturbador da ordem, comprometido, pois, com "as vizinhanças da culpabilidade,,31. Ora, uma leitura histórica simplista veria na hospitalização comum os indícios de uma espécie de progresso rumo à
Modernidade, quando, então, se reconheceria na loucura a doença, sua verdade de sempre, sua essência imutável.
Essa leitura simples seria plausível se Os fatos fossem simples; na verdade, ela inverte-lhes a ordem e a prioridade. A hospitalização individualizada do louco nos hospitais comuns,
durante a Idade Clássica, não foi avanço rumo à Modernidade,
mas o resíduo ainda de uma percepção medieval e renascentista
em que a individualidade do louco era de algum modo reconhecida, ainda que vagamente. O fato "novo", inclusive do ponto
de vista cronológico, da Idade Clássica foi justamente a transposição dos loucos das casas de cura para as casas de correção, e
não o inverso, de modo que a experiência mais ampla e relevante da loucura foi seu internamento não Como procedimento
médico, mas como prática social. "Ê entre os muros do internamento que Pinel e a psiquiatria do século XIX", escreve Foucault, "encontrarão os loucos; é lá - não o esqueçamos - que os
deixarão, não sem antes se vangloriarem de os ter libertado"32.
Com efeito, no caminho desse percurso histórico é possível
compreender como a transformação que se operará a partir do
final do século XVIII e do início do século XIX, sobre o solo da
experiência classicista da loucura, consistirá numa espécie de junção entre suas duas vertentes, que, antes "justapostas", serão
depois "superpostas,,33. Em outras palavras: o "alienado" será
reconhecido simultaneamente como "incapaz e como louco"34;
31.
32.
33.
34.
Ibid.,
Ibid.,
Ibid.,
lbid.,
144.
59.
147.
146.
o mesmo e o outro
I
47
25. denominar-se-á "doença mental" essa união entre o fato de uma
incapacidade jurídica do indivíduo e o fato de um distúrbio
que afeta a vida social. E é essa junção do conceito de doença
IV
como assunto médico à prática social do internamento, ou,
reciprocamente, a transformação do "internamento em ato terapêutico"35, que, finalmente, caracterizará então a instauração
da instituição asilar.
EDUCAÇÃO E
SABER SOBERANO'
• ••
A partir da reconstituição resumida de alguns aspectos
dessa história, podemos compreender que a loucura não seja
um "objeto" uniforme, consubstanciado numa verdade essencial cuja identidade é sempre a mesma, mas antes um fato multifacetado, cujas verdades são historicamente produzidas e variadas. Em palavras simples: '''a loucura não é um fato da natureza' mas um fato da civilização"36. E sua história a mostra
como tantas faces que figuram o "outro" no interior do "mesmo". Para concluir, ousemos supor que esse "outro" de múltiplos rostos que atravessa a história de nossa cultura possivelmente atravessa também a história pessoal de cada um de nós.
Esta suposição está sugerida, talvez, no primeiro título que Foucault pretendia dar a seu livro, "A outra forma da loucura,,37, e
na frase de Pascal que escolhera para iniciá-lo: "Os homens são
tão necessariamente loucos que seria uma outra forma de loucura não ser louco".
Como cenário de nossas considerações escolhemos algumas passagens de As palavras e as coisas 1 cuja retomada constituirá o primeiro momento da exposição. Do interior desse cenário e a partir
de uma interpretação relativamente livre das análises foucaultianas, tentaremos num segundo momento realçar alguns aspectos dos papéis desempenhados pelas ciências humanas em
geral e pela ciência da educação em particular.
Numa visão extremamente sucinta (mas útil a nosso intento), lembramos que As palavras e as coisas, em seu todo, percorre uma trajetória histórica que começa no fim do Renascimen-
to (por volta do século XVI), detém-se na Idade Clássica (séculos XVII e XVIII) e desemboca em nossa Modernidade; e que
aborda, em cada qual desses segmentos históricos, a emergência de determinados saberes de modo a finalmente poder
descrever, nos séculos XIX e XX, o surgimento das chamadas
ciências humanas.
35. Ibid., 149.
36. Retomamos aqui um comentário do livro de ERIBON, D., Michel Pou·
cault: uma biografia. trad. H. Feist, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, 119.
37. Cf. ERIBON, D., op. cit., 102-103.
lI8 I Foucault, simolesmente
* Comunicação apresentada por ocasião da "Semana de Educação", na
Universidade Federal de Uberlândia, em maio de 1981. Publicada em Cadernos
PUC, n. 13, São Paulo, EducjCorcez, 1982.
1. FOUCAULT, M., Les Mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966.
educação e saber soberano
I lI9
26. Com curiosa astúcia, o primeiro capítulo traz a nossoS olhos
um quadro de Velázquez. Situado entre o fim da segunda metade do século XVI e o início da segunda metade do século XVII
(1599-1660), o pintor, cuja obra foi escolhida, permite o assinalamento do fim do Renascimento e do início da Idade Clássica.
Por outro lado, o quadro escolhido (Las Meninas) aponta elementos que serão retomados no final do livro (capítulo IX),
permitindo uma espécie de ilustração comparativa a propósito
da Modernidade.
Para desenhar nosso cenário, retomaremos alguns aspectos do primeiro capítulo e, a partir dele, faremos um grande
salto até o capítulo IX. De início, ouçamos uma descrição me-
ramente empírica do quadro em questão: "( ... ) bastaria dizer
que Velázquez compôs um quadro; que nesse quadro ele se
representou a si mesmo, em seu atélier ou num salão do Escorial,
a pintar duas personagens que a infanta Margarida vem contemplar, rodeada de aias, de damas de companhia, de cortesãos
e de anões; que a esse grupo pode-se muito precisamente atribuir nomes: a tradição reconhece aqui dona Maria Agustina
Sarmiente, ali Nieto, no primeiro plano Nicolaso Pertusato,
bufa0 italiano. Bastaria acrescentar que as duas personagens
que servem de modelos ao pintor não são visíveis, ao menos
diretamente; mas que se pode distingui-las num espelho; que
se trata, sem dúvida, do rei Filipe IV e de sua esposa Mariana"2.
Porém, se deslocamos nosso olhar dessa visão imediatamente empírica e nos situamos numa região em que os nomes
não são diretamente colados às coisas percebidas, outra descrição é possível. E é esta que nos interessa. Refaçamo-la em alguns de seus ângulos.
1O pintor e o espectador -
De dentro do quadro, o pintor olha
para um ponto fixo e invisível: nesse ponto está o modelo que
ele pinta sobre uma tela da qual o espectador só vê o reverso.
Ora, nesse ponto igualmente, para o qual o pintor dirige o
olhar, está presumidamente o próprio espectador. Assim é que,
enquanto "objeto" virtual do olhar do pintor, o espectador é o
modelo de carne e osso mas sempre invisível e extremamente
variável. Trava-se assim um jogo ambíguo entre o visível e o
invisível: com efeito, para ser olhado pelo pintor, esse espectador-modelo precisa colocar-se em face do quadro na posição de
quem olha, de modo que somente na medida em que é ((sujeitoque-olha" pode ser "objeto-olhado". O reverso da tela que está
sendo pintada garante essa ambigüidade. Porque só o reverso é
representado, não sabemos, nós, espectadores, se olhamos ou
2. Ibid., 25.
SO I Foucault. simplesmente
educação e saber soberano
I Sl
27. se somos olhados. Nesse jogo, pois, o olhar do pintor, o único
que pode ir do modelo à frente da tela, é o "olhar soberano"'.
revela o jogo ambíguo entre o real e o representado: é um es-
2 O espelho -
tudo, "representado" do ponto de vista do exterior do quadro.
O quadro como um todo é, evidentemente, uma
representação. Do interior e no fundo dessa representação são
representados outros quadros (que são outras tantas representações). Entre eles, porém, um é especialmente mais claro. "Mas
não é um quadro: é um espelho.,,4
E, assim como a frente da tela tepresentada é invisível para
o espectador e só visível para o pintor, agora o espelho é clara
visibilidade para o espectador mas sempre invisível para o pin-
tor 0á que este lhe dá as costas). Mas o espelho reflete precisamente o modelo que está sendo pintado. E percebe-se então
que, além do jogo entre o visível e o invisível, outra ambigüidade se estabelece, esta agora entre o interior e o exterior do quadro: com efeito, o espelho faz ver (por "reflexo") os modelos
externos olhados de dentro do quadro pelo olhar do pintor que
os representa, e mostra assim o espaço interno do quadro que é
representação de modelos; mas fá-los ver (também "por reflexo"), enquanto espectadores que olham do exterior o pintor
que é, ele próprio, representado (feito de linhas, formas, cores),
e mostra assim o contorno externo do quadro que é, ele próprio, em seu todo, representação de uma representação, quadro
que representa um quadro.
3 O visitante inusitado -
No fundo do quadro, uma porta deixa
entrever uma estranha figura. Não se sabe se ela <{entra" ou "sai".
Parece estar ao mesmo tempo dentro do quadro (isto é, do quadro
enquanto visto do exterior) e fora dele (isto é, do quadro enquanto visto internamente); como se não fosse parte da representação, mas assistisse a ela, porém do interior dela. Se o espelho
reflete o jogo ambíguo entre o interior e o exterior, o visitante
3. Ibid., 21.
4. Ibid., 21.
S2 I Foucault. Simplesmente
pectador "real" do ponto de vista do interior do quadro e, con-
4 As personagens e os centros do quadro - Do plano de fundo, o
visitante olha as personagens dos primeiros planos: o pintor, à
esquerda; um homem e uma mulher, à direita; ainda à direita e
mais à frente, dois anões; e, no meio, a princesa entre duas
damas de companhia. Dois pontos centrais parecem comandar
a composição do quadro: o espelho a refletir os modelos, e o
olhar firme da princesa realçado em primeiro plano. Mas esses
dois pontos parecem estar ambos direcionados para um ponto
convergente: trata-se do espaço claro à frente do quadro, a demarcar o limite impreciso entre o seu interior e o seu exterior.
É o espaço olhado pelo pintor e as personagens, mas donde,
supostamente, os modelos olham o pintor e as personagens.
Espaço ocupado e vazio ao mesmo tempo, ao mesmo tempo
sujeito e objeto do olhar ausente e presente, é ele o centro principal do quadro. Um centro soberano, e duplamente soberano:
porque comanda a composição de todo o quadro e porque supostamente ocupado por "soberanos" (o rei e a rainha). No
interior do quadro é o lugar do modelo, isto é, do rei; mas,
como que prolongável para fora do quadro, esse espaço é também o lugar do espectador que olha e é olhado; é também o
lugar do visitante que assiste à cena e é o espectador projetado
para dentro da representação; e ainda, afinal, o lugar do pintor
real, que na verdade se olha como seu próprio modelo para se
representar. O espaço vazio faz do quadro como um todo o que
o espelho faz no interior do quadro: assim como no espelho o
rei ausente está presente, mas "por reflexo", assim também O quadro como um todo torna presentes, mas "por reflexo") o modelo real, o pintor real e o espectador real. Nesse espaço, só há
lugar para o sujeito no plano de representação; é nesse espaço,
afinal, que poderá ser enunciado o cogito cartesiano e onde podeeducação
E'
saber soberano
I S3