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O NARRADOR ESTRANGEIRO E SEU JOGO DE SEDUÇÃO:
 HOMOAFETIVIDADE E ESTRANHAMENTO EM “O RAPAZ MAIS TRISTE
           DO MUNDO”, DE CAIO FERNANDO ABREU

                                                  Ricardo Gomes da SILVA (G-UEM) i
                                                    Marciano Lopes e SILVA (UEM) ii

                 Esse estranho poder demiúrgico me deixa ainda mais tonto que eles,
                 quando se levantam e se abraçam demoradamente à porta do bar,
                 depois de pagarem a conta. Amantes, parentes, iguais, estranhos.
                 (palavras do narrador; ABREU, 1988, p. 67)


1. INTRODUÇÃO

        Caio Fernando Abreu dedicou sua produção literária a peças teatrais, romances,
crônicas, novelas e contos. Sua obra é comumente rotulada como literatura gay – apesar
de tal classificação ser redutora – em virtude do tema ser constantemente explorado pelo
autor, realizando uma obra que procura dar voz a essa “minoria”. Com o intuito, então,
de contribuir para o debate sobre a existência – ou não – de uma literatura e um discurso
homoafetivo – ou homoerótico – resolvemos discutir de que maneira o engajamento
nessa empreitada leva não somente à abordagem de temas tabus, mas especialmente à
elaboração de uma estética própria e condizente com os valores cognitivos e éticos
desse grupo social. Para tanto, decidimos analisar o conto “O rapaz mais triste do
mundo”, do livro Os dragões não conhecem o paraíso (1988), devido ao fato de esse
texto apresentar vários elementos recorrentes ao longo de sua obra, entre os quais se
encontram algumas metáforas, alegorias e, especialmente, um jogo narrativo bastante
singular que, na opinião de Bruno Leal (2002), constitui uma estratégia de sedução do
leitor voltada – entre outras coisas – para o rompimento dos preconceitos e barreiras que
impedem a aceitação da identidade gay por parte dos cidadãos heterossexuais. No conto
em questão, os protagonistas – assim como o narrador, acreditamos – sofrem um
profundo sentimento de dor, estranhamento e solidão devido à inadequação aos modelos
de gênero masculino dominantes na sociedade. Nesse contexto, a homoafetividade surge
como expressão de uma necessidade afetiva natural e legítima, sendo apresentada como
atitude necessária à sobrevivência na medida em que subverte a ordem dominante.
Quanto ao nível estético de composição, as estratégias de sedução, que instauram a
dúvida sobre as aparências, e espelhamento entre personagens, narrador e leitor
constituem procedimentos voltados para a desestabilização dos valores e crenças tidos
como verdadeiros e inquestionáveis, primeiro passo para a aceitação da alteridade gay
por esse último.


2. DOIS (OU TRÊS) NÁUFRAGOS EM UM AQUÁRIO DE ÁGUAS TURVAS

        Antes de começarmos nossa análise e discussão, convém apresentarmos uma
breve sinopse do conto. Este inicia com a descrição da caminhada noturna de um
solitário “homem” até um bar, onde pede uma cerveja no balcão e por acaso, ou por
falta de opção, senta-se na mesma mesa em que se encontra um “rapaz”. Os dois
permanecem ali, bebendo lentamente suas cervejas, sem aparentemente perceberem a


                                                                                     464
existência um do outro. Isso até começarem uma conversa banal, cujo objetivo é apenas
romper o silêncio e a solidão, – o que se revela no predomínio da função fática da
linguagem: “como é seu nome, qual o seu signo, quer outra cerveja, me dá um cigarro,
não tenho grana, eu pago, pode deixar, fazendo o quê, por aí, vendo o que pinta, vem
sempre aqui, faz tanto frio”... (ABREU, 1988, p.62). De acordo com o narrador, a
conversa toma um caráter confessional e íntimo até que os dois se dão as mãos e “se
contemplam doces, desarmados, cúmplices, abandonados, pungentes, severos,
companheiros. Apiedados." (Ibidem, p.63). Com o passar do tempo, vai aumentando a
intimidade entre ambos – o que é estimulado pelo narrador-observador, que também é
um personagem ativo, que manipula não somente a narrativa como também o espaço
através das músicas que escolhe para tocar no juke-box, de modo a aproximá-los entre
si. Com o chegar da manhã e o bar já fechando, ambos se despedem e o rapaz vai
embora.
        Como já podemos deduzir com base no pequeno resumo acima, o texto que
analisaremos enquadra-se no “conto de atmosfera” (GALVÃO, 1983), narrativa em que
a ação é principalmente interna e o conflito, portanto, reside na experiência subjetiva
dos personagens que, nesse gênero, geralmente são em número reduzido. No presente,
são apenas dois – ou três, se considerarmos também o narrador, posto que, conforme já
apontamos acima, não é um observador passivo. De acordo com nosso ponto de vista,
ele induz o leitor a crer que os dois personagens se encontram em estado de
estranhamento com o mundo por não se enquadrarem nos estereótipos de gênero
vigentes, o que sugere um descontentamento com o mundo e a sociedade moderna.
        O personagem “homem” é caracterizado pelo narrador como aquele que não se
casou e não teve filhos ou família, contrariando o estereótipo de “pai de família”. Para
intensificar ainda mais sua caracterização de estranho/estrangeiro, suas roupas, apesar
de cinzas, são apresentadas como brancas, o que contrasta violentamente com as cores
do ambiente opressivo (note-se as paredes que lembram um corredor polonês) e sujo do
bar:

                  O bar é igual a um longo corredor polonês. As paredes demarcadas –
                 à direita de quem entra, mas à esquerda de onde contemplo – pelo
                 balcão comprido e, do lado oposto, pela fila indiana de mesinhas
                 ordinárias, fórmica imitando mármore. Nessa linha, estendida
                 horizontal da porta de entrada até a juke-box do fundo onde estou e
                 espio, ele se movimenta – magro, curvo, molhado – entre as pessoas
                 enoveladas. Vestido de escuro, massa negra, monstro vomitado pelas
                 ondas noturnas na areia suja do bar. Entre essas pessoas, embora
                 vestido de cinza, ele parece todo branco. (ABREU, 1988, p. 58 – os
                 grifos são nossos)

       Situação semelhante é a do “rapaz”, apresentado como um indivíduo que
também não consegue se visualizar no estereótipo masculino, situação nitidamente
notável no recorte abaixo:

                 [...] eu sou tão magro, vê? Quando abraço uma mina [...] fico olhando
                 para os meus braços frágeis incapazes de abraçar com força uma
                 mulher, e fico então imaginando músculos que não tenho, fico
                 inventando forças, porque eu sou tão fraco, porque eu sou tão magro,
                 porque eu sou tão novo. (Ibidem, p.59)


                                                                                    465
Cremos que o deslocamento em relação aos eixos fixos de identidades
disponíveis faz com que os protagonistas se encontrem e se realizem, pelo menos
temporariamente, em uma identidade homoafetiva. Peter Fry (1983, p.7) observa que,
ao contrário da heterossexualidade, socialmente legitimada, não há verdade absoluta
sobre o que seria homossexualidade, posto que esta é “uma infinita variação sobre o
mesmo tema: o das relações sexuais afetivas entre pessoas do mesmo sexo”. Isso
possibilita àqueles que se vêem como estranhos ao mundo de estereótipos masculinos
encontrarem nela um refúgio. No conto em questão, a aproximação homoafetiva
possibilita aos personagens em conflito – assim como ao leitor – se descobrirem e,
assim, poderem conquistar a liberdade de escapar do aquário de águas sujas rumo ao
mar aberto. Para isso, a presença do estranho e do estrangeiro (não esqueçamos que, em
francês, a palavra que os designa é a mesma: l´étranger) é uma estratégia recorrente na
literatura de Caio Fernando Abreu, conforme veremos na seqüência, que é indicada no
conto em questão já na epígrafe – retirada, segundo indicação do próprio autor, da obra
Cenários em ruínas, de Nelson Brissac Peixoto:

                 “São aqueles que vêm do nada e partem para lugar nenhum. Alguém
                 que aparece de repente, que ninguém sabe de onde veio nem para
                 onde vai. A man out of nowhere.” (ABREU, 1988, p. 57)


        Para reforçar a inadaptação que sofrem os dois personagens, o narrador lança
mão de quatro metáforas: a do peixe, a da cegueira, a das águas turvas (ou sujas) e a do
aquário. As quatro metáforas articuladas estruturam uma alegoria caracterizadora do
espaço e da condição dos personagens – e do próprio narrador, acreditamos –, assim
compondo a ambientação que permeia todo o conto. Nesta alegoria, os personagens são
descritos como “peixes cegos ignorantes de seu caminho”, mas que “navegam em
direção um ao outro” (Ibidem, p. 57). A condição de cegueira e de apriosionamento,
resultante da imposição de uma identidade de gênero pela sociedade, é metaforizada
pela imagem do aquário de águas turvas. Essas duas metáforas sugerem que os
personagens estão perdidos, sem saber para onde vão e sem esperança de encontrar uma
saída, primeiro por estarem aprisionados pelas paredes de vidro de um aquário, segundo
por serem cegos errantes em mundo turvo de certezas inexistentes ou obscuras como
águas turvas. Nesta procura, acabam por se encontrarem e se reconhecerem um no
outro, encontrando – nem que por apenas algumas horas – a satisfação de suas
necessidades, impulsos e desejos reprimidos em uma relação homoafetiva. E o valor
positivo e redentor desse encontro é expresso metaforicamente no seguinte recorte.
Observe, leitor, que na medida em que ambos se aproximam e se entrelaçam, o homem,
inicialmente caracterizado como um monstro marinho, vai se transformando em um
novo, radiante e precioso ser. Renovação que só se realiza na identificação amorosa
com o outro:

                 [...] esses dois caras estranhos, parecem dois veados de mãos dadas,
                 perdidamente apaixonados por alguém que não é o outro, mas poderia
                 ser, se não ousassem tanto e não tivesses que partir – o homem segura
                 com mais força nas duas mãos do rapaz mais triste do mundo. As
                 quatro mãos se apertam, se aquecem, se misturam se confortam. Não
                 negro monstro marinho viscoso, vômito na manhã. Mas sim branca


                                                                                    466
estrela do mar. pentáculo, madrepérola. Ostra entreaberta exibindo a
                 negra pérola arrancada da noite e da doença, puro blues. (Ibidem, p.
                 65 – grifos nossos)

       Os elementos que compõem a alegoria que acreditamos existir no conto não são
novos na obra de Caio Fernando Abreu, eles já estão presentes, de certo modo às
avessas, nos contos “À beira do mar aberto”, também de Os dragões não conhecem o
paraíso, “O afogado”, de O ovo apunhalado, e na novela “O marinheiro”, do livro
Triângulo das águas. No segundo texto, o conflito vivido surge após o aparecimento de
um homem desconhecido, que havia se afogado, em uma praia. O surgimento deste
estranho “precipita e expõe uma situação que é a do protagonista, ele mesmo um
estrangeiro no lugar, incapaz de se integrar” na comunidade praieira do local onde vive,
conforme observa Bruno Leal (2002, p. 48-49). No último conto, a situação é
semelhante, pois é o surgimento de um estranho estrangeiro, vindo do mar, que
novamente provocará o conflito. Neste caso, o protagonista recebe a visita de um
“marinheiro”, personagem que vai retirá-lo da condição de “cegueira” sobre si mesmo,
permitindo-lhe a autodescoberta da homossexualidade e a sua libertação com respeito às
imposições sociais de gênero, assim conquistando a liberdade para viver conforme suas
necessidades e impulsos; liberdade que é metaforizada pela condição de marinheiro,
pois esse pode viver navegando pelos mares – portanto “livre”, sem a prisão das quatro
paredes de uma casa ou um aquário – em um espaço predominantemente masculino,
onde normalmente não se faz presente a figura da mulher. Conforme a conclusão de
Maria Cantoni (2008) ao encerrar seu artigo – também apresentado nesse simpósio
sobre “Identidades emergentes na literatura brasileira e a reavaliação de seu cânone”:

                 O homoerotismo, no conto “O marinheiro”, de Caio Fernando Abreu,
                 é construído principalmente através da presença do estrangeiro, do
                 outro, representado pelo marinheiro que, vindo de realidades oníricas,
                 propicia ao protagonista a compreensão de seus sonhos e visões. A
                 forte identificação que se dá no encontro destas duas personagens
                 indica não só uma relação especular, mas é antes um indício da
                 fragmentação da identidade do protagonista: o deparar-se com o outro
                 significa também o deparar-se com o mais profundo e íntimo do seu
                 ser.


3. O NARRADOR MANIPULADOR E SEU JOGO ESPECULAR

        O narrador do conto não se encaixa muito bem nos modelos de análise
comumente utilizados. Apesar de apresenta-se num canto do bar não podemos defini-lo
meramente como observador, posto que participa ativamente da história, e nem como
onisciente, conforme considera Bruno Leal (2002, p. 75), devido ao fato de ele mesmo
demonstrar, diversas vezes, o caráter dedutivo de suas afirmações a respeito dos
personagens. Assim sendo, decidimos não dar importância a taxionomias de narrador,
mas antes de tudo analisá-lo, buscando identificar suas estratégias de aliciamento do
leitor. Pensamos que, ao levá-lo a crer na existência do estranhamento por parte dos
personagens em relação ao mundo, o narrador é o principal criador do conflito dos
mesmos. Essa atitude é mesmo assumida por ele, o que se percebe quando afirma "fui
eu quem armou esta cilada" ou: “Esse estranho poder demiurgo me deixa mais tonto que


                                                                                    467
ele" (ABREU, 1988, p.62, p.67). Assim, os personagens surgem no conto como
fantoches com os quais o narrador brinca e se diverte à distância, sem ser visto ou
percebido por ambos. E tal atitude de manipulação não se restringe ao discurso
narrativo, pois ele, para justificar e favorecer a aproximação homoafetiva entre o
“homem” e o “rapaz”, também manipula o espaço, criando um ambiente melancólico e
sensual, através de vários blues que escolhe para tocar no juke-box.

                 Portanto. Não se olham. E não sou eu quem decide, são eles. Não se
                 deve olhar quando olhar significaria debruçar-se sobre um espelho
                 talvez rachado. Que pode ferir, com seus cacos deformantes. Por isso
                 mesmo hesito, então entre jogar minha ficha em Bessie Smith ou
                 Louis Armstrong (tudo é imaginário nesta noite, neste bar, nesta
                 máquina de música repleta de outras facilidades mais em voga), para
                 facilitar o fluxo, desimpedir o trânsito, para adoçar ou amargar as
                 coisas [...] (Ibidem, p. 61 – grifos nossos).

         O que ocorre, de fato, é que, no lugar de uma aparente onisciência, o narrador
imagina e cria os diálogos dos personagens e, conseqüentemente, o desenrolar da
história. As vozes e diálogos dos personagens são reproduzidos e/ou imaginados por
ele, que expõe suas próprias idéias e sentimentos de modo a compartilhá-los com o
leitor e, deste modo, enriquecê-lo com sua experiência.

                 Eles se ignoram. Porque pressente que – eu invento, sou Senhor de
                 meu invento absurdo e estupidamente real, porque o vou vivendo nas
                 veias agora, enquanto invento- se cederem à solidão um do outro, não
                 sobrará mais espaço algum para fugas como alguma trepada bêbada
                 com alguém de quem não lembrará o rosto dois dias depois [...], um
                 baseado sôfrego na lama do parque. Coisas assim, você sabe? Eu, sim:
                 amar o mesmo de si no outro às vezes acorrenta [...]. No entanto, é
                 claro lá: quando os corpos se tocam depois de amar o mesmo de si no
                 outro. (Ibidem, p. 61 – grifos nossos)

        Ao apresentar os diálogos, o narrador cria afirmações com base em suposições
sobre o que os personagens estão falando e, assim, leva o leitor a tomar como
verdadeiras as suas inferências. Para tanto, faz uso de sentenças resultantes de um
raciocínio dedutivo como se fossem afirmativas feitas por um narrador onisciente e,
dessa forma, obscurece – mas não oculta – o fato de que a história e o conflito podem
ser, na verdade, frutos de sua imaginação. Isso ocorre, por exemplo, ao afirmar que o
homem é calvo e sofre piadas sobre carecas. Afirmar que um homem é careca é algo
acessível a qualquer observador, mas dizer que este sofre piadas de carecas somente
pode ser uma dedução – que pode não ser verdadeira – baseada em uma generalização.
Porém, indiferente a isto, o narrador faz esta afirmação que lhe possibilita um falso ar
de onisciência, por um lado, ao mesmo tempo em que, por outro, vai semeando a dúvida
no espírito do leitor. Em outros momentos, o narrador chega mesmo a explicar o
fundamento de suas deduções. É o que ocorre ao dizer que o homem não possui
passado, quando acrescenta: "porque não tem passado os homens de quase quarenta
anos que caminham sozinhos pelas madrugadas" (Ibidem, p. 58). O mesmo ocorre ao
dizer que o rapaz bebe demasiadamente "como costumam beber estes rapazes de quase
vinte anos" (Ibidem, p.59). Nestes casos, o narrador passa ao leitor a impressão de que


                                                                                    468
suas afirmações se pautam em um raciocínio lógico, quando, na verdade, resultam de
gereralizações e, por conseguinte, são passíveis de erro e de questionamento.
        Entretanto, conforme já observamos, ele deixa que o leitor perceba sua estratégia
ao dividir com ele suas incertezas. É o que acontece, por exemplo, quando fala da troca
de olhares entre o homem e o rapaz. Neste trecho, o narrador assinala inicialmente que
não há desejo na troca de olhares, mas logo em seguida põe isso em dúvida expressando
que "talvez deseje", "quem sabe sim" (Ibidem, p.63). São várias as situações em que o
leitor pode ou tem que decidir se interpretará tal trecho como real ou como invenção
e/ou suposição do narrador. Dessa forma, o leitor pode tomar as rédeas da narrativa
optando por qual das partes aceitará como verdade ou não. Com essa estratégia, o
narrador quebra a hierarquia “Narrador onisciente/Leitor passivo”, pois ambos podem
compartilhar ou, até mesmo, alternar a situação de poder na narrativa. Por exemplo, o
que o homem responde ao garçom no final do conto não é dito pelo narrador, assim é o
leitor que decidi. A impossibilidade de saber certamente o que ocorreu e o que foi
inventado pelo narrador deixa o leitor na mesma situação dos personagens: "peixes
cegos ignorantes de seu caminho" num aquário onde nada é claro e tudo é nebuloso. O
leitor não sabe para onde seguir e no que deve crer. É uma forma de abalar as certezas.
Assim o leitor é colocado na condição de ter dúvidas sobre a realidade, ou seja, de
encarar a incerteza quanto ao que demonstram as aparências – sendo convidado a
também supor e a rever suas verdades.
        Com o objetivo de diminuir mais ainda a distância entre si e seu interlocutor, o
narrador também utiliza o recurso de dialogar com o leitor, como podemos ver no
exemplo abaixo:

                 Coisas assim, você sabe? Eu, sim: amar o mesmo de si no outro às
                 vezes acorrenta, mas quando os corpos se tocam as mentes conseguem
                 voar para bem mais longe que o horizonte, que não se vê nunca daqui.
                 (Ibidem, p.64)

        Para seduzir o leitor, o narrador também cria, de forma gradual, uma relação
especular de identificação entre os personagens, o leitor e ele mesmo. Primeiro
apresenta os personagens e os compara entre si. Em seguida compara-se aos
personagens ao se por na situação de errante noturno por meio da utilização do pronome
pessoal "nós", como podemos conferir no seguinte recorte: “de quem ronda as noites
feito eles, feito eu, feito nós” (Ibidem, p.60 ). O narrador, dessa forma, busca
demonstrar que entende perfeitamente o que eles sofrem, pois compartilha da mesma
dor. Depois, procura aproximar-se do leitor ao aguçar sua simpatia em relação aos
personagens, persuadindo-o a aceitar a cena, por mais estranha que possa ser, e
sensibilizando-o para o sofrimento deles, que é também o seu.
        Próximo ao final do conto, o narrador expõe o grupo onde o leitor já está incluso
como peixe mergulhado no mesmo aquário, ou seja, no mesmo sentimento de solidão,
inadequação e estranhamento. Assim realiza a aproximação de todos entre si: do homem
com o rapaz, deles consigo mesmo, e dos três com o leitor, assim envolvendo-o na
situação e, por conseguinte, convidando-o a fazer parte do grupo; do grupo de pessoas
que se reconhecem estrangeiras e – a partir desse momento – rompem com seus
preconceitos e partem em busca de um caminho para fora do aquário de águas sujas.

                 Eu sou os dois, eu sou os três, eu sou nós quatro. Esses dois que se
                 encontram, esse três que espia e conta, esse quarto que escuta. Nós


                                                                                     469
somos um – esse que procura sem encontrar e, quando encontra, não
                 costuma suportar o encontro que desmente sua suposta sina. (Ibidem,
                 p. 66)

                 [...] E o que disser, como eu, será verdade. Aqui de onde resto, sei que
                 continuamos sendo três ou quatro. Eu pai deles, eu filho deles, eu eles
                 próprios, mais você: nós quatro, um único homem perdido na noite,
                 afundado nesse aquário de águas sujas refletindo o brilho do neon.
                 Peixe cego ignorante de meu caminho inevitável em direção ao outro
                 que contemplo de longe, olhos molhados, sem coragem de tocá-lo.
                 (Ibidem, p. 67)


4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

         Conforme acreditamos ter demonstrado, o narrador manipula não somente a
narrativa como também os dois outros personagens ao selecionar os sons de blues (Tom
Waits, Bessie Smith, Louis Armstrong) para ajudá-los a se aproximarem. Ao fazê-lo,
compõe uma atmosfera noir, melancólica e sensual: noite, névoa, cigarros molhados,
cerveja morna, bar suburbano, solidão, música depressiva e imperfeição em cada
elemento para despertar o mesmo sentimento de compaixão no leitor, que ele busca
aliciar através do diálogo e do jogo especular, no qual tenta fazer com que ele se
enxergue na mesma condição dos personagens e de si mesmo. Essa estratégia, que
desestabiliza a crença no poder demiúrgico do narrador onisciente e dessacraliza o texto
literário – rompendo com a crença de que ele seja um espelho fiel do mundo – busca,
em última instância, instaurar a dúvida sobre as aparências, assim abalando as certezas
inscritas pela ideologia no espírito do leitor. Tudo isso é muito bem observado e
analisado por Bruno Leal, que, recorrendo a Baudrillard, nomeia esta estratégia como
“jogo da sedução”.

                 Daí a atmosfera de “encantador de serpentes” e a poética magia. É
                 preciso que o leitor perca a sua noção de verdade do texto, do mundo,
                 e que ele compartilhe, ainda que por alguns instantes, do ritual do
                 texto “marginal”, que seja cúmplice nessa vertigem. Daí a necessidade
                 de seduzi-lo. E de atraí-lo. (LEAL, 2002, p. 62)

       Nesse jogo, o sentimento de compaixão é o primeiro passo para a identificação
com quem é estranho, pois ver-se no outro e sentir as suas dores, entrar em sintonia e
simpatia com o outro, é atitude fundamental para o rompimento da barreira entre
identidade e alteridade. Feito isso, é possível que o leitor possa sofrer o estranhamento
necessário para ler de modo simpático e compreensivo – sem nojo e preconceito – a
cena que segue, doce e doloroso clímax da narrativa:

                 Ternos, pálidos, reais, eles se olham. Eles se acariciam mutuamente as
                 mãos, depois os braços, os ombros, o pescoço, o rosto, os traços o
                 rosto, os cabelos. Com essa doçura nascida entre dois homens
                 sozinhos no meio de uma noite gelada, meio bêbados e sem nenhum
                 outro recurso a não ser se amarem assim, mais apaixonadamente do
                 que se amariam se estivessem à caça de outro corpo, igual ou diverso


                                                                                     470
do deles – pouco importa, tudo é sede. (ABREU, 1988, p. 66)

       Nesse contexto de aquário de águas sujas, o solitário e anônimo narrador é o
marinheiro estranho e estrangeiro – assim como acontece em outras narrativas de Caio
Fernando Abreu – que tem o papel de desestabilizar as verdades impostas pelas
ideologias dominantes de modo que os demais personagens e principalmente o leitor se
vejam refletidos em sua imagem e, assim, sejam seduzidos pelo (en)canto de seu
discurso.


5. REFERÊNCIAS

ABREU, Caio Fernando. Os dragões não conhecem o paraíso. 2 ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988.

CANTONI, Maria Mendes. O discurso homoerótico em “O marinheiro”, de Caio
Fernando Abreu. In: II Conali. Anais. Maringá: Editora do Departamento de
Letras/UEM, 2008.

FRY, Peter. O que é homossexualidade. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983.

GALVÃO, Walnice. Cinco teses sobre o conto. In: PROENÇA FILHO, Domingos
(Org.). O livro do seminário. São Paulo: LR Editores, 1983, p. 165-172.

LEAL, Bruno Souza. Caio Fernando Abreu: a metrópole e a paixão do estrangeiro:
contos, identidade e sexualidade em trânsito. São Paulo: Annablume, 2002.

i
     Contato: rgomesdasilva@gmail.com
ii
     Contato: etlopes@hotmail.com




                                                                                    471

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  • 1. O NARRADOR ESTRANGEIRO E SEU JOGO DE SEDUÇÃO: HOMOAFETIVIDADE E ESTRANHAMENTO EM “O RAPAZ MAIS TRISTE DO MUNDO”, DE CAIO FERNANDO ABREU Ricardo Gomes da SILVA (G-UEM) i Marciano Lopes e SILVA (UEM) ii Esse estranho poder demiúrgico me deixa ainda mais tonto que eles, quando se levantam e se abraçam demoradamente à porta do bar, depois de pagarem a conta. Amantes, parentes, iguais, estranhos. (palavras do narrador; ABREU, 1988, p. 67) 1. INTRODUÇÃO Caio Fernando Abreu dedicou sua produção literária a peças teatrais, romances, crônicas, novelas e contos. Sua obra é comumente rotulada como literatura gay – apesar de tal classificação ser redutora – em virtude do tema ser constantemente explorado pelo autor, realizando uma obra que procura dar voz a essa “minoria”. Com o intuito, então, de contribuir para o debate sobre a existência – ou não – de uma literatura e um discurso homoafetivo – ou homoerótico – resolvemos discutir de que maneira o engajamento nessa empreitada leva não somente à abordagem de temas tabus, mas especialmente à elaboração de uma estética própria e condizente com os valores cognitivos e éticos desse grupo social. Para tanto, decidimos analisar o conto “O rapaz mais triste do mundo”, do livro Os dragões não conhecem o paraíso (1988), devido ao fato de esse texto apresentar vários elementos recorrentes ao longo de sua obra, entre os quais se encontram algumas metáforas, alegorias e, especialmente, um jogo narrativo bastante singular que, na opinião de Bruno Leal (2002), constitui uma estratégia de sedução do leitor voltada – entre outras coisas – para o rompimento dos preconceitos e barreiras que impedem a aceitação da identidade gay por parte dos cidadãos heterossexuais. No conto em questão, os protagonistas – assim como o narrador, acreditamos – sofrem um profundo sentimento de dor, estranhamento e solidão devido à inadequação aos modelos de gênero masculino dominantes na sociedade. Nesse contexto, a homoafetividade surge como expressão de uma necessidade afetiva natural e legítima, sendo apresentada como atitude necessária à sobrevivência na medida em que subverte a ordem dominante. Quanto ao nível estético de composição, as estratégias de sedução, que instauram a dúvida sobre as aparências, e espelhamento entre personagens, narrador e leitor constituem procedimentos voltados para a desestabilização dos valores e crenças tidos como verdadeiros e inquestionáveis, primeiro passo para a aceitação da alteridade gay por esse último. 2. DOIS (OU TRÊS) NÁUFRAGOS EM UM AQUÁRIO DE ÁGUAS TURVAS Antes de começarmos nossa análise e discussão, convém apresentarmos uma breve sinopse do conto. Este inicia com a descrição da caminhada noturna de um solitário “homem” até um bar, onde pede uma cerveja no balcão e por acaso, ou por falta de opção, senta-se na mesma mesa em que se encontra um “rapaz”. Os dois permanecem ali, bebendo lentamente suas cervejas, sem aparentemente perceberem a 464
  • 2. existência um do outro. Isso até começarem uma conversa banal, cujo objetivo é apenas romper o silêncio e a solidão, – o que se revela no predomínio da função fática da linguagem: “como é seu nome, qual o seu signo, quer outra cerveja, me dá um cigarro, não tenho grana, eu pago, pode deixar, fazendo o quê, por aí, vendo o que pinta, vem sempre aqui, faz tanto frio”... (ABREU, 1988, p.62). De acordo com o narrador, a conversa toma um caráter confessional e íntimo até que os dois se dão as mãos e “se contemplam doces, desarmados, cúmplices, abandonados, pungentes, severos, companheiros. Apiedados." (Ibidem, p.63). Com o passar do tempo, vai aumentando a intimidade entre ambos – o que é estimulado pelo narrador-observador, que também é um personagem ativo, que manipula não somente a narrativa como também o espaço através das músicas que escolhe para tocar no juke-box, de modo a aproximá-los entre si. Com o chegar da manhã e o bar já fechando, ambos se despedem e o rapaz vai embora. Como já podemos deduzir com base no pequeno resumo acima, o texto que analisaremos enquadra-se no “conto de atmosfera” (GALVÃO, 1983), narrativa em que a ação é principalmente interna e o conflito, portanto, reside na experiência subjetiva dos personagens que, nesse gênero, geralmente são em número reduzido. No presente, são apenas dois – ou três, se considerarmos também o narrador, posto que, conforme já apontamos acima, não é um observador passivo. De acordo com nosso ponto de vista, ele induz o leitor a crer que os dois personagens se encontram em estado de estranhamento com o mundo por não se enquadrarem nos estereótipos de gênero vigentes, o que sugere um descontentamento com o mundo e a sociedade moderna. O personagem “homem” é caracterizado pelo narrador como aquele que não se casou e não teve filhos ou família, contrariando o estereótipo de “pai de família”. Para intensificar ainda mais sua caracterização de estranho/estrangeiro, suas roupas, apesar de cinzas, são apresentadas como brancas, o que contrasta violentamente com as cores do ambiente opressivo (note-se as paredes que lembram um corredor polonês) e sujo do bar: O bar é igual a um longo corredor polonês. As paredes demarcadas – à direita de quem entra, mas à esquerda de onde contemplo – pelo balcão comprido e, do lado oposto, pela fila indiana de mesinhas ordinárias, fórmica imitando mármore. Nessa linha, estendida horizontal da porta de entrada até a juke-box do fundo onde estou e espio, ele se movimenta – magro, curvo, molhado – entre as pessoas enoveladas. Vestido de escuro, massa negra, monstro vomitado pelas ondas noturnas na areia suja do bar. Entre essas pessoas, embora vestido de cinza, ele parece todo branco. (ABREU, 1988, p. 58 – os grifos são nossos) Situação semelhante é a do “rapaz”, apresentado como um indivíduo que também não consegue se visualizar no estereótipo masculino, situação nitidamente notável no recorte abaixo: [...] eu sou tão magro, vê? Quando abraço uma mina [...] fico olhando para os meus braços frágeis incapazes de abraçar com força uma mulher, e fico então imaginando músculos que não tenho, fico inventando forças, porque eu sou tão fraco, porque eu sou tão magro, porque eu sou tão novo. (Ibidem, p.59) 465
  • 3. Cremos que o deslocamento em relação aos eixos fixos de identidades disponíveis faz com que os protagonistas se encontrem e se realizem, pelo menos temporariamente, em uma identidade homoafetiva. Peter Fry (1983, p.7) observa que, ao contrário da heterossexualidade, socialmente legitimada, não há verdade absoluta sobre o que seria homossexualidade, posto que esta é “uma infinita variação sobre o mesmo tema: o das relações sexuais afetivas entre pessoas do mesmo sexo”. Isso possibilita àqueles que se vêem como estranhos ao mundo de estereótipos masculinos encontrarem nela um refúgio. No conto em questão, a aproximação homoafetiva possibilita aos personagens em conflito – assim como ao leitor – se descobrirem e, assim, poderem conquistar a liberdade de escapar do aquário de águas sujas rumo ao mar aberto. Para isso, a presença do estranho e do estrangeiro (não esqueçamos que, em francês, a palavra que os designa é a mesma: l´étranger) é uma estratégia recorrente na literatura de Caio Fernando Abreu, conforme veremos na seqüência, que é indicada no conto em questão já na epígrafe – retirada, segundo indicação do próprio autor, da obra Cenários em ruínas, de Nelson Brissac Peixoto: “São aqueles que vêm do nada e partem para lugar nenhum. Alguém que aparece de repente, que ninguém sabe de onde veio nem para onde vai. A man out of nowhere.” (ABREU, 1988, p. 57) Para reforçar a inadaptação que sofrem os dois personagens, o narrador lança mão de quatro metáforas: a do peixe, a da cegueira, a das águas turvas (ou sujas) e a do aquário. As quatro metáforas articuladas estruturam uma alegoria caracterizadora do espaço e da condição dos personagens – e do próprio narrador, acreditamos –, assim compondo a ambientação que permeia todo o conto. Nesta alegoria, os personagens são descritos como “peixes cegos ignorantes de seu caminho”, mas que “navegam em direção um ao outro” (Ibidem, p. 57). A condição de cegueira e de apriosionamento, resultante da imposição de uma identidade de gênero pela sociedade, é metaforizada pela imagem do aquário de águas turvas. Essas duas metáforas sugerem que os personagens estão perdidos, sem saber para onde vão e sem esperança de encontrar uma saída, primeiro por estarem aprisionados pelas paredes de vidro de um aquário, segundo por serem cegos errantes em mundo turvo de certezas inexistentes ou obscuras como águas turvas. Nesta procura, acabam por se encontrarem e se reconhecerem um no outro, encontrando – nem que por apenas algumas horas – a satisfação de suas necessidades, impulsos e desejos reprimidos em uma relação homoafetiva. E o valor positivo e redentor desse encontro é expresso metaforicamente no seguinte recorte. Observe, leitor, que na medida em que ambos se aproximam e se entrelaçam, o homem, inicialmente caracterizado como um monstro marinho, vai se transformando em um novo, radiante e precioso ser. Renovação que só se realiza na identificação amorosa com o outro: [...] esses dois caras estranhos, parecem dois veados de mãos dadas, perdidamente apaixonados por alguém que não é o outro, mas poderia ser, se não ousassem tanto e não tivesses que partir – o homem segura com mais força nas duas mãos do rapaz mais triste do mundo. As quatro mãos se apertam, se aquecem, se misturam se confortam. Não negro monstro marinho viscoso, vômito na manhã. Mas sim branca 466
  • 4. estrela do mar. pentáculo, madrepérola. Ostra entreaberta exibindo a negra pérola arrancada da noite e da doença, puro blues. (Ibidem, p. 65 – grifos nossos) Os elementos que compõem a alegoria que acreditamos existir no conto não são novos na obra de Caio Fernando Abreu, eles já estão presentes, de certo modo às avessas, nos contos “À beira do mar aberto”, também de Os dragões não conhecem o paraíso, “O afogado”, de O ovo apunhalado, e na novela “O marinheiro”, do livro Triângulo das águas. No segundo texto, o conflito vivido surge após o aparecimento de um homem desconhecido, que havia se afogado, em uma praia. O surgimento deste estranho “precipita e expõe uma situação que é a do protagonista, ele mesmo um estrangeiro no lugar, incapaz de se integrar” na comunidade praieira do local onde vive, conforme observa Bruno Leal (2002, p. 48-49). No último conto, a situação é semelhante, pois é o surgimento de um estranho estrangeiro, vindo do mar, que novamente provocará o conflito. Neste caso, o protagonista recebe a visita de um “marinheiro”, personagem que vai retirá-lo da condição de “cegueira” sobre si mesmo, permitindo-lhe a autodescoberta da homossexualidade e a sua libertação com respeito às imposições sociais de gênero, assim conquistando a liberdade para viver conforme suas necessidades e impulsos; liberdade que é metaforizada pela condição de marinheiro, pois esse pode viver navegando pelos mares – portanto “livre”, sem a prisão das quatro paredes de uma casa ou um aquário – em um espaço predominantemente masculino, onde normalmente não se faz presente a figura da mulher. Conforme a conclusão de Maria Cantoni (2008) ao encerrar seu artigo – também apresentado nesse simpósio sobre “Identidades emergentes na literatura brasileira e a reavaliação de seu cânone”: O homoerotismo, no conto “O marinheiro”, de Caio Fernando Abreu, é construído principalmente através da presença do estrangeiro, do outro, representado pelo marinheiro que, vindo de realidades oníricas, propicia ao protagonista a compreensão de seus sonhos e visões. A forte identificação que se dá no encontro destas duas personagens indica não só uma relação especular, mas é antes um indício da fragmentação da identidade do protagonista: o deparar-se com o outro significa também o deparar-se com o mais profundo e íntimo do seu ser. 3. O NARRADOR MANIPULADOR E SEU JOGO ESPECULAR O narrador do conto não se encaixa muito bem nos modelos de análise comumente utilizados. Apesar de apresenta-se num canto do bar não podemos defini-lo meramente como observador, posto que participa ativamente da história, e nem como onisciente, conforme considera Bruno Leal (2002, p. 75), devido ao fato de ele mesmo demonstrar, diversas vezes, o caráter dedutivo de suas afirmações a respeito dos personagens. Assim sendo, decidimos não dar importância a taxionomias de narrador, mas antes de tudo analisá-lo, buscando identificar suas estratégias de aliciamento do leitor. Pensamos que, ao levá-lo a crer na existência do estranhamento por parte dos personagens em relação ao mundo, o narrador é o principal criador do conflito dos mesmos. Essa atitude é mesmo assumida por ele, o que se percebe quando afirma "fui eu quem armou esta cilada" ou: “Esse estranho poder demiurgo me deixa mais tonto que 467
  • 5. ele" (ABREU, 1988, p.62, p.67). Assim, os personagens surgem no conto como fantoches com os quais o narrador brinca e se diverte à distância, sem ser visto ou percebido por ambos. E tal atitude de manipulação não se restringe ao discurso narrativo, pois ele, para justificar e favorecer a aproximação homoafetiva entre o “homem” e o “rapaz”, também manipula o espaço, criando um ambiente melancólico e sensual, através de vários blues que escolhe para tocar no juke-box. Portanto. Não se olham. E não sou eu quem decide, são eles. Não se deve olhar quando olhar significaria debruçar-se sobre um espelho talvez rachado. Que pode ferir, com seus cacos deformantes. Por isso mesmo hesito, então entre jogar minha ficha em Bessie Smith ou Louis Armstrong (tudo é imaginário nesta noite, neste bar, nesta máquina de música repleta de outras facilidades mais em voga), para facilitar o fluxo, desimpedir o trânsito, para adoçar ou amargar as coisas [...] (Ibidem, p. 61 – grifos nossos). O que ocorre, de fato, é que, no lugar de uma aparente onisciência, o narrador imagina e cria os diálogos dos personagens e, conseqüentemente, o desenrolar da história. As vozes e diálogos dos personagens são reproduzidos e/ou imaginados por ele, que expõe suas próprias idéias e sentimentos de modo a compartilhá-los com o leitor e, deste modo, enriquecê-lo com sua experiência. Eles se ignoram. Porque pressente que – eu invento, sou Senhor de meu invento absurdo e estupidamente real, porque o vou vivendo nas veias agora, enquanto invento- se cederem à solidão um do outro, não sobrará mais espaço algum para fugas como alguma trepada bêbada com alguém de quem não lembrará o rosto dois dias depois [...], um baseado sôfrego na lama do parque. Coisas assim, você sabe? Eu, sim: amar o mesmo de si no outro às vezes acorrenta [...]. No entanto, é claro lá: quando os corpos se tocam depois de amar o mesmo de si no outro. (Ibidem, p. 61 – grifos nossos) Ao apresentar os diálogos, o narrador cria afirmações com base em suposições sobre o que os personagens estão falando e, assim, leva o leitor a tomar como verdadeiras as suas inferências. Para tanto, faz uso de sentenças resultantes de um raciocínio dedutivo como se fossem afirmativas feitas por um narrador onisciente e, dessa forma, obscurece – mas não oculta – o fato de que a história e o conflito podem ser, na verdade, frutos de sua imaginação. Isso ocorre, por exemplo, ao afirmar que o homem é calvo e sofre piadas sobre carecas. Afirmar que um homem é careca é algo acessível a qualquer observador, mas dizer que este sofre piadas de carecas somente pode ser uma dedução – que pode não ser verdadeira – baseada em uma generalização. Porém, indiferente a isto, o narrador faz esta afirmação que lhe possibilita um falso ar de onisciência, por um lado, ao mesmo tempo em que, por outro, vai semeando a dúvida no espírito do leitor. Em outros momentos, o narrador chega mesmo a explicar o fundamento de suas deduções. É o que ocorre ao dizer que o homem não possui passado, quando acrescenta: "porque não tem passado os homens de quase quarenta anos que caminham sozinhos pelas madrugadas" (Ibidem, p. 58). O mesmo ocorre ao dizer que o rapaz bebe demasiadamente "como costumam beber estes rapazes de quase vinte anos" (Ibidem, p.59). Nestes casos, o narrador passa ao leitor a impressão de que 468
  • 6. suas afirmações se pautam em um raciocínio lógico, quando, na verdade, resultam de gereralizações e, por conseguinte, são passíveis de erro e de questionamento. Entretanto, conforme já observamos, ele deixa que o leitor perceba sua estratégia ao dividir com ele suas incertezas. É o que acontece, por exemplo, quando fala da troca de olhares entre o homem e o rapaz. Neste trecho, o narrador assinala inicialmente que não há desejo na troca de olhares, mas logo em seguida põe isso em dúvida expressando que "talvez deseje", "quem sabe sim" (Ibidem, p.63). São várias as situações em que o leitor pode ou tem que decidir se interpretará tal trecho como real ou como invenção e/ou suposição do narrador. Dessa forma, o leitor pode tomar as rédeas da narrativa optando por qual das partes aceitará como verdade ou não. Com essa estratégia, o narrador quebra a hierarquia “Narrador onisciente/Leitor passivo”, pois ambos podem compartilhar ou, até mesmo, alternar a situação de poder na narrativa. Por exemplo, o que o homem responde ao garçom no final do conto não é dito pelo narrador, assim é o leitor que decidi. A impossibilidade de saber certamente o que ocorreu e o que foi inventado pelo narrador deixa o leitor na mesma situação dos personagens: "peixes cegos ignorantes de seu caminho" num aquário onde nada é claro e tudo é nebuloso. O leitor não sabe para onde seguir e no que deve crer. É uma forma de abalar as certezas. Assim o leitor é colocado na condição de ter dúvidas sobre a realidade, ou seja, de encarar a incerteza quanto ao que demonstram as aparências – sendo convidado a também supor e a rever suas verdades. Com o objetivo de diminuir mais ainda a distância entre si e seu interlocutor, o narrador também utiliza o recurso de dialogar com o leitor, como podemos ver no exemplo abaixo: Coisas assim, você sabe? Eu, sim: amar o mesmo de si no outro às vezes acorrenta, mas quando os corpos se tocam as mentes conseguem voar para bem mais longe que o horizonte, que não se vê nunca daqui. (Ibidem, p.64) Para seduzir o leitor, o narrador também cria, de forma gradual, uma relação especular de identificação entre os personagens, o leitor e ele mesmo. Primeiro apresenta os personagens e os compara entre si. Em seguida compara-se aos personagens ao se por na situação de errante noturno por meio da utilização do pronome pessoal "nós", como podemos conferir no seguinte recorte: “de quem ronda as noites feito eles, feito eu, feito nós” (Ibidem, p.60 ). O narrador, dessa forma, busca demonstrar que entende perfeitamente o que eles sofrem, pois compartilha da mesma dor. Depois, procura aproximar-se do leitor ao aguçar sua simpatia em relação aos personagens, persuadindo-o a aceitar a cena, por mais estranha que possa ser, e sensibilizando-o para o sofrimento deles, que é também o seu. Próximo ao final do conto, o narrador expõe o grupo onde o leitor já está incluso como peixe mergulhado no mesmo aquário, ou seja, no mesmo sentimento de solidão, inadequação e estranhamento. Assim realiza a aproximação de todos entre si: do homem com o rapaz, deles consigo mesmo, e dos três com o leitor, assim envolvendo-o na situação e, por conseguinte, convidando-o a fazer parte do grupo; do grupo de pessoas que se reconhecem estrangeiras e – a partir desse momento – rompem com seus preconceitos e partem em busca de um caminho para fora do aquário de águas sujas. Eu sou os dois, eu sou os três, eu sou nós quatro. Esses dois que se encontram, esse três que espia e conta, esse quarto que escuta. Nós 469
  • 7. somos um – esse que procura sem encontrar e, quando encontra, não costuma suportar o encontro que desmente sua suposta sina. (Ibidem, p. 66) [...] E o que disser, como eu, será verdade. Aqui de onde resto, sei que continuamos sendo três ou quatro. Eu pai deles, eu filho deles, eu eles próprios, mais você: nós quatro, um único homem perdido na noite, afundado nesse aquário de águas sujas refletindo o brilho do neon. Peixe cego ignorante de meu caminho inevitável em direção ao outro que contemplo de longe, olhos molhados, sem coragem de tocá-lo. (Ibidem, p. 67) 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme acreditamos ter demonstrado, o narrador manipula não somente a narrativa como também os dois outros personagens ao selecionar os sons de blues (Tom Waits, Bessie Smith, Louis Armstrong) para ajudá-los a se aproximarem. Ao fazê-lo, compõe uma atmosfera noir, melancólica e sensual: noite, névoa, cigarros molhados, cerveja morna, bar suburbano, solidão, música depressiva e imperfeição em cada elemento para despertar o mesmo sentimento de compaixão no leitor, que ele busca aliciar através do diálogo e do jogo especular, no qual tenta fazer com que ele se enxergue na mesma condição dos personagens e de si mesmo. Essa estratégia, que desestabiliza a crença no poder demiúrgico do narrador onisciente e dessacraliza o texto literário – rompendo com a crença de que ele seja um espelho fiel do mundo – busca, em última instância, instaurar a dúvida sobre as aparências, assim abalando as certezas inscritas pela ideologia no espírito do leitor. Tudo isso é muito bem observado e analisado por Bruno Leal, que, recorrendo a Baudrillard, nomeia esta estratégia como “jogo da sedução”. Daí a atmosfera de “encantador de serpentes” e a poética magia. É preciso que o leitor perca a sua noção de verdade do texto, do mundo, e que ele compartilhe, ainda que por alguns instantes, do ritual do texto “marginal”, que seja cúmplice nessa vertigem. Daí a necessidade de seduzi-lo. E de atraí-lo. (LEAL, 2002, p. 62) Nesse jogo, o sentimento de compaixão é o primeiro passo para a identificação com quem é estranho, pois ver-se no outro e sentir as suas dores, entrar em sintonia e simpatia com o outro, é atitude fundamental para o rompimento da barreira entre identidade e alteridade. Feito isso, é possível que o leitor possa sofrer o estranhamento necessário para ler de modo simpático e compreensivo – sem nojo e preconceito – a cena que segue, doce e doloroso clímax da narrativa: Ternos, pálidos, reais, eles se olham. Eles se acariciam mutuamente as mãos, depois os braços, os ombros, o pescoço, o rosto, os traços o rosto, os cabelos. Com essa doçura nascida entre dois homens sozinhos no meio de uma noite gelada, meio bêbados e sem nenhum outro recurso a não ser se amarem assim, mais apaixonadamente do que se amariam se estivessem à caça de outro corpo, igual ou diverso 470
  • 8. do deles – pouco importa, tudo é sede. (ABREU, 1988, p. 66) Nesse contexto de aquário de águas sujas, o solitário e anônimo narrador é o marinheiro estranho e estrangeiro – assim como acontece em outras narrativas de Caio Fernando Abreu – que tem o papel de desestabilizar as verdades impostas pelas ideologias dominantes de modo que os demais personagens e principalmente o leitor se vejam refletidos em sua imagem e, assim, sejam seduzidos pelo (en)canto de seu discurso. 5. REFERÊNCIAS ABREU, Caio Fernando. Os dragões não conhecem o paraíso. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. CANTONI, Maria Mendes. O discurso homoerótico em “O marinheiro”, de Caio Fernando Abreu. In: II Conali. Anais. Maringá: Editora do Departamento de Letras/UEM, 2008. FRY, Peter. O que é homossexualidade. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983. GALVÃO, Walnice. Cinco teses sobre o conto. In: PROENÇA FILHO, Domingos (Org.). O livro do seminário. São Paulo: LR Editores, 1983, p. 165-172. LEAL, Bruno Souza. Caio Fernando Abreu: a metrópole e a paixão do estrangeiro: contos, identidade e sexualidade em trânsito. São Paulo: Annablume, 2002. i Contato: rgomesdasilva@gmail.com ii Contato: etlopes@hotmail.com 471