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Foucault: os Intelectuais e o Poder
Nildo Viana*
A obra de Michel Foucault é amplamente conhecida mundialmente e exerce uma
grande influência nos acadêmicos e diversos movimentos sociais. Nesse sentido, é
interessante abordar sua tese sobre os intelectuais, que, em sua obra, está intimamente
ligada à questão do poder. Assim, vamos analisar as proposições básicas da concepção
foucaultiana sobre os intelectuais e sua relação com o poder, para demonstrar a nossa tese
de que elas não se sustentam.
Sem dúvida, a obra de Foucault já recebeu várias críticas, algumas mais profundas
e elaboradas, outras menos. Porém, no geral, partiam de uma perspectiva que mereceria
também ser criticada. Desde aqueles que questionaram Foucault apenas como pretexto para
defender suas ideias indefensáveis (Baudrillard, 1984), até aqueles que esboçaram uma
análise mais ampla e totalizante, mas que não saiu do esboço (Mandosio, 2011), temos um
conjunto de questões sobre seu pensamento que mereceria uma análise crítica. Aqui o nosso
foco é apenas sua concepção de intelectuais, e, secundariamente, sua relação com o poder,
o que está bem unido no pensamento de Foucault. Obviamente, que, em determinados
momentos, isso envia para outras questões, o que será ocasional e de acordo com as
necessidades do desenvolvimento da reflexão e da crítica.
Foucault e o Intelectual Específico
O principal elemento do pensamento de Foucault sobre os intelectuais é a criação
da figura do “intelectual específico”. Essa figura misteriosa, criação imaginativa e
inovadora, no fundo, retirando a carcaça ideológica oferecida por Foucault, é algo bem
comum e corriqueiro. No entanto, é necessário primeiro mostrar a inversão para realizar a
reinversão da realidade. Foucault cria a figura do intelectual específico em oposição ao
“intelectual universal”:
“Esta figura nova tem uma outra significação política: permitiu senão soldar, pelo
menos rearticular categorias bastante vizinhas, até então separadas.O intelectual
era por excelência o escritor: consciência universal, sujeito livre, opunha-se
àqueles que eram apenas competências a serviço o Estado ou do Capital
(engenheiros, magistrados, professores).Do momento em que a politização se
realizar a partir da atividade específica de cada um, o limiar da escritura como
marca sacralisante do intelectual desaparece,e então podemse produzir ligações
transversais de saber para saber, de um ponto de politização para outro. Assim, os
magistrados e os psiquiatras, os médicos e os assistentes sociais,os trabalhadores
de laboratório e os sociólogos podem, em seu próprio lugar e por meio de
intercâmbios e de articulações, participar de uma politização global dos
intelectuais. Esse processo explica por que, se o escritor tende a desaparecer
2. 2
como figura de proa, o professore a universidade aparecem, talvez não como
elementos principais, mas como ‘permutadores’, pontos de cruzamentos
privilegiados. A causa da transformação da universidade e do ensino em regiões
ultrassensíveis politicamente acha-se sem dúvida aí. A chamada crise da
universidade não deve serinterpretada como perda de força, mas, pelo contrário,
como multiplicação e reforço dos seus efeitos de poder no meio de um conjunto
multiforme de intelectuais em que praticamente todos são afetados porela e a ela
se referem. Toda a teorização exasperada da escritura que se assistiu no decênio
60, sem dúvida não passava de canto do cisne: o escritor nela se debatia pela
manutenção de seu privilégio político. Mas o fato de que tenha se tratado
justamente de uma ‘teoria’, que ele tenha precisado de cauções científicas,
apoiadas na linguística, na semiologia, na psicanálise, que esta teoria tenha tido
suas referencias em Saussure ou Chomsky, etc., que tenha produzido obras
literárias tão medíocres, tudo isto prova que a atividade do escritor não era mais o
lugar da ação” (Foucault, 1989, p. 9-10).
Este novo tipo de intelectual, o novo protótipo do revolucionário e contestador,
emerge numa época determinada.
“Parece-me que esta figura do intelectual ‘específico’ se desenvolveu a partir da
Segunda Grande Guerra. Talvez o físico atômico – digamos em uma palavra, ou
melhor, com um nome: Oppenheimer – tenha sido quem fez a articulação entre
intelectual universal e intelectual específico. É porque tinha uma relação direta e
localizada com a instituição e o saber científico que o físico atômico intervinha;
mas já que a ameaça atômica concernia a todo o gênero humano e o destino do
mundo, seu discurso podia ser ao mesmo tempo o discurso do universal. Sob a
proteção deste protesto que dizia respeito a todos,o cientistas atômico
desenvolveu uma posição específica na ordem do saber. E, creio, pela primeira
vez o intelectual foi perseguido pelo poder político, não mais em função de seu
discurso geral, mas por causa do saberque detinha: é neste nível que ele se
constituía como um perigo político” (Foucault, 1989, p. 10).
Isso vale tanto para os intelectuais do mundo ocidental quanto para os da antiga
União Soviética. Porém, o intelectual específico “se preparava há muito tempo nos
bastidores, estava mesmo presente em um canto do palco desde, digamos, o fim do século
19” (Foucault, 1989, p. 11). E onde Foucault encontra exemplo destes primeiros e ainda
incompletos intelectuais específicos? Na biologia evolucionista do século 19:
“É sem dúvida com Darwin, ou melhor, com os evolucionistas pós-darwinianos,
que ele começa a aparecer nitidamente. As relações tempestuosas entre o
evolucionismo e os socialistas, os efeitos bastante ambíguos do evolucionismo
(por exemplo, sobre a sociologia, a criminologia, a psiquiatria, o eugenismo),
assinalam o momento importante em que, em nome de uma verdade científica
‘local’ – por importante que seja – se faz a intervenção do cientista nas lutas
políticas que lhe são contemporâneas” (Foucault, 1989, p. 11).
Assim, “Darwin representa o ponto de inflexão na história do intelectual
ocidental”. A biologia e a física eram “as zonas de formação desse novo personagem, o
intelectual específico” (Foucault, 1989, p. 11)1. A partir dos anos 1920, a figura do
1 Essa concepção não apresenta continuidade com a ideologia das epistemes desenvolvidas em As
Palavras e as Coisas (Foucault, 1987), obra de sua época estruturalista,que ele busca fazer de conta que
não houve nenhuma ruptura em seu pensamento, algo difícil de sustentar.Obviamente que nem a
ideologia anterior (Viana, 2000a; Mandosio,2011), nem a posterior, se sustentam.
3. 3
intelectual específico ganha espaço e forma com o desenvolvimento das estruturas técnico-
científicas e, ao mesmo tempo, se coloca em risco:
“Admitamos, como o desenvolvimento das estruturas técnico-científicas na
sociedade contemporânea, a importância adquirida pelo intelectual específico há
algumas dezenas de anos e a aceleração deste movimento desde 1920. O
intelectual específico encontra obstáculos e se expõe a perigos. Perigo de se
limitar a lutas de conjuntura,a reivindicações setoriais. Risco de se deixar
manipular por partidos políticos ou por aparelhos sindicais que dirigem estas
lutas locais. Risco principalmente de não poder desenvolverestas lutas pela falta
de uma estratégia global e de apoios externos. Risco também de não ser seguido
ou de o sersomente grupos muito limitados” (Foucault, 1989, p. 12).
Diante deste quadro, não resta a Foucault nada mais do que propor a reelaboração
da função do intelectual específico. Isso, ele logo se apressa em corrigir, não significa a
necessidade de voltar ao intelectual universal. O intelectual específico ocupa um lugar
estratégico e é constrangido “a assumir responsabilidades políticas enquanto físico atômico,
geneticista, informático, farmacologista, etc.” (Foucault, 1989, p. 12).
Foucault deriva dessa discussão a questão da verdade. A verdade não existe longe
ou fora do poder, ou mesmo sem ele. Ela é deste mundo e está indissoluvelmente ligada a
ele, sendo que cada sociedade cria o seu “regime de verdade”, tipos de discurso acolhido e
tidos como verdadeiros; mecanismos e instância que realizam a distinção entre os falsos e
verdadeiros enunciados; técnicas e procedimentos valorados para se chegar à verdade; o
estatuto daqueles que definem a verdade. Ela está inserida no processo social, entrelaçada
com o poder econômico e político, com o consumo e difusão, submetida ao controle de
grandes aparelhos políticos e econômicos, sendo objeto de debate e luta. O intelectual não
deve ser visto como portador de valores universais e sim alguém que tem uma posição
específica ligada às funções gerais do dispositivo de verdade em nossa sociedade.
“Em outras palavras, o intelectual tem uma tripla especificidade: a especificidade
de sua posição de classe (pequeno burguês a serviço do capitalismo, intelectual
‘orgânico’ do proletariado); a especificidade de suas condições de vida e de
trabalho, ligadas à sua condição de intelectual (seu domínio de pesquisa,seu
lugar no laboratório, as exigências políticas a que se submete, ou contra as quais
se revolta, na universidade, no hospital,etc.); finalmente, a especificidade da
política de verdade nas sociedades contemporâneas.É então que sua posição pode
adquirir uma significação geral, que seu combate local ou específico acarreta
efeitos, tem implicações que não são somente profissionais ou setoriais. Ele
funciona ou luta ao nível geral deste regime de verdade, que é tão essencial para
as estruturas e para o funcionamento de nossa sociedade.Há um combate ‘pela
verdade’ ou, ao menos, ‘em torno da verdade’ – entendendo-se,mais uma vez,
que por verdade não quero dizer ‘o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou
a fazer aceitar’, mas o ‘conjunto das regras segundo as quais se distingue o
verdadeiro do falso e se atribuir aos verdadeiros efeitos específicos de poder’;
entendendo-se também que não se trata de um combate ‘em favor’ da verdade,
mas em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-político dos
intelectuais não em termos de ‘ciência/ideologia’, mas em termos de
‘verdade/poder’. É então que a questão da profissionalização do intelectual, da
4. 4
divisão entre trabalho manual e intelectual, pode ser novamente colocada”
(Foucault, 1989, p. 13).
Eis que Foucault diz que isso parece “bem confuso e incerto” e que “não passa de
hipótese”. Daí ele diz que apresenta algumas proposições para diminuir a confusão. E para
tanto ele define verdade como “conjunto de procedimentos regulados” para a instituição da
veracidade dos enunciados e por isso está intimamente ligada ao sistema de poder. Este a
produz e a apoia e ela induz efeitos de poder que a reproduz. Não é algo superestrutural, tal
como na concepção marxista, e sim “condição de formação e desenvolvimento do
capitalismo” (Foucault, 1989, p. 14). Daí ele coloca sua tese básica do papel do intelectual:
“O problema político essencialpara o intelectual não é criticar os conteúdos
ideológicos que estariam ligados à ciência ou fazer com que sua prática científica
seja acompanhada por uma ideologia justa; mas saber se é possívelconstituir uma
nova política da verdade.O problema não é mudar a ‘consciência’ das pessoas,
ou o que elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de
produção da verdade” (Foucault, 1989, p. 14).
A grande questão política é a verdade, não se tratando de libertá-la do sistema de
poder, o que seria mera quimera, já que ela é poder. A questão é desvincular a verdade das
formas de hegemonia em que ela funciona.
Isto é o oposto do intelectual universal, tal como existiu nos séculos 19 e 20. Este
foi derivado do “homem da justiça”, da lei, que se opõe ao despotismo em nome da
universalidade da justiça e a equidade de uma lei. Este nasceu, segundo Foucault, do jurista.
“O intelectual ‘universal’ deriva do jurista-notável e tem sua expressão mais completa no
escritor, portador de significações e de valores em que todos podem se reconhecer”
(Foucault, 1989, p. 11). Já o intelectual específico é muito distinto do “jurista notável”, o
seu modelo é o do “cientista perito”.
O Intelectual, as Massas e o Poder
Derivado dessa discussão Foucault se posiciona diante do problema da teoria e das
massas. O intelectual maldito e o intelectual socialista eram politizados através da sua
posição na sociedade burguesa, na qual tinha uma relação com o sistema de produção
capitalista e sua ideologia, que o marginalizava, ou então através do seu próprio discurso
que apresentava determinada verdade mostrando relações políticas onde antes não se via.
Esta duas formas não coincidiam, mas não eram estranhas umas as outras e por isso o
intelectual maldito e o socialista se encontravam. Elas se confundiram em momento de
forte reação do poder, tal como depois de 1848, da Comuna de Paris, e também de 1940,
sendo perseguido e rejeitado2. A relação entre intelectual e massas mudou:
2 A precisão de Foucault aqui é duvidosa,já que não cita exemplos concretos e que basta recordar a
5. 5
“Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não
necessitamdeles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor
do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra,
proíbe, invalida esse discurso e esse saber.Poder que não se encontra somente
nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito profundamente,
muito sutilmente em toda a trama da sociedade.Os próprios intelectuais fazem
parte desse sistema de poder, a ideia de que eles são agentes da ‘consciência’ e do
discurso também faz parte desse sistema. O papel do intelectual não é mais o de
se colocar ‘um pouco na frente ou um pouco de lado’ para dizer a muda verdade
de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao
mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber,da ‘verdade’, da
‘consciência’ do discurso” (Foucault, 1989, p. 71).
A teoria não traduz (ou expressa, aplica) uma prática, pois ela mesma é uma
prática. Porém, é “local e regional”, “não totalizadora”. Ela luta contra o poder, buscando
torná-lo visível, justamente onde ele é mais invisível. Não se trata, segundo Foucault, de
lutar pela “tomada de consciência”, pois ela está adquirida pelas massas há muito tempo,
mas para destruir o poder para tomá-lo ao lado de todos que lutam por isso. Uma
determinada teoria nada mais é do que “o sistema regional dessa teoria”. Deleuze concorda
e avança na discussão com Foucault: “a teoria não totaliza; a teoria se multiplica e
multiplica. É o poder que por natureza opera totalizações e você diz exatamente que a teoria
por natureza é contra o poder” (apud. Foucault, 1989, p. 71). Assim, a reforma é “estúpida e
hipócrita”, afirma Deleuze, mas não a reforma reivindicada, que é “exigida por aqueles a
quem ela diz respeito, e aí deixa de ser uma reforma, é uma ação revolucionária que por seu
caráter parcial está decidida a colocar em questão a totalidade do poder e de sua hierarquia”
(apud. Foucault, 1989, p. 72).
É neste contexto que Foucault retoma a questão do poder: “onde há poder, ele se
exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce
em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem
o detém; mas se sabe quem não o possui” (Foucault, 1989, p. 75). Assim, a luta deve ser
“foquista”3, fragmentada:
“Cada luta se desenvolve em torno de um foco particular de poder(um dos
inúmeros pequenos focos que podemser um pequeno chefe, um guarda de HLM,
um diretor de prisão, um juiz, um responsávelsindical, um redator-chefe de um
jornal). E se designar os focos,denunciá-los, falar deles publicamente é uma luta,
não é porque ninguém ainda tinha tido consciência disto, mas porque falar a esse
respeito – forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer quem fez, o
que fez, designaro alvo – é uma primeira inversão de poder. Se discursos como,
por exemplo, os dos detentos ou dos médicos de prisões são lutas, é porque eles
confiscam, ao menos por um momento, o poder de falar da prisão, atualmente
monopolizado pela administração e seus compadres reformadores. O discurso de
posição dos intelectuais que, na sua maioria esmagadora, foi contrária ao comunardos e a revolução
proletária (cf. Lidski, 1971).
3 Obviamente que não no sentido guevarista,mas de lutas localizadas.
6. 6
luta não se opõe ao inconsciente:ele se opõe ao segredo” (Foucault, 1989, p. 76).
Cada um lutando onde sofre a opressão, servem à causa da revolução proletária.
Os doentes nos hospitais, as mulheres, os prisioneiros, etc. Estas lutas fazem parte do
movimento revolucionário, desde que sejam radicais, “sem compromisso nem reformismo”,
sem a pretensão de reorganizar o poder com a “mudança de titular”. Ao combater todos os
mecanismos de coerção e poder em todos os lugares, nos quais o poder se reproduz, então
estão ligados ao movimento revolucionário do proletariado. Por fim, a conclusão é a
seguinte:
“Isto quer dizer que a generalidade da luta certamente não se faz por meio da
totalização de que você [Deleuze – NV] falava a pouco,por meio da totalização
teórica, da ‘verdade’. O que dá generalidade à luta é o próprio sistema de poder,
todas as suas formas de exercício e aplicação” (Foucault, 1989, p. 78).
Intelectual Específico ou o Elogio do Idiotismo da Especialização
A produção intelectual de Foucault parece ser ampla, produto de erudição e
pesquisa aprofundada. Porém, a fachada pomposa de grande edifício apenas esconde o
casebre modesto que é o real por detrás da ilusão. A discussão sobre intelectual específico e
intelectual universal em Foucault é destituída de concreticidade, é mera especulação
metafísica e empobrecedora, pois quando fala de indivíduos reais e concretos, os reduz a
coisas metafísicas e quando coloca coisas metafísicas, atribui-lhes caráter concreto.
O que Foucault chama de intelectual específico é o especialista. É o intelectual
profissional, produto do desenvolvimento capitalista, pertencente a uma classe social nova,
oriunda das necessidades de divisão social do trabalho do capitalismo. O que ele contrapõe
ao intelectual específico, é o intelectual universal e este é o intelectual no “sentido político”
e não “sociológico ou profissional da palavra” (Foucault, 1989, p. 10). No fundo, o
intelectual específico é o intelectual como membro da intelectualidade, uma nova classe
social, que tem suas múltiplas divisões e subdivisões, desde a divisão de fração de classe
até a divisão por categorias profissionais. O intelectual universal é uma abstração, é a
imagem do intelectual engajado ou das várias concepções referentes ao “papel do
intelectual”, onde se cobra dele uma posição e uma função político-social. Trata-se de sua
“autoimagem ideológica” (Viana, 2011a). Esse geralmente é apresentado como tendo uma
vocação universalista e como representante dos direitos universais do homem (Viana,
2011a). A posição de Foucault é uma oposição frontal à concepção de Sartre (1994),
segundo o qual, o intelectual “moral” (ideal), deve ser universalista, lutar contra as
ideologias e pela verdade, enquanto que o intelectual, membro da classe da
intelectualidade, tem que ser superado por essa investidura moral.
7. 7
A contraposição de Sartre entre estes dois tipos de intelectuais é aceitável
porquanto ele distingue o ser-de-classe do intelectual e o recusa, apresentando o seu dever-
ser, que é a negação do seu ser. Ele não desconsidera o concreto, o ser-de-classe, apenas o
nega e o faz no sentido de colocá-lo ao lado da classe revolucionária de nossa época, o
proletariado. O que Foucault faz é recusar qualquer compromisso com a transformação
social ao apelar para o intelectual específico, que ficaria reduzido à sua especificidade, à
sua determinação de classe e, portanto, como produto do capital e para o capital.
Acrescentando a afirmação ilusória de que assim ele seria “revolucionário”.
Foucault apenas dá nome novo a algo velho: o intelectual de carne e osso,
integrante da intelectualidade como classe social, profissional, passa a se chamar
“intelectual específico” e valorado enquanto tal4. O intelectual “moral” ou “ideal”,
abordado desde Fichte e Hegel até os dias de hoje, que buscam enfatizar o compromisso do
intelectual com a humanidade, mesmo que numa perspectiva burguesa, é simplesmente
descartado por Foucault. Ou seja, basta continuar com seu trabalho de especialista e está
tudo resolvido.
O que ele acrescenta de novo é que o questionamento neste aspecto possui um
caráter contestador, o que é totalmente sem sentido. Isso por dois motivos: em primeiro
lugar, a partir da própria especialização, não há questionamento, apenas execução e
reprodução. Inclusive num sentido extremamente conservador, que pode ser mesmo
fascista5. Em segundo lugar, nessa situação não existem elementos para questionamento.
Um médico tem que tratar dos doentes e é a isso que ele se dedica, não aborda o problema
da produção social da doença e se faz isso, é o médico humanista, aquele que, não pela
profissão e interesses gerados por ela, mas contra ela, avança e busca ir mais longe. O
médico possui interesse na doença, pois essa é sua razão de ser enquanto especialista.
Somente sendo humanista (abstrato ou burguês, ou concreto ou revolucionário) é que
4 Não custa lembrar que Foucault inclui nessa situação,os médicos, os psiquiatras,etc., e faz isso para
recuperar a importância destes setores,que,segundo ele mesmo, são desqualificados pela esfera
científica e foram seu “objeto de estudo”.Todos buscamvalorar seu objeto de estudo, pois assim
valoram, ao mesmo tempo, sua pesquisa e a si mesmo. Esse processo de autovaloração é apenas um
capítulo do processo de formação social dos valores (Viana, 2007).
5 Isto lembra o filme A Questão Humana (Nicolas Klotz, França, 2007). Neste, o personagemcentral é
um psicólogo que a empresa solicita fazer uma lista de trabalhadores para serem demitidos e ele,
usando alguns critérios da psicologia, faz a lista. Posteriormente, ele é chamado para investigar o caso
de um dos diretores envolvidos com o nazismo e acaba encontrando um ex-motorista de caminhão que
levava judeus para as câmaras de gás e este explicou que a justificativa deles em compactuar com isso
era: “estamos apenas fazendo o nosso trabalho”.Logo, o psicólogo passou a ter consciência de que sua
justificativa e prática não era muito distinta. O filme apenas revela uma verdade cruel: o especialista é
anti-humanista, e o humanismo é antiespecialista. O elogio da especialização e do especialista é o ovo
da serpente (Viana, 2002) que pode chocar o fascismo.
8. 8
poderá ultrapassar o seu universo técnico, especializado, limitado e seus interesses
individuais/profissionais (logo, de especialista) para realizar uma crítica das instituições,
das ideologias e das pseudossoluções apresentadas pela esfera médica. É por isso que
muitas vezes o médico, mesmo sabendo das determinações que atuam em sua prática
cotidiana, inclusive o capital farmacêutico e o uso de remédios problemáticos que criam
novas doenças, não se rebela, pois isso seria agir contra ele mesmo enquanto profissional.
Foucault propõe isso por vários motivos. O primeiro, já aludido, é a autovaloração
do seu objeto de pesquisa. Ele mesmo revela isso, ao dizer que quando escreveu História
da Loucura ou O Nascimento da Clínica (Foucault, 1997; Foucault, 1980), o que lhe
preocupava era a relação saber e poder, e que seu estudo sobre medicina e psiquiatria
mostrava as ligações entre estes dois termos, o que estava relacionado com as instituições
(hospício e hospital). Porém, e aqui se revela o seu segredo, isso não foi considerado
importante, ou seja, não foi valorado pelos outros:
“O que me ‘desconcertou’um pouco,na época, foi o fato de que esta questão que
me colocava não interessou em absoluto aqueles para quem eu a colocava.
Consideraram que era um problema politicamente sem importância, e
epistemologicamente sem nobreza” (Foucault, 1989, p. 2).
Assim, sua tarefa seguinte foi “enobrecer” e valorar seus objetos de estudo, ou
seja, suas pesquisas, publicações e a si mesmo. Mas como algo que não tem valor social ou
para outros grupos e classes (não tem valor para as classes exploradas e nem para a
intelectualidade) pode ser valorado? Ora, a estratégia é simples: tentar aproximar isso das
“massas”, por um lado, e, por outro, da intelectualidade. Foi o que Foucault fez
efetivamente.
No entanto, era uma tarefa difícil, pois o que Foucault buscava revalorar, acabava
de ser extremamente desvalorado no período histórico anterior. A figura do intelectual
específico construída por ele, é a do especialista. Por isso ele encontra seus precedentes no
século 19, quando as ciências naturais aumentam sua divisão do trabalho interna e emergem
as ciências humanas. É a criação da especialização intelectual crescente e Darwin é
paradigma no caso da biologia, no qual veio para suplantar Jean-Baptiste Lamarck, que era
um filósofo e erudito, que elaborou uma teoria da evolução mais ampla e menos ideológica,
mas ainda demasiadamente abstrata e foi o seu sucessor que empobreceu a análise da
evolução das espécies com sua especialização e pobreza metodológica. Porém, o intelectual
especialista representado por Darwin não era apenas uma figura mais pobre
intelectualmente, mas também mais conservadora, e seus vínculos com o poder e com a
eugenia não são gratuitos (Viana, 2001; Marco, 1987; Prenant, 1940; Viana, 2009a; Viana,
9. 9
2003).
A sua discussão sobre Oppenheimer é sem sentido ou a única explicação é a de sua
“função de impressionar o leitor” (Mandosio, 2011, p. 54). Esse físico atômico teria sido
perseguido por ser dono de um saber específico6, tal como na citação feito no início do
presente artigo e não por seu “discurso geral”. Porém, a realidade é bem diferente.
Oppenheimer sempre participou das disputas e questões políticas gerais (guerra civil na
Espanha, quando foi partidário dos republicanos, financiou organizações antifascistas, etc.)
e foi perseguido pelo marchartismo, devido suas antigas ligações com o indivíduos de
esquerda ou do Partido Comunista. Isso nada tinha a ver com seu saber específico, e
Foucault cita um único exemplo que não só não confirma sua hipótese como a contradiz.
Outra motivação de Foucault é a tentativa conservadora de recuperação da
legitimidade da universidade e do saber científico especializado. Na sua preocupação em
fazer o elogio do intelectual específico, ele cita o professor e a crise da universidade, além
de médicos, psiquiatras, sociólogos e outros. O intelectual universal, o escritor, desaparece
e em seu lugar surge o professor e a universidade. A crise da universidade é citada
explicitamente por ele para dizer que isso não significa “perda de força”. Ora, a crise da
universidade da qual ele se refere é a provocada pela insurgência do movimento estudantil
radical do final dos anos 1960, quando ocorre um processo de questionamento desta
instituição, da ciência (em geral e em caso de disciplinas especializadas como a sociologia
e a antropologia), da produção intelectual gerada por ela, que atingiu maior intensidade na
Itália, Alemanha e, principalmente, na França.
Um dos estopins de todo esse processo foi o Plano Fouchet para reforma da
universidade, que precarizada o sistema francês de ensino superior. Porém, Foucault
participou da produção dessa reforma:
“Em 1965, integra o júri da École Nationale d’Administration, viveiro da alta
burocracia francesa, e participa (como membro de uma comissão) da reforma da
Universidade lançada pelo ministro Christian Fouchet, que entrará em vigor em
1967 – ‘um dos grandes projetos do gaullismo e mais particularmente de Georges
Pompidou, o Primeiro Ministro’, lembra Didier Éribon, informando que
‘Foucault levou muito a sério sua participação no estabelecimento da reforma’.
Chegam a lhe oferecer o posto de subdiretorde ensino superior no Ministério da
Educação Nacional. Esta proposta,que ele havia aceitado, não chegou a lugar
nenhumdevido a uma campanha orquestrada contra ele por conta de suas
6 Uma afirmação que não tem a menor base real. Foucault cita Oppenheimer como um caso que, no
fundo, contradiz sua tese e não apresenta mais nenhumexemplo que mostre que alguém é perseguido
por ser dono de um “saber específico”, ou seja, especializado. Isso é mais grave se notarmos que é
possívelestabelecer vínculos da física como saber especializado e os “sistemas totalitários”, que é algo
que merece estudos mais aprofundados e já possuialguns esboços (Abramczuk, 1981).
10. 10
preferências sexuais” (Mandosio, 2011, p. 41)7.
Foucault, que também foi convidado pelo governo para participar da reforma do
sistema penal, busca recuperar a universidade justamente por que sempre esteve do lado do
poder e até foi participante da reforma universitária contestada pelos estudantes parisienses.
Como bem disse Mandosio, “a invenção do ‘intelectual específico’, que os comentaristas de
Foucault levam a sério, era uma operação visando recuperar a imagem dos professores
universitários, bastante maculada depois de Maio de 1968” (Mandosio, 2011, p. 56). No
fundo, Foucault faz parte do conjunto de intelectuais a serviço do poder que buscaram,
intencionalmente ou não, dependendo do caso, realizar uma contrarrevolução cultural
preventiva (Viana, 2009b), retomando temas, ideias, críticas, presentes no movimento que
culminou com o Maio de 1968, mas retirando-lhe a criticidade ao despolitizar estes temas e
questões e faz isso justamente retirando a sua inserção na totalidade das relações sociais8.
A crítica do cotidiano, a crítica da razão instrumental, etc., no qual o elemento da
realidade criticado está intimamente vinculado com a reprodução da totalidade social, ou
seja, do capitalismo, o que mostra seu vínculo com o poder (estatal e do capital), são
abandonadas e substituídas por crítica a objetos isolados. Assim, se produz ideologias que
isolam o cotidiano e o despolitizam, ao contrário da crítica realizada anteriormente por
Debord (1997) e os situacionistas, por Henri Lefebvre (1990), entre outros, ou então a
crítica da razão instrumental realizada pela Escola de Frankfurt, que se vê transformada
numa despolitizada e irracionalista crítica da razão em geral (Viana, 2009b), entre outros
exemplos que poderiam ser citados.
Mandosio afirma que “se Foucault tivesse cortejado menos os marxistas-leninistas
depois do Maio de 1968” e tivesse dado uma olhada no livro de Raol Vaneigen, A Arte de
Viver para as Novas Gerações, “não teria forçado tantas portas escancaradas”. Sem dúvida,
a leitura desse texto situacionista, e de diversos outros de Debord, Lefebvre, Marcuse,
Gorz, Sartre, entre outros, teria sido suficiente. Porém, se Foucault tivesse alguma
consciência ou ligação com a esquerda não-oficial desde os anos 1920, já saberia de que
muito do que ele disse pensando ser inovador é algo bem velho e que foi tematizado de
7 “Tudo isto, sublinha Éribon, ridiculariza totalmente os ensaístas [Ferry e Renault] que quiseram
destrinchar nas obras publicadas por Foucault nos anos 60 os esquemas fundadores de um ‘pensamento
de 68’ em estreita relação com os eventos do mesmo nome’”(Mandosio, 2011, p. 41).
8 Por isso não tem o menor sentido falar em “súbita desilusão com o engajamento político” (Habermas,
2002, p. 360) por parte de Foucault a partir do Maio de 1968, pois ele nunca aderiu efetivamente a
qualquer engajamento e vai ensaiar isso, nas prisões,após esse processo,que,inclusive, se aproxima
dos maoistas, após a Revolução Cultural chinesa,de forma oportunista,como tantos outros intelectuais.
Mandosio mostra seus vínculos com o poder, antes,durante e depois do Maio de 1968, evento com o
qual ele não tem nenhuma relação (Mandosio, 2011).
11. 11
forma muito mais profunda do que o passeio superficial que ele fornece para a questão dos
intelectuais, do poder, etc.
Foucault contribuiu com esse processo de contrarrevolução intelectual preventiva
intencionalmente? A sua preocupação com a “crise da universidade” e em resgatar o
“intelectual específico” parece não ser apenas um exercício ingênuo de seguir as modas.
Foucault era um seguidor das modas, mas todo um contingente de intelectuais
estruturalistas de antes de Maio de 1968 viraram pós-estruturalistas depois, e citar os nomes
de Baudrillard, Lyotard, Castoriadis, Jacques Le Goff e toda a terceira geração da Escola
dos Annales na historiografia com sua “história em migalhas”, é suficiente. Foucault, que
foi representante do estruturalismo (Viana, 2009b; Mandosio, 2011) apenas resolver criticar
a ideia de intelectual universal e isso tinha um segundo objetivo além de relegitimar o
intelectual específico: criticar as concepções anteriores ao Maio de 1968, explicitamente o
estruturalismo, mas, implicitamente, os seus adversários mais fortes nos anos de sua
hegemonia e vigência: o marxismo e o existencialismo.
O que ele chama de “teorização exasperada da escritura” da década de 1960, se
refere, por um lado, a ideia do intelectual universal (representada de forma mais explícita e
fundamental por Jean-Paul Sartre, mas que tinha ligações com o pseudomarxismo e com o
marxismo, marginalizado e defendido por poucos indivíduos e militantes na França dessa
época) e a categoria de totalidade, presente no estruturalismo, no marxismo e no
pseudomarxismo e de certa forma no existencialismo sartreano dessa época – que se
aproximou cada vez mais do marxismo9.
O que Foucault chama de “intelectual específico” é o especialista, produto do
desenvolvimento capitalista, cujas novas necessidades ampliar a divisão social do trabalho
e suas subdivisões, criando mais especializações e especialistas, tal como ocorreu a nível
geral da sociedade ou a nível específico em cada especialização, tal como no caso da
sociologia (Viana, 2011), para citar apenas um exemplo. Porém, a concepção de Foucault é
mera abstração metafísica que não dá conta e nem quer se aproximar da realidade concreta.
O especialista não pode confrontar o poder, no máximo, pode contestar moderadamente
apenas o seu lado aparente, sua aparência e solicitar interdisciplinaridade,
transdisciplinaridade, multidisciplinaridade, trabalho em equipe, reformas locais, etc.
O especialista, ou “intelectual específico”, não consegue realizar uma contestação,
9 Obviamente que a concepção de totalidade destas tendências eram diferentes ou mesmo radicalmente
diferentes, em alguns casos (estruturalismo e marxismo, por exemplo).
12. 12
porque na esfera de um saber específico não há espaço para qualquer questionamento
radical, inclusive porque, saindo da abstração metafísica de Foucault, os indivíduos
localizados em determinadas relações sociais, uma instância de atuação delimitada que cria
valores, concepções e interesses próprios, não se volta contra ela, pois seria se voltar contra
a si mesmo. A única possibilidade de romper com essas concepções e valores, é passando
por cima dos seus interesses de classe e outros como os de categoria profissional, sem
nenhuma perspectiva de ganhar algo com isso. E os únicos que podem fazer isso precisam
ser “intelectuais universais”, tanto no sentido de possuir uma concepção de totalidade
quanto de ter vínculos valorativos, sentimentais e intelectuais distintos, mais amplos e que
ultrapassam a especificidade profissional e de classe. Não saindo do reino da
especialização, da identificação com a profissão, a classe, etc., não se pode realizar uma
crítica radical da sociedade ou de aspectos dela.
Os intelectuais específicos diante das “massas”
A tese do novo papel do intelectual, que ao invés de questionar a si mesmo e sua
posição deve aceitar e reproduzir seu pequeno espaço de atuação, temos também novas
relações entre o intelectual e as “massas”. Segundo Foucault, o intelectual tem uma tripla
especificidade: a posição de classe, a especificidade de condições de vida e trabalho, e sua
posição diante da política da verdade na sociedade atual. Estes três elementos são
complementares e, portanto, revelam as teses básicas da ideologia foucaultiana sobre a
intelectualidade.
O primeiro ponto é apenas citado por Foucault, pois ele considera que o
intelectual, por sua posição de classe, é um “pequeno burguês” a serviço do capitalismo ou
“intelectual orgânico” do proletariado. O silêncio sobre esse aspecto é curioso, e,
posteriormente, em outro texto e momento, ele volta a discutir a questão do proletariado.
Por isso apenas destacamos o silenciamento e o equívoco analítico de Foucault. O
intelectual, assim como qualquer outro indivíduo de qualquer outra classe, não pode ser
entendido apenas por referencia a posição de classe. A não ser que “posição de classe”,
para Foucault, signifique situação ou pertencimento de classe. Nesse último caso, somente
para os pseudomarxistas superficiais é que a palavra mágica “pequena burguesia” tem
algum efeito ou sentido. O intelectual não é um burguês, pequeno ou grande, pois não
extrai mais-valor do proletariado. Sem dúvida, ele fica com parte do mais-valor global, mas
não como capital e sim como renda, doada pela burguesia em troca dos seus serviços ao
capital (Viana, 2011a).
Porém, o que Foucault, confusamente parece querer dizer, é que a posição de
13. 13
classe é a posição assumida em relação a uma ou outra classe. Ou se define como pequeno
burguês a serviço do poder ou intelectual orgânico do proletariado. Aqui, novamente, a
figura do pequeno burguês não tem o menor sentido, pois como classe social a pequena
burguesia é politicamente insignificante e sem poder de atração sobre outras classes sociais.
Nesse sentido, só poderia ser como burguês, que é quem realmente está a serviço do capital.
A outra opção é, usando o termo equivocado e problemático de Gramsci, é ser um
“intelectual orgânico” do proletariado. Foucault não faz referência a Gramsci, pois se
fizesse seria outro motivo para contestar sua tese, pois mostra uma incompreensão do
significado do termo neste autor.
Porém, o mais curioso é que Foucault não diz como que o intelectual específico,
digamos, para usar um dos seus exemplos, um farmacólogo, assumiria uma posição
pequeno burguesa ou proletária em sua atividades especializada? Isso é um mistério, pois
para assumir a primeira posição (ou melhor, a posição burguesa), bastaria fazer o que
Foucault aconselha, trabalhar em seu domínio específico sem maiores preocupações e, para
assumir a segunda posição, deveria combater sua própria atividade específica e arriscar a
perder a mesma, o que significaria se tornar um “intelectual universal”. A tese de Foucault
é uma contradição insolúvel.
O segundo ponto, sobre sua especificidade de condições de vida e trabalho, ele
também não discute, o que mostra outro silenciamento. O que Foucault faz é apenas
afirmações genéricas sobre como um intelectual específico, sendo o que é, se contrapõe ao
poder. Não analisa nenhum caso concreto, pois se o fizesse, teria que refutar sua própria
tese e a própria história faz isso, afinal estamos numa sociedade marcada por milhões de
intelectuais específicos e nada vem mudando no mundo, principalmente graças a eles ou,
quando muda, é para pior. Basta ver os filósofos como Foucault e todos os pós-
estruturalistas e reparar que nada além de um novo conformismo pseudocrítico é o que se
instala. O caso de Oppenheimer, o único citado por ele, contradiz sua tese.
O terceiro ponto é o único que ele realmente aborda e é o mais abstrato e
ideológico, no sentido marxista do termo. Segundo Foucault, há uma luta em torno do
regime de verdade em nossa sociedade e o papel do intelectual específico é atuar
justamente aí. A sua luta local ou específica tem implicações para o regime de verdade, que
seria essencial para as estruturas e funcionamento de nossa sociedade. Porém, Foucault
logo alerta que a verdade ao qual ele está se referindo não são o “conjunto das coisas
verdadeiras”, seja, para descobrir, seja para fazer aceitar, e sim o “conjunto das regras pelas
quais se distingue o verdadeiro do falso” e se atribuir aos verdadeiros efeitos específicos do
14. 14
poder. Essa doce contradição – a verdade é apenas um conjunto de regras de imposição de
definição do que é verdadeiro ou falso e depois fala dos “verdadeiros efeitos específicos do
poder”, na qual a palavra derivada (“verdadeiros”) assume o papel antes recusado de
“coisas verdadeiras”. Porém, uma contradição mais grave existe em tudo isso e Habermas
já havia alertado para ela:
“O conceito foucaultiano de poder não autoriza a noção de um contrapoder
articulado em uma filosofia da história e baseado em privilégios cognitivos.Todo
contrapodermove-se no horizonte de poder combatido por ele e transforma-se,
tão logo saia vitorioso, em um complexo de poderque provoca um outro
contrapoder.A genealogia tampouco pode romper esse ciclo ao ativar a revolta
dos tipos desqualificados de saber e mobilizar o saberoprimido ‘contra a pressão
do discurso teórico, unitário, formal e científico’. Quem derrota as vanguardas
teóricas de hoje e supera a hierarquização existente do saberrepresenta ele
mesmo a vanguarda teórica de amanhã e constróiuma nova hierarquia de saber.
Em todo o caso,não pode pretender para seu saber nenhuma superioridade
segundo critérios de pretensões de verdade que transcendamas convenções
locais” (Habermas, 2002, p. 393).
A luta contra o regime de verdade produz outra verdade, outro poder10. Esta é a
contradição insolúvel de Foucault (Habermas, 2002). E a contradição fica mais forte se
recordarmos que a verdade não se refere a um conjunto de regras de imposição do que é
verdadeiro e falso, e, logo, não se refere a coisas verdadeiras, mas dispositivos de poder e,
assim, se troca uma verdade por outra, um poder por outro. Caso não haja troca e a solução
seja abandonar a luta em torno do regime de verdade, então se cai no imobilismo,
conformismo, impotência. Caso a solução seja lutar e impor um novo regime de verdade,
então é um novo poder, o que não leva a nenhuma mudança efetiva, nenhuma
transformação social. Levaria apenas à “mudança de titular”, que ele mesmo questionou, o
que é mais uma contradição.
Outra contradição é a que reside na sua definição de verdade. Se a verdade é
apenas uma forma de exercer o poder e não possui nada a ver com o conceito tradicional,
então a luta em torno da verdade é mera luta pelo poder e qualquer verdade dita também. O
que Foucault afirmou é verdade? Segundo sua própria tese, é apenas um jogo no qual ele
quer impor o seu poder sobre outros e, logo, não tem nenhuma validade. Ou seja, a partir
dessa tese que ele apresenta, tudo que ele mesmo disse perde a capacidade de ser verdade e
logo não tem valor nenhum. O seu discurso relativista, como todo relativismo, é um
discurso autofágico, que se destrói a si mesmo (Viana, 2002b). Porém, ele também é um
discurso da intelectualidade e serve para o processo de reprodução da sociedade existente,
está a serviço do poder, é um conservadorismo disfarçado de neutralidade, um positivismo
10 O conceito de poderem Foucault é metafísico (Viana, 2000a; Viana, 2003).
15. 15
mais refinado (Viana, 2000b).
Sendo assim, o intelectual específico ou não tem papel nenhum ou deve ser
combatido por reproduzir o poder. Curiosamente, Foucault afirma que “os intelectuais
descobriram recentemente” que “as massas não necessitam deles para saber”, pois “elas
sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem”
(Foucault, 1989, p. 71). Aqui parece uma concepção revolucionária de defesa da autogestão
das lutas por parte do proletariado (ou das “massas”, termo que ele reveza com
proletariado, o que dá a entender que significam, para ele, a mesma coisa).
Porém, trata-se de uma concepção não-revolucionária, pois, ao afirmar que as
“massas” já são conscientes, o que ele faz é o elogio do proletariado como classe
determinada, alienada, dominada pelo capital. Essa ideologia apenas reforça, assim, a
dominação do capital. A apologia do proletariado como classe determinada é a negação do
proletariado como classe autodeterminada e, portanto, revolucionária. Desde Marx foi
ressaltado a questão da autoemancipação proletária, que se dá via passagem de classe
determinada (pelo capital) para classe autodeterminada contra o capital e a si mesma como
classe, na qual ao invés de buscar a preservação de sua situação de classe busca sua própria
abolição, abolindo a sociedade de classes em geral (Viana, 2011c).
O que interessa aqui, no entanto, é o papel do intelectual específico. Ora, se as
massas sabem, então qual é o papel do intelectual específico? E do intelectual em geral?
Foucault diz que existe um sistema de poder que impede a manifestação da consciência das
massas, que está em toda a sociedade. Os próprios intelectuais são partes desse sistema,
bem como a ideia de que eles são agentes da consciência. Ora, as massas sabem, mas não
podem dizer. Assim, há a consciência, o que não há é sua manifestação. E para que seria
necessária sua manifestação? E que consciência é essa, um novo regime de verdade que
impõe um novo poder? Foucault não pode responder estas perguntas, pois os limites de sua
ideologia relativista e positivista não o permitem. O problema é a manifestação dessa
consciência já existente e o papel dos intelectuais é não ficar na frente e nem ao lado, mas
onde o poder está, em sua própria atividade, na ordem do saber e do discurso. Assim, o
intelectual não é agente da consciência, mas luta apenas em sua instância, o que é uma
contradição.
A questão, na verdade, é que para Foucault a teoria é uma prática, só que local e
regional, e, portanto, não totalizadora. A teoria, segundo Deleuze, que conta com o aval de
Foucault, “não totaliza”, apenas se “multiplica”. Daí a tese de que cabe ao poder realizar
“totalizações”. Se o poder é que realiza totalizações, então deve se abandonar a totalidade.
16. 16
Esse é o discurso do conservadorismo pós-estruturalista e pode ser visto tanto na
historiografia das mentalidades quando na obra de Lyotard (1986), entre inúmeros outros.
O poder é totalizante, logo, a teoria, a oposição, não pode ser totalizante.
Aqui a oposição entre intelectual universal e intelectual específico ganha maior
clareza. Porém, o curioso é como alguém pode levar tal discurso a sério, pois sendo o poder
totalizante, a resistência sendo local, então como poderia superar o poder? Isso poderia ser
ilustrado com um jogo de xadrez, no qual as peças brancas se organizam como um conjunto
orquestrado pelo rei e as peças pretas avançam desordenamente sem nenhuma coordenação.
Peão após peão cai, até que as peças mais fortes também e em pouquíssimo tempo ocorre o
xeque-mate. Claro que, na realidade, isso seria bem pior, pois nem todas as “peças pretas”
nem estariam em oposição às pelas brancas, e muitas estariam se digladiando entre si. Esse
tipo de ideologia beneficia a quem detém o poder e é um retrocesso em relação ao Maio de
1968, no qual se buscou articular as lutas estudantis com as proletárias e nesse contexto
abriram uma brecha que quase possibilitou uma tentativa de revolução social.
Mas o caráter conservador se revela mais ainda com as colocações de Deleuze,
aprovadas por Foucault: toda reforma é estúpida e hipócrita. Isto está correto. Mas a
solução alternativa é bem pior: a reforma reivindicada, exigida por aqueles que precisam
dela, não é reforma, é “ação revolucionária”. No fundo, o que se questiona aqui são as
reformas estatais (que hipócrita e estupidamente Foucault sempre apoiou e ajudou a
implementar) e as reformas reivindicadas por setores da população seriam ação
revolucionária. Isto não é explicado e justificado. A reforma do sistema prisional é “ação
revolucionária”? O que há de revolucionário nisso? A grande questão é que os dois
ideólogos pós-estruturalistas querem, exatamente com o discurso contra a totalização, é
abolir qualquer possibilidade de revolução, no sentido autêntico do termo, ou seja, uma
revolução social, que só pode ser total e não apenas local (e isto não somente se referindo a
grupos, locais, mas também em sentido amplo, deve superar a divisão social do trabalho e,
portanto o que se convencionou chamar de “econômico”, “político”, “cultural”, etc., o que
já está em Marx, mas também em conterrâneos de Foucault, tal como Debord e os
situacionistas, Lefebvre, etc.).
Toda reforma parcial coloca em questão a totalidade do poder e de sua hierarquia.
Claro que é mera afirmação sem fundamentação, o que é comum no caso de Deleuze e
Foucault. Nada justifica tal afirmação e, além disso, ela revela algo mais. Ela revela a
queda do Estado de bem estar social, o estado integracionista que emerge com o
capitalismo oligopolista transnacional em crise a partir do final dos anos 1960 (Viana,
17. 17
2009b). É uma ideologia e uma nova proposta política, que será posteriormente
implementada pelo Estado neoliberal e serão reforçadas por inúmeras outras ideologias e
propostas mais específicas, constituindo um microrreformismo.
Daí o caráter da luta se basear em focos isolados e o alvo passa a ser o diretor da
prisão, o pequeno chefe, o responsável sindical, e a luta de classes se transforma no
microrreformismo e em luta individual e pessoal. Porém, é o individual isolado e
descontextualizado, e, nesse sentido, mais uma mera semelhança com o neoliberalismo, o
indivíduo é responsabilizado. O problema é o segredo, mas o motivo do segredo e suas
relações e vínculos nunca são explicitados. E, assim, o problema da burocracia, por
exemplo, é apenas uma questão de denúncia e discurso contra os burocratas e a instituição
como abstração metafísica, e não contra a burocracia – classe e organização – e sua razão
de ser, a divisão social do trabalho instaurada para reprodução do capitalismo. Disso deriva
mais uma tese brilhante de Foucault, a generalidade da luta não se dá na totalização teórica
(obviamente que não, pois ela é apenas parte da luta, é na prática que ocorre a articulação
das lutas, só que tal articulação só ocorre com o desenvolvimento da consciência das
relações e da totalidade). Não se sabe como a luta dos doentes nos hospitais (luta contra o
quê? Esta seria uma pergunta a ser respondida), a luta das mulheres, dos prisioneiros, etc.
fazem parte do movimento revolucionário do proletariado, desde que sejam radicais e sem
compromisso ou reformismo.
Resta saber como que tais lutas poderiam ser radicais em seus locais e focos
isolados? O doente vai se revoltar contra o hospital? Contra os médicos? Contra o
tratamento? E vai propor o que no lugar? Se não fosse trágico, seria cômico ao imaginar
uma cena em que um grupo de doentes saindo de um hospital, alguns rastejando,
reivindicando abolição dos hospitais, ou mudança de sua direção (ou, o que seria mais
condizente, sua transformação num hospício...). Obviamente que existem elementos para se
criticar nos hospitais, nos tratamentos, etc., mas pensar que os doentes em um hospital
efetivariam tal atitude é apenas criar especulações abstratas sem sentido e que não sabe
como alguém leva isso a sério. Tanto mais quanto qualquer uma das alternativas aludidas
acima não passam de meras reformas e bastante restritas, mesmo que não seja só em um
hospital, seja em todos, afeta apenas uma instituição da sociedade. E qual ligação disso com
o movimento revolucionário do proletariado? Esse é mais um mistério que apenas os
místicos Foucault e Deleuze saberiam responder, com seu saber esotérico.
Considerações finais
Em síntese, a discussão de Foucault sobre os intelectuais e o poder apenas revela o
18. 18
vínculo deste intelectual com as relações de poder expressa em sua ideologia, o que apenas
manifesta a relação concreta que outros já demonstraram (Mandosio, 2011). A ideia de um
intelectual específico em substituição ao intelectual universal é apenas a forma
contemporânea assumida por uma das formas da ideologia dominante no sentido de
desmobilizar e retirar o compromisso que alguns intelectuais tinham com a luta proletária e
pela emancipação humana.
Porém, também tem o papel de legitimar e justificar um microrreformismo e a
desarticulação das lutas sociais em geral. No fundo, ambas as coisas provocam uma
tentativa de isolar o proletariado em sua luta pela transformação social, pois busca afastar
os intelectuais e demais grupos explorados e oprimidos de uma luta mais geral e articulada,
gerando a fragmentação, o isolamento, além de produzir ideologias que reforçam isso (e faz
isto dizendo que está fazendo justamente o contrário). O Maio de 1968 é o grande fantasma
que essa ideologia busca esconjurar.
Essa ideologia, ao lado de outras, teve uma certa eficácia e conseguiu reforçar
tendências conservadoras no interior da intelectualidade – que pode se dedicar aos seus
exercícios de especialista descomprometido com o pretexto de ser um intelectual específico
– e o microrreformismo em movimentos sociais, organizações políticas e propostas
produzidas por grupos ou indivíduos.
Porém, a análise que ultrapassa o seu próprio discurso mostra, na verdade, que a
ligação entre intelectuais e poder é indissolúvel, não apenas com as relações de poder nas
instituições, como quer Foucault, mas sim com o poder estatal que lança seus tentáculos
sobre todas elas, como demonstrou na sua prática o próprio Foucault. A única forma do
intelectual não servir ao poder é negando tanto o seu vínculo de especialista (“específico”)
quanto às pretensões do universalismo abstrato e outras ideologias sobre sua função e
papel, bem como rompendo com sua identificação de classe e profissional. O intelectual só
pode ser revolucionário negando-se a si mesmo como intelectual e lutando pela
transformação revolucionária da sociedade ao lado do proletariado.
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