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247
GAIJIN, CAMINHOS DA LIBERDADE
As Novas Perspectivas
A maioria absoluta dos filmes centra-se na estória. Seu objetivo
é narrar fatos e ocorrências, tecendo-os em trama dramatizada. Não se
apreendem e se expõem, pois, em si mesmos, o cotidiano e o fluir dos
acontecimentos.
Ao invés, procura-se encadeá-los numa ação das personagens
destinada ao atendimento de determinada finalidade.
Essa estruturação estabelece eixo diretivo semelhante a leito
fluvial por onde correm as águas, no caso, onde as personagens
desfilam seus atos e sua movimentação, no mínimo objetivando a
sobrevivência como essa massa líquida é impelida a desaguar no mar.
É incontestável que essa técnica restringe a visão da maneira
como se processa a existência humana, não abrangendo todas suas
manifestações e nuanças, tal como o álveo do rio impede o
espraiamento das águas e sua incursão pelos meandros da superfície
terrestre com as inevitáveis absorção, interação e/ou evaporação.
Contudo, não obstante a existência humana poder espalhar-se
em vários sentidos, essa eventualidade a faria concentrar-se em
círculos. No fenômeno físico dos rios, a gravidade e a impossibilidade
de vencer obstáculos concretos redirecionam as águas a buscar sempre
as declividades, nas quais necessariamente obtêm rumo e propósito.
Do mesmo modo, a conservação e a continuidade da vida impõem aos
seres humanos dedicarem-se ao trabalho para produção dos meios
adequados imprescindíveis a essas imposições, antes que desígnios.
248
É o que se articula e se narra no filme Gaijin, Caminhos da
Liberdade (1980), de Tizuka Yamasaki (Porto Alegre/RS, 1949-).
Apanhando seus protagonistas em interiorana aldeia japonesa, a
cineasta os traz ao Brasil no início do século XX como imigrantes
destinados às lavouras de café do Estado de São Paulo.
À evidência que nada do prometido e muito menos do almejado
pelos japoneses concretiza-se. Ao revés, desamparados de toda
proteção, seja da ainda inexistente legislação trabalhista brasileira,
seja da assistência do governo de seu país e da respectiva
representação diplomática no Brasil, os imigrantes (europeus e
asiáticos) vêem-se presas nas malhas da exploração pré-capitalista,
visto ainda preponderar à época no meio rural formas arcaicas de
relacionamento entre proprietários rurais e camponeses.
Sobre esse cruel background, Yamasaki constrói e tece o drama
de suas personagens, utilizando suas atividades e as imposições que
sofrem como fios da teia que os prendem.
A concentrada seleção de fatos, a narrativa vigorosa, as seguras
direção e interpretação dos atores, as apropriadas movimentação e
angulação da câmera, a pertinência dos décors de interiores e das
locações externas propiciam e injetam no filme tom epopeico, tão
mais elogiável quanto calcado, não em atos pomposos, mas
cotidianos, aos quais sua argúcia e eficácia direcional conferem
grandiosidade e heroísmo de mais difícil obtenção do que aqueles a
que se está acostumado a encontrar nos epos clássicos.
O trabalho braçal de sol a sol na apanha de café, sob o guante do
capataz, por sua vez pressionado e premido pelo patrão, que, com essa
atitude, insufla e dá vaza aos baixos instintos de subordinados
249
desqualificados, a restrita alimentação na tentativa de economizar os
parcos salários, de qualquer modo esvaídos nos preços extorsivos do
armazém fornecedor e da manipulação da escrita da fazenda, formam
quadro opressor, de escravização do indivíduo, que dele somente se
liberta pela morte prematura ou pela fuga desesperada.
Os caminhos da liberdade, tão otimisticamente anunciados no
título, ao contrário de ser os do Japão ao Brasil, perfazem, se não seu
oposto, dada a impossibilidade financeira de retorno às plagas
originárias, o rompimento com o statu quo e a busca das vias urbanas
de sobrevivência.
Yamasaki, ao elaborar sua ácida denúncia da exploração do ser
humano, mais, do que meramente de seu trabalho, compõe primoroso
hino à liberdade, no qual, além do vigor direcional e narrativo,
destacam-se a sutileza e a exata dosagem (de adequado realismo) da
construção dos relacionamentos humanos, de alta poeticidade em
inúmeras passagens, por força do requintado entretecimento do
convívio entre os protagonistas.
Enfim, um filme que vai imprimir à época (e à década) de sua
realização o selo de uma das mais significativas do cinema brasileiro,
malgrado tudo. (Ótimo)
250
DAS TRIPAS CORAÇÃO
O Avesso da Aparência
Costuma haver distância muito grande entre a percepção do
artista manifestada em muitas obras de arte e a desinformação e
conservadorismo de leitores e espectadores. Notadamente destes,
porque aqueles, quando se abalançam a ler um livro que não seja de
autoajuda ou best-seller digestivo, já possuem certo nível de
conhecimento.
A defasagem entre autores (escritores e cineastas) e leitores ou
espectadores costuma ser, principalmente, de duas ordens, justamente
as que compõem a obra: forma e conteúdo. Na primeira, quando o
autor explode a linguagem convencional ou, pelo menos, é inventivo e
criativo. No segundo, quando libertária e irreverentemente viola os
preceitos do comedimento e da geral hipocrisia.
Tanto numa quanto noutra hipótese, o receptor não afeito à
liberdade formal e temática reage escandalizado, não aceitando a
novidade. Nunca considera, porém, que seja sua a limitação e a falta
de compreensão. Atribui ao autor, no conhecido mecanismo de
transferência, a culpa da transgressão do estreito perímetro imposto
pela convenção e pelo conformismo, que nada mais são do que capas
protetoras de interesses econômicos arraigados e predominantes,
conforme o entendimento marxista da correspondência entre a
superestrutura mental e ideológica e a infraestrutura econômica. Aliás,
en passant, é bom que se advirta que quem não conhece e não estuda
o marxismo - livre, porém, tanto da subordinação quanto da ojeriza
251
ideológica - não tem possibilidade de entender os mecanismos que
regem a sociedade e, dentro dela, o posicionamento individual, sobre
o qual também incide fortemente o componente emocional, que não
pode ser olvidado ou minimizado.
Mas, o caso no filme Das Tripas Coração (1982), de Ana
Carolina (São Paulo/SP, 1949-), refere-se ao conteúdo, já que
formalmente cinge-se ao competente aproveitamento das
possibilidades da câmera e da linguagem cinematográfica. E não é
pouco e nem pequeno o domínio que atinge nesse manejo e nessa
utilização, a ponto de alcançar nível excelente.
Contudo, onde Ana Carolina transgride a prática convencional é
no processamento do tema que se propôs.
Sem sair das rotinas colegiais estabelecidas, a cineasta vai
corroendo o verniz que encobre o substrato latente ou vulcânico que
subjaz no interior da verdade humana individual e relacional, nem que
para isso distenda o fio de certas situações aos extremos de suas
possibilidades, a exemplo da atitude de colegial na missa ou nessa
oportunidade - e não em outra - circular baralho pornográfico com
efígie de santos numa das faces ou, ainda, carregue na caracterização
de certas personagens, a exemplo do servente da escola.
Em cada conduta individual e também na geral expõem-se
livremente as ânsias e sentimentos recônditos das personagens numa
sucessão ininterrupta de condutas insólitas e, por isso, chocantes.
Já se disse, talvez com algum exagero, que se as pessoas
soubessem o que vai no íntimo de cada uma (os desejos secretos, os
pensamentos incontroláveis, as fantasias descabeladas, a maldade, a
malícia e a inveja), os indivíduos nem ao menos se cumprimentariam.
252
No colégio em questão, todos os íncubos e súcubos da condição
humana manifestam-se com o desembaraço e a liberdade permitidas
por essa condição, já que não se pode ultrapassá-la sob pena de não se
ser mais humano, mas, deuses ou semideuses, cuja criação, pois,
corresponde à aspiração do ilimitado, com a transferência a essas
criaturas ideais e idealizadas de tudo aquilo que não somos e nem
podemos ou conseguimos fazer, desde voar a ser imortal.
Por isso, não se transpõem, no filme, os limites humanos,
mesmo porque cada um, por mais livre seja ou pretenda ser, carrega
consigo a enorme carga das heranças atávica e cultural.
O que as personagens de Ana Carolina fazem, no entanto, é
quebrar esse invólucro de restrições e conveniências sem se
desvincular da realidade possível. Se o padre capelão do colégio tem o
hábito de urinar pelos cantos e atrás das estátuas, dando trabalho
suplementar às faxineiras, essa atitude, convenha-se, é possível mental
e fisicamente, conquanto extravagante. Porém, dentro daquele mundo
caótico, exposto pelo avesso, do interior do ser para sua
exteriorização, esse costume não causa escândalo nem espanto.
Das Tripas Coração, título de maneira alguma gratuito, mas
revelador, é filme marcado por surrealismo sui-generis, já que adstrito
às possibilidades do real de conformidade com as singularidades da
natureza humana. Porém, seu grau de desenvoltura e mergulho no
âmago dessa condição é de tal maneira efetuado que chega a criar
realidade irreal, onde nessa projetada irrealidade espelha-se o
conteúdo interior do ser humano, domado e “civilizado” por milênios
de repressão, conveniências e necessidade de convivência com vistas à
própria sobrevivência da espécie.
253
Assim, não é despropositada, muito pelo contrário, a afirmação
do interventor do colégio de que era com satisfação que interferia no
estabelecimento.
Esse inimaginável fecho de ouro dessa que, num primeiro
momento de maior entusiasmo, poderia até ser considerada obra-
prima cinematográfica, encerra milênios de acumulação de
escamentos e crostas civilizatórias ou, consoante outro entendimento,
anticivilizatórias, já que construídas sobre os escombros da plena
liberdade individual, soterrada sob a sólida argamassa de interesses
concretos condicionadores e domesticadores. (Ótimo)
254
TABU
Ensaio Poético
O filme Tabu (1982), de Júlio Bressane, é tido como musical.
Todavia, não obstante estar enxameado de músicas de Lamartine
Babo, não chega a ser musical puro, visto não se enquadrar na
estrutura tradicional dessa categoria fílmica.
Ao contrário, Bressane, não se subordinando aos limites do
gênero, rompe-os para realizar verdadeiro ensaio poético
cinematográfico, revezando cenas de hipotético encontro entre
Osvaldo de Andrade (interpretado por Colé) e Lamartine Babo (por
Caetano Veloso), na presença e com a participação de outras
personalidades, uma delas, João do Rio, personificado por José
Lewgoy, com desfile de algumas das mais características e célebres
marchinhas de carnaval de autoria de Lamartine.
A junção e contextualização desses elementos fazem-se por
meio de criativa e, em certos momentos, esfuziante construção
imagética.
À sucessão dinâmica das imagens, propriedade cinemática,
aduz-se inventiva e livre utilização da câmera, que se movimenta em
todas as direções e em todas as velocidades, ora horizontal, ora
vertical, ora circularmente, em surpreendentes enquadramentos,
criando, em certas passagens, como os vanguardistas franceses e
alemães da década de 1920, visuais móbiles no fusionamento
estonteante de árvores, folhas e celeridade.
255
Nesse fazer, vão-se sucedendo tomadas e cenas urbanas,
(incluídas até partes de filmes pornôs) por onde transitam os
protagonistas, com imagens paisagísticas de forte apelo poético e
pictórico.
Entre estas últimas, salientam-se a sequência de uma das
personagens femininas separando conchas em cima de uma pedra, a
da dança na praia tendo como fundo o perene movimento de ondas
chocando-se contra as pedras, a focalização de perfil feminino
esbatido sobre fundo de letras e, ainda, exibições de dança sob vestes
transparentes e esvoaçantes, compondo antológica poética da imagem.
De suma importância, conquanto às vezes inaudível em
precárias cópias do filme, a dialogação entretecida pelos
protagonistas, correspondendo a todo um ideário estético da primeira
metade do século XX no Brasil.
Na série de manifestações dessa espécie, é de se destacar a
afirmativa de João do Rio (Lewgoy), de que “eu não faço poesia
quando quero, mas, quando a poesia quer”.
Sob o aspecto de interpretação dos atores e atrizes, que inclui
sua postura, Colé até fisicamente é um Osvald perfeito, não ficando
por menos o Lamartine Babo de Caetano, discreto e intelectualizado.
O interesse de Bressane pelo modernismo brasileiro e pela
figura de Osvald de Andrade, cuja veia libertária contamina sua
filmografia, manifesta-se em várias oportunidades, uma delas em todo
um filme, Miramar (1997), com base na obra do poeta e romancista
paulista, importante e contagiante presença no universo estético do
país, ao menos naquele que gravitava em torno do eixo Rio-São Paulo
256
(que não pode ser confundido com o Brasil) e de algumas capitais
estaduais. (Muito Bom)
257
MEMÓRIAS DO CÁRCERE
O Livro e o Filme
Graciliano Ramos (1892-1953) é um dos mais importantes
escritores brasileiros, o que significa, igualmente, do mundo, já que
em matéria cultural, conquanto o país produza pouco, o que faz de
mais relevante o é, da mesma forma, a nível mundial. Isso, sem
qualquer ufanismo ingênuo, mas, também, sem derrotismo
subserviente.
Seus romances - excetuado Caetés (1928, edição de 1933), que,
não obstante revelar o homem e o escritor, não atinge as culminâncias
de suas possibilidades - constituem, os três (São Bernardo, 1934;
Angústia, 1936; e Vidas Secas, 1938), obras-primas da literatura.
Mas, Graciliano esteve preso. Sem culpa formada, sem
processo, sem nada. Ignomínia e violência. Contudo, essa
circunstância permite o surgimento de suas Memórias de Cárcere
(1953), superior à Recordação da Casa dos Mortos (1860), de
Dostoiévski, o grande romancista russo, também vítima de arbítrio.
Nélson Pereira dos Santos, por sua vez, é um dos melhores
cineastas brasileiros, com filmografia de quase vinte longas metragens
de ficção, iniciada no idos da década de 1950 com o ótimo, malgrado
suas deficiências, Rio, 40 Graus (1955). Daí para cá suas realizações
apresentam pontos altos (Vidas Secas 1963; Como Era Gostoso o Meu
Francês, 1971) e baixos (O Amuleto de Ogum, 1974; Estrada da Vida,
1980; A Terceira Margem do Rio, 1994).
258
Entre os pontos altos, inclui-se Memórias do Cárcere (1984),
baseado no livro homônimo de Graciliano Ramos.
Esse segundo encontro entre o romancista e o cineasta repete a
performance do primeiro, com Vidas Secas. Só que, agora, o gênero
da obra é totalmente diverso. Não, contudo, mutatis mutandis, a
trajetória do romancista e da personagem Fabiano, de Vidas Secas, no
que tem de fundamental em suas origens e desvios de destino.
Um e outro, nordestinos. Fabiano é arrancado de seu habitat
pela concomitante incidência dos desequilíbrios da natureza e da
organização social. Graciliano, pelas injunções da política e pela força
do arbítrio e da prepotência. Depois disso, suas vidas não são mais as
mesmas. Ambos vítimas da violência, fisicamente fragilizados e
humilhados. Um dos casos em que autor e personagem, guardadas as
devidas proporções e, principalmente, diferenciações, têm igual sorte.
O cineasta, nesses filmes, capta e reconstitui o essencial de seus
percursos, percalços e perplexidades, tais quais fixados nas obras
originais.
Essas, suas grandes qualidades: a compreensão e assimilação
adequadas do pathos literário e sua correspondente efetivação em
termos de cinema, isto é, de décor, interpretação, estrutura, imagem e
montagem.
Do ponto de vista geral, não se pode dizer que há criação
original e autônoma, porque essa é pré-existente e seguida à risca.
Todavia, sob o prisma cinematográfico, ultrapassa-se a fase
reconstitucional para adentrar-se (e adensar-se) no terreno da criação.
259
Para o filme ser verdadeiramente cinema (grande cinema) é
indispensável que constitua criação artística específica e não simples
reconstituição técnica e material de argumento e roteiro.
Embora preso ao original, Nélson Pereira dos Santos atinge essa
condição em Vidas Secas.
Talvez porque não seja obra de ficção com suas sutis percepções
pessoais e liames relacionais interpessoais, no filme Memórias do
Cárcere o cineasta, também já mais maduro e experiente e testemunha
de regime ditatorial semelhante, atinge maior grau de identificação
com o protagonista, no caso, o próprio autor do livro.
A técnica da memorialística, com a direta auto-revelação,
permite essa abordagem mais aproximativa.
O fato é que Memórias do Cárcere, o filme, mantém,
cinematograficamente, muitas das virtualidades do livro. Não
completamente, porém, já que sua limitação temporal restringe a
abrangência e obriga à seletividade. Nele não se tem, por essa e outras
razões, o retrato íntimo de Graciliano, de personalidade forte, caráter
íntegro, inteligência aguda e afiado senso crítico conforme
manifestados na obra.
A figura impressionante de um dos maiores seres humanos já
existentes não ressurge no cinema. Essa, só no livro, que é
testemunho, observação, percepção e crítica.
O filme não dá, pois, a medida do valor do indivíduo e do gênio,
porque, em Graciliano, essas qualidades não coexistem
separadamente, visto que constituem modo de ser e sua manifestação.
O livro é o próprio Graciliano vendo, assistindo, observando, vivendo
e expondo, com e a partir de sua subjetividade. Já o filme é biográfico,
260
no qual Graciliano é personagem vista e observada por terceiro,
mesmo que a partir de seu relato.
É outro ponto de vista. Uma alteração fundamental, responsável
pela diferença entre livro e filme. Tem-se, contudo, neste, a
corporificação, em imagem, da postura humana do escritor e do
constrangimento – físico, intelectual e moral – que lhe é imposto.
Todavia, tais atributos não chegam a transmitir sua
grandiosidade. E não seria possível e nem o é por qualquer outro
meio. É que essa grandeza não se resume no comportamento de
Graciliano na prisão. Ela explode, expõe-se e consuma-se no livro. É
sua própria visão das coisas e o modo de expressá-la. Não bastam,
pois, para configurá-la, apenas o ato e a prática do viver. É
imprescindível sua expressão artística, com o que se completa e se
revela.
No livro patenteiam-se e confundem-se o homem e o gênio, o
autor e a personagem, sendo um reflexo do outro. No filme o autor é
outrem.
Essa a distinção básica entre essas obras, impossível de
superação mesmo se o próprio Graciliano realizasse o filme. É que só
a verbalização pessoal, íntima e intransferível tem o poder de
patentear e expressar essa grandeza. Esse, seu elemento natural, sua
possibilidade existencial.
Assim, o filme, no caso, não é a imagem do verbo, mas,
materialização e visualização física dos acontecimentos.
Mas, como tal, e dentro desses limites, configura-se grande obra
cinematográfica, aliando fidelidade conceitual - superior à
simplesmente fática - a rigor criativo e competência. Desde o décor à
261
seleção, direção e interpretação dos atores e a utilização dos recursos
da câmera, tem-se filme de alta fatura, no qual nenhuma cena é
dispensável nem de duração menor ou maior do que o necessário. O
equilíbrio, a segurança e a isenção (ideológica e política) ampliam a
lista de suas virtualidades. (Ótimo)
262
NOITES DO SERTÃO
Consistência e Beleza
O filme de Carlos Alberto Prates Correia (Montes Claros/MG,
1941-), Noites do Sertão (1984), é baseado na novela “Buriti”,
integrante do livro Corpo de Baile (1956), de Guimarães Rosa, obra
posteriormente desdobrada em três volumes, estando a referida novela
inserida no volume 3º, Noites do Sertão. Contudo, como todo filme
extraído de texto literário ou de argumento especialmente escrito para
o cinema, é obra autônoma, com utilização de elementos artísticos
específicos.
Todavia, desde que alicerçado em idêntica estória, é possível o
confronto, do qual, no caso, como dificilmente poderia deixar de ser,
o filme sai perdendo. É que a novela roseana constitui uma das obras-
primas da arte universal, das várias que esse gênio legou, à altura de
qualquer uma das melhores existentes em todas as épocas.
Nem por isso, porém, como obra fílmica considerada em si, o
filme em questão deixa de ser dos melhores do cinema brasileiro.
Na realidade, é obra madura de cineasta altamente consciente
das finalidades e possibilidades da arte cinematográfica.
A direção segura revela-se em todos os aspectos e pormenores.
Desde a escolha e direção dos atores, passando pela seleção das
imagens, enquadramentos e angulações, resultando filme consistente.
O que mais nele se salienta é a procura da apreensão da vivência
humana, do ponto de vista fílmico, do argumento roseano. Sob o pálio
das referidas consciência artística e segurança diretiva, a trama flui no
263
ritmo e nos limites referenciais específicos da arte cinematográfica. Os
diálogos, depurados, refletem a essência do real vivido e sentido pelas
personagens.
E, simultaneamente, são plasmados o mundo sócio-rural do
interior mineiro e o substrato íntimo das personagens em duas estórias
de amor, desenvolvidas nos parâmetros fixados por essas duas faces
da mesma realidade, tendo a balizá-las ou nucleá-las, porém, as
posturas e ações do ser humano, que, mesmo condicionado por
coordenadas espáciotemporais, possui e mantém núcleo substancial,
universal e comum.
Conquanto isso, causam espécie a atitude final da nora do velho
fazendeiro e a conduta de sua filha ao aguardar a volta do namorado.
Todavia, no amplo contexto do comportamento humano
nada surpreende, ainda (e até por isso) quando suas reações são
policiadas por convenções e conveniências. A infração de códigos
sociais restritivos é bastante frequente. A natureza humana repele e
muitas vezes reage a normas que a contrariam e cerceiam. (Muito
Bom)
264
O HOMEM QUE VIROU SUCO
A Duplicidade da Espécie
O cinema e a ficção de modo geral não podem limitar-se à
narrativa de fatos. Devem procurar antes de tudo subvertê-la ou
quando menos abrir-lhe perspectivas e adicionar-lhe horizontes para
além da sucessão de ocorrências e exterioridades, conquistando os
espaços de seu significado e natureza.
A mera narrativa descritiva de cunho naturalista, que reproduz a
realidade desacompanhada de seu sentido, jaz sepultada há muito e
sua incidência ou repetição não passa de anacronismo.
A orientação realista, que se cinge aos limites impostos pelo
contexto enfocado, também não dispensa nem se exime dos
predicados invocados. Para configurar arte deve obrigatoriamente
ultrapassar a visão física ou óptica das aparências e adentrar o âmago
da matéria ficcional, dela extraindo substância e verdade.
Mesmo sem aprofundar esses atributos e sem sofisticar os meios
utilizados para construir a realidade imagética, é o que se faz em O
Homem Que Virou Suco (1980), de João Batista de Andrade
(Ituiutaba/Triângulo, 1939-).
Por trás da sequência de incidentes provocados pelo
protagonista desde as cenas iniciais, plasma-se seu caráter. Mais
importante do que a sucessão de acontecimentos de que participa ou
promove constituem sua postura humana e as reações esboçadas frente
a cada um deles.
265
Mais, pois, do que a estória de operário nordestino na metrópole
paulistana, o filme é a revelação de indivíduo que supera (e
surpreende) os condicionamentos de sua situação econômico-social
para mostrar-se e demonstrar-se, primeiro e antes de tudo, ser humano
que, por uma ou outra razão, que não importa e de que nem se cogita,
encontra-se naquela vicissitude como poderia ser em outra.
Não obstante a intenção fílmica em apresentar ou valorizar essas
particularidades, elas não passam de emolduramento supérfluo
substituível.
Conquanto essa moldura impressione e esteja bem articulada, o
cerne do quadro (a pintura da índole humana) a suplanta e a
secundariza. Mas, só o consegue dada sua alta virtualidade. Porque o
background físico e social onde se desenvolve a gesta não aventurosa
mas de calvário do protagonista - característica dos elementos das
classes exploradas em todos os tempos - é brilhantemente criada,
ressumando autenticidade e plausibilidade. Em cada local e ambiente -
emprego - percorrido pelo protagonista tem-se sua adequada
reconstituição, tanto no que tange à parte física quanto à humana,
agindo e reagindo cada personagem conforme seu símile real, tal e
tanta a acurada observação do cineasta.
Tudo isso na proporção exata, consoante o momento e as
circunstâncias, mas, principalmente conforme a dignidade e a
inviolável compostura do protagonista.
O Homem Que Virou Suco, que, à evidência, não é o
protagonista, constitui um dos maiores exemplos da prevalência da
natureza humana sobre as agruras e reveses que a organização social
impõe ao indivíduo. E radiografa a substância íntima que o compõe e
266
forma, responsável por sua sobrevivência e desenvolvimento desde os
tempos primaciais, rolando pelo séculos e milênios até chegar aos dias
de hoje, onde as dificuldades e obstáculos, se são diferentes, para
enormes camadas da população são tão ominosos e angustiantes
quanto nas eras primevas, nas quais o ser humano estava entregue à
sanha e apetite de animais ferozes e às intempéries e convulsões
muitas vezes mortais da natureza. Agora, a ele antepõem-se as forças
da organização social, que o repele ou engole, liquidifica e transforma
em pasta gelatinosa ou mero suco. Caso do sósia do protagonista,
triturado pelo poder econômico e as falsas ilusões que distribui e
incuti em espíritos frágeis e mal formados.
Não assim o herói, que é, não por artes estranhas ao meio ou
voluntarismo intencional do cineasta, mas, porque representa a outra
face em que se parte e reparte a natureza humana, mesmo sabendo-se
que entre uma e outra coexistem cambiantes de variada intensidade.
Ambas as figuras, em sua impressionante semelhança física,
encarnam a duplicidade, faceta ambivalente configuradora do ser
frágil e individualmente perecível e, simultaneamente, do vigor e
eternidade da coletividade, com seus predicados e defeitos.
Se um prostra-se derrotado e inutilizado, expressando a
capitulação da parte sórdida, defenestrada como resíduo dispensável, o
outro alteia-se, significando o cerne que concentra as virtualidades
humanas.
Entre seus componentes, o filme ressalta, além da fortaleza de
caráter, a capacidade intelectual e artística, porque o protagonista, no
feixe dos atributos que formam sua personalidade, é homem e poeta.
A existência e atuação de seu sósia não chegam a representar o
duplo de que tratam o conto “William Wilson”, publicado
267
inicialmente em jornal, em 1839, posteriormente integrando os Contos
de Terror, de Mistério e de Morte de Edgar Allan Poe; a novela O
Duplo (1846), de Dostoiévski, o conto “O Horla”, de Maupassant, e o
filme O Estudante de Praga (Der Student Von Prag, Alemanha,
1912), de Stellan Rye; ou o texto “Duplo”, de Vozes do Corpo (1981),
de Fernando Py (apud Sincretismo - A Poesia da Geração 60, de
1995, antologia organizada por Pedro Lira). Contudo, face à
interferência de seu gesto assassino na vida do protagonista e a
antinomia de caráter entre ambos, não deixa, pois, de se constituir na
contrapartida à sua honradez no quadro geral da ambivalência e
duplicidade do ser humano. (Muito Bom)
268
A HORA DA ESTRELA
Sensibilidade e Poesia
O cinema brasileiro, como, aliás, qualquer outro cinema,
apresenta, normalmente, sob o ponto de vista comercial, produção de
nível regular para baixo e, sob o aspecto artístico, esmagadora maioria
de filmes absolutamente nulos.
Todavia, paralelamente a essa massa informe e desinteressante,
sempre surge, vez por outra, alguma obra realmente significativa,
como é o caso, só nos anos de 1980, entre pelo menos vinte filmes
consistentes, de A Hora da Estrela (1985), de Susana Amaral (São
Paulo/SP, 1932-).
Conquanto de grande simplicidade na captação da simploriedade
da protagonista, destaca-se, primeiro, pela característica apontada. É
simples, mas, não é simplório como sua heroína. Ao contrário.
Justamente por ser um e não ser outro, dispensa afetação e
glamourização. Depois porque sua matéria é a substância e a essência
das coisas. Finalmente, porque, vinculado e balizado pelo
fundamental, expõe o cerne mais profundo da vida, na dualidade de
sua razão e desrazão.
Face a esse filme, como diante de tantas obras de arte, impõe-se
a indagação de qual seja o sentido ou falta de sentido da vida.
Respostas: todos, simplesmente porque é vida; nenhum, pelo mesmo
motivo, ou seja, porque cada existência de per si é finita, efêmera. Daí
a pretensão de sua eterna continuidade em outra esfera.
269
O filme em pauta não cogita dessas transcendências. Atado ao
cotidiano no que tem de mais concreto, dessa condição extrai todo
significado.
Se a protagonista é simples, o mundo que a cerca não o é e
exige-lhe adaptações que são feitas apenas ao nível sensorial, mas, não
ideal, flutuando a personagem numa esfera própria, construída como
redoma protetora e simultaneamente cheia de perigos no que
demonstra de ingenuidade e desconhecimento das exigências sociais,
suas implicações e consequências. A pureza que ostenta é, pois,
paradoxalmente, fortaleza e fraqueza. Se a protege mentalmente das
contradições, atritos e maldades, ao mesmo tempo a expõe a tais
fatores.
Num filme que é todo sensibilidade e poesia encontram-se
reunidos e harmoniosamente atuantes os elementos cênicos e
imagéticos correspondentes.
Contudo, salientam-se a criação da personagem, a direção
imprimida à atriz Marcélia Cartaxo e seu desempenho interpretativo,
e, ainda, o décor de interiores e a paisagem urbana exterior. Tudo
apropriado, mercê de seleção sensível e rigorosa de planos,
angulações e enquadramentos.
Dir-se-á, com razão, que a montagem é linear, sem surpresas ou
inovações. É, porém, no caso, adequada e funcional.
Não se reporta, aqui, ao romance homônimo de Clarice
Lispector, em que o filme se baseia, porque, como já dito em varias
oportunidades, o filme de ficção que pretende contar uma estória é
sempre extraído de argumento pré-existente, seja obra literária, seja
especialmente elaborado para o cinema pelo diretor ou por outrem.
270
Assim, em cinema, a obra na qual se baseia o filme não deixa de
ser, sempre, argumento, entrecho. O filme que com isso se faz é outra
coisa, independente, específica, e, como no caso, autoral. (Muito
Bom)
271
FILME DEMÊNCIA
Drama Faustiano
O gênero ficcional, por ter como tema e objetivo os indivíduos,
seu ser e estar no mundo e os relacionamentos que estabelecem, não é (e
nem pode ser), nunca é demais repetir, mero passatempo e diversão,
como vem ocorrendo, notadamente, com o cinema e as novelas
televisivas, visto que as radiofônicas - de tanta repercussão no passado -
desapareceram ou estão em vias de.
O caráter diversional da ficção, para sê-lo e por sê-lo, imprime ao
drama humano conotações deturpadoras, quando não, e mais comunente,
falsificadoras de seu significado e, na maioria dos casos, nem mesmo
infunde-lhe algum sentido. Até pelo contrário, procura esvaziá-lo de
conteúdo e escamotear sua natureza, restringindo-se apenas e tão-
somente a transmitir aparências, trivialidades, falsas e inúteis questões
manipuladas segundo receituário apropriado a atender (e manter) as
preferências de um público desinteressado e alheio ao conhecimento e
entendimento da problemática humana.
Nos antípodas dessa tendência ao espetáculo, estão as obras de
ficção que realmente ferem o âmago da condição humana por meio de
adequado e, muitas vezes excepcional, tratamento estético.
No cinema, entre diversos outros filmes, segue e persegue essa
diretriz Filme Demência (1985), de Carlos Reichenbach Filho (Porto
Alegre/RS, 1945-2012).
O protagonista vive drama no qual seu comportamento deriva de
situação concreta que o marginaliza no contexto em que atua. O
desconforto e a agrura existencial que o abatem são tão intensos e
272
íntimos que é como se lhe tivessem não apenas despido das vestes
externas, mas, de sua própria pele ou como se lhe extraíssem as vísceras,
deixando-o, simultaneamente, nu e oco, desprotegido e inconsistente.
A ruína financeira, numa sociedade que se estrutura sobre base
econômica individualizada e competitiva, é tão ou muitas vezes mais
séria do que o descompasso sentimental e a desilusão amorosa.
Quando sobrevêm simultaneamente, como é o caso, despojam o
indivíduo de toda proteção, fragilizando-o e desorientando-o.
A personagem de Reichenbach é, assim, desde o início fílmico,
lançada no vácuo, tanto econômico quanto sentimental, já que se
cientifica também do desamor e da infidelidade da esposa quando está
submetido a processo falimentar.
Num filme qualquer essas ocorrências seriam - e são comumente -
submetidas a tratamento ostentatório com exploração justamente de seus
aspectos desimportantes, transformando o que é angustioso em
intrigalhada inconsequente, o drama em estardalhaço e o problema grave
em mero passatempo.
Não Reinchenbach, que, ao contrário disso, procura, ao invés de
questionar a situação, destilar seu fel, servindo-o com espinhos,
absorvidos concomitantemente pelos espectadores e pela personagem,
indivíduo lançado a um mundo do qual se apartou e onde não tem mais
lugar.
Essa angústia não é dada, pois, ao público como espetáculo, mas,
em si mesma, como amargura e infelicidade, vagando o protagonista
daqui para ali, sem rumo nem finalidade, submetendo-se às
circunstâncias e contingências de conformidade com solicitações
momentâneas. Nesse deambular vai, juntamente com o espectador,
273
sorvendo o veneno instilado pelas fontes corrompidas do amoldamento
social.
Não há cenas gratuitas. Nem mesmo a transcorrida em
apartamento de encontros, mais importante pelo que emblematiza de
degradação do que por si mesma.
A circunstância da tentação demoníaca que assedia a personagem
não lograr sugestioná-la, como a seu homônimo goethiano, indica
indiferença, desistência e rejeição de um propósito hedonista e material.
A renúncia do protagonista às tentações mundanas, sua inaptidão e
inapetência para as atividades empresariais e a não aceitação da proposta
diabólica de alcançar o local ideal almejado revelam, pois, insatisfação
com a mera materialidade das coisas e opção por completa autonomia e
responsabilidade pessoal, em versão atualizada do mito de Prometeu,
inconformista e libertário, porém, perdido.
No filme, o apelo onírico é utilizado para evitar a quebra da lógica
e do compromisso com a realidade a que se vincula seu conteúdo.
O fato, em suma, é que Filme Demência, que de loucura não tem
nada, pelo contrário, inclui-se no catálogo dos mais importantes e
significativos filme brasileiros, de temática e ressonância universais,
representando aprofundamento da prática cinematográfica de
Reichenbach, a partir da qual vem construindo obra substanciosa,
pessoal e autoral, de que são exemplos Anjos do Arrabalde (1986) e
Dois Córregos (1999). (Ótimo)
274
IMAGENS DO INCONSCIENTE
A Sabedoria Que Não Se Sabe
Introdução
Conquanto nítidas as fronteiras entre a arte e as ciências, uma
obra artística pode ser objeto de múltiplas análises, desde a estética,
seu específico, até a sociológica e psicanalítica, por exemplo.
Não há, pois, incompatibilidade entre esses ângulos de pesquisa,
exame e consideração. Cada um em sua área enseja elementos
autônomos de investigação, desde que se não pretenda confundi-los
nem sobrepor uns sobre outros.
A sociologia procura detectar na obra os componentes sociais
que contém e/ou que a propiciaram e informaram.
A psicologia e ciências afins pela mesma forma buscam nela os
estímulos e impulsos pessoais, íntimos e inconscientes que a
motivaram e condicionaram, bem como os fatores emocionais e
comportamentais que lastreiam a ação e o relacionamento das
personagens.
Outras ciências humanas e sociais e até exatas a encaram
também sob perspectivas próprias.
No caso do filme Imagens do Inconsciente (1985), de Leon
Hirszman (Rio de Janeiro/RJ, 1937-1987), tem-se nada menos de
tríplice registro temático e analítico, desde o filme em si, passando
pelas observações psiquiátricas formuladas por Nise da Silveira a
respeito da obra pictórica de três internos do Centro Psiquiátrico Pedro
275
II, situado no bairro do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro - que
constitui o tema fílmico - até o valor artístico da produção dos
referidos internos, Fernando Diniz, Adelina Gomes e Carlos Pertuis.
O Filme
O documentário de Hirszman consiste numa trilogia, na qual,
em cada segmento, focaliza a obra e o caso clínico de um desses
pacientes, respectivamente, Em Busca do Espaço Cotidiano (Fernando
Diniz), No Reino das Mães (Adelina Gomes) e A Barca do Sol (Carlos
Pertuis), com texto de Nise da Silveira oralizado por Vanda Lacerda e
Ferreira Gular.
Todos (filme, texto e locução) esplendidamente elaborados sob
os signos da precisão, contenção e rigor imagético, textual e
expositivo.
Se se pode - e se pode - reparar nos constantes intervalos entre
apresentações dos quadros e das fases pictóricas dos artistas, tais
brevíssimas interrupções - não tão breves, no entanto, no terceiro
filme da série, sobre Pertuis - sejam quais forem suas razões, acabam
por contribuir para melhor observação e contemplação da sequência
de pinturas mostrada na tela.
O importante, sob o aspecto cinematográfico, é a beleza
imagética do conteúdo fílmico, no caso - salvo parcimoniosas e
pertinentes cenas do sanatório e dos artistas em atividade ou em
locomoção - centrado na visualização e amostragem de obras artísticas
da mais alta relevância, por qualquer prisma que se as examinem e
julguem.
276
Por sua vez, a conformação entre o exposto verbalmente e o
mostrado imageticamente é de absoluta congruência temporal,
perfeição técnica e pertinência científica.
Usufrui-se, então, simultaneamente, dessa quádrupla coalizão de
atributos: a realização fílmica, a proficiência textual, a eficaz dicção e
a beleza plástica.
As imagens do nosocômio e dos internos permitem ainda
documentação e visão desglamourizada e compositiva do ambiente
físico e humano no qual viviam, atuavam e produziam Fernando
Diniz, Adelina Gomes e Carlos Pertuis.
O filme caracteriza-se pela sensibilidade do cineasta tanto ao se
propor a fazê-lo quanto na maneira como se desincumbiu desse
propósito. O prazer intelectual desse procedimento cinematográfico
transmite-se ao espectador ao fusionar realização, recepção e fruição
estética, humana e científica.
A objetividade e o método direto de abordagem analítica
(textual) e fílmica (imagética) concorrem e responsabilizam-se por
esses fatores integrativos.
A Ciência
Sob o prisma psiquiátrico, o texto apresentado em off, e
perfilhado no presente ensaio, inicialmente introduz o espectador nas
coordenadas científicas que embasam e orientam as análises psíquicas,
comportamentais e expressionais dos pacientes-artistas enfocados a
partir da prática da terapêutica ocupacional, que objetiva encontrar
atividades adequadas a propiciarem meios e modos individualizados
277
de expressão que permitam acesso ao mundo interno do
esquizofrênico, revelando seu processo psicótico de dissociação da
personalidade.
Para isso procedem-se permanentes acompanhamento e estudo
do resultado dessas atividades, pari passu explicitadas com sua
exibição fílmica.
No que se refere a Fernando Diniz, salientam-se as
características abstratas, geométricas e esquemáticas de seus
trabalhos. Diretamente vinculadas e oriundas de sua luta contra o caos
interior ou resultantes de emoções tumultuárias, representam choque
entre vertigem e ego, refletido na penosa trajetória de organização da
dimensão pictural, diretamente ocasionada pela reorganização do
espaço cotidiano paralelamente à reconstrução do ego estilhaçado pela
incidência cumulativa de condições sociais e pessoais adversas com
fragilidade orgânica e alta dose de sensibilidade.
Por coincidência, tanto sua origem quanto seus primeiros anos
de vida decorrem de maneira muito semelhante aos de Machado de
Assis, até mesmo pela cor da pele. Se este manteve íntegra sua
personalidade, elaborando obra literária do mais alto nível, não menor,
no entanto, é o valor plástico da obra de Fernando Diniz.
Por sua vez, Adelina também é de cor e de origem humilde. O
exame de sua obra revela as etapas e as variáveis do processo
psicótico em que submergiu desde o trauma sentimental e familiar que
o desencadeou, a partir e por causa da natureza de seu relacionamento
com a mãe.
Tanto num quanto noutro dos mencionados casos clínicos
impressiona a direta, intensa e permanente ligação entre suas causas
278
motivadoras e o conteúdo dos quadros e esculturas. Nem seria para
menos, já que essas razões são as responsáveis pela desordem íntima e
a dissociação de suas personalidades.
Mais amplamente em Adelina, por sua concentração e
invariabilidade temático-emocional, evidencia-se o fenômeno
apontado. Em Diniz, a diversificação e a maior amplitude de seu
cosmo ensejam composição multifacetada, não obstante a reiteração
de certos temas traduzir perturbadoras incidências e reincidências
emocionais.
A condição clínica de Carlos Pertuis - no filme, por já falecido,
o único representado por um ator, o também cineasta Joel Barcelos (O
Rei dos Milagres, 1971, e Paraíso no Inferno, 1977) - é de grande
complexidade por suas implicações religiosas e cósmicas,
referenciadas ao tantrismo hinduísta e budista, à liturgia e símbolos
mitraicos persas, a mitos gregos e ao cristianismo. Dada essa
particularidade e os ciclos em que se desdobra, a copiosa produção
que desenvolveu (nada menos do que 21.300 desenhos, pinturas e
escritos), divide-se em oito fases principais.
A série das mandalas, diagramas formados por círculos e
quadrados concêntricos, corresponde à específica perturbação psíquica
teorizada por Jung, que teve oportunidade, em congresso
internacional, de conhecê-la, conforme mostrado no filme.
O geometrismo que se lhe segue constitui, segundo Nise da
Silveira, procedimento de defesa e tentativa de apaziguamento de
tumultos emocionais, sob formas firmes, rígidas, simétricas, bem
demarcadas e de crescente aprofundamento na procura de delimitar o
espaço, contendo-o dentro de contornos definidos.
279
Já a etapa dos rituais perfaz recurso instintivo de defesa e
predomínio de pulsões, sendo frequentes as imagens de serpentes,
símbolos do inconsciente e de suas perigosas forças.
Em sombra pululam os arquétipos demoníacos, conforme jazem
no inconsciente coletivo na definição de Jung.
Em anima aflora a recorrente problemática relacional com a
mãe, criando Pertuis o termo pãe, inserido em alguns de seus quadros,
significativa síntese de pai e mãe. Nesse período, seu processo
psíquico teve momentos de retrocesso num movimento regressivo que
o fez mergulhar novamente no inconsciente.
O plano do real passa de um nível psíquico para outro,
desgarrando-se para o mundo interior e refletindo imagens internas
representativas de fuga do real.
Já na dimensão cósmica incide a presença constante de astros
nos delírios que o dominam, induzindo forte sentimento de
interligação cósmica.
Por fim, em arqueologia da psique tem-se a fase mais
complexa, povoada de um mundo arquetípico segundo a concepção
junguiana de figuração psíquica do inconsciente coletivo que subsiste
no inconsciente individual. Nela emergem de seus arcanos desde
efígies do deus mitológico grego Dionísio (Baco dos romanos) a
figurações do deus hindu-persa Mitra, divindade solar fixada em
imagens da liturgia mitraica, de religiões arcaicas com referencial a
Ormuz (bem) e Arimã (mal), coexistindo com símbolos cristãos,
encerrando o ciclo (e sua própria existência) com a Barca do Sol,
síntese concepcional de uma psique convulsionada, exposta e
cristalizada em compulsiva riqueza imagética.
280
A Arte
Do ponto de vista artístico, sobressaem, nos trabalhos desses
pintores, as abstrações de Diniz, as inúmeras mandalas e construções
geométricas de Pertuis e certos quadros de traços sutis e as
modelagens de Adelina. Destacam-se em sua multivariedade
cromática, temática e estilística como obras que se configuram e se
realizam de imediato e diretamente no plano da arte, como valores
estéticos, independentemente da origem, motivações e implicações,
conscientes ou inconscientes, objetivas ou subjetivas, intelectuais ou
emocionais que as possibilitaram e deflagaram.
Se bastassem a esquizofrenia e a problemática pessoal que os
afligiram e que estimularam o fluxo torrencial de pinturas que
cometeram para qualificá-los como artistas, todos os demais
indivíduos nas mesmas condições - e são milhares, centenas de
milhares em todas as épocas - deveriam também forçosamente
tornarem-se artistas, o que não acontece.
São, pois, antes de tudo, artistas, que a terapêutica ocupacional
proporcionou a eclosão da vocação pictórica, brotada do fundo do ser
e moldada e amoldada segundo as circunstâncias e determinantes de
seu exercício, dos vais-e-vens, das tentativas, do esforço tenaz e
diário.
Essas dificuldades e o empenho para superá-las são mais
incisivos em Diniz, que até mesmo conscientemente as explicita, ao
afirmar “que as letras são mais fáceis de juntar do que os objetos”.
Se muitas das realizações desse pintor refletem a desordem
íntima e o tumulto emocional que o agitam e não se perfazem
281
pictoricamente, ficando a meio caminho entre a vertigem e seu
correspondente imagético, assumem, no entanto, dupla importância,
terapêutica e estética. Naquela, a luta contra o caos, a procura da
recuperação do ego e da organização do espaço. Nessa contenda e
nesse fazer, o adestramento e a preponderância cada vez maior dos
elementos plásticos específicos, só aparentemente descompromissados
com a arte.
Em Diniz, a tosca prática inicial, com mandalas até mal
acabadas, vai evoluindo para um geometrismo cada vez mais
sofisticado, com equilibrada e esquematizada distribuição de cores.
A crescente abrangência de temas e motivos acumula e fixa
figuras, abstrações, objetos geométricos, seres vivos, paisagens, numa
mescla de sonhos e realidade, alternando-se variada gama de telas
luminosas e iluminadas, onde prevalecem tons claros e quadros de
tonalidades carregadas, tempestuosas.
Sucedem-se, então, abstrações de alto impacto estético.
Os assuntos são diversificados, salientando-se, entre outros, os
temas da casa, a série da japonesa e as figurações do dragão-serpente,
numa congérie espantosa de incidências e referências, que o faz dizer
que “tudo isso é sabedoria que a gente não sabe”.
Já as esculturas das terríveis mães de Adelina caracterizam-se
pela criatividade, firmeza e vigor da estatuária e de seus traços
rugosos e angulosos, mesclando figurações primitivas das mais
arcaicas reminiscência da humanidade com certos traços do
classicismo grego, em imagens de mães ora devoradoras ora
amorosas.
282
À semelhança de Diniz e Pertuis, sua obra é marcada por
procedimentos nítidos, tanto de concepção e formalização quanto de
temática, num desfile exuberante de cores e animais, cães e gatos
principalmente.
Por sua vez, a produção de Pertuis, conforme já registrado, além
de extensa e múltipla, impressiona por suas implicações e, muitas
vezes, alto desempenho artístico. (Muito Bom)
283
A MARVADA CARNE
Inteligência e Humor
O filme de André Klotzel (São Paulo/SP, 1954-), A Marvada
Carne (1985), baseado em peça de Carlos Alberto Soffredini, é
considerado, com razão, um dos melhores da década de 1980 no país.
Ressalta-se desde o início (ou principalmente nele) a
inteligência e vivacidade do enfoque e da condução da estória. O es-
pírito que o anima e ao protagonista deita fundas raízes nas farsas
medievais e mesmo, antes delas, perpassa a comédia nova grega de
Menandro e sua derivada, a comédia romana de Plauto e Terêncio.
Constitui uma das facetas da natureza humana a visão otimista e
bem-humorada em contraponto a seu oposto, mais comum, de
seriedade.
A um temperamento desses, os obstáculos e dificuldades natu-
rais da existência não se transformam em tragédias. Simplesmente,
recebe os golpes das adversidades, os assimila e supera.
O desenrolar da cena do aparecimento do Curupira, entidade
folclórica que anda para trás como os caranguejos, é, nesse sentido,
emblemático. Posto diante de perigo mortal e aparentemente inafastá-
vel, revela-se eficaz a artimanha urdida pelo protagonista.
Nesse diapasão de bom-humor e perspicácia prosseguem a
personagem e o filme, que têm, por sinal, predecessor em Proezas de
Satanás na Vila do Leva-e-Traz (1967), de Paulo Gil Soares.
Contudo, não é a esperteza de um Pedro Malasartes que anima a
ambos. O sentido é outro. O protagonista não se envolve a toda hora
em apuros e acontecimentos inusitados. Ao contrário, sua existência
284
segue curso normal e prosaico, a exceção do episódio relatado e o
encontro com o Demônio. O modo de percorrer essa trajetória é que o
distingue e o destaca, tornando-se leve mesmo nas condições e ca-
rências quase absolutas do camponês brasileiro, no caso, o caipira
paulista.
Não é, contudo, esse aspecto limitativo e alienante que o filme
enfoca, embora esteja na base de tudo. Porém, a forma de encarar a
vida. Mais, pois, do que simples estória de um indivíduo, o que se tem
e se ressalta, é a maneira astuciosa e despreocupada com que o
protagonista enfrenta os acontecimentos da existência, mesmo os mais
absurdos, como o de vender galinha preta ao próprio Demo em
pessoa. Longe, pois, do fatalismo preguiçoso captado na letra de
Lúcio Mendonça de Azevedo “Vida Marvada”, musicada por Almi-
rante (“Vida Marvada: Contribuição Regional Para a Música
Brasileira”, in Convergência, órgão da Academia de Letras do
Triângulo Mineiro, Ano VI, nº 7, Uberaba, 1976).
A convivência estabelecida na pequena e pobre comunidade de
camponeses é exemplar e apreendida e construída com a descontração
habitual do filme, e, ao contrário do pieguismo que geralmente assola
as obras do gênero, despida de sentimentalismo. As personagens são
talhadas apropriadamente e seus atos, reações e manifestações não
destoam da tônica geral da película.
Uma das inúmeras conclusões a que leva o filme é que verve,
humor e otimismo não são, no Brasil, apanágio apenas do espírito
carioca, mas, encontram-se disseminados por todo o país, embora sem
a intensidade e generalidade desejáveis.
285
O único (e lamentável) ponto destoante constitui a inserção, sem
graça e forçada, do protagonista no torvelinho da metrópole moderna.
Para quem ainda enfrenta o Curupira e negocia com o Demônio é algo
impróprio e até disparatado.
Mas, isso, felizmente, só ocorre um tanto rapidamente no final
do filme, pelo que não contamina nem compromete a obra, em se
separando, como água e óleo, essas partes. (Muito Bom)
286
A COR DO SEU DESTINO
O Epitáfio Definitivo
A tão esquecida, quando não detratada, década cinematográfica
brasileira de 1980, apresenta, além de alguns notáveis filmes, já
comentados em O Cinema Brasileiro Nos Anos 80, mais A Cor do Seu
Destino (1986), realizado pelo chileno radicado no Brasil, Jorge
Durán (Santiago/Chile, 1942-).
Conquanto seja muito bom, ou até por isso mesmo, pouco se
falou ou se escreveu sobre ele. Se não fosse pelo levantamento
filmográfico brasileiro efetuado por Antônio Leão da Silva Neto no
extraordinário Dicionário de Filmes Brasileiros (São Paulo, edição do
Autor, 2002), nem se teria referência a esse filme, a não ser como
simples citação do título.
O fato é que A Cor do Seu Destino é muito bom, que, com rigor,
vigor e pertinência, articula, num mesmo eixo e sob ritmado fluxo
ficcional narrativo, a objetividade histórico-política do Chile do golpe
militar de 1973 e suas sequelas e a moldagem psicológico-emocional
do protagonista.
Além disso, as efetiva com equilíbrio, ponteando as recordações
da infância chilena da personagem sob o impacto, então
incompreendido, do golpe e sua interferência direta e brutal no recesso
de seu lar, com seu desconforto moral do presente e latente revolta
externalizada num inconformismo e irritabilidade permanentes.
Se a prisão violenta, humilhante e desumana de seu irmão mais
velho, querido sobre tudo, acompanhada de agressão física a seu pai
287
na presença de seus apenas seis anos de idade constituem ferida
aberta, sempre a verter o vermelho do sangue, o sofrimento presente,
por isso, não é menor, vez que a renovação diária desse trauma, antes
incompreendido, torna-se cada vez mais insuportável.
O tratamento que Durán dá a esse conflito íntimo (externalizado
em expressões, gestos e atitudes compatíveis com sua
impressionabilidade e variabilidade), de mistura com a realidade
objetiva e convencional do protagonista na escola e no lar, é tão
cinematograficamente apropriado e resolvido que torna seu filme uma
das mais significativas realizações do cinema. Não simplesmente pelo
extravasamento da angústia pessoal nas várias circunstâncias e
momentos da existência da personagem. Porém, principalmente, pela
perfeita conjunção alternativa de retrospectos oníricos ou
reminiscentes, com tais perfeição e propriedade, que se tem, do
conjunto daí formado, mesmo e unívoco bloco existencial, com
passado e presente encontrando-se e convivendo como se um não
fosse a continuidade de outro, mas sua renovada presença sob novas
formas e igual formato.
Desse bloco compacto unitário e coerente, presentifica-se o
passado como se um e outro ocorressem simultânea e intensamente.
Enfim, como se não existissem separados e fossem ambos uma só
coisa, corpo e realidade.
A irritabilidade do presente (consequência) contrasta com a
inocência e incompreensão do passado sob impacto então sofrido
(causação), resolvendo-se pela ânsia do reencontro físico e geográfico,
cuja impossibilidade deságua na sequência final, bela e comovente. Se
a beleza deflui de todo a andamento fílmico, sua pungência só
288
encontra paralelo nas cenas da prisão do irmão, nos doces momentos
de sua convivência e, presentemente, quando o protagonista quer
saber notícias de sua prima, recém libertada da prisão no Chile.
O encontro, pois, da rotina diária do protagonista no Rio de
Janeiro, onde sua família se refugiou, com a presença nela do passado,
perfaz uma das mais brilhantes realizações fílmicas sul-americanas,
em que o Brasil propicia espaço (e liberdade), mas, que, no entanto,
não tem como exorcizar os antigos fantasmas, a não ser, como indica a
cena final, de ferimento mas de feliz tranquilidade do protagonista,
sob o signo da exteriorização física de latente (e persistente) revolta
interior, servidos por desenvolta, segura e sensível utilização das
possibilidades da câmera e da montagem, em perfeita consonância
com o ritmo exterior da ação e a substância íntima, racional e
emocional, do protagonista, no jogo de mútuas interferências e inter-
influências.
Se todo o horror da sanguinária ditadura chilena já não
decorresse do filme, de todo o filme, a indagação do protagonista a
seu pai, constitui epitáfio e o julgamento moral definitivo dessa e de
todas elas, do Brasil inclusive:
“─ Por que mataram seu irmão?
─ Por pensar.
─ Só por isso?
─ Numa ditadura militar é assim”. (Muito Bom)
289
ANJOS DA NOITE
O Olho da Câmera
A ambientação de uma estória não é dado importante por si,
dependendo do tratamento que o autor lhe dá, como aliás ocorre
também em relação a outros aspectos ou componentes ficcionais.
Pode-se, por exemplo (a prática é comum), secundarizar o meio
físico e social em proveito da problemática humana.
É o que acontece no filme Anjos da Noite (1986), de Wilson de
Barros (São Paulo/SP, 1948-1992), em que a ambiência da cidade de
São Paulo não se evidencia por ser paulistana, mas, por ser urbana.
Propositadamente retira-se-lhe a conformação particular para se
ressaltar, como background, as singularidades comuns às grandes
metrópoles.
As cidades em igual fase de desenvolvimento apresentam, em
determinada época, idênticas ou, no mínimo, semelhantes ou
assemelhadas peculiaridades. É que o progresso tecnológico e a
evolução da moda, usos e costumes estendem-se urbe et orbi,
indistintamente, apenas dependendo sua assimilação de maiores ou
menores dinamismo e progresso econômico dos aglomerados
populacionais.
Assim é que, exemplificativamente, quando surgiram a força
elétrica, o automóvel, o metrô, o asfalto, tais conquistas
paulatinamente generalizaram-se.
Por isso, em Anjos da Noite, afastada deliberadamente a
conotação local, podem-se apreciar as ocorrências que focaliza como
290
dramas humanos simplesmente, independentemente de seu
posicionamento, aliás, inevitável, visto improcessáveis fora do espaço
em determinado tempo, fatores que delimitam e condicionam a
existência e a ação dos indivíduos, excetuado o poder mental da
espécie, livre, pela imaginação e pela memória, de navegar
multidirecionalmente.
Assim, os lances que se desenrolam no filme, desvinculando-se
de singularização localista, ressaltam-se por si e em si mesmos.
Não é de se dizer - mas, pode-se - que tal característica antecipa
ou inaugura a tendência internacionalizante praticada na década de
1990 no cinema brasileiro.
No primeiro caso, porque, aqui, ela é autêntica e universalmente
construída, enquanto seu uso posterior não passa geralmente de atitude
equivocada, subordinação intelectual ou promoção comercial.
Na alternativa, porque, de fato, Anjos da Noite extrapola as
particularidades do espaço.
O que se ressalta e se cria é o drama humano urbanizado em
grande cidade, seja qual for. E isso, que é o essencial, é feito
apropriadamente, com vigor e desenvoltura. De plano, tem-se o
monólogo angustiado de um dos protagonistas, justamente daquele
cujo infortúnio transforma-se em tragédia ao escapar-lhe do controle.
Por sinal, essa constitui a essência da tragédia. A absoluta
impossibilidade de dominar e moderar, em dadas circunstâncias, o
desencadeamento impulsivo e compulsivo dos elementos, sejam eles
humanos ou não, endógenos ou exógenos.
Wilson de Barros, estreante no longa-metragem, articula e
rearticula diversos situações, algumas só incidentalmente confluentes.
291
Nesse fazer e construir, desnuda, complexamente, sem piedade,
pieguismo ou emocionalismo, as estruturas comportamentais das
personagens, com suas perplexidades, maldades e condicionamentos,
visualizando (em todos os sentidos do termo) o ser humano em suas
grandeza e miséria, dúvidas e certezas, bondade e maldade,
autenticidade e falsidade, amor e desespero, platitude e exacerbação.
As atitudes, os rompantes, os gestos, as posturas e os relacionamentos
revelam a substância íntima do ser, seu cerne e contextura. Nada
escapa ao olho da câmera, que observa a si mesma como ato
processante e processador da aventura humana em alguns de seus
inumeráveis (e possivelmente infinitos) extravasamentos e
manifestações. (Muito Bom)
292
ANJOS DO ARRABALDE
As Limitações Usuais
O subtítulo “As Professoras”, inscrito subsidiariamente na
denominação do filme Anjos do Arrabalde (1986), de Carlos
Reichenbach Filho (Porto Alegre/RS, 1945-2012), pressupõe a
focalização das atividades das protagonistas quando e enquanto
professoras de escola suburbana.
Todavia, não é isso que ocorre. O que se tem é a nucleação da
trama em torno de sua vida pessoal com rápidas incursões à sala de
aula e ao ambiente escolar.
Contudo, fundamentados ambos, nucleação e incursionamentos,
sobre a base econômica das protagonistas (três professoras e jovem
manicure) e a ambiência da semi-periferia em que residem, meio-
termo entre as extremidades físicas da cidade de São Paulo e seu
centro comercial-financeiro e áreas elegantes.
As limitações econômico-financeiras das personagens
confundem-se com a precariedade do bairro em interfusão abrangente
e contínua. Umas determinando sua localização domiciliar e
profissional e outra mantendo-as adstritas a esse espaço e
submetendo-as às limitações dele resultantes.
O cerne dramático do filme, no entanto, é formado pelo
relacionamento que as protagonistas entretêm, seja, uma, com o
marido, seja, outra, com o amante casado, ou, ainda, a terceira,
bissexual assumida, com suas parceiras e seu parceiro também
293
bissexual, seja, finalmente, a manicure, com o homem com quem
reside.
A professora casada não apresenta, entretanto, maior
estabilidade emocional do que as demais, já que sofre as agruras do
patriarcalismo e do conservadorismo do marido em suas formas mais
primárias, não obstante seja ele portador de formação universitária.
A solteira que reparte sua sensualidade com o homem
casado, e que, por isso, não sofre as usuais restrições que o casamento
impõe, é atingida, no entanto, por discriminação de outra ordem.
A bissexual, dadas as particularidades de suas ligações,
consegue autodirigir-se e até dirigir seus parceiros, menos em
decorrência das especiais características de seus envolvimentos
emocionais do que em consequência de sua personalidade.
Já a manicure, cujas tragédias pessoais acontecem nas
imediações e posteriormente repercutem no âmbito familiar de duas
das professoras, constitui a ungida vítima do drama fílmico em tais
proporções que só atitudes drásticas conseguem quebrar as tenazes
que a oprimem.
Paralelamente transcorre a vida no bairro com suas múltiplas
carências, que, como mosaicos agregados e interligados, concorrem
para formar o painel fílmico, revelando e documentando
realisticamente por meio da contextualização dramática ficcional o
ambiente humano e seu meio físico, que se transfundem em amálgama
indissolúvel e, por isso, intransponível.
Mais sufocante, pois, que os dramas, as tragédias e as acanhadas
possibilidades da vida que ocorrem nesse espaço constitui a
incapacidade material e cultural de superá-los e transcendê-los,
294
impossibilitando seus habitantes de intercomunicar-se com outras
realidades.
Um mundo tão limitado, que é o de grande parcela da
humanidade, contraria a vocação humana. Poucos filmes conseguem
demonstrá-lo tão despretenciosa quanto agudamente como este.
(Muito Bom)
295
A BELA PALOMERA
Mágica e Poesia
Rui Guerra (Maputo Moçambique, 1931-), depois de estrear
auspiciosamente, nos anos 60, com dois filmes referenciais do cinema
brasileiro, Os Cafajestes (1962) e Os Fuzis (1963), envereda,
posteriormente, na década de 1980, por caminhos diversos, desviando
sua atenção da problemática humana para fabulário de situações
particularizadas inspiradas em textos literários.
Ao derivar para essa postura, o cineasta visceral dos anos 60
substitui o enfoque crucial da condição humana que constitui o núcleo
de seus primeiros filmes pela poetização dramática.
Em A Bela Palomera (1986), baseado em texto de Gabriel
Garcia Marques, essa tendência atinge seu ponto máximo.
Desde as cenas iniciais até o final, o filme perfaz toda uma lírica
imagética rigorosa e contida.
Se as sequências inaugurais não indicam a motivação do
cineasta em perlustrar o texto do ficcionista colombiano, o
desenvolvimento fílmico justifica sua preferência.
Em torno de uma das inúmeras tragédias amorosas semelhantes,
o cineasta articula elaborada tessitura, poetizando o conteúdo das
imagens como o mítico rei Midas transformava em ouro tudo o que
tocava.
Com isso cria atmosfera mágica quase surreal, para a qual
direcionam-se e contribuem todos os elementos fílmicos, desde os
objetos mais simples ao conjunto dos décors dos interiores e as
296
locações exteriores por força de utilização pertinente e sensível dos
recursos cinematográficos.
Ambientes, vestuário, interpretação, maquiagem, postura e
gestuação dos atores condizem e conduzem à formação dessa tênue
atmosfera pejada de vinculações e de objetos carregados de
simbolismo.
Se se privilegia a trama com igual intensidade, aduz-se-lhe por
sua vez o componente encantatório do imaginário fabulado, que só
não se consuma fabuloso por adstrito às contingências humanas.
Guerra sintetiza, pois, num mesmo corpo cinematografado,
vicissitudes concretas e poesia, acrisolando aquelas e materializando
esta na elementaridade concreta de corpos, desejos e ambientes, por
meio de refinada conjugação de possibilidades cromáticas e
cinemáticas.
Sob essa força sedutora, o filme constitui sucessão ininterrupta
de imagens ora poéticas ora poetizadas que valorizam e tornam
inefáveis objetos, diálogos, encontros, paisagens. Simples e prosaica
praia, por exemplo, evoca, sob essa tecnológica vara de condão, todo
um fascinante mundo de antanho povoado de beleza e surpresa, de
encantamento e subjacente tragicidade.
Das mais notáveis e belas a ambientação no lar-pombal da
heroína, em que mágica, poesia, coisas e situações fundem-se num só
corpo imagético. (Muito Bom)
297
UM TREM PARA AS ESTRELAS
A Crueza do Real
Quando Carlos Diégues (Maceió/AL, 1940-), dirige Um Trem
Para as Estrelas (1987), já percorrera longo caminho de realizações,
não isento, porém, de altos e baixos, desde Escola de Samba “Alegria
de Viver”, que compõe Cinco Vezes Favela (1961), passando pelos
assuntos históricos e sociais (Ganga Zumba, Rei de Palmares, 1963;
Xica da Silva, 1976; Quilombo, 1983); dramas urbanos (A Grande
Cidade, 1965; Chuvas de Verão, 1977), temas políticos (Os
Herdeiros, 1969); comédia musical (Quando o Carnaval Chegar,
1972) e pela saga de grupo mambembe excursionando pelo interior do
país (Bye Bye Brasil, 1979).
Um Trem Para as Estrelas insere-se entre seus dramas urbanos.
Após as cenas iniciais esteticamente indefinidoras, mas,
tematicamente introdutórias à problemática do protagonista, o filme
vai pouco a pouco adquirindo consistência.
Ao armar a trama em torno do desaparecimento da namorada do
protagonista e de sua afanosa e persistente procura da desaparecida, o
cineasta adentra e apreende a ambiência do Rio de Janeiro, revelando
algumas das mazelas da sociedade urbana moderna.
Se no começo paira um limbo de eteriedade e irrealidade com o
súbito sumiço da personagem na presença do namorado e às vistas dos
espectadores, deixando no ar um quê de mistério e perplexidade, essa
impressão ou esse clima muda radicalmente na delegacia.
298
Aí instala-se a realidade e, desde logo, é ela quem comanda a
ação. Não mais o implausível, o inexplicável, mas, a concretude do
real, em cenas de miúdos gestos e acontecimentos, de diálogos crus e
objetivos.
Desfilam, então, pelo menos dois lances que captam o instante
que passa, revelando a situação de definidos extratos sociais.
Um deles, o dos pais da personagem tresmalhada, que
representam, em seu relacionamento, modo de vida e conduta, o
execrável cotidiano da classe média baixa. O aparente exagero de suas
manifestações é emblemático. As cenas, se não são impagáveis na sua
terrificante animalização “civilizada” do ser humano, tornam-se
inapagáveis como radiografia social e humana. O episódio da esposa
afogada nas imagens da TV e do marido refugiado no elevador do
edifício, sentado em uma cadeira, bebendo cerveja e cantarolando, é
tão insólito quanto bem construído.
Não são, porém, apenas eles a qualificar o filme. Além das
intervenções e juízos peremptórios do delegado, expressando não só a
consciência como a própria consistência do real, em adequadas
direção e interpretação de Milton Gonçalves, avultam, constituindo
uma das marcas do filme, os fatos desenrolados na favela com seu
misticismo em estado bruto. A crucificação da “santinha”, sua
violação e o que mais ocorre em torno disso, remetem à atmosfera e a
imagens de certos filmes italianos de De Sica e Fellini. Porém,
tropicais, luminosas. Desventrando a favela, expõem-se os indivíduos
em condições sub-humanas de vida entre a rotina e a anormalidade.
No filme, o que tem valor não são os fatos, mas, as revelações
que procede. Não só as apontadas. Porém, outras mais, em rica
299
amostragem humana e social, desde relacionamento entre mãe e filho,
comportamentos marginais e alienantes da juventude, falta de
orientação e idealismo da maioria e o sem-sentido de suas vidas,
subsistindo porque existem.
Um Trem Para as Estrelas demonstra, em parcimoniosos gastos
de produção, que a obra de arte prescinde (e repele) a suntuosidade, o
ostentatório e o espetaculoso. Um filme autêntico e desaparatoso
como a crueza do real. (Muito Bom)
300
NATAL DA PORTELA
Registro Humano
Existem várias maneiras de se abordar, cinematograficamente,
um perfil biográfico.
Uma delas é simplesmente narrar, linear e convencionalmente, a
trajetória do biografado, enfatizando ou selecionando momentos
significativos de sua existência e atividade. É a mais comum,
normalmente utilizada pela produção comercial hollywoodiana.
Outra, seria, lidando com fatos, revelar seu significado, como
ocorre, por exemplo, em Lenny (Idem, EE.UU., 1974), de Bob Fosse,
fixando a autenticidade e tragicidade da vida e atuação do comediante
Lenny Bruce, ou em Bird (Idem, EE. UU., 1988), de Clint Eastwood,
onde se ressalta a problemática mais cruciante do drama do
compositor Charles Parker.
Uma terceira via, seria a utilizada em Natal da Portela (1988),
de Paulo César Saraceni. Nela, sem se esquivar da narrativa
cronológica, perseguem-se a captação e a recriação da verdade
humana da personagem.
Se a linguagem é convencional e o desenvolvimento da ação
vence as etapas trilhadas pelos rumos da vida de Natal, a estruturação
ficcional e a aplicação dos recursos expressivos da câmera resultam
num filme denso e equilibrado.
A reunião e acionamento dos elementos que compõem a
realização cinematográfica convergem harmoniosamente para
301
construir, sobre o evolver de sua existência, a personalidade, o caráter
e o ser humano que foi.
Em consequência, cada um de seus atos e atitudes não se esvai
ao acontecer, mas, permanece na apreensão e registro do conteúdo
humano que expressa.
Não se contenta, pois, Saraceni em apenas ressuscitar e articular
acontecimentos e episódios da atividade desenvolvida pelo
protagonista.
A sucessão fática é, assim, a escritura que vai desvelando o
arcabouço mental, moral, vivencial e humanístico de figura singular,
fortemente vinculada às suas raízes de classe, aspecto ressaltado
juntamente com sua estrutura psíquica.
Nesse cometimento, biografia e biografado convivem em igual
registro, constituindo aquela reflexo simétrico da compleição humana
da personagem, resultando, de conduta marcada pela naturalidade e
sinceridade, filme de iguais características.
A trilha musical, abundante, mas, adequadamente disposta, é de
extremo bom gosto, correspondendo ao samba elaborado e cultivado
por alguns de seus mais legítimos criadores.
Ao se escutar diversos dos números executados percebe-se
nitidamente que se está ouvindo sons vindos do mais recôndito extrato
de indivíduos identificados com suas origens, expressando modo de
ser peculiar, pleno de musicalidade, sensibilidade e humanidade.
Natal da Portela provém dessa linhagem, acrescida das
contingências e agruras da vida e do contexto econômico-social em
que se situa.
302
O filme apreende essas coordenadas com tanta argúcia e as
induz e conduz sob tão rigoroso controle que daí emerge figura
humana não só autêntica como integral.
Apenas subsistem um tanto inexplicáveis a origem e o motivo
do acidente que o fez perder o braço direito, circunstância que, ao
contrário de o abater, consolidou os traços mais marcantes de sua
personalidade.
Além disso, ressaltam-se no filme, harmonicamente com os
aspectos já assinalados, algumas virtualidades de Natal, a exemplo de
seu desprendimento e ausência de vaidade. Mesmo que esta, quando
controlada, constitua eficaz mola propulsora da ação, sendo
prejudicial quando dominadora e, principalmente, obsessiva.
Em Natal, conforme o filme, nem mesmo aquela tinha guarida,
fator que o singulariza e o destaca da comum ocorrência, do mesmo
modo que o filme se sobressai entre seus congêneres por atributos
específicos que também o distinguem como obra de arte. (Ótimo)
303
QUE BOM TE VER VIVA
Objetividade e Autenticidade
O cinema e a literatura, como não poderia deixar de ser, têm
tematizado de inúmeros modos e maneiras ocorrências diretamente
ligadas às atividades dos governos militares ditatoriais que assumiram o
poder no Brasil em 1964.
No cinema, na década de 1980 particularmente, enfocam essa fase
histórica, que muitos analistas consideram uma tragédia nacional
insuflada e apoiada pelos Estados Unidos por razões geopolíticas globais
e para não perderem o domínio político, a administração e a exploração
das riquezas naturais e os mercados da região. Motivos que os levaram à
orquestração de ditaduras, na época, no Brasil, Argentina, Chile e
Uruguai, entre outros países. Destacam-se, no Brasil, como
levantamento crítico desse período, os filmes Pra Frente, Brasil (1981),
de Roberto Farias, O Bom Burguês (1982), de Osvaldo Caldeira, e
Nunca Fomos Tão Felizes (1984), de Murilo Sales.
Além deles e juntamente com eles, salienta-se também Que Bom
Te Ver Viva (1988), de Lúcia Murat (Rio de Janeiro/RJ, 1949-),
documentário articulado ficcionalmente, visto estruturado sobre
elementos de ambos os gêneros, com prevalência documental.
A cineasta compõe sua narrativa conjugando esses dois módulos,
harmonizando e alternando as intervenções de militantes políticas
torturadas nas prisões da ditadura (devidamente nomeadas e
identificadas) com sua visão e posição pessoal sustentadas pela atriz
Irene Ravache.
304
A organização e montagem das tomadas, cenas e sequências
dessas duas perspectivas são submetidas a alternâncias e ritmos que lhes
conferem equilíbrio e dinamismo, valorizados e intensificados pelo
interseccionamento de vinhetas de celas e prisões em rápidos cortes e
montagens.
A direção e o desempenho de Ravache constituem um dos grandes
momentos do cinema, mesmo, ou até por isso, com utilização e
assimilação de componentes teatrais, que lhes outorgam vigor e
intensidade.
A qualidade formal e a pertinência do conteúdo de suas fortes e
peremptórias intervenções aliadas à postura cênica, movimentação
corporal e gestuação elevam esses instantes a um dos mais altos níveis
artísticos no gênero.
Os depoimentos das militantes e ex-prisioneiras torturadas são
também apresentados com rigor, filtrando a carga emocional que portam
e transmitem, e veiculados com as mesmas distinção e estrutura
intelectual e moral que levaram essas mulheres a inserir-se ativamente na
militância política numa época em que posicionamento e atuação
exigiam, antes de tudo, sacrifício e coragem, sem prejuízo da análise e
julgamento do acerto, do modo e da oportunidade dessa participação,
que no filme também não vêm ao caso, visto constituírem outro aspecto
da questão. Nele importa a conotação humana, observada e nucleada a
partir de sua individualização.
Além da adequação dos cortes ou interrupções e da alternatividade
dos depoimentos, da seleção das narrativas e comentários, ressaltam-se a
objetividade e autenticidade que caracterizam sua prospecção,
mesclando e sintetizando arte e dignidade, cinema e verdade humana.
(Muito Bom)
305
MINAS-TEXAS
Liberdade Criadora
Ocorre com o filme Minas-Texas (1989), de Carlos Alberto Prates
Correia (Montes Claros/MG, 1941-), a aparente contradição de, mesmo
sendo criativo e bem dirigido, não agradar inteiramente.
Contudo, essa frustração advém apenas de seu confronto com
Cabaré Mineiro (1979), do mesmo diretor, do que propriamente de suas
limitações, mesmo que as tenha.
É que este último filme atinge tal patamar, que se espera, daí em
diante, sempre algo equivalente ou semelhante.
A realização desse diretor que os intermedeia (Noites do Sertão,
1984), refoge à colação por concebido e processado consoante padrões
convencionais, de fundo e forma, conquanto artisticamente consumados.
Já os filmes cotejados classificam-se na mesma categoria, do que
resulta automática e inevitável comparação.
Mas, se Minas-Texas é inferior a Cabaré Mineiro, por sê-lo não
deixa de possuir e ostentar os atributos inicialmente referidos.
Explicada, pois, a pretensa antinomia, resta justificar sua
ocorrência.
Inteligência e liberdade criadora informam e conformam a
concepção e efetivação do filme, pelo que até o espectador
medianamente atento percebe, desde logo, estar frente à acentuada
explicitação de talento cinematográfico na maneira de caracterizar as
personagens, situá-las contextualmente e fazê-las agir (in)coerentemente
e, ainda, no modo de conectar as cenas de antigos westerns com as do
filme (daí Minas e Texas), bem como na articulação aparentemente
306
alógica e anarquizada (diferente de anárquica) da fabulação fílmica,
totalmente inusitada, mas, profundamente enraizada no embricamento da
simultânea vivência montesclarence do diretor e sua convivência com (e
impregnação dos) filmes de faroeste.
É toda uma síntese vivencial reconstituída ficcional e
artisticamente que se funde com fortes arquétipos regionais.
A explicitação comportamental e relacional das personagens
constrói-se num plano de jovialidade só permitida e acessível, em
sociedades patriarcais estratificadas, ao nível da liberdade e
autenticidade inaugurais, ainda não conspurcadas e nem restringidas pelo
convencionalismo e pela repressão comportamental.
Daí ressurge mundo alegre, radioso, liberto das peias do realismo,
da lógica, das convenções e hábitos arraigados e, por isso mesmo,
desvelador e revelador da verdade humana subjacente às poses e
aparências.
Do fusionamento da experiência vital da infância e juventude e da
influência do filme de cowboy com o contexto em que isso se processa
provém síntese artística decantada pelo distanciamento cronológico, o
amadurecimento intelectual e o aprimoramento da sensibilidade.
O impacto e o estranhamento provocados pelo filme e seu espírito
descontraído originam-se, pois, dessa associação, na qual agem
adequadamente os fatores pessoais e regionais que o induziram e
propiciaram e que devem ser levados em conta para sua compreensão.
(Muito Bom)
307
Das Tripas Coração
Noites do Sertão
308
A Marvada Carne
Que Bom Te Ver Viva
309
CURTA OS GAÚCHOS
Arte e Verdade
O cinema, no Rio Grande do Sul, finca suas raízes históricas
ainda na primeira década do século XX, com os documentários de
Giuseppe Filippi, Eduardo Hirtz, Nicola Petrelli e Jacinto Ferrari e,
nos anos dez, já revela pioneiro de destaque, Francisco Santos, que,
em Pelotas, organiza estúdio e monta laboratórios, realizando vários
filmes, entre eles, O Crime de Banhados. Na década de 1920, citam-
se, entre outros, Antônio Ferreira, Eduardo Abelim, Carlos Comelli e,
oriundo de São Paulo, E. C. Kerrigan.
Assim, não surpreende que, com esse pioneirismo e essa
tradição, o Rio Grande de Sul apresente, agora, as curtas-metragens
que compõem Curta os Gaúchos (Brasil, 1990), englobando, pela
ordem de projeção, Obscenidades, de Roberto Henkin; Passageiros,
de Carlos Gerbase e Glênio Póvoas; Barbosa, O Dia em Que Dorival
Encarou a Guarda e Ilha das Flores, todas as três de Jorge Furtado, a
primeira co-dirigida por Ana Luísa Azevedo e, a segunda, por José
Pedro Goulart.
A característica que, de plano, ressalta-se nesses filmes é a
inteligência. Sua feitura, condução e desfechos sempre surpreendentes
norteiam-se pela lucidez e domínio dos meios expressionais. Se
Passageiros, mesmo com suas qualidades, é o mais fraco deles, o fato
decorre mais de certa precariedade técnica do que de outra
circunstância.
310
Obscenidades procura e consegue construir e transmitir, com
segurança, o estado de espírito e o sufocamento existencial da
protagonista. Sutileza e equilíbrio ficcional evidenciam-se até na
intensidade e modo de inserir seus familiares no entrecho.
Barbosa constitui mistura de ficção e documentário, onde se
revezam cenas do jogo e do Maracanã no dia da decisão do
Campeonato Mundial de Futebol de 1950, da atuação do protagonista
como goleiro da seleção brasileira e entrevista feita com ele, em 1988,
ano da realização do filme. Nem é necessário dizer que é
consequência do trauma provocado nos brasileiros pelo resultado (e
pelo gol de Giggia) naquele jogo.
O Dia em Que Dorival Encarou a Guarda é exemplar em todos
os sentidos, demonstrando direção que reúne e conduz todos os
elementos que integram a realização cinematográfica com notáveis
segurança e eficácia.
Contudo, é em A Ilha das Flores que o filme atinge o ápice. Não
é à toa que essa curta-metragem goza de grande notoriedade,
plenamente justificada.
Se a característica maior, como se disse, dessas curtas é a
inteligência, em A Ilha das Flores essa virtualidade extrapola os
limites usuais para se projetar num painel de universalidade. Esse
documentário, o único que o é no filme, alcança nível internacional,
façanha considerável face às altas qualidades artísticas do melhor
documentário mundial, de holandeses, britânicos e tantos outros
países.
Lúcido, crítico, sarcástico, Ilha das Flores é a constatação, o
inventário e a denúncia, em alto nível de criação artística, de contexto
311
cruel e injusto, em que o ser humano é colocado na última escala dos
seres vivos.
A vivacidade da narrativa e a mordacidade das colocações,
aliadas à agilidade da linguagem cinematográfica e a pertinente
adequação da montagem fazem dessa curta-metragem documento do
desequilíbrio social ocorrente no ordenamento do modo de produção
capitalista, que só seria o ideal dos regimes econômicos, conforme
seus defensores e beneficiários apregoam, se resolvesse seus
problemas estruturais de concentração de renda e desequilíbrio
econômico-social, ambos excludentes da maior parte da população do
usufruto de bens e produtos. Do contrário, não passará, como os
demais regimes que o antecederam, e como tudo está a indicar, de
apenas mais uma etapa na evolução da trajetória humana na face da
terra, conforme prevista na crítica que lhe fazem os socialistas.
Ilha das Flores, pois, preenche, com eficácia fora do comum, a
dupla exigência da arte ficcional e/ou documentária: qualidade
artística aliada à verdade humana. (Muito Bom)
312
ALMA CORSÁRIA
Realidade e Arte
Dentre os filmes que, na década de 1990, inserem-se na linha
autêntica do cinema brasileiro, ou seja, constituem filmes e não meros
produtos comerciais, inclui-se Alma Corsária (1994), de Carlos
Reichenbach Filho (1945-2012).
A filmografia desse cineasta abrange, além de outros, Filme
Demência (1985) e Anjos do Arrabalde (1986). Como eles, Alma Corsária
não é filme para se passar tempo ou para, com ele, se divertir. É obra que
não falseia a realidade para dela extrair (ou nela interpor, como
normalmente ocorre nesses casos), aspectos irrelevantes e aparentes. Conta,
é verdade, uma estória.
Todavia, não se limita apenas a encadear fatos, mas, a articulá-los
numa linha narrativa, que, selecionando-os, procura ainda contextualizá-
los, para deles revelar o significado.
No comportamento, desempenho e reações de cada figurante o que
se tem não é simples desfile de personagens com suas características mais
salientes. Porém, todo um universo de valores, de uma maneira de se estar
e agir no mundo e nele se relacionar.
No desdobramento da linha ficcional básica e diretiva da ação,
nucleada na amizade dos protagonistas conforme desenvolvida e
manifestada nas diversas etapas da vida, além de compor um hino a esse
sentimento, Reichenbach apreende e recria o background em que ele se
situa.
À atilada percepção do fenômeno humano e ao domínio da
linguagem cinematográfica, não obstante convencionalmente utilizada,
agrega a sensibilidade social, política e artística, produzindo quadro das
313
manifestações humanas mais importantes de determinadas época, lugar e
classe social, que se apresenta abrangente, apropriado e totalizador.
Na elaboração do levantamento da trajetória existencial dos amigos,
vai-se revelando, paralelamente à reconstrução do ambiente físico e social,
a fisionomia mental, emocional e intelectual de uma geração. A interseção
do exercício de viver com a demonstração de amizade perfaz-se sutil e
autenticamente.
À beleza das imagens e pertinência do décor soma-se o fascínio da
linha melódica, concebida pelo próprio diretor. A dança e a música que
emergem de uma “viagem” do protagonista constituem uma das mais belas
cenas do cinema. Uma dança projetada na áspera paisagem de arranha-céus
sujos e feios, filmada a partir do topo de um deles, concentrando o encanto
dos movimentos do corpo e da imagem em extraordinária síntese de
diversificados elementos artísticos. Sem apelações, sem enfeites, apenas
(ou tudo), a arte. Uma dança em que, ao invés de mostrar os movimentos
de pés e pernas, revela a flexibilidade do corpo, os ângulos do rosto e os
meneios dos cabelos, sublinhados por vigorosos acordes musicais.
A cena inicial transcorrida no viaduto do Chá é tão adequada,
inteligente e espontânea que parece ter sempre existido, como se não fosse
possível sua falta.
Alma Corsária é filme construído com a substância da vida,
entrelaçando, com equilíbrio, sensibilidade e inteligência, realidade e
criação artística. Não é mero olhar sobre a vida e sua reconstituição pura e
simples. É incisão na concretude de sua prática para buscar, extrair e
revelar, criada pela arte, sua natureza e essência. (Muito Bom)
314
O MANDARIM
Som e Imagem
Quem procura, no cinema e em geral, apenas diversão, estória e
ação, não deve assistir O Mandarim (1995), de Júlio Bressane.
Nele não existe diversão nem estória, muito menos ação. Ao
contrário, música e imagem, criatividade e competência.
A competência, que é o mínimo que se exige em arte, apresenta-
se e desenvolve-se na concepção geral, na montagem e em cada
tomada, em todo fotograma.
O objetivo é mostrar imagística ou cinematograficamente a
música popular brasileira na voz de Mário Reis, cantor não apelativo
nem popularesco.
Fazer isso, criando obra de arte, não é fácil. É até arriscado.
Mas, Bressane o consegue, porque isso é que vem, conscientemente,
fazendo sempre: arriscar e vencer. Daí resulta síntese tão poderosa,
que o espectador é compelido a usufruir, em iguais intensidade e
prazer estético, som e imagem. Acompanha-se, com a simultaneidade
produzida pela união articulada de música e fotografia, tanto uma
como outra, como se não existissem (e nem pudessem existir)
separadamente.
Do enlace entre som e imagem tem-se, nesse filme, não a
música como contraponto da imagem ou seu acompanhamento e nem,
ao contrário, mera filmagem de apresentação musical.
Tem-se unicamente cinema, a arte síntese que, utilizando os
elementos encontráveis e/ou produzidos na natureza, os amalgama de
315
tal forma, que, nessa operação e mercê de seu poder, possibilidades e
virtualidades, os transforma, criando elemento diverso, mesmo e
principalmente mantendo suas características próprias, que é a obra de
arte cinematográfica, ou mais, sinteticamente, o cinema.
O Mandarim (referência ao cantor Mário Reis) é, pois, antes de
tudo, cinema, porque capta e transmite a música por meio de sua
singularidade básica, o som, sem perda de sua característica essencial,
a imagem em movimento, unindo ambos.
É musical, documentário, reportagem? Pode ser (e é), em algum
caso até certo ponto, tudo isso, mas, principalmente ou apenas,
cinema.
As virtualidades da imagem, nele, são expressivas. As
angulações e posições da câmera, notáveis. Sensibilidade, inteligência
e nenhuma concessão ao pieguismo e à badalação, marcas diretivas.
Como obra cinematográfica, não deve ser assistida apenas para
se ouvir a música nela ocorrente, mas, ver, observar e absorver o
conjunto daí resultante, que é, sobretudo, a imagem e a montagem
dessa imagem. Não é cometimento fácil para quem não possui cultura
cinematográfica e nem valoriza o específico fílmico.
Contudo, é necessário tentar assisti-lo para se livrar das imagens
grosseiras, primárias, de mau-gosto e baixo nível que inundam as
telas, sejam das salas de projeção, sejam das tevês, vídeos e dvds.
(Muito Bom)
316
TERRA ESTRANGEIRA
O Predomínio da Imagem
Terra Estrangeira (1995), de Válter Sales Júnior e Daniela
Thomas, despertou entusiasmos.
Por paradoxal que possa parecer à primeira vista, é e não é
merecedor de encômios.
A análise temática e formal de filme, porém, dissipa qualquer
estranheza ou perplexidade que tal posicionamento suscite.
Em ficção, por mais que se diga o contrário - e muitos críticos e
teóricos já o disseram - a forma não acompanha permanentemente e
de maneira absoluta as qualidades e defeitos do conteúdo e vice-versa.
Nem sempre um desses elementos segue o outro, embora
normalmente e em geral o faça.
É que quando o artista tem consciência, capacidade e
sensibilidade para elaborar bem um desses componentes ficcionais,
automaticamente as possui para o outro.
Contudo, mesmo os tendo, por um motivo qualquer pode não
exercitá-los plenamente, preferindo privilegiar um em detrimento do
outro.
É o que acontece com os diretores desse filme. Elegem a forma
como objetivo de seu exercício cinematográfico e com ela executam
esmerado trabalho fílmico.
Raramente - e não só no cinema brasileiro - observa-se
utilização mais primorosa e adequada dos recursos e movimentos da
317
câmera e eleição de tão belos ângulos e aspectos do décor e da
paisagem, seja natural ou urbana.
Até simples apartamento, desses com vistas para o Minhocão de
São Paulo, adquire requintes insuspeitados por força da valorização da
imagem.
Nem se fala, então, do citado viaduto, que câmera ágil e
inteligente capta em distâncias e ângulos tão apropriados, que dele
extrai pura beleza, finalidade da arte.
Mas, não só nas tomadas e cenas paulistanas têm-se as
virtualidades apontadas. A qualidade e o bom gosto acompanham a
câmera à Europa, onde em Portugal e Espanha alongam-se as
peripécias dos protagonistas brasileiros de mistura com personagens
portuguesas e angolanas residentes em Lisboa.
O domínio da câmera excede em virtuosismo - e não poucas
vezes - o manifestado nos cenários paulistanos, mercê, também, de
décor mais variado e rico em nuanças e facetas diversificadas, além de
esplêndidos exteriores, cujas só escolha e locação já atestam
sensibilidade e perspicácia.
A beleza da imagem é, pois, uma constante desde a tomada
inicial até quando os dois protagonistas, ao final, rumam para a cidade
de San Sebastian, na Espanha.
Contudo, é de se ressaltar, pela notável beleza, as cenas
transcorridas nos exteriores do mosteiro português e à beira-mar
(aliás, todo beira-mar e todo beira-rio são belos), com o felliniano e
portentoso navio encalhado.
Como não evocar a sequência da praia de A Doce Vida (La
Dolce Vita, Itália, 1959), de Fellini?
318
O preto-e-branco de todo o filme, principalmente nas passagens
mencionadas, é não só insubstituível como inexcedível em belezas e
contrastes, nítidos e equilibrados.
Como ajustar e harmonizar, em arte e poesia, a utilização desses
dois antagônicos tons? Basta ver o filme e constatar.
Até mesmo prosaica rodovia asfaltada cercada de oliveiras
assume proporções estéticas magníficas nas tomadas aéreas ou
efetuadas de algum ponto elevado.
Todavia, como já antecipado no início, essa virtualidade formal
não é empregada em fixar imageticamente drama humano substancial,
como, por exemplo, embora não se exija tanto, aqueles expostos em A
Doce Vida ou em Morangos Silvestres (Smultronstället, Suécia,
1957), de Ingmar Bergman.
Sob o aspecto temático, o filme assenta-se em tríplice
contextualização dramática (sentimento do exílio, prática criminosa e
o amor), resolvendo bem a primeira e a última mercê de sensível e
conveniente tratamento, o que já não ocorre com a faceta criminal,
transcorrida linear e previsivelmente em seu desenvolvimento e
desdobramentos lógicos, conquanto conduzidos com segurança,
adequados perfis tipológicos e elogiáveis direção e interpretação dos
atores.
Enfim, belíssimo filme, no qual a segunda linha temática não
passa de pretexto para expressão de primoroso e requintado exercício
da imagem cinematográfica. (Ótimo)
319
BAILE PERFUMADO
A Trajetória do Nordestern
O cinema, como toda arte ficcional, além das categorias
fílmicas, como drama, comédia, musical, etc., ainda contém, no
âmbito de cada uma delas, diversos temas cuja importância maior ou
menor depende da intensidade e qualidade de sua exploração.
Certos assuntos podem assumir - e alguns assumem -
características de verdadeiros gêneros, alcançando autonomia. Não
bastam, contudo, apenas os predicativos de qualidade e intensidade
para que se elevem ou obtenham classificação própria e categoria
independente.
Além disso - e talvez, no caso, mais importante do que isso - é
necessário, para não se dizer indispensável, que esses temas
contenham elementos específicos que os distingam, valorizem e
caracterizem, diferençando-os de todos os outros e dos demais
gêneros.
A saga do cangaço, que, como normalmente acontece, começa
tímida e isolada na década de 1920 com o filme Filho Sem Mãe
(1925), de Tancredo Seabra, pertencente ao ciclo cinematográfico de
Recife, apresenta, no decorrer do tempo, mais alguns exemplos
isolados, como Lampião, Fera do Nordeste (1930), de Guilherme
Guadio, e Lampião, o Rei do Cangaço (1936), documentário de
Benjamin Abraão, para desaguar em O Cangaceiro (1955), de Vítor
de Lima Barreto.
320
O sucesso desta última realização, malgrado algumas de suas
deficiências, e até por isso mesmo, é tanto, que suscita a eclosão de
série de filmes de cangaço na década de 1960, constituindo o que a
crítica considera espécie ou classe distinta, o nordestern, de que são
paradigmas, entre outros, A Morte Comanda o Cangaço (1960) e
Lampião, Rei do Cangaço (1962), ambos dirigidos por Carlos
Coimbra, Três Cabras de Lampião (1962), de Aurélio Teixeira, além
de filmes de Vítor Lima, Wilson Silva, Milton Amaral, Miguel Borges
e Osvaldo Oliveira, entre outros.
O nordestern difere do western, tanto do estadunidense, como
do brasileiro, que também existe, como são exemplos Férias no
Arraial (1960), do polonês Edward Freund; Sertão Bravio (1964), de
Armando Sábato; Gregório (1968), de Rubens Prado; O Homem do
Corpo Fechado (1970), de Schubert Magalhães; Cainguangue, a
Pontaria do Diabo (1974), do argentino Carlos Hugo Christensen.
Western é uma coisa, nordestern outra, conquanto possam ter (e
tenham) alguns elementos comuns ou pelo menos confinantes.
O nordestern depois de permanecer alguns anos esquecido,
retorna ao cinema brasileiro na década de 1990. Além da refilmagem
de O Cangaceiro (1996), de Aníbal Massaini Neto, pelo menos mais
dois outros filmes são lançados, Corisco e Dadá (1996), de
Rosemberg Cariri, e Baile Perfumado (1996), de Paulo Caldas e Lírio
Ferreira.
Este último trata de episódio caro aos estudiosos mais
informados da história do cinema brasileiro: a filmagem de Lampião
pelo mascate sírio-libanês Benjamin Abraão.
321
O filme fundamenta-se exclusivamente na deliberação de
Abraão de filmar Lampião e seu bando a qualquer custo, revelando as
dificuldades, de variada natureza, que se antepõem a esse desiderato.
Propósitos meramente financeiros parecem insuficientes para justificar
o tamanho da empreitada, não ficando convenientemente clara a
motivação mais profunda que forma e informa essa pretensão, a todos
os títulos difícil e, principalmente, perigosa. Não apenas por parte do
mais célebre dos cangaceiros, de ferocidade, inteligência e
determinação assaz conhecidas. Mas, também, e até mais acentuada,
da parte de seus inimigos e perseguidores, oficiais ou não.
Pois bem. Nesse mar de escolhos e obstáculos, Abraão
desenvolve seu projeto, fornecendo à posteridade as tidas e havidas
como únicas imagens de Lampião.
Não só isso. Se o cineasta, pois é disso que se trata, apenas se
limitasse a documentar gestos, falas e atitudes dos cangaceiros, já não
seria pouco. Contudo, vai mais longe. E o faz bem feito, o que é tão
ou mais importante do que apenas fazer. Aliás, realizar por realizar,
normalmente nem é meritório. Indispensável é que se o faça bem, o
melhor possível.
Não é por outro motivo, que imagens de Abraão são utilizadas
em pelo menos quatro outros filmes: Memória do Cangaço (1965),
documentário de Paulo Gil Soares; Os Sermões do Padre Vieira
(1989), de Júlio Bressane; Corisco e Dadá (1966), de Rosemberg
Cariri, e, naturalmente, também em Baile Perfumado.
Neste, além de algumas cenas originais, reproduzem-se e
reconstituem-se, no próprio filme, diversas outras.
322
Porém, tudo isso (tema, utilização de umas e refilmagens de
outras cenas de Abraão), não teria, por sua vez, importância se o filme
não fosse bem realizado como o foi.
Baile Perfumado alicerça-se em inteligência e sensibilidade,
desde a seleção de fatos que se quer revelar até o modo de se fazê-lo.
Conteúdo e forma andam aí, pois, simetricamente. À sutileza do
enfoque e dos diálogos alia-se a utilização apropriada e, em certos
casos, requintada da imagem e dos recursos da câmera, perfazendo
conjunto harmonioso e esteticamente belo.
A direção e desempenho do ator que encarna o protagonista são
próprias de cinema consciente de suas possibilidades e alcance, como
o é o cinema brasileiro há muito tempo ou, mais precisamente, de
maneira coletiva, desde pelo menos o início da década de 1960, com o
Cinema Novo.
Enfim, não é todo dia que se vê reproduzida num filme
personalidade tão forte como a de Lampião tal qual conforme captada
pela lente sensível e inteligente de Abraão, considerado, por seu filme,
um dos maiores cineastas brasileiros.
Já Baile Perfumado, que focaliza o encontro de Abraão com
Lampião, constitui, por suas qualidades cinematográficas, um dos
filmes mais significativos do cinema brasileiro contemporâneo.
(Muito Bom)
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Gaijin, caminhos da liberdade

  • 1. 247 GAIJIN, CAMINHOS DA LIBERDADE As Novas Perspectivas A maioria absoluta dos filmes centra-se na estória. Seu objetivo é narrar fatos e ocorrências, tecendo-os em trama dramatizada. Não se apreendem e se expõem, pois, em si mesmos, o cotidiano e o fluir dos acontecimentos. Ao invés, procura-se encadeá-los numa ação das personagens destinada ao atendimento de determinada finalidade. Essa estruturação estabelece eixo diretivo semelhante a leito fluvial por onde correm as águas, no caso, onde as personagens desfilam seus atos e sua movimentação, no mínimo objetivando a sobrevivência como essa massa líquida é impelida a desaguar no mar. É incontestável que essa técnica restringe a visão da maneira como se processa a existência humana, não abrangendo todas suas manifestações e nuanças, tal como o álveo do rio impede o espraiamento das águas e sua incursão pelos meandros da superfície terrestre com as inevitáveis absorção, interação e/ou evaporação. Contudo, não obstante a existência humana poder espalhar-se em vários sentidos, essa eventualidade a faria concentrar-se em círculos. No fenômeno físico dos rios, a gravidade e a impossibilidade de vencer obstáculos concretos redirecionam as águas a buscar sempre as declividades, nas quais necessariamente obtêm rumo e propósito. Do mesmo modo, a conservação e a continuidade da vida impõem aos seres humanos dedicarem-se ao trabalho para produção dos meios adequados imprescindíveis a essas imposições, antes que desígnios.
  • 2. 248 É o que se articula e se narra no filme Gaijin, Caminhos da Liberdade (1980), de Tizuka Yamasaki (Porto Alegre/RS, 1949-). Apanhando seus protagonistas em interiorana aldeia japonesa, a cineasta os traz ao Brasil no início do século XX como imigrantes destinados às lavouras de café do Estado de São Paulo. À evidência que nada do prometido e muito menos do almejado pelos japoneses concretiza-se. Ao revés, desamparados de toda proteção, seja da ainda inexistente legislação trabalhista brasileira, seja da assistência do governo de seu país e da respectiva representação diplomática no Brasil, os imigrantes (europeus e asiáticos) vêem-se presas nas malhas da exploração pré-capitalista, visto ainda preponderar à época no meio rural formas arcaicas de relacionamento entre proprietários rurais e camponeses. Sobre esse cruel background, Yamasaki constrói e tece o drama de suas personagens, utilizando suas atividades e as imposições que sofrem como fios da teia que os prendem. A concentrada seleção de fatos, a narrativa vigorosa, as seguras direção e interpretação dos atores, as apropriadas movimentação e angulação da câmera, a pertinência dos décors de interiores e das locações externas propiciam e injetam no filme tom epopeico, tão mais elogiável quanto calcado, não em atos pomposos, mas cotidianos, aos quais sua argúcia e eficácia direcional conferem grandiosidade e heroísmo de mais difícil obtenção do que aqueles a que se está acostumado a encontrar nos epos clássicos. O trabalho braçal de sol a sol na apanha de café, sob o guante do capataz, por sua vez pressionado e premido pelo patrão, que, com essa atitude, insufla e dá vaza aos baixos instintos de subordinados
  • 3. 249 desqualificados, a restrita alimentação na tentativa de economizar os parcos salários, de qualquer modo esvaídos nos preços extorsivos do armazém fornecedor e da manipulação da escrita da fazenda, formam quadro opressor, de escravização do indivíduo, que dele somente se liberta pela morte prematura ou pela fuga desesperada. Os caminhos da liberdade, tão otimisticamente anunciados no título, ao contrário de ser os do Japão ao Brasil, perfazem, se não seu oposto, dada a impossibilidade financeira de retorno às plagas originárias, o rompimento com o statu quo e a busca das vias urbanas de sobrevivência. Yamasaki, ao elaborar sua ácida denúncia da exploração do ser humano, mais, do que meramente de seu trabalho, compõe primoroso hino à liberdade, no qual, além do vigor direcional e narrativo, destacam-se a sutileza e a exata dosagem (de adequado realismo) da construção dos relacionamentos humanos, de alta poeticidade em inúmeras passagens, por força do requintado entretecimento do convívio entre os protagonistas. Enfim, um filme que vai imprimir à época (e à década) de sua realização o selo de uma das mais significativas do cinema brasileiro, malgrado tudo. (Ótimo)
  • 4. 250 DAS TRIPAS CORAÇÃO O Avesso da Aparência Costuma haver distância muito grande entre a percepção do artista manifestada em muitas obras de arte e a desinformação e conservadorismo de leitores e espectadores. Notadamente destes, porque aqueles, quando se abalançam a ler um livro que não seja de autoajuda ou best-seller digestivo, já possuem certo nível de conhecimento. A defasagem entre autores (escritores e cineastas) e leitores ou espectadores costuma ser, principalmente, de duas ordens, justamente as que compõem a obra: forma e conteúdo. Na primeira, quando o autor explode a linguagem convencional ou, pelo menos, é inventivo e criativo. No segundo, quando libertária e irreverentemente viola os preceitos do comedimento e da geral hipocrisia. Tanto numa quanto noutra hipótese, o receptor não afeito à liberdade formal e temática reage escandalizado, não aceitando a novidade. Nunca considera, porém, que seja sua a limitação e a falta de compreensão. Atribui ao autor, no conhecido mecanismo de transferência, a culpa da transgressão do estreito perímetro imposto pela convenção e pelo conformismo, que nada mais são do que capas protetoras de interesses econômicos arraigados e predominantes, conforme o entendimento marxista da correspondência entre a superestrutura mental e ideológica e a infraestrutura econômica. Aliás, en passant, é bom que se advirta que quem não conhece e não estuda o marxismo - livre, porém, tanto da subordinação quanto da ojeriza
  • 5. 251 ideológica - não tem possibilidade de entender os mecanismos que regem a sociedade e, dentro dela, o posicionamento individual, sobre o qual também incide fortemente o componente emocional, que não pode ser olvidado ou minimizado. Mas, o caso no filme Das Tripas Coração (1982), de Ana Carolina (São Paulo/SP, 1949-), refere-se ao conteúdo, já que formalmente cinge-se ao competente aproveitamento das possibilidades da câmera e da linguagem cinematográfica. E não é pouco e nem pequeno o domínio que atinge nesse manejo e nessa utilização, a ponto de alcançar nível excelente. Contudo, onde Ana Carolina transgride a prática convencional é no processamento do tema que se propôs. Sem sair das rotinas colegiais estabelecidas, a cineasta vai corroendo o verniz que encobre o substrato latente ou vulcânico que subjaz no interior da verdade humana individual e relacional, nem que para isso distenda o fio de certas situações aos extremos de suas possibilidades, a exemplo da atitude de colegial na missa ou nessa oportunidade - e não em outra - circular baralho pornográfico com efígie de santos numa das faces ou, ainda, carregue na caracterização de certas personagens, a exemplo do servente da escola. Em cada conduta individual e também na geral expõem-se livremente as ânsias e sentimentos recônditos das personagens numa sucessão ininterrupta de condutas insólitas e, por isso, chocantes. Já se disse, talvez com algum exagero, que se as pessoas soubessem o que vai no íntimo de cada uma (os desejos secretos, os pensamentos incontroláveis, as fantasias descabeladas, a maldade, a malícia e a inveja), os indivíduos nem ao menos se cumprimentariam.
  • 6. 252 No colégio em questão, todos os íncubos e súcubos da condição humana manifestam-se com o desembaraço e a liberdade permitidas por essa condição, já que não se pode ultrapassá-la sob pena de não se ser mais humano, mas, deuses ou semideuses, cuja criação, pois, corresponde à aspiração do ilimitado, com a transferência a essas criaturas ideais e idealizadas de tudo aquilo que não somos e nem podemos ou conseguimos fazer, desde voar a ser imortal. Por isso, não se transpõem, no filme, os limites humanos, mesmo porque cada um, por mais livre seja ou pretenda ser, carrega consigo a enorme carga das heranças atávica e cultural. O que as personagens de Ana Carolina fazem, no entanto, é quebrar esse invólucro de restrições e conveniências sem se desvincular da realidade possível. Se o padre capelão do colégio tem o hábito de urinar pelos cantos e atrás das estátuas, dando trabalho suplementar às faxineiras, essa atitude, convenha-se, é possível mental e fisicamente, conquanto extravagante. Porém, dentro daquele mundo caótico, exposto pelo avesso, do interior do ser para sua exteriorização, esse costume não causa escândalo nem espanto. Das Tripas Coração, título de maneira alguma gratuito, mas revelador, é filme marcado por surrealismo sui-generis, já que adstrito às possibilidades do real de conformidade com as singularidades da natureza humana. Porém, seu grau de desenvoltura e mergulho no âmago dessa condição é de tal maneira efetuado que chega a criar realidade irreal, onde nessa projetada irrealidade espelha-se o conteúdo interior do ser humano, domado e “civilizado” por milênios de repressão, conveniências e necessidade de convivência com vistas à própria sobrevivência da espécie.
  • 7. 253 Assim, não é despropositada, muito pelo contrário, a afirmação do interventor do colégio de que era com satisfação que interferia no estabelecimento. Esse inimaginável fecho de ouro dessa que, num primeiro momento de maior entusiasmo, poderia até ser considerada obra- prima cinematográfica, encerra milênios de acumulação de escamentos e crostas civilizatórias ou, consoante outro entendimento, anticivilizatórias, já que construídas sobre os escombros da plena liberdade individual, soterrada sob a sólida argamassa de interesses concretos condicionadores e domesticadores. (Ótimo)
  • 8. 254 TABU Ensaio Poético O filme Tabu (1982), de Júlio Bressane, é tido como musical. Todavia, não obstante estar enxameado de músicas de Lamartine Babo, não chega a ser musical puro, visto não se enquadrar na estrutura tradicional dessa categoria fílmica. Ao contrário, Bressane, não se subordinando aos limites do gênero, rompe-os para realizar verdadeiro ensaio poético cinematográfico, revezando cenas de hipotético encontro entre Osvaldo de Andrade (interpretado por Colé) e Lamartine Babo (por Caetano Veloso), na presença e com a participação de outras personalidades, uma delas, João do Rio, personificado por José Lewgoy, com desfile de algumas das mais características e célebres marchinhas de carnaval de autoria de Lamartine. A junção e contextualização desses elementos fazem-se por meio de criativa e, em certos momentos, esfuziante construção imagética. À sucessão dinâmica das imagens, propriedade cinemática, aduz-se inventiva e livre utilização da câmera, que se movimenta em todas as direções e em todas as velocidades, ora horizontal, ora vertical, ora circularmente, em surpreendentes enquadramentos, criando, em certas passagens, como os vanguardistas franceses e alemães da década de 1920, visuais móbiles no fusionamento estonteante de árvores, folhas e celeridade.
  • 9. 255 Nesse fazer, vão-se sucedendo tomadas e cenas urbanas, (incluídas até partes de filmes pornôs) por onde transitam os protagonistas, com imagens paisagísticas de forte apelo poético e pictórico. Entre estas últimas, salientam-se a sequência de uma das personagens femininas separando conchas em cima de uma pedra, a da dança na praia tendo como fundo o perene movimento de ondas chocando-se contra as pedras, a focalização de perfil feminino esbatido sobre fundo de letras e, ainda, exibições de dança sob vestes transparentes e esvoaçantes, compondo antológica poética da imagem. De suma importância, conquanto às vezes inaudível em precárias cópias do filme, a dialogação entretecida pelos protagonistas, correspondendo a todo um ideário estético da primeira metade do século XX no Brasil. Na série de manifestações dessa espécie, é de se destacar a afirmativa de João do Rio (Lewgoy), de que “eu não faço poesia quando quero, mas, quando a poesia quer”. Sob o aspecto de interpretação dos atores e atrizes, que inclui sua postura, Colé até fisicamente é um Osvald perfeito, não ficando por menos o Lamartine Babo de Caetano, discreto e intelectualizado. O interesse de Bressane pelo modernismo brasileiro e pela figura de Osvald de Andrade, cuja veia libertária contamina sua filmografia, manifesta-se em várias oportunidades, uma delas em todo um filme, Miramar (1997), com base na obra do poeta e romancista paulista, importante e contagiante presença no universo estético do país, ao menos naquele que gravitava em torno do eixo Rio-São Paulo
  • 10. 256 (que não pode ser confundido com o Brasil) e de algumas capitais estaduais. (Muito Bom)
  • 11. 257 MEMÓRIAS DO CÁRCERE O Livro e o Filme Graciliano Ramos (1892-1953) é um dos mais importantes escritores brasileiros, o que significa, igualmente, do mundo, já que em matéria cultural, conquanto o país produza pouco, o que faz de mais relevante o é, da mesma forma, a nível mundial. Isso, sem qualquer ufanismo ingênuo, mas, também, sem derrotismo subserviente. Seus romances - excetuado Caetés (1928, edição de 1933), que, não obstante revelar o homem e o escritor, não atinge as culminâncias de suas possibilidades - constituem, os três (São Bernardo, 1934; Angústia, 1936; e Vidas Secas, 1938), obras-primas da literatura. Mas, Graciliano esteve preso. Sem culpa formada, sem processo, sem nada. Ignomínia e violência. Contudo, essa circunstância permite o surgimento de suas Memórias de Cárcere (1953), superior à Recordação da Casa dos Mortos (1860), de Dostoiévski, o grande romancista russo, também vítima de arbítrio. Nélson Pereira dos Santos, por sua vez, é um dos melhores cineastas brasileiros, com filmografia de quase vinte longas metragens de ficção, iniciada no idos da década de 1950 com o ótimo, malgrado suas deficiências, Rio, 40 Graus (1955). Daí para cá suas realizações apresentam pontos altos (Vidas Secas 1963; Como Era Gostoso o Meu Francês, 1971) e baixos (O Amuleto de Ogum, 1974; Estrada da Vida, 1980; A Terceira Margem do Rio, 1994).
  • 12. 258 Entre os pontos altos, inclui-se Memórias do Cárcere (1984), baseado no livro homônimo de Graciliano Ramos. Esse segundo encontro entre o romancista e o cineasta repete a performance do primeiro, com Vidas Secas. Só que, agora, o gênero da obra é totalmente diverso. Não, contudo, mutatis mutandis, a trajetória do romancista e da personagem Fabiano, de Vidas Secas, no que tem de fundamental em suas origens e desvios de destino. Um e outro, nordestinos. Fabiano é arrancado de seu habitat pela concomitante incidência dos desequilíbrios da natureza e da organização social. Graciliano, pelas injunções da política e pela força do arbítrio e da prepotência. Depois disso, suas vidas não são mais as mesmas. Ambos vítimas da violência, fisicamente fragilizados e humilhados. Um dos casos em que autor e personagem, guardadas as devidas proporções e, principalmente, diferenciações, têm igual sorte. O cineasta, nesses filmes, capta e reconstitui o essencial de seus percursos, percalços e perplexidades, tais quais fixados nas obras originais. Essas, suas grandes qualidades: a compreensão e assimilação adequadas do pathos literário e sua correspondente efetivação em termos de cinema, isto é, de décor, interpretação, estrutura, imagem e montagem. Do ponto de vista geral, não se pode dizer que há criação original e autônoma, porque essa é pré-existente e seguida à risca. Todavia, sob o prisma cinematográfico, ultrapassa-se a fase reconstitucional para adentrar-se (e adensar-se) no terreno da criação.
  • 13. 259 Para o filme ser verdadeiramente cinema (grande cinema) é indispensável que constitua criação artística específica e não simples reconstituição técnica e material de argumento e roteiro. Embora preso ao original, Nélson Pereira dos Santos atinge essa condição em Vidas Secas. Talvez porque não seja obra de ficção com suas sutis percepções pessoais e liames relacionais interpessoais, no filme Memórias do Cárcere o cineasta, também já mais maduro e experiente e testemunha de regime ditatorial semelhante, atinge maior grau de identificação com o protagonista, no caso, o próprio autor do livro. A técnica da memorialística, com a direta auto-revelação, permite essa abordagem mais aproximativa. O fato é que Memórias do Cárcere, o filme, mantém, cinematograficamente, muitas das virtualidades do livro. Não completamente, porém, já que sua limitação temporal restringe a abrangência e obriga à seletividade. Nele não se tem, por essa e outras razões, o retrato íntimo de Graciliano, de personalidade forte, caráter íntegro, inteligência aguda e afiado senso crítico conforme manifestados na obra. A figura impressionante de um dos maiores seres humanos já existentes não ressurge no cinema. Essa, só no livro, que é testemunho, observação, percepção e crítica. O filme não dá, pois, a medida do valor do indivíduo e do gênio, porque, em Graciliano, essas qualidades não coexistem separadamente, visto que constituem modo de ser e sua manifestação. O livro é o próprio Graciliano vendo, assistindo, observando, vivendo e expondo, com e a partir de sua subjetividade. Já o filme é biográfico,
  • 14. 260 no qual Graciliano é personagem vista e observada por terceiro, mesmo que a partir de seu relato. É outro ponto de vista. Uma alteração fundamental, responsável pela diferença entre livro e filme. Tem-se, contudo, neste, a corporificação, em imagem, da postura humana do escritor e do constrangimento – físico, intelectual e moral – que lhe é imposto. Todavia, tais atributos não chegam a transmitir sua grandiosidade. E não seria possível e nem o é por qualquer outro meio. É que essa grandeza não se resume no comportamento de Graciliano na prisão. Ela explode, expõe-se e consuma-se no livro. É sua própria visão das coisas e o modo de expressá-la. Não bastam, pois, para configurá-la, apenas o ato e a prática do viver. É imprescindível sua expressão artística, com o que se completa e se revela. No livro patenteiam-se e confundem-se o homem e o gênio, o autor e a personagem, sendo um reflexo do outro. No filme o autor é outrem. Essa a distinção básica entre essas obras, impossível de superação mesmo se o próprio Graciliano realizasse o filme. É que só a verbalização pessoal, íntima e intransferível tem o poder de patentear e expressar essa grandeza. Esse, seu elemento natural, sua possibilidade existencial. Assim, o filme, no caso, não é a imagem do verbo, mas, materialização e visualização física dos acontecimentos. Mas, como tal, e dentro desses limites, configura-se grande obra cinematográfica, aliando fidelidade conceitual - superior à simplesmente fática - a rigor criativo e competência. Desde o décor à
  • 15. 261 seleção, direção e interpretação dos atores e a utilização dos recursos da câmera, tem-se filme de alta fatura, no qual nenhuma cena é dispensável nem de duração menor ou maior do que o necessário. O equilíbrio, a segurança e a isenção (ideológica e política) ampliam a lista de suas virtualidades. (Ótimo)
  • 16. 262 NOITES DO SERTÃO Consistência e Beleza O filme de Carlos Alberto Prates Correia (Montes Claros/MG, 1941-), Noites do Sertão (1984), é baseado na novela “Buriti”, integrante do livro Corpo de Baile (1956), de Guimarães Rosa, obra posteriormente desdobrada em três volumes, estando a referida novela inserida no volume 3º, Noites do Sertão. Contudo, como todo filme extraído de texto literário ou de argumento especialmente escrito para o cinema, é obra autônoma, com utilização de elementos artísticos específicos. Todavia, desde que alicerçado em idêntica estória, é possível o confronto, do qual, no caso, como dificilmente poderia deixar de ser, o filme sai perdendo. É que a novela roseana constitui uma das obras- primas da arte universal, das várias que esse gênio legou, à altura de qualquer uma das melhores existentes em todas as épocas. Nem por isso, porém, como obra fílmica considerada em si, o filme em questão deixa de ser dos melhores do cinema brasileiro. Na realidade, é obra madura de cineasta altamente consciente das finalidades e possibilidades da arte cinematográfica. A direção segura revela-se em todos os aspectos e pormenores. Desde a escolha e direção dos atores, passando pela seleção das imagens, enquadramentos e angulações, resultando filme consistente. O que mais nele se salienta é a procura da apreensão da vivência humana, do ponto de vista fílmico, do argumento roseano. Sob o pálio das referidas consciência artística e segurança diretiva, a trama flui no
  • 17. 263 ritmo e nos limites referenciais específicos da arte cinematográfica. Os diálogos, depurados, refletem a essência do real vivido e sentido pelas personagens. E, simultaneamente, são plasmados o mundo sócio-rural do interior mineiro e o substrato íntimo das personagens em duas estórias de amor, desenvolvidas nos parâmetros fixados por essas duas faces da mesma realidade, tendo a balizá-las ou nucleá-las, porém, as posturas e ações do ser humano, que, mesmo condicionado por coordenadas espáciotemporais, possui e mantém núcleo substancial, universal e comum. Conquanto isso, causam espécie a atitude final da nora do velho fazendeiro e a conduta de sua filha ao aguardar a volta do namorado. Todavia, no amplo contexto do comportamento humano nada surpreende, ainda (e até por isso) quando suas reações são policiadas por convenções e conveniências. A infração de códigos sociais restritivos é bastante frequente. A natureza humana repele e muitas vezes reage a normas que a contrariam e cerceiam. (Muito Bom)
  • 18. 264 O HOMEM QUE VIROU SUCO A Duplicidade da Espécie O cinema e a ficção de modo geral não podem limitar-se à narrativa de fatos. Devem procurar antes de tudo subvertê-la ou quando menos abrir-lhe perspectivas e adicionar-lhe horizontes para além da sucessão de ocorrências e exterioridades, conquistando os espaços de seu significado e natureza. A mera narrativa descritiva de cunho naturalista, que reproduz a realidade desacompanhada de seu sentido, jaz sepultada há muito e sua incidência ou repetição não passa de anacronismo. A orientação realista, que se cinge aos limites impostos pelo contexto enfocado, também não dispensa nem se exime dos predicados invocados. Para configurar arte deve obrigatoriamente ultrapassar a visão física ou óptica das aparências e adentrar o âmago da matéria ficcional, dela extraindo substância e verdade. Mesmo sem aprofundar esses atributos e sem sofisticar os meios utilizados para construir a realidade imagética, é o que se faz em O Homem Que Virou Suco (1980), de João Batista de Andrade (Ituiutaba/Triângulo, 1939-). Por trás da sequência de incidentes provocados pelo protagonista desde as cenas iniciais, plasma-se seu caráter. Mais importante do que a sucessão de acontecimentos de que participa ou promove constituem sua postura humana e as reações esboçadas frente a cada um deles.
  • 19. 265 Mais, pois, do que a estória de operário nordestino na metrópole paulistana, o filme é a revelação de indivíduo que supera (e surpreende) os condicionamentos de sua situação econômico-social para mostrar-se e demonstrar-se, primeiro e antes de tudo, ser humano que, por uma ou outra razão, que não importa e de que nem se cogita, encontra-se naquela vicissitude como poderia ser em outra. Não obstante a intenção fílmica em apresentar ou valorizar essas particularidades, elas não passam de emolduramento supérfluo substituível. Conquanto essa moldura impressione e esteja bem articulada, o cerne do quadro (a pintura da índole humana) a suplanta e a secundariza. Mas, só o consegue dada sua alta virtualidade. Porque o background físico e social onde se desenvolve a gesta não aventurosa mas de calvário do protagonista - característica dos elementos das classes exploradas em todos os tempos - é brilhantemente criada, ressumando autenticidade e plausibilidade. Em cada local e ambiente - emprego - percorrido pelo protagonista tem-se sua adequada reconstituição, tanto no que tange à parte física quanto à humana, agindo e reagindo cada personagem conforme seu símile real, tal e tanta a acurada observação do cineasta. Tudo isso na proporção exata, consoante o momento e as circunstâncias, mas, principalmente conforme a dignidade e a inviolável compostura do protagonista. O Homem Que Virou Suco, que, à evidência, não é o protagonista, constitui um dos maiores exemplos da prevalência da natureza humana sobre as agruras e reveses que a organização social impõe ao indivíduo. E radiografa a substância íntima que o compõe e
  • 20. 266 forma, responsável por sua sobrevivência e desenvolvimento desde os tempos primaciais, rolando pelo séculos e milênios até chegar aos dias de hoje, onde as dificuldades e obstáculos, se são diferentes, para enormes camadas da população são tão ominosos e angustiantes quanto nas eras primevas, nas quais o ser humano estava entregue à sanha e apetite de animais ferozes e às intempéries e convulsões muitas vezes mortais da natureza. Agora, a ele antepõem-se as forças da organização social, que o repele ou engole, liquidifica e transforma em pasta gelatinosa ou mero suco. Caso do sósia do protagonista, triturado pelo poder econômico e as falsas ilusões que distribui e incuti em espíritos frágeis e mal formados. Não assim o herói, que é, não por artes estranhas ao meio ou voluntarismo intencional do cineasta, mas, porque representa a outra face em que se parte e reparte a natureza humana, mesmo sabendo-se que entre uma e outra coexistem cambiantes de variada intensidade. Ambas as figuras, em sua impressionante semelhança física, encarnam a duplicidade, faceta ambivalente configuradora do ser frágil e individualmente perecível e, simultaneamente, do vigor e eternidade da coletividade, com seus predicados e defeitos. Se um prostra-se derrotado e inutilizado, expressando a capitulação da parte sórdida, defenestrada como resíduo dispensável, o outro alteia-se, significando o cerne que concentra as virtualidades humanas. Entre seus componentes, o filme ressalta, além da fortaleza de caráter, a capacidade intelectual e artística, porque o protagonista, no feixe dos atributos que formam sua personalidade, é homem e poeta. A existência e atuação de seu sósia não chegam a representar o duplo de que tratam o conto “William Wilson”, publicado
  • 21. 267 inicialmente em jornal, em 1839, posteriormente integrando os Contos de Terror, de Mistério e de Morte de Edgar Allan Poe; a novela O Duplo (1846), de Dostoiévski, o conto “O Horla”, de Maupassant, e o filme O Estudante de Praga (Der Student Von Prag, Alemanha, 1912), de Stellan Rye; ou o texto “Duplo”, de Vozes do Corpo (1981), de Fernando Py (apud Sincretismo - A Poesia da Geração 60, de 1995, antologia organizada por Pedro Lira). Contudo, face à interferência de seu gesto assassino na vida do protagonista e a antinomia de caráter entre ambos, não deixa, pois, de se constituir na contrapartida à sua honradez no quadro geral da ambivalência e duplicidade do ser humano. (Muito Bom)
  • 22. 268 A HORA DA ESTRELA Sensibilidade e Poesia O cinema brasileiro, como, aliás, qualquer outro cinema, apresenta, normalmente, sob o ponto de vista comercial, produção de nível regular para baixo e, sob o aspecto artístico, esmagadora maioria de filmes absolutamente nulos. Todavia, paralelamente a essa massa informe e desinteressante, sempre surge, vez por outra, alguma obra realmente significativa, como é o caso, só nos anos de 1980, entre pelo menos vinte filmes consistentes, de A Hora da Estrela (1985), de Susana Amaral (São Paulo/SP, 1932-). Conquanto de grande simplicidade na captação da simploriedade da protagonista, destaca-se, primeiro, pela característica apontada. É simples, mas, não é simplório como sua heroína. Ao contrário. Justamente por ser um e não ser outro, dispensa afetação e glamourização. Depois porque sua matéria é a substância e a essência das coisas. Finalmente, porque, vinculado e balizado pelo fundamental, expõe o cerne mais profundo da vida, na dualidade de sua razão e desrazão. Face a esse filme, como diante de tantas obras de arte, impõe-se a indagação de qual seja o sentido ou falta de sentido da vida. Respostas: todos, simplesmente porque é vida; nenhum, pelo mesmo motivo, ou seja, porque cada existência de per si é finita, efêmera. Daí a pretensão de sua eterna continuidade em outra esfera.
  • 23. 269 O filme em pauta não cogita dessas transcendências. Atado ao cotidiano no que tem de mais concreto, dessa condição extrai todo significado. Se a protagonista é simples, o mundo que a cerca não o é e exige-lhe adaptações que são feitas apenas ao nível sensorial, mas, não ideal, flutuando a personagem numa esfera própria, construída como redoma protetora e simultaneamente cheia de perigos no que demonstra de ingenuidade e desconhecimento das exigências sociais, suas implicações e consequências. A pureza que ostenta é, pois, paradoxalmente, fortaleza e fraqueza. Se a protege mentalmente das contradições, atritos e maldades, ao mesmo tempo a expõe a tais fatores. Num filme que é todo sensibilidade e poesia encontram-se reunidos e harmoniosamente atuantes os elementos cênicos e imagéticos correspondentes. Contudo, salientam-se a criação da personagem, a direção imprimida à atriz Marcélia Cartaxo e seu desempenho interpretativo, e, ainda, o décor de interiores e a paisagem urbana exterior. Tudo apropriado, mercê de seleção sensível e rigorosa de planos, angulações e enquadramentos. Dir-se-á, com razão, que a montagem é linear, sem surpresas ou inovações. É, porém, no caso, adequada e funcional. Não se reporta, aqui, ao romance homônimo de Clarice Lispector, em que o filme se baseia, porque, como já dito em varias oportunidades, o filme de ficção que pretende contar uma estória é sempre extraído de argumento pré-existente, seja obra literária, seja especialmente elaborado para o cinema pelo diretor ou por outrem.
  • 24. 270 Assim, em cinema, a obra na qual se baseia o filme não deixa de ser, sempre, argumento, entrecho. O filme que com isso se faz é outra coisa, independente, específica, e, como no caso, autoral. (Muito Bom)
  • 25. 271 FILME DEMÊNCIA Drama Faustiano O gênero ficcional, por ter como tema e objetivo os indivíduos, seu ser e estar no mundo e os relacionamentos que estabelecem, não é (e nem pode ser), nunca é demais repetir, mero passatempo e diversão, como vem ocorrendo, notadamente, com o cinema e as novelas televisivas, visto que as radiofônicas - de tanta repercussão no passado - desapareceram ou estão em vias de. O caráter diversional da ficção, para sê-lo e por sê-lo, imprime ao drama humano conotações deturpadoras, quando não, e mais comunente, falsificadoras de seu significado e, na maioria dos casos, nem mesmo infunde-lhe algum sentido. Até pelo contrário, procura esvaziá-lo de conteúdo e escamotear sua natureza, restringindo-se apenas e tão- somente a transmitir aparências, trivialidades, falsas e inúteis questões manipuladas segundo receituário apropriado a atender (e manter) as preferências de um público desinteressado e alheio ao conhecimento e entendimento da problemática humana. Nos antípodas dessa tendência ao espetáculo, estão as obras de ficção que realmente ferem o âmago da condição humana por meio de adequado e, muitas vezes excepcional, tratamento estético. No cinema, entre diversos outros filmes, segue e persegue essa diretriz Filme Demência (1985), de Carlos Reichenbach Filho (Porto Alegre/RS, 1945-2012). O protagonista vive drama no qual seu comportamento deriva de situação concreta que o marginaliza no contexto em que atua. O desconforto e a agrura existencial que o abatem são tão intensos e
  • 26. 272 íntimos que é como se lhe tivessem não apenas despido das vestes externas, mas, de sua própria pele ou como se lhe extraíssem as vísceras, deixando-o, simultaneamente, nu e oco, desprotegido e inconsistente. A ruína financeira, numa sociedade que se estrutura sobre base econômica individualizada e competitiva, é tão ou muitas vezes mais séria do que o descompasso sentimental e a desilusão amorosa. Quando sobrevêm simultaneamente, como é o caso, despojam o indivíduo de toda proteção, fragilizando-o e desorientando-o. A personagem de Reichenbach é, assim, desde o início fílmico, lançada no vácuo, tanto econômico quanto sentimental, já que se cientifica também do desamor e da infidelidade da esposa quando está submetido a processo falimentar. Num filme qualquer essas ocorrências seriam - e são comumente - submetidas a tratamento ostentatório com exploração justamente de seus aspectos desimportantes, transformando o que é angustioso em intrigalhada inconsequente, o drama em estardalhaço e o problema grave em mero passatempo. Não Reinchenbach, que, ao contrário disso, procura, ao invés de questionar a situação, destilar seu fel, servindo-o com espinhos, absorvidos concomitantemente pelos espectadores e pela personagem, indivíduo lançado a um mundo do qual se apartou e onde não tem mais lugar. Essa angústia não é dada, pois, ao público como espetáculo, mas, em si mesma, como amargura e infelicidade, vagando o protagonista daqui para ali, sem rumo nem finalidade, submetendo-se às circunstâncias e contingências de conformidade com solicitações momentâneas. Nesse deambular vai, juntamente com o espectador,
  • 27. 273 sorvendo o veneno instilado pelas fontes corrompidas do amoldamento social. Não há cenas gratuitas. Nem mesmo a transcorrida em apartamento de encontros, mais importante pelo que emblematiza de degradação do que por si mesma. A circunstância da tentação demoníaca que assedia a personagem não lograr sugestioná-la, como a seu homônimo goethiano, indica indiferença, desistência e rejeição de um propósito hedonista e material. A renúncia do protagonista às tentações mundanas, sua inaptidão e inapetência para as atividades empresariais e a não aceitação da proposta diabólica de alcançar o local ideal almejado revelam, pois, insatisfação com a mera materialidade das coisas e opção por completa autonomia e responsabilidade pessoal, em versão atualizada do mito de Prometeu, inconformista e libertário, porém, perdido. No filme, o apelo onírico é utilizado para evitar a quebra da lógica e do compromisso com a realidade a que se vincula seu conteúdo. O fato, em suma, é que Filme Demência, que de loucura não tem nada, pelo contrário, inclui-se no catálogo dos mais importantes e significativos filme brasileiros, de temática e ressonância universais, representando aprofundamento da prática cinematográfica de Reichenbach, a partir da qual vem construindo obra substanciosa, pessoal e autoral, de que são exemplos Anjos do Arrabalde (1986) e Dois Córregos (1999). (Ótimo)
  • 28. 274 IMAGENS DO INCONSCIENTE A Sabedoria Que Não Se Sabe Introdução Conquanto nítidas as fronteiras entre a arte e as ciências, uma obra artística pode ser objeto de múltiplas análises, desde a estética, seu específico, até a sociológica e psicanalítica, por exemplo. Não há, pois, incompatibilidade entre esses ângulos de pesquisa, exame e consideração. Cada um em sua área enseja elementos autônomos de investigação, desde que se não pretenda confundi-los nem sobrepor uns sobre outros. A sociologia procura detectar na obra os componentes sociais que contém e/ou que a propiciaram e informaram. A psicologia e ciências afins pela mesma forma buscam nela os estímulos e impulsos pessoais, íntimos e inconscientes que a motivaram e condicionaram, bem como os fatores emocionais e comportamentais que lastreiam a ação e o relacionamento das personagens. Outras ciências humanas e sociais e até exatas a encaram também sob perspectivas próprias. No caso do filme Imagens do Inconsciente (1985), de Leon Hirszman (Rio de Janeiro/RJ, 1937-1987), tem-se nada menos de tríplice registro temático e analítico, desde o filme em si, passando pelas observações psiquiátricas formuladas por Nise da Silveira a respeito da obra pictórica de três internos do Centro Psiquiátrico Pedro
  • 29. 275 II, situado no bairro do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro - que constitui o tema fílmico - até o valor artístico da produção dos referidos internos, Fernando Diniz, Adelina Gomes e Carlos Pertuis. O Filme O documentário de Hirszman consiste numa trilogia, na qual, em cada segmento, focaliza a obra e o caso clínico de um desses pacientes, respectivamente, Em Busca do Espaço Cotidiano (Fernando Diniz), No Reino das Mães (Adelina Gomes) e A Barca do Sol (Carlos Pertuis), com texto de Nise da Silveira oralizado por Vanda Lacerda e Ferreira Gular. Todos (filme, texto e locução) esplendidamente elaborados sob os signos da precisão, contenção e rigor imagético, textual e expositivo. Se se pode - e se pode - reparar nos constantes intervalos entre apresentações dos quadros e das fases pictóricas dos artistas, tais brevíssimas interrupções - não tão breves, no entanto, no terceiro filme da série, sobre Pertuis - sejam quais forem suas razões, acabam por contribuir para melhor observação e contemplação da sequência de pinturas mostrada na tela. O importante, sob o aspecto cinematográfico, é a beleza imagética do conteúdo fílmico, no caso - salvo parcimoniosas e pertinentes cenas do sanatório e dos artistas em atividade ou em locomoção - centrado na visualização e amostragem de obras artísticas da mais alta relevância, por qualquer prisma que se as examinem e julguem.
  • 30. 276 Por sua vez, a conformação entre o exposto verbalmente e o mostrado imageticamente é de absoluta congruência temporal, perfeição técnica e pertinência científica. Usufrui-se, então, simultaneamente, dessa quádrupla coalizão de atributos: a realização fílmica, a proficiência textual, a eficaz dicção e a beleza plástica. As imagens do nosocômio e dos internos permitem ainda documentação e visão desglamourizada e compositiva do ambiente físico e humano no qual viviam, atuavam e produziam Fernando Diniz, Adelina Gomes e Carlos Pertuis. O filme caracteriza-se pela sensibilidade do cineasta tanto ao se propor a fazê-lo quanto na maneira como se desincumbiu desse propósito. O prazer intelectual desse procedimento cinematográfico transmite-se ao espectador ao fusionar realização, recepção e fruição estética, humana e científica. A objetividade e o método direto de abordagem analítica (textual) e fílmica (imagética) concorrem e responsabilizam-se por esses fatores integrativos. A Ciência Sob o prisma psiquiátrico, o texto apresentado em off, e perfilhado no presente ensaio, inicialmente introduz o espectador nas coordenadas científicas que embasam e orientam as análises psíquicas, comportamentais e expressionais dos pacientes-artistas enfocados a partir da prática da terapêutica ocupacional, que objetiva encontrar atividades adequadas a propiciarem meios e modos individualizados
  • 31. 277 de expressão que permitam acesso ao mundo interno do esquizofrênico, revelando seu processo psicótico de dissociação da personalidade. Para isso procedem-se permanentes acompanhamento e estudo do resultado dessas atividades, pari passu explicitadas com sua exibição fílmica. No que se refere a Fernando Diniz, salientam-se as características abstratas, geométricas e esquemáticas de seus trabalhos. Diretamente vinculadas e oriundas de sua luta contra o caos interior ou resultantes de emoções tumultuárias, representam choque entre vertigem e ego, refletido na penosa trajetória de organização da dimensão pictural, diretamente ocasionada pela reorganização do espaço cotidiano paralelamente à reconstrução do ego estilhaçado pela incidência cumulativa de condições sociais e pessoais adversas com fragilidade orgânica e alta dose de sensibilidade. Por coincidência, tanto sua origem quanto seus primeiros anos de vida decorrem de maneira muito semelhante aos de Machado de Assis, até mesmo pela cor da pele. Se este manteve íntegra sua personalidade, elaborando obra literária do mais alto nível, não menor, no entanto, é o valor plástico da obra de Fernando Diniz. Por sua vez, Adelina também é de cor e de origem humilde. O exame de sua obra revela as etapas e as variáveis do processo psicótico em que submergiu desde o trauma sentimental e familiar que o desencadeou, a partir e por causa da natureza de seu relacionamento com a mãe. Tanto num quanto noutro dos mencionados casos clínicos impressiona a direta, intensa e permanente ligação entre suas causas
  • 32. 278 motivadoras e o conteúdo dos quadros e esculturas. Nem seria para menos, já que essas razões são as responsáveis pela desordem íntima e a dissociação de suas personalidades. Mais amplamente em Adelina, por sua concentração e invariabilidade temático-emocional, evidencia-se o fenômeno apontado. Em Diniz, a diversificação e a maior amplitude de seu cosmo ensejam composição multifacetada, não obstante a reiteração de certos temas traduzir perturbadoras incidências e reincidências emocionais. A condição clínica de Carlos Pertuis - no filme, por já falecido, o único representado por um ator, o também cineasta Joel Barcelos (O Rei dos Milagres, 1971, e Paraíso no Inferno, 1977) - é de grande complexidade por suas implicações religiosas e cósmicas, referenciadas ao tantrismo hinduísta e budista, à liturgia e símbolos mitraicos persas, a mitos gregos e ao cristianismo. Dada essa particularidade e os ciclos em que se desdobra, a copiosa produção que desenvolveu (nada menos do que 21.300 desenhos, pinturas e escritos), divide-se em oito fases principais. A série das mandalas, diagramas formados por círculos e quadrados concêntricos, corresponde à específica perturbação psíquica teorizada por Jung, que teve oportunidade, em congresso internacional, de conhecê-la, conforme mostrado no filme. O geometrismo que se lhe segue constitui, segundo Nise da Silveira, procedimento de defesa e tentativa de apaziguamento de tumultos emocionais, sob formas firmes, rígidas, simétricas, bem demarcadas e de crescente aprofundamento na procura de delimitar o espaço, contendo-o dentro de contornos definidos.
  • 33. 279 Já a etapa dos rituais perfaz recurso instintivo de defesa e predomínio de pulsões, sendo frequentes as imagens de serpentes, símbolos do inconsciente e de suas perigosas forças. Em sombra pululam os arquétipos demoníacos, conforme jazem no inconsciente coletivo na definição de Jung. Em anima aflora a recorrente problemática relacional com a mãe, criando Pertuis o termo pãe, inserido em alguns de seus quadros, significativa síntese de pai e mãe. Nesse período, seu processo psíquico teve momentos de retrocesso num movimento regressivo que o fez mergulhar novamente no inconsciente. O plano do real passa de um nível psíquico para outro, desgarrando-se para o mundo interior e refletindo imagens internas representativas de fuga do real. Já na dimensão cósmica incide a presença constante de astros nos delírios que o dominam, induzindo forte sentimento de interligação cósmica. Por fim, em arqueologia da psique tem-se a fase mais complexa, povoada de um mundo arquetípico segundo a concepção junguiana de figuração psíquica do inconsciente coletivo que subsiste no inconsciente individual. Nela emergem de seus arcanos desde efígies do deus mitológico grego Dionísio (Baco dos romanos) a figurações do deus hindu-persa Mitra, divindade solar fixada em imagens da liturgia mitraica, de religiões arcaicas com referencial a Ormuz (bem) e Arimã (mal), coexistindo com símbolos cristãos, encerrando o ciclo (e sua própria existência) com a Barca do Sol, síntese concepcional de uma psique convulsionada, exposta e cristalizada em compulsiva riqueza imagética.
  • 34. 280 A Arte Do ponto de vista artístico, sobressaem, nos trabalhos desses pintores, as abstrações de Diniz, as inúmeras mandalas e construções geométricas de Pertuis e certos quadros de traços sutis e as modelagens de Adelina. Destacam-se em sua multivariedade cromática, temática e estilística como obras que se configuram e se realizam de imediato e diretamente no plano da arte, como valores estéticos, independentemente da origem, motivações e implicações, conscientes ou inconscientes, objetivas ou subjetivas, intelectuais ou emocionais que as possibilitaram e deflagaram. Se bastassem a esquizofrenia e a problemática pessoal que os afligiram e que estimularam o fluxo torrencial de pinturas que cometeram para qualificá-los como artistas, todos os demais indivíduos nas mesmas condições - e são milhares, centenas de milhares em todas as épocas - deveriam também forçosamente tornarem-se artistas, o que não acontece. São, pois, antes de tudo, artistas, que a terapêutica ocupacional proporcionou a eclosão da vocação pictórica, brotada do fundo do ser e moldada e amoldada segundo as circunstâncias e determinantes de seu exercício, dos vais-e-vens, das tentativas, do esforço tenaz e diário. Essas dificuldades e o empenho para superá-las são mais incisivos em Diniz, que até mesmo conscientemente as explicita, ao afirmar “que as letras são mais fáceis de juntar do que os objetos”. Se muitas das realizações desse pintor refletem a desordem íntima e o tumulto emocional que o agitam e não se perfazem
  • 35. 281 pictoricamente, ficando a meio caminho entre a vertigem e seu correspondente imagético, assumem, no entanto, dupla importância, terapêutica e estética. Naquela, a luta contra o caos, a procura da recuperação do ego e da organização do espaço. Nessa contenda e nesse fazer, o adestramento e a preponderância cada vez maior dos elementos plásticos específicos, só aparentemente descompromissados com a arte. Em Diniz, a tosca prática inicial, com mandalas até mal acabadas, vai evoluindo para um geometrismo cada vez mais sofisticado, com equilibrada e esquematizada distribuição de cores. A crescente abrangência de temas e motivos acumula e fixa figuras, abstrações, objetos geométricos, seres vivos, paisagens, numa mescla de sonhos e realidade, alternando-se variada gama de telas luminosas e iluminadas, onde prevalecem tons claros e quadros de tonalidades carregadas, tempestuosas. Sucedem-se, então, abstrações de alto impacto estético. Os assuntos são diversificados, salientando-se, entre outros, os temas da casa, a série da japonesa e as figurações do dragão-serpente, numa congérie espantosa de incidências e referências, que o faz dizer que “tudo isso é sabedoria que a gente não sabe”. Já as esculturas das terríveis mães de Adelina caracterizam-se pela criatividade, firmeza e vigor da estatuária e de seus traços rugosos e angulosos, mesclando figurações primitivas das mais arcaicas reminiscência da humanidade com certos traços do classicismo grego, em imagens de mães ora devoradoras ora amorosas.
  • 36. 282 À semelhança de Diniz e Pertuis, sua obra é marcada por procedimentos nítidos, tanto de concepção e formalização quanto de temática, num desfile exuberante de cores e animais, cães e gatos principalmente. Por sua vez, a produção de Pertuis, conforme já registrado, além de extensa e múltipla, impressiona por suas implicações e, muitas vezes, alto desempenho artístico. (Muito Bom)
  • 37. 283 A MARVADA CARNE Inteligência e Humor O filme de André Klotzel (São Paulo/SP, 1954-), A Marvada Carne (1985), baseado em peça de Carlos Alberto Soffredini, é considerado, com razão, um dos melhores da década de 1980 no país. Ressalta-se desde o início (ou principalmente nele) a inteligência e vivacidade do enfoque e da condução da estória. O es- pírito que o anima e ao protagonista deita fundas raízes nas farsas medievais e mesmo, antes delas, perpassa a comédia nova grega de Menandro e sua derivada, a comédia romana de Plauto e Terêncio. Constitui uma das facetas da natureza humana a visão otimista e bem-humorada em contraponto a seu oposto, mais comum, de seriedade. A um temperamento desses, os obstáculos e dificuldades natu- rais da existência não se transformam em tragédias. Simplesmente, recebe os golpes das adversidades, os assimila e supera. O desenrolar da cena do aparecimento do Curupira, entidade folclórica que anda para trás como os caranguejos, é, nesse sentido, emblemático. Posto diante de perigo mortal e aparentemente inafastá- vel, revela-se eficaz a artimanha urdida pelo protagonista. Nesse diapasão de bom-humor e perspicácia prosseguem a personagem e o filme, que têm, por sinal, predecessor em Proezas de Satanás na Vila do Leva-e-Traz (1967), de Paulo Gil Soares. Contudo, não é a esperteza de um Pedro Malasartes que anima a ambos. O sentido é outro. O protagonista não se envolve a toda hora em apuros e acontecimentos inusitados. Ao contrário, sua existência
  • 38. 284 segue curso normal e prosaico, a exceção do episódio relatado e o encontro com o Demônio. O modo de percorrer essa trajetória é que o distingue e o destaca, tornando-se leve mesmo nas condições e ca- rências quase absolutas do camponês brasileiro, no caso, o caipira paulista. Não é, contudo, esse aspecto limitativo e alienante que o filme enfoca, embora esteja na base de tudo. Porém, a forma de encarar a vida. Mais, pois, do que simples estória de um indivíduo, o que se tem e se ressalta, é a maneira astuciosa e despreocupada com que o protagonista enfrenta os acontecimentos da existência, mesmo os mais absurdos, como o de vender galinha preta ao próprio Demo em pessoa. Longe, pois, do fatalismo preguiçoso captado na letra de Lúcio Mendonça de Azevedo “Vida Marvada”, musicada por Almi- rante (“Vida Marvada: Contribuição Regional Para a Música Brasileira”, in Convergência, órgão da Academia de Letras do Triângulo Mineiro, Ano VI, nº 7, Uberaba, 1976). A convivência estabelecida na pequena e pobre comunidade de camponeses é exemplar e apreendida e construída com a descontração habitual do filme, e, ao contrário do pieguismo que geralmente assola as obras do gênero, despida de sentimentalismo. As personagens são talhadas apropriadamente e seus atos, reações e manifestações não destoam da tônica geral da película. Uma das inúmeras conclusões a que leva o filme é que verve, humor e otimismo não são, no Brasil, apanágio apenas do espírito carioca, mas, encontram-se disseminados por todo o país, embora sem a intensidade e generalidade desejáveis.
  • 39. 285 O único (e lamentável) ponto destoante constitui a inserção, sem graça e forçada, do protagonista no torvelinho da metrópole moderna. Para quem ainda enfrenta o Curupira e negocia com o Demônio é algo impróprio e até disparatado. Mas, isso, felizmente, só ocorre um tanto rapidamente no final do filme, pelo que não contamina nem compromete a obra, em se separando, como água e óleo, essas partes. (Muito Bom)
  • 40. 286 A COR DO SEU DESTINO O Epitáfio Definitivo A tão esquecida, quando não detratada, década cinematográfica brasileira de 1980, apresenta, além de alguns notáveis filmes, já comentados em O Cinema Brasileiro Nos Anos 80, mais A Cor do Seu Destino (1986), realizado pelo chileno radicado no Brasil, Jorge Durán (Santiago/Chile, 1942-). Conquanto seja muito bom, ou até por isso mesmo, pouco se falou ou se escreveu sobre ele. Se não fosse pelo levantamento filmográfico brasileiro efetuado por Antônio Leão da Silva Neto no extraordinário Dicionário de Filmes Brasileiros (São Paulo, edição do Autor, 2002), nem se teria referência a esse filme, a não ser como simples citação do título. O fato é que A Cor do Seu Destino é muito bom, que, com rigor, vigor e pertinência, articula, num mesmo eixo e sob ritmado fluxo ficcional narrativo, a objetividade histórico-política do Chile do golpe militar de 1973 e suas sequelas e a moldagem psicológico-emocional do protagonista. Além disso, as efetiva com equilíbrio, ponteando as recordações da infância chilena da personagem sob o impacto, então incompreendido, do golpe e sua interferência direta e brutal no recesso de seu lar, com seu desconforto moral do presente e latente revolta externalizada num inconformismo e irritabilidade permanentes. Se a prisão violenta, humilhante e desumana de seu irmão mais velho, querido sobre tudo, acompanhada de agressão física a seu pai
  • 41. 287 na presença de seus apenas seis anos de idade constituem ferida aberta, sempre a verter o vermelho do sangue, o sofrimento presente, por isso, não é menor, vez que a renovação diária desse trauma, antes incompreendido, torna-se cada vez mais insuportável. O tratamento que Durán dá a esse conflito íntimo (externalizado em expressões, gestos e atitudes compatíveis com sua impressionabilidade e variabilidade), de mistura com a realidade objetiva e convencional do protagonista na escola e no lar, é tão cinematograficamente apropriado e resolvido que torna seu filme uma das mais significativas realizações do cinema. Não simplesmente pelo extravasamento da angústia pessoal nas várias circunstâncias e momentos da existência da personagem. Porém, principalmente, pela perfeita conjunção alternativa de retrospectos oníricos ou reminiscentes, com tais perfeição e propriedade, que se tem, do conjunto daí formado, mesmo e unívoco bloco existencial, com passado e presente encontrando-se e convivendo como se um não fosse a continuidade de outro, mas sua renovada presença sob novas formas e igual formato. Desse bloco compacto unitário e coerente, presentifica-se o passado como se um e outro ocorressem simultânea e intensamente. Enfim, como se não existissem separados e fossem ambos uma só coisa, corpo e realidade. A irritabilidade do presente (consequência) contrasta com a inocência e incompreensão do passado sob impacto então sofrido (causação), resolvendo-se pela ânsia do reencontro físico e geográfico, cuja impossibilidade deságua na sequência final, bela e comovente. Se a beleza deflui de todo a andamento fílmico, sua pungência só
  • 42. 288 encontra paralelo nas cenas da prisão do irmão, nos doces momentos de sua convivência e, presentemente, quando o protagonista quer saber notícias de sua prima, recém libertada da prisão no Chile. O encontro, pois, da rotina diária do protagonista no Rio de Janeiro, onde sua família se refugiou, com a presença nela do passado, perfaz uma das mais brilhantes realizações fílmicas sul-americanas, em que o Brasil propicia espaço (e liberdade), mas, que, no entanto, não tem como exorcizar os antigos fantasmas, a não ser, como indica a cena final, de ferimento mas de feliz tranquilidade do protagonista, sob o signo da exteriorização física de latente (e persistente) revolta interior, servidos por desenvolta, segura e sensível utilização das possibilidades da câmera e da montagem, em perfeita consonância com o ritmo exterior da ação e a substância íntima, racional e emocional, do protagonista, no jogo de mútuas interferências e inter- influências. Se todo o horror da sanguinária ditadura chilena já não decorresse do filme, de todo o filme, a indagação do protagonista a seu pai, constitui epitáfio e o julgamento moral definitivo dessa e de todas elas, do Brasil inclusive: “─ Por que mataram seu irmão? ─ Por pensar. ─ Só por isso? ─ Numa ditadura militar é assim”. (Muito Bom)
  • 43. 289 ANJOS DA NOITE O Olho da Câmera A ambientação de uma estória não é dado importante por si, dependendo do tratamento que o autor lhe dá, como aliás ocorre também em relação a outros aspectos ou componentes ficcionais. Pode-se, por exemplo (a prática é comum), secundarizar o meio físico e social em proveito da problemática humana. É o que acontece no filme Anjos da Noite (1986), de Wilson de Barros (São Paulo/SP, 1948-1992), em que a ambiência da cidade de São Paulo não se evidencia por ser paulistana, mas, por ser urbana. Propositadamente retira-se-lhe a conformação particular para se ressaltar, como background, as singularidades comuns às grandes metrópoles. As cidades em igual fase de desenvolvimento apresentam, em determinada época, idênticas ou, no mínimo, semelhantes ou assemelhadas peculiaridades. É que o progresso tecnológico e a evolução da moda, usos e costumes estendem-se urbe et orbi, indistintamente, apenas dependendo sua assimilação de maiores ou menores dinamismo e progresso econômico dos aglomerados populacionais. Assim é que, exemplificativamente, quando surgiram a força elétrica, o automóvel, o metrô, o asfalto, tais conquistas paulatinamente generalizaram-se. Por isso, em Anjos da Noite, afastada deliberadamente a conotação local, podem-se apreciar as ocorrências que focaliza como
  • 44. 290 dramas humanos simplesmente, independentemente de seu posicionamento, aliás, inevitável, visto improcessáveis fora do espaço em determinado tempo, fatores que delimitam e condicionam a existência e a ação dos indivíduos, excetuado o poder mental da espécie, livre, pela imaginação e pela memória, de navegar multidirecionalmente. Assim, os lances que se desenrolam no filme, desvinculando-se de singularização localista, ressaltam-se por si e em si mesmos. Não é de se dizer - mas, pode-se - que tal característica antecipa ou inaugura a tendência internacionalizante praticada na década de 1990 no cinema brasileiro. No primeiro caso, porque, aqui, ela é autêntica e universalmente construída, enquanto seu uso posterior não passa geralmente de atitude equivocada, subordinação intelectual ou promoção comercial. Na alternativa, porque, de fato, Anjos da Noite extrapola as particularidades do espaço. O que se ressalta e se cria é o drama humano urbanizado em grande cidade, seja qual for. E isso, que é o essencial, é feito apropriadamente, com vigor e desenvoltura. De plano, tem-se o monólogo angustiado de um dos protagonistas, justamente daquele cujo infortúnio transforma-se em tragédia ao escapar-lhe do controle. Por sinal, essa constitui a essência da tragédia. A absoluta impossibilidade de dominar e moderar, em dadas circunstâncias, o desencadeamento impulsivo e compulsivo dos elementos, sejam eles humanos ou não, endógenos ou exógenos. Wilson de Barros, estreante no longa-metragem, articula e rearticula diversos situações, algumas só incidentalmente confluentes.
  • 45. 291 Nesse fazer e construir, desnuda, complexamente, sem piedade, pieguismo ou emocionalismo, as estruturas comportamentais das personagens, com suas perplexidades, maldades e condicionamentos, visualizando (em todos os sentidos do termo) o ser humano em suas grandeza e miséria, dúvidas e certezas, bondade e maldade, autenticidade e falsidade, amor e desespero, platitude e exacerbação. As atitudes, os rompantes, os gestos, as posturas e os relacionamentos revelam a substância íntima do ser, seu cerne e contextura. Nada escapa ao olho da câmera, que observa a si mesma como ato processante e processador da aventura humana em alguns de seus inumeráveis (e possivelmente infinitos) extravasamentos e manifestações. (Muito Bom)
  • 46. 292 ANJOS DO ARRABALDE As Limitações Usuais O subtítulo “As Professoras”, inscrito subsidiariamente na denominação do filme Anjos do Arrabalde (1986), de Carlos Reichenbach Filho (Porto Alegre/RS, 1945-2012), pressupõe a focalização das atividades das protagonistas quando e enquanto professoras de escola suburbana. Todavia, não é isso que ocorre. O que se tem é a nucleação da trama em torno de sua vida pessoal com rápidas incursões à sala de aula e ao ambiente escolar. Contudo, fundamentados ambos, nucleação e incursionamentos, sobre a base econômica das protagonistas (três professoras e jovem manicure) e a ambiência da semi-periferia em que residem, meio- termo entre as extremidades físicas da cidade de São Paulo e seu centro comercial-financeiro e áreas elegantes. As limitações econômico-financeiras das personagens confundem-se com a precariedade do bairro em interfusão abrangente e contínua. Umas determinando sua localização domiciliar e profissional e outra mantendo-as adstritas a esse espaço e submetendo-as às limitações dele resultantes. O cerne dramático do filme, no entanto, é formado pelo relacionamento que as protagonistas entretêm, seja, uma, com o marido, seja, outra, com o amante casado, ou, ainda, a terceira, bissexual assumida, com suas parceiras e seu parceiro também
  • 47. 293 bissexual, seja, finalmente, a manicure, com o homem com quem reside. A professora casada não apresenta, entretanto, maior estabilidade emocional do que as demais, já que sofre as agruras do patriarcalismo e do conservadorismo do marido em suas formas mais primárias, não obstante seja ele portador de formação universitária. A solteira que reparte sua sensualidade com o homem casado, e que, por isso, não sofre as usuais restrições que o casamento impõe, é atingida, no entanto, por discriminação de outra ordem. A bissexual, dadas as particularidades de suas ligações, consegue autodirigir-se e até dirigir seus parceiros, menos em decorrência das especiais características de seus envolvimentos emocionais do que em consequência de sua personalidade. Já a manicure, cujas tragédias pessoais acontecem nas imediações e posteriormente repercutem no âmbito familiar de duas das professoras, constitui a ungida vítima do drama fílmico em tais proporções que só atitudes drásticas conseguem quebrar as tenazes que a oprimem. Paralelamente transcorre a vida no bairro com suas múltiplas carências, que, como mosaicos agregados e interligados, concorrem para formar o painel fílmico, revelando e documentando realisticamente por meio da contextualização dramática ficcional o ambiente humano e seu meio físico, que se transfundem em amálgama indissolúvel e, por isso, intransponível. Mais sufocante, pois, que os dramas, as tragédias e as acanhadas possibilidades da vida que ocorrem nesse espaço constitui a incapacidade material e cultural de superá-los e transcendê-los,
  • 48. 294 impossibilitando seus habitantes de intercomunicar-se com outras realidades. Um mundo tão limitado, que é o de grande parcela da humanidade, contraria a vocação humana. Poucos filmes conseguem demonstrá-lo tão despretenciosa quanto agudamente como este. (Muito Bom)
  • 49. 295 A BELA PALOMERA Mágica e Poesia Rui Guerra (Maputo Moçambique, 1931-), depois de estrear auspiciosamente, nos anos 60, com dois filmes referenciais do cinema brasileiro, Os Cafajestes (1962) e Os Fuzis (1963), envereda, posteriormente, na década de 1980, por caminhos diversos, desviando sua atenção da problemática humana para fabulário de situações particularizadas inspiradas em textos literários. Ao derivar para essa postura, o cineasta visceral dos anos 60 substitui o enfoque crucial da condição humana que constitui o núcleo de seus primeiros filmes pela poetização dramática. Em A Bela Palomera (1986), baseado em texto de Gabriel Garcia Marques, essa tendência atinge seu ponto máximo. Desde as cenas iniciais até o final, o filme perfaz toda uma lírica imagética rigorosa e contida. Se as sequências inaugurais não indicam a motivação do cineasta em perlustrar o texto do ficcionista colombiano, o desenvolvimento fílmico justifica sua preferência. Em torno de uma das inúmeras tragédias amorosas semelhantes, o cineasta articula elaborada tessitura, poetizando o conteúdo das imagens como o mítico rei Midas transformava em ouro tudo o que tocava. Com isso cria atmosfera mágica quase surreal, para a qual direcionam-se e contribuem todos os elementos fílmicos, desde os objetos mais simples ao conjunto dos décors dos interiores e as
  • 50. 296 locações exteriores por força de utilização pertinente e sensível dos recursos cinematográficos. Ambientes, vestuário, interpretação, maquiagem, postura e gestuação dos atores condizem e conduzem à formação dessa tênue atmosfera pejada de vinculações e de objetos carregados de simbolismo. Se se privilegia a trama com igual intensidade, aduz-se-lhe por sua vez o componente encantatório do imaginário fabulado, que só não se consuma fabuloso por adstrito às contingências humanas. Guerra sintetiza, pois, num mesmo corpo cinematografado, vicissitudes concretas e poesia, acrisolando aquelas e materializando esta na elementaridade concreta de corpos, desejos e ambientes, por meio de refinada conjugação de possibilidades cromáticas e cinemáticas. Sob essa força sedutora, o filme constitui sucessão ininterrupta de imagens ora poéticas ora poetizadas que valorizam e tornam inefáveis objetos, diálogos, encontros, paisagens. Simples e prosaica praia, por exemplo, evoca, sob essa tecnológica vara de condão, todo um fascinante mundo de antanho povoado de beleza e surpresa, de encantamento e subjacente tragicidade. Das mais notáveis e belas a ambientação no lar-pombal da heroína, em que mágica, poesia, coisas e situações fundem-se num só corpo imagético. (Muito Bom)
  • 51. 297 UM TREM PARA AS ESTRELAS A Crueza do Real Quando Carlos Diégues (Maceió/AL, 1940-), dirige Um Trem Para as Estrelas (1987), já percorrera longo caminho de realizações, não isento, porém, de altos e baixos, desde Escola de Samba “Alegria de Viver”, que compõe Cinco Vezes Favela (1961), passando pelos assuntos históricos e sociais (Ganga Zumba, Rei de Palmares, 1963; Xica da Silva, 1976; Quilombo, 1983); dramas urbanos (A Grande Cidade, 1965; Chuvas de Verão, 1977), temas políticos (Os Herdeiros, 1969); comédia musical (Quando o Carnaval Chegar, 1972) e pela saga de grupo mambembe excursionando pelo interior do país (Bye Bye Brasil, 1979). Um Trem Para as Estrelas insere-se entre seus dramas urbanos. Após as cenas iniciais esteticamente indefinidoras, mas, tematicamente introdutórias à problemática do protagonista, o filme vai pouco a pouco adquirindo consistência. Ao armar a trama em torno do desaparecimento da namorada do protagonista e de sua afanosa e persistente procura da desaparecida, o cineasta adentra e apreende a ambiência do Rio de Janeiro, revelando algumas das mazelas da sociedade urbana moderna. Se no começo paira um limbo de eteriedade e irrealidade com o súbito sumiço da personagem na presença do namorado e às vistas dos espectadores, deixando no ar um quê de mistério e perplexidade, essa impressão ou esse clima muda radicalmente na delegacia.
  • 52. 298 Aí instala-se a realidade e, desde logo, é ela quem comanda a ação. Não mais o implausível, o inexplicável, mas, a concretude do real, em cenas de miúdos gestos e acontecimentos, de diálogos crus e objetivos. Desfilam, então, pelo menos dois lances que captam o instante que passa, revelando a situação de definidos extratos sociais. Um deles, o dos pais da personagem tresmalhada, que representam, em seu relacionamento, modo de vida e conduta, o execrável cotidiano da classe média baixa. O aparente exagero de suas manifestações é emblemático. As cenas, se não são impagáveis na sua terrificante animalização “civilizada” do ser humano, tornam-se inapagáveis como radiografia social e humana. O episódio da esposa afogada nas imagens da TV e do marido refugiado no elevador do edifício, sentado em uma cadeira, bebendo cerveja e cantarolando, é tão insólito quanto bem construído. Não são, porém, apenas eles a qualificar o filme. Além das intervenções e juízos peremptórios do delegado, expressando não só a consciência como a própria consistência do real, em adequadas direção e interpretação de Milton Gonçalves, avultam, constituindo uma das marcas do filme, os fatos desenrolados na favela com seu misticismo em estado bruto. A crucificação da “santinha”, sua violação e o que mais ocorre em torno disso, remetem à atmosfera e a imagens de certos filmes italianos de De Sica e Fellini. Porém, tropicais, luminosas. Desventrando a favela, expõem-se os indivíduos em condições sub-humanas de vida entre a rotina e a anormalidade. No filme, o que tem valor não são os fatos, mas, as revelações que procede. Não só as apontadas. Porém, outras mais, em rica
  • 53. 299 amostragem humana e social, desde relacionamento entre mãe e filho, comportamentos marginais e alienantes da juventude, falta de orientação e idealismo da maioria e o sem-sentido de suas vidas, subsistindo porque existem. Um Trem Para as Estrelas demonstra, em parcimoniosos gastos de produção, que a obra de arte prescinde (e repele) a suntuosidade, o ostentatório e o espetaculoso. Um filme autêntico e desaparatoso como a crueza do real. (Muito Bom)
  • 54. 300 NATAL DA PORTELA Registro Humano Existem várias maneiras de se abordar, cinematograficamente, um perfil biográfico. Uma delas é simplesmente narrar, linear e convencionalmente, a trajetória do biografado, enfatizando ou selecionando momentos significativos de sua existência e atividade. É a mais comum, normalmente utilizada pela produção comercial hollywoodiana. Outra, seria, lidando com fatos, revelar seu significado, como ocorre, por exemplo, em Lenny (Idem, EE.UU., 1974), de Bob Fosse, fixando a autenticidade e tragicidade da vida e atuação do comediante Lenny Bruce, ou em Bird (Idem, EE. UU., 1988), de Clint Eastwood, onde se ressalta a problemática mais cruciante do drama do compositor Charles Parker. Uma terceira via, seria a utilizada em Natal da Portela (1988), de Paulo César Saraceni. Nela, sem se esquivar da narrativa cronológica, perseguem-se a captação e a recriação da verdade humana da personagem. Se a linguagem é convencional e o desenvolvimento da ação vence as etapas trilhadas pelos rumos da vida de Natal, a estruturação ficcional e a aplicação dos recursos expressivos da câmera resultam num filme denso e equilibrado. A reunião e acionamento dos elementos que compõem a realização cinematográfica convergem harmoniosamente para
  • 55. 301 construir, sobre o evolver de sua existência, a personalidade, o caráter e o ser humano que foi. Em consequência, cada um de seus atos e atitudes não se esvai ao acontecer, mas, permanece na apreensão e registro do conteúdo humano que expressa. Não se contenta, pois, Saraceni em apenas ressuscitar e articular acontecimentos e episódios da atividade desenvolvida pelo protagonista. A sucessão fática é, assim, a escritura que vai desvelando o arcabouço mental, moral, vivencial e humanístico de figura singular, fortemente vinculada às suas raízes de classe, aspecto ressaltado juntamente com sua estrutura psíquica. Nesse cometimento, biografia e biografado convivem em igual registro, constituindo aquela reflexo simétrico da compleição humana da personagem, resultando, de conduta marcada pela naturalidade e sinceridade, filme de iguais características. A trilha musical, abundante, mas, adequadamente disposta, é de extremo bom gosto, correspondendo ao samba elaborado e cultivado por alguns de seus mais legítimos criadores. Ao se escutar diversos dos números executados percebe-se nitidamente que se está ouvindo sons vindos do mais recôndito extrato de indivíduos identificados com suas origens, expressando modo de ser peculiar, pleno de musicalidade, sensibilidade e humanidade. Natal da Portela provém dessa linhagem, acrescida das contingências e agruras da vida e do contexto econômico-social em que se situa.
  • 56. 302 O filme apreende essas coordenadas com tanta argúcia e as induz e conduz sob tão rigoroso controle que daí emerge figura humana não só autêntica como integral. Apenas subsistem um tanto inexplicáveis a origem e o motivo do acidente que o fez perder o braço direito, circunstância que, ao contrário de o abater, consolidou os traços mais marcantes de sua personalidade. Além disso, ressaltam-se no filme, harmonicamente com os aspectos já assinalados, algumas virtualidades de Natal, a exemplo de seu desprendimento e ausência de vaidade. Mesmo que esta, quando controlada, constitua eficaz mola propulsora da ação, sendo prejudicial quando dominadora e, principalmente, obsessiva. Em Natal, conforme o filme, nem mesmo aquela tinha guarida, fator que o singulariza e o destaca da comum ocorrência, do mesmo modo que o filme se sobressai entre seus congêneres por atributos específicos que também o distinguem como obra de arte. (Ótimo)
  • 57. 303 QUE BOM TE VER VIVA Objetividade e Autenticidade O cinema e a literatura, como não poderia deixar de ser, têm tematizado de inúmeros modos e maneiras ocorrências diretamente ligadas às atividades dos governos militares ditatoriais que assumiram o poder no Brasil em 1964. No cinema, na década de 1980 particularmente, enfocam essa fase histórica, que muitos analistas consideram uma tragédia nacional insuflada e apoiada pelos Estados Unidos por razões geopolíticas globais e para não perderem o domínio político, a administração e a exploração das riquezas naturais e os mercados da região. Motivos que os levaram à orquestração de ditaduras, na época, no Brasil, Argentina, Chile e Uruguai, entre outros países. Destacam-se, no Brasil, como levantamento crítico desse período, os filmes Pra Frente, Brasil (1981), de Roberto Farias, O Bom Burguês (1982), de Osvaldo Caldeira, e Nunca Fomos Tão Felizes (1984), de Murilo Sales. Além deles e juntamente com eles, salienta-se também Que Bom Te Ver Viva (1988), de Lúcia Murat (Rio de Janeiro/RJ, 1949-), documentário articulado ficcionalmente, visto estruturado sobre elementos de ambos os gêneros, com prevalência documental. A cineasta compõe sua narrativa conjugando esses dois módulos, harmonizando e alternando as intervenções de militantes políticas torturadas nas prisões da ditadura (devidamente nomeadas e identificadas) com sua visão e posição pessoal sustentadas pela atriz Irene Ravache.
  • 58. 304 A organização e montagem das tomadas, cenas e sequências dessas duas perspectivas são submetidas a alternâncias e ritmos que lhes conferem equilíbrio e dinamismo, valorizados e intensificados pelo interseccionamento de vinhetas de celas e prisões em rápidos cortes e montagens. A direção e o desempenho de Ravache constituem um dos grandes momentos do cinema, mesmo, ou até por isso, com utilização e assimilação de componentes teatrais, que lhes outorgam vigor e intensidade. A qualidade formal e a pertinência do conteúdo de suas fortes e peremptórias intervenções aliadas à postura cênica, movimentação corporal e gestuação elevam esses instantes a um dos mais altos níveis artísticos no gênero. Os depoimentos das militantes e ex-prisioneiras torturadas são também apresentados com rigor, filtrando a carga emocional que portam e transmitem, e veiculados com as mesmas distinção e estrutura intelectual e moral que levaram essas mulheres a inserir-se ativamente na militância política numa época em que posicionamento e atuação exigiam, antes de tudo, sacrifício e coragem, sem prejuízo da análise e julgamento do acerto, do modo e da oportunidade dessa participação, que no filme também não vêm ao caso, visto constituírem outro aspecto da questão. Nele importa a conotação humana, observada e nucleada a partir de sua individualização. Além da adequação dos cortes ou interrupções e da alternatividade dos depoimentos, da seleção das narrativas e comentários, ressaltam-se a objetividade e autenticidade que caracterizam sua prospecção, mesclando e sintetizando arte e dignidade, cinema e verdade humana. (Muito Bom)
  • 59. 305 MINAS-TEXAS Liberdade Criadora Ocorre com o filme Minas-Texas (1989), de Carlos Alberto Prates Correia (Montes Claros/MG, 1941-), a aparente contradição de, mesmo sendo criativo e bem dirigido, não agradar inteiramente. Contudo, essa frustração advém apenas de seu confronto com Cabaré Mineiro (1979), do mesmo diretor, do que propriamente de suas limitações, mesmo que as tenha. É que este último filme atinge tal patamar, que se espera, daí em diante, sempre algo equivalente ou semelhante. A realização desse diretor que os intermedeia (Noites do Sertão, 1984), refoge à colação por concebido e processado consoante padrões convencionais, de fundo e forma, conquanto artisticamente consumados. Já os filmes cotejados classificam-se na mesma categoria, do que resulta automática e inevitável comparação. Mas, se Minas-Texas é inferior a Cabaré Mineiro, por sê-lo não deixa de possuir e ostentar os atributos inicialmente referidos. Explicada, pois, a pretensa antinomia, resta justificar sua ocorrência. Inteligência e liberdade criadora informam e conformam a concepção e efetivação do filme, pelo que até o espectador medianamente atento percebe, desde logo, estar frente à acentuada explicitação de talento cinematográfico na maneira de caracterizar as personagens, situá-las contextualmente e fazê-las agir (in)coerentemente e, ainda, no modo de conectar as cenas de antigos westerns com as do filme (daí Minas e Texas), bem como na articulação aparentemente
  • 60. 306 alógica e anarquizada (diferente de anárquica) da fabulação fílmica, totalmente inusitada, mas, profundamente enraizada no embricamento da simultânea vivência montesclarence do diretor e sua convivência com (e impregnação dos) filmes de faroeste. É toda uma síntese vivencial reconstituída ficcional e artisticamente que se funde com fortes arquétipos regionais. A explicitação comportamental e relacional das personagens constrói-se num plano de jovialidade só permitida e acessível, em sociedades patriarcais estratificadas, ao nível da liberdade e autenticidade inaugurais, ainda não conspurcadas e nem restringidas pelo convencionalismo e pela repressão comportamental. Daí ressurge mundo alegre, radioso, liberto das peias do realismo, da lógica, das convenções e hábitos arraigados e, por isso mesmo, desvelador e revelador da verdade humana subjacente às poses e aparências. Do fusionamento da experiência vital da infância e juventude e da influência do filme de cowboy com o contexto em que isso se processa provém síntese artística decantada pelo distanciamento cronológico, o amadurecimento intelectual e o aprimoramento da sensibilidade. O impacto e o estranhamento provocados pelo filme e seu espírito descontraído originam-se, pois, dessa associação, na qual agem adequadamente os fatores pessoais e regionais que o induziram e propiciaram e que devem ser levados em conta para sua compreensão. (Muito Bom)
  • 62. 308 A Marvada Carne Que Bom Te Ver Viva
  • 63. 309 CURTA OS GAÚCHOS Arte e Verdade O cinema, no Rio Grande do Sul, finca suas raízes históricas ainda na primeira década do século XX, com os documentários de Giuseppe Filippi, Eduardo Hirtz, Nicola Petrelli e Jacinto Ferrari e, nos anos dez, já revela pioneiro de destaque, Francisco Santos, que, em Pelotas, organiza estúdio e monta laboratórios, realizando vários filmes, entre eles, O Crime de Banhados. Na década de 1920, citam- se, entre outros, Antônio Ferreira, Eduardo Abelim, Carlos Comelli e, oriundo de São Paulo, E. C. Kerrigan. Assim, não surpreende que, com esse pioneirismo e essa tradição, o Rio Grande de Sul apresente, agora, as curtas-metragens que compõem Curta os Gaúchos (Brasil, 1990), englobando, pela ordem de projeção, Obscenidades, de Roberto Henkin; Passageiros, de Carlos Gerbase e Glênio Póvoas; Barbosa, O Dia em Que Dorival Encarou a Guarda e Ilha das Flores, todas as três de Jorge Furtado, a primeira co-dirigida por Ana Luísa Azevedo e, a segunda, por José Pedro Goulart. A característica que, de plano, ressalta-se nesses filmes é a inteligência. Sua feitura, condução e desfechos sempre surpreendentes norteiam-se pela lucidez e domínio dos meios expressionais. Se Passageiros, mesmo com suas qualidades, é o mais fraco deles, o fato decorre mais de certa precariedade técnica do que de outra circunstância.
  • 64. 310 Obscenidades procura e consegue construir e transmitir, com segurança, o estado de espírito e o sufocamento existencial da protagonista. Sutileza e equilíbrio ficcional evidenciam-se até na intensidade e modo de inserir seus familiares no entrecho. Barbosa constitui mistura de ficção e documentário, onde se revezam cenas do jogo e do Maracanã no dia da decisão do Campeonato Mundial de Futebol de 1950, da atuação do protagonista como goleiro da seleção brasileira e entrevista feita com ele, em 1988, ano da realização do filme. Nem é necessário dizer que é consequência do trauma provocado nos brasileiros pelo resultado (e pelo gol de Giggia) naquele jogo. O Dia em Que Dorival Encarou a Guarda é exemplar em todos os sentidos, demonstrando direção que reúne e conduz todos os elementos que integram a realização cinematográfica com notáveis segurança e eficácia. Contudo, é em A Ilha das Flores que o filme atinge o ápice. Não é à toa que essa curta-metragem goza de grande notoriedade, plenamente justificada. Se a característica maior, como se disse, dessas curtas é a inteligência, em A Ilha das Flores essa virtualidade extrapola os limites usuais para se projetar num painel de universalidade. Esse documentário, o único que o é no filme, alcança nível internacional, façanha considerável face às altas qualidades artísticas do melhor documentário mundial, de holandeses, britânicos e tantos outros países. Lúcido, crítico, sarcástico, Ilha das Flores é a constatação, o inventário e a denúncia, em alto nível de criação artística, de contexto
  • 65. 311 cruel e injusto, em que o ser humano é colocado na última escala dos seres vivos. A vivacidade da narrativa e a mordacidade das colocações, aliadas à agilidade da linguagem cinematográfica e a pertinente adequação da montagem fazem dessa curta-metragem documento do desequilíbrio social ocorrente no ordenamento do modo de produção capitalista, que só seria o ideal dos regimes econômicos, conforme seus defensores e beneficiários apregoam, se resolvesse seus problemas estruturais de concentração de renda e desequilíbrio econômico-social, ambos excludentes da maior parte da população do usufruto de bens e produtos. Do contrário, não passará, como os demais regimes que o antecederam, e como tudo está a indicar, de apenas mais uma etapa na evolução da trajetória humana na face da terra, conforme prevista na crítica que lhe fazem os socialistas. Ilha das Flores, pois, preenche, com eficácia fora do comum, a dupla exigência da arte ficcional e/ou documentária: qualidade artística aliada à verdade humana. (Muito Bom)
  • 66. 312 ALMA CORSÁRIA Realidade e Arte Dentre os filmes que, na década de 1990, inserem-se na linha autêntica do cinema brasileiro, ou seja, constituem filmes e não meros produtos comerciais, inclui-se Alma Corsária (1994), de Carlos Reichenbach Filho (1945-2012). A filmografia desse cineasta abrange, além de outros, Filme Demência (1985) e Anjos do Arrabalde (1986). Como eles, Alma Corsária não é filme para se passar tempo ou para, com ele, se divertir. É obra que não falseia a realidade para dela extrair (ou nela interpor, como normalmente ocorre nesses casos), aspectos irrelevantes e aparentes. Conta, é verdade, uma estória. Todavia, não se limita apenas a encadear fatos, mas, a articulá-los numa linha narrativa, que, selecionando-os, procura ainda contextualizá- los, para deles revelar o significado. No comportamento, desempenho e reações de cada figurante o que se tem não é simples desfile de personagens com suas características mais salientes. Porém, todo um universo de valores, de uma maneira de se estar e agir no mundo e nele se relacionar. No desdobramento da linha ficcional básica e diretiva da ação, nucleada na amizade dos protagonistas conforme desenvolvida e manifestada nas diversas etapas da vida, além de compor um hino a esse sentimento, Reichenbach apreende e recria o background em que ele se situa. À atilada percepção do fenômeno humano e ao domínio da linguagem cinematográfica, não obstante convencionalmente utilizada, agrega a sensibilidade social, política e artística, produzindo quadro das
  • 67. 313 manifestações humanas mais importantes de determinadas época, lugar e classe social, que se apresenta abrangente, apropriado e totalizador. Na elaboração do levantamento da trajetória existencial dos amigos, vai-se revelando, paralelamente à reconstrução do ambiente físico e social, a fisionomia mental, emocional e intelectual de uma geração. A interseção do exercício de viver com a demonstração de amizade perfaz-se sutil e autenticamente. À beleza das imagens e pertinência do décor soma-se o fascínio da linha melódica, concebida pelo próprio diretor. A dança e a música que emergem de uma “viagem” do protagonista constituem uma das mais belas cenas do cinema. Uma dança projetada na áspera paisagem de arranha-céus sujos e feios, filmada a partir do topo de um deles, concentrando o encanto dos movimentos do corpo e da imagem em extraordinária síntese de diversificados elementos artísticos. Sem apelações, sem enfeites, apenas (ou tudo), a arte. Uma dança em que, ao invés de mostrar os movimentos de pés e pernas, revela a flexibilidade do corpo, os ângulos do rosto e os meneios dos cabelos, sublinhados por vigorosos acordes musicais. A cena inicial transcorrida no viaduto do Chá é tão adequada, inteligente e espontânea que parece ter sempre existido, como se não fosse possível sua falta. Alma Corsária é filme construído com a substância da vida, entrelaçando, com equilíbrio, sensibilidade e inteligência, realidade e criação artística. Não é mero olhar sobre a vida e sua reconstituição pura e simples. É incisão na concretude de sua prática para buscar, extrair e revelar, criada pela arte, sua natureza e essência. (Muito Bom)
  • 68. 314 O MANDARIM Som e Imagem Quem procura, no cinema e em geral, apenas diversão, estória e ação, não deve assistir O Mandarim (1995), de Júlio Bressane. Nele não existe diversão nem estória, muito menos ação. Ao contrário, música e imagem, criatividade e competência. A competência, que é o mínimo que se exige em arte, apresenta- se e desenvolve-se na concepção geral, na montagem e em cada tomada, em todo fotograma. O objetivo é mostrar imagística ou cinematograficamente a música popular brasileira na voz de Mário Reis, cantor não apelativo nem popularesco. Fazer isso, criando obra de arte, não é fácil. É até arriscado. Mas, Bressane o consegue, porque isso é que vem, conscientemente, fazendo sempre: arriscar e vencer. Daí resulta síntese tão poderosa, que o espectador é compelido a usufruir, em iguais intensidade e prazer estético, som e imagem. Acompanha-se, com a simultaneidade produzida pela união articulada de música e fotografia, tanto uma como outra, como se não existissem (e nem pudessem existir) separadamente. Do enlace entre som e imagem tem-se, nesse filme, não a música como contraponto da imagem ou seu acompanhamento e nem, ao contrário, mera filmagem de apresentação musical. Tem-se unicamente cinema, a arte síntese que, utilizando os elementos encontráveis e/ou produzidos na natureza, os amalgama de
  • 69. 315 tal forma, que, nessa operação e mercê de seu poder, possibilidades e virtualidades, os transforma, criando elemento diverso, mesmo e principalmente mantendo suas características próprias, que é a obra de arte cinematográfica, ou mais, sinteticamente, o cinema. O Mandarim (referência ao cantor Mário Reis) é, pois, antes de tudo, cinema, porque capta e transmite a música por meio de sua singularidade básica, o som, sem perda de sua característica essencial, a imagem em movimento, unindo ambos. É musical, documentário, reportagem? Pode ser (e é), em algum caso até certo ponto, tudo isso, mas, principalmente ou apenas, cinema. As virtualidades da imagem, nele, são expressivas. As angulações e posições da câmera, notáveis. Sensibilidade, inteligência e nenhuma concessão ao pieguismo e à badalação, marcas diretivas. Como obra cinematográfica, não deve ser assistida apenas para se ouvir a música nela ocorrente, mas, ver, observar e absorver o conjunto daí resultante, que é, sobretudo, a imagem e a montagem dessa imagem. Não é cometimento fácil para quem não possui cultura cinematográfica e nem valoriza o específico fílmico. Contudo, é necessário tentar assisti-lo para se livrar das imagens grosseiras, primárias, de mau-gosto e baixo nível que inundam as telas, sejam das salas de projeção, sejam das tevês, vídeos e dvds. (Muito Bom)
  • 70. 316 TERRA ESTRANGEIRA O Predomínio da Imagem Terra Estrangeira (1995), de Válter Sales Júnior e Daniela Thomas, despertou entusiasmos. Por paradoxal que possa parecer à primeira vista, é e não é merecedor de encômios. A análise temática e formal de filme, porém, dissipa qualquer estranheza ou perplexidade que tal posicionamento suscite. Em ficção, por mais que se diga o contrário - e muitos críticos e teóricos já o disseram - a forma não acompanha permanentemente e de maneira absoluta as qualidades e defeitos do conteúdo e vice-versa. Nem sempre um desses elementos segue o outro, embora normalmente e em geral o faça. É que quando o artista tem consciência, capacidade e sensibilidade para elaborar bem um desses componentes ficcionais, automaticamente as possui para o outro. Contudo, mesmo os tendo, por um motivo qualquer pode não exercitá-los plenamente, preferindo privilegiar um em detrimento do outro. É o que acontece com os diretores desse filme. Elegem a forma como objetivo de seu exercício cinematográfico e com ela executam esmerado trabalho fílmico. Raramente - e não só no cinema brasileiro - observa-se utilização mais primorosa e adequada dos recursos e movimentos da
  • 71. 317 câmera e eleição de tão belos ângulos e aspectos do décor e da paisagem, seja natural ou urbana. Até simples apartamento, desses com vistas para o Minhocão de São Paulo, adquire requintes insuspeitados por força da valorização da imagem. Nem se fala, então, do citado viaduto, que câmera ágil e inteligente capta em distâncias e ângulos tão apropriados, que dele extrai pura beleza, finalidade da arte. Mas, não só nas tomadas e cenas paulistanas têm-se as virtualidades apontadas. A qualidade e o bom gosto acompanham a câmera à Europa, onde em Portugal e Espanha alongam-se as peripécias dos protagonistas brasileiros de mistura com personagens portuguesas e angolanas residentes em Lisboa. O domínio da câmera excede em virtuosismo - e não poucas vezes - o manifestado nos cenários paulistanos, mercê, também, de décor mais variado e rico em nuanças e facetas diversificadas, além de esplêndidos exteriores, cujas só escolha e locação já atestam sensibilidade e perspicácia. A beleza da imagem é, pois, uma constante desde a tomada inicial até quando os dois protagonistas, ao final, rumam para a cidade de San Sebastian, na Espanha. Contudo, é de se ressaltar, pela notável beleza, as cenas transcorridas nos exteriores do mosteiro português e à beira-mar (aliás, todo beira-mar e todo beira-rio são belos), com o felliniano e portentoso navio encalhado. Como não evocar a sequência da praia de A Doce Vida (La Dolce Vita, Itália, 1959), de Fellini?
  • 72. 318 O preto-e-branco de todo o filme, principalmente nas passagens mencionadas, é não só insubstituível como inexcedível em belezas e contrastes, nítidos e equilibrados. Como ajustar e harmonizar, em arte e poesia, a utilização desses dois antagônicos tons? Basta ver o filme e constatar. Até mesmo prosaica rodovia asfaltada cercada de oliveiras assume proporções estéticas magníficas nas tomadas aéreas ou efetuadas de algum ponto elevado. Todavia, como já antecipado no início, essa virtualidade formal não é empregada em fixar imageticamente drama humano substancial, como, por exemplo, embora não se exija tanto, aqueles expostos em A Doce Vida ou em Morangos Silvestres (Smultronstället, Suécia, 1957), de Ingmar Bergman. Sob o aspecto temático, o filme assenta-se em tríplice contextualização dramática (sentimento do exílio, prática criminosa e o amor), resolvendo bem a primeira e a última mercê de sensível e conveniente tratamento, o que já não ocorre com a faceta criminal, transcorrida linear e previsivelmente em seu desenvolvimento e desdobramentos lógicos, conquanto conduzidos com segurança, adequados perfis tipológicos e elogiáveis direção e interpretação dos atores. Enfim, belíssimo filme, no qual a segunda linha temática não passa de pretexto para expressão de primoroso e requintado exercício da imagem cinematográfica. (Ótimo)
  • 73. 319 BAILE PERFUMADO A Trajetória do Nordestern O cinema, como toda arte ficcional, além das categorias fílmicas, como drama, comédia, musical, etc., ainda contém, no âmbito de cada uma delas, diversos temas cuja importância maior ou menor depende da intensidade e qualidade de sua exploração. Certos assuntos podem assumir - e alguns assumem - características de verdadeiros gêneros, alcançando autonomia. Não bastam, contudo, apenas os predicativos de qualidade e intensidade para que se elevem ou obtenham classificação própria e categoria independente. Além disso - e talvez, no caso, mais importante do que isso - é necessário, para não se dizer indispensável, que esses temas contenham elementos específicos que os distingam, valorizem e caracterizem, diferençando-os de todos os outros e dos demais gêneros. A saga do cangaço, que, como normalmente acontece, começa tímida e isolada na década de 1920 com o filme Filho Sem Mãe (1925), de Tancredo Seabra, pertencente ao ciclo cinematográfico de Recife, apresenta, no decorrer do tempo, mais alguns exemplos isolados, como Lampião, Fera do Nordeste (1930), de Guilherme Guadio, e Lampião, o Rei do Cangaço (1936), documentário de Benjamin Abraão, para desaguar em O Cangaceiro (1955), de Vítor de Lima Barreto.
  • 74. 320 O sucesso desta última realização, malgrado algumas de suas deficiências, e até por isso mesmo, é tanto, que suscita a eclosão de série de filmes de cangaço na década de 1960, constituindo o que a crítica considera espécie ou classe distinta, o nordestern, de que são paradigmas, entre outros, A Morte Comanda o Cangaço (1960) e Lampião, Rei do Cangaço (1962), ambos dirigidos por Carlos Coimbra, Três Cabras de Lampião (1962), de Aurélio Teixeira, além de filmes de Vítor Lima, Wilson Silva, Milton Amaral, Miguel Borges e Osvaldo Oliveira, entre outros. O nordestern difere do western, tanto do estadunidense, como do brasileiro, que também existe, como são exemplos Férias no Arraial (1960), do polonês Edward Freund; Sertão Bravio (1964), de Armando Sábato; Gregório (1968), de Rubens Prado; O Homem do Corpo Fechado (1970), de Schubert Magalhães; Cainguangue, a Pontaria do Diabo (1974), do argentino Carlos Hugo Christensen. Western é uma coisa, nordestern outra, conquanto possam ter (e tenham) alguns elementos comuns ou pelo menos confinantes. O nordestern depois de permanecer alguns anos esquecido, retorna ao cinema brasileiro na década de 1990. Além da refilmagem de O Cangaceiro (1996), de Aníbal Massaini Neto, pelo menos mais dois outros filmes são lançados, Corisco e Dadá (1996), de Rosemberg Cariri, e Baile Perfumado (1996), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. Este último trata de episódio caro aos estudiosos mais informados da história do cinema brasileiro: a filmagem de Lampião pelo mascate sírio-libanês Benjamin Abraão.
  • 75. 321 O filme fundamenta-se exclusivamente na deliberação de Abraão de filmar Lampião e seu bando a qualquer custo, revelando as dificuldades, de variada natureza, que se antepõem a esse desiderato. Propósitos meramente financeiros parecem insuficientes para justificar o tamanho da empreitada, não ficando convenientemente clara a motivação mais profunda que forma e informa essa pretensão, a todos os títulos difícil e, principalmente, perigosa. Não apenas por parte do mais célebre dos cangaceiros, de ferocidade, inteligência e determinação assaz conhecidas. Mas, também, e até mais acentuada, da parte de seus inimigos e perseguidores, oficiais ou não. Pois bem. Nesse mar de escolhos e obstáculos, Abraão desenvolve seu projeto, fornecendo à posteridade as tidas e havidas como únicas imagens de Lampião. Não só isso. Se o cineasta, pois é disso que se trata, apenas se limitasse a documentar gestos, falas e atitudes dos cangaceiros, já não seria pouco. Contudo, vai mais longe. E o faz bem feito, o que é tão ou mais importante do que apenas fazer. Aliás, realizar por realizar, normalmente nem é meritório. Indispensável é que se o faça bem, o melhor possível. Não é por outro motivo, que imagens de Abraão são utilizadas em pelo menos quatro outros filmes: Memória do Cangaço (1965), documentário de Paulo Gil Soares; Os Sermões do Padre Vieira (1989), de Júlio Bressane; Corisco e Dadá (1966), de Rosemberg Cariri, e, naturalmente, também em Baile Perfumado. Neste, além de algumas cenas originais, reproduzem-se e reconstituem-se, no próprio filme, diversas outras.
  • 76. 322 Porém, tudo isso (tema, utilização de umas e refilmagens de outras cenas de Abraão), não teria, por sua vez, importância se o filme não fosse bem realizado como o foi. Baile Perfumado alicerça-se em inteligência e sensibilidade, desde a seleção de fatos que se quer revelar até o modo de se fazê-lo. Conteúdo e forma andam aí, pois, simetricamente. À sutileza do enfoque e dos diálogos alia-se a utilização apropriada e, em certos casos, requintada da imagem e dos recursos da câmera, perfazendo conjunto harmonioso e esteticamente belo. A direção e desempenho do ator que encarna o protagonista são próprias de cinema consciente de suas possibilidades e alcance, como o é o cinema brasileiro há muito tempo ou, mais precisamente, de maneira coletiva, desde pelo menos o início da década de 1960, com o Cinema Novo. Enfim, não é todo dia que se vê reproduzida num filme personalidade tão forte como a de Lampião tal qual conforme captada pela lente sensível e inteligente de Abraão, considerado, por seu filme, um dos maiores cineastas brasileiros. Já Baile Perfumado, que focaliza o encontro de Abraão com Lampião, constitui, por suas qualidades cinematográficas, um dos filmes mais significativos do cinema brasileiro contemporâneo. (Muito Bom)