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ENSAIOS DE CRÍTICA
CINEMATOGRÁFICA
GUIDO BILHARINHO
OBRAS-PRIMAS DO
CINEMA BRASILEIRO
Edição
Revista Dimensão Edições
Uberaba 2017
2
OBRAS-PRIMAS DO
CINEMA BRASILEIRO
3
Copyright © Guido Bilharinho
Bilharinho, Guido
B492o Obras-primas do cinema brasileiro/Guido Bilharinho
– Uberaba, Brasil: Revista Dimensão Edições, 2017.
408 p.: il - - (Ensaios de Crítica Cinematográfica).
1. Cinema brasileiro - História e crítica. I. Título II. Série.
CDD 791.430981
Ficha Catalográfica Elaborada Por:
Sônia Maria Resende Paolinelli - Bibliotecária CRB-6/1191
Planejamento Gráfico
Guido Bilharinho
(guidobilharinho@yahoo.com.br)
Capa
Cena do filme Macunaíma
edição
Revista Dimensão Edições
Caixa Postal 140
38001-970 − Uberaba/Brasil
Editoração Gráfica
Gabriela Resende Freire
4
SUMÁRIO
NOTA PRELIMINAR
Obras-Primas do Cinema Brasileiro.............................................10
OBRAS-PRIMAS
ANOS 30
Limite - A Arte Pura.......................................................................12
Ganga Bruta - A Consciência Artística..........................................19
ANOS 60
Porto das Caixas - O Espaço do Ódio............................................23
Os Cafajestes - A Natureza do Ser.................................................26
Vidas Secas - Ficção e Imagem......................................................28
Os Fuzis - Verdade e Arte..............................................................31
Deus e o Diabo na Terra do Sol - As Alternativas Possíveis.........34
São Paulo S/A - O Fel da Vida.......................................................38
Noite Vazia - Os Impulsos Íntimos.................................................42
A Hora e a Vez de Augusto Matraga - O Conto e o Filme.............45
O Bandido da Luz Vermelha - As Vísceras Expostas....................48
Fome de Amor - Jogo Perverso......................................................52
Macunaíma - Padecimento Existencial..........................................55
ANOS 70
A Casa Assassinada - A Ação Reflexa...........................................61
5
São Bernardo, O Filme - Verbo e Imagem....................................64
Aleluia Gretchen - Relacionamento Complexo..............................67
Cabaré Mineiro - Circunstâncias e Procedimentos........................70
ANOS 80
Pixote, A Lei do Mais Fraco - Desassombro e Contundência......73
Sargento Getúlio - As Circunstâncias e Suas Exigências..............77
Brás Cubas - As Mágicas Imagens................................................81
Sonho de Valsa - Concepção e Realização.....................................84
Festa - Limites e Imposições..........................................................88
Os Sermões do Padre Vieira - A Intervenção na Realidade..........91
ANOS 90
Bocage, o Triunfo do Amor - Cinema Poético...............................95
Outras Estórias - Ação e Expressão...............................................98
São Jerônimo - Realidade e Imagem............................................101
Dois Córregos - Idealização e Materialidade...............................104
ANOS 2000
Filme de Amor - O Espaço Contingente.......................................108
Cleópatra - A Expressão da Imagem...........................................111
A Erva do Rato - Obra de Arte.....................................................115
FILMES ÓTIMOS E MUITO BONS
ANOS 20
Fragmentos da Vida - A Época e o Lugar...................................118
6
ANOS 30
O Descobrimento do Brasil - A Criação do Passado...................121
ANOS 50
Floradas na Serra - Sutileza e Equilíbrio....................................124
Rio, 40 Graus - A Revelação do Povo.........................................127
A Estrada - Objetividade e Veracidade........................................130
O Grande Momento - A Prevalência da Realidade......................133
Estranho Encontro - Consciência e Elaboração...........................136
ANOS 60
Assalto ao Trem Pagador - A Realidade Humana.......................141
A Grande Cidade - A Vida Dilemática........................................144
O Padre e a Moça - O Meio e o Modo.........................................147
Cara a Cara - O Tudo e o Nada...................................................151
O Quarto - Matéria e Existência..................................................155
Copacabana Me Engana - A Realidade Artística........................158
A Margem - A Imagem da Materialidade.....................................161
Câncer - Liberdade Expressional.................................................164
Jardim de Guerra - O Ser e o Fato...............................................167
Matou a Família e Foi ao Cinema - Os Fios das Tragédias........170
A Mulher de Todos - As Situações e Seus Espaços......................173
O Anjo Nasceu - Trajetória Bandida............................................176
O Profeta da Fome - Obra Autoral...............................................178
ANOS 70
A Família do Barulho - O Insólito e o Enigmático......................183
7
O Capitão Bandeira Contra o Dr. Moura Brasil - O Real
e o Onírico..............................................................................186
Prata Palomares - A Verdade Pessoal.........................................189
Cabeças Cortadas - Alusões e Referências..................................192
Bang Bang - Perspicácia e Beleza................................................195
Como Era Gostoso o Meu Francês - Choque de Civilizações.....198
Rainha Diaba - Realismo e Arte..................................................200
Cassi Jones, o Magnífico Sedutor - Comédia Dramática.............203
As Deusas - Verdade e Beleza......................................................206
Joana Francesa - A Tragédia Inexorável.....................................209
O Rei do Baralho - Procedimento Ficcional................................212
Triste Trópico - A Revelação do Caos.........................................215
Doramundo - A Conjuntura e Suas Circunstâncias......................218
À Flor da Pele - O Amor Amado.................................................222
Gordos e Magros - Novo Macunaíma..........................................225
A Lira do Delírio - A Poética da Existência.................................228
Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia - A Conjuntura e
Sua Personagem....................................................................231
Os Mucker - Arte e Realidade......................................................235
Samba da Criação do Mundo - O Filme e Sua Celebri-
dade.........................................................................................239
O Gigante da América - Espaços e Circunstâncias......................242
ANOS 80
Gaijin, Caminhos da Liberdade - As Novas Perspectivas...........247
Das Tripas Coração - O Avesso da Aparência............................250
Tabu - Ensaio Poético...................................................................254
8
Memórias do Cárcere - O Livro e o Filme...................................257
Noites do Sertão - Consistência e Beleza.....................................262
O Homem Que Virou Suco - A Duplicidade da Espécie..............264
A Hora da Estrela - Sensibilidade e Poesia..................................268
Filme Demência - Drama Faustiano.............................................271
Imagens do Inconsciente - A Sabedoria Que Não Se Sabe..........274
A Marvada Carne - Inteligência e Humor....................................283
A Cor do Seu Destino - O Epitáfio Definitivo..............................286
Anjos da Noite - O Olho da Câmera.............................................289
Anjos do Arrabalde - As Limitações Usuais................................292
A Bela Palomera - Mágica e Poesia.............................................295
Um Trem Para as Estrelas - A Crueza do Real...........................297
Natal da Portela - Registro Humano............................................300
Que Bom Te Ver Viva - Objetividade e Autenticidade.................303
Minas-Texas - Liberdade Criadora...............................................305
ANOS 90
Curta os Gaúchos - Arte e Verdade.............................................309
Alma Corsária - Realidade e Arte................................................312
O Mandarim - Som e Imagem......................................................314
Terra Estrangeira - O Predomínio da Imagem............................316
Baile Perfumado - A Trajetória do Nordestern............................319
O Judeu - O Julgamento da História............................................323
Como Nascem os Anjos - Os Momentos Decisivos......................326
O Sertão das Memórias - Tempo e Espaço..................................330
Miramar - A Estética da Imagem.................................................333
O Cineasta da Selva - Um Cineasta do Mundo............................336
9
Contos de Lígia - O Mundo Num Olhar.......................................340
Estorvo - O Ser e a Realidade.......................................................344
Cronicamente Inviável - A Amarga Ironia...................................348
Cruz e Sousa, o Poeta do Desterro - Poema de Imagens.............352
Por Trás do Pano - O Teatro no Cinema.....................................355
Hans Staden - A Imagem dos Fatos.............................................359
Amélia - A Imposição da Vontade................................................362
ANOS 2000
Bicho de Sete Cabeças - Tragédia Contemporânea......................368
Tônica Dominante - Organização e Harmonia.............................371
Abril Despedaçado - O Domínio do Espaço................................375
Babilônia 2000 - O Dia, a Vida....................................................379
Cidade de Deus - Trajetória de Percalços....................................382
Dias de Nietzsche em Turim - O Filósofo na Cidade...................386
Cinema, Aspirina e Urubus - Câmera e Imagem.........................390
Santiago - O Ambiente e Seus Espaços.......................................393
Jogo de Cena - O Universo Humano...........................................395
Moscou - O Construtivismo Artístico...........................................398
CINEASTAS DESTACADOS
Relação Nominal.........................................................................403
FILMES BONS
Relação Nominal.........................................................................404
10
NOTA PRELIMINAR
OBRAS-PRIMAS DO CINEMA BRASILEIRO
A cinematografia brasileira é uma das mais pujantes e
importantes do mundo, conquanto, no país, não se tenha percebido
essa relevância, tanto por desinteresse e menosprezo a tudo que é
nacional quanto pela mentalidade colonizada subordinativa que
prevalece na classe dominante, com nefastos reflexos na classe média.
À evidência, que alguns filmes de boa extração e alta qualidade
podem estar ausentes do levantamento que ora se inicia,
circunstância advinda da impossibilidade de vê-los ou revê-los.
Duas ausências, no entanto, entre os classificados como Obras-
Primas e Ótimos e Muito Bons, devem causar certa espécie, as de O
Cangaceiro, de Lima Barreto, e de Terra em Transe, de Gláuber
Rocha, altamente reputados por alguns dos raros estudiosos do
cinema brasileiro.
Todavia, como exposto nos artigos que os analisam,
respectivamente, nos livros O Cinema Brasileiro Nos Anos 50 e 60
(Uberaba, Instituto Triangulino de Cultura, 2009) e Seis Cineastas
Brasileiros (Uberaba, Instituto Triangulino de Cultura, 2012), tais
filmes, conquanto possuam inegáveis qualidades, carecem de
homogeneidade, tendo altos e baixos que os desequilibram e lhes
retiram a condição de obras-primas e mesmo de serem considerados
ótimos ou muito bons.
11
Em consequência, antes de se lamentar ou se profligar suas
faltas, indispensável conhecer os textos a eles referentes.
Em contrapartida, inúmeros filmes, praticamente desconhecidos
e que passaram despercebidos à época de seus lançamentos e pouco
ou nunca são lembrados, integram as presentes listagens de Obras-
Primas, Ótimos e Muito Bons, ora recuperados do olvido e
evidenciados, como merecem.
A arte, como se sabe, é apanágio do ser humano e, por isso,
universal, suplantando e predominando sobre espaços e épocas, em
decorrência do que a inventariação que se segue não pretende mais
do que realçar a arte cinematográfica de estrato universal praticada
no Brasil.
Cumpre conhecê-la e divulgá-la, que é o que, aqui e agora,
mais uma vez se pretende fazer.
*
Os artigos que compõem esta obra foram extraídos, em sua
maioria absoluta, dos seis livros desta coleção atinentes ao cinema
brasileiro, bem como os referentes aos filmes classificados como
Bons, estes, ao final, apenas relacionados: O Cinema Brasileiro nos
Anos 90 (2000), O Cinema Brasileiro nos Anos 80 (2002), O Cinema
Brasileiro nos Anos 90 - Novos Filmes (2004), O Cinema Brasileiro
nos Anos 70 (2007), O Cinema Brasileiro nos Anos 50 e 60 (2009) e
Seis Cineastas Brasileiros (2012), compondo, a respeito do cinema
brasileiro, série tão inédita quão abrangente.
O Autor
12
OBRAS-PRIMAS
LIMITE
A Arte Pura
Escrever ou falar sobre o filme Limite (1930), de Mário Peixoto
(Bruxelas/Bélgica, 1908-1992), é tecer série de loas e panegíricos, tal
sua perfeição.
Com 22 anos de idade, quando o cinema era pouco mais velho,
com apenas 35 anos de existência, Mário Peixoto realiza, no Brasil -
país em que o cinema até então era precário em todos os sentidos -
uma das obras-primas do cinema e da arte em geral.
É difícil, pois, conseguir o equilíbrio necessário para enfrentar
tanta e tamanha reunião de elementos opostos. De um lado, a
juventude do cineasta, que - consta - desde 1928 (com 20 anos!), já
escrevera o roteiro, o atraso do país na matéria e a própria falta de
tradição da arte cinematográfica. De outro, em meio a tantas
limitações (sem alusão), obra artística e cinematograficamente
excepcional.
Em Limite não há senões, só qualidades. Sua concepção, desde
as estórias, modo de contá-las e, principalmente, a maneira sutil de
fazê-lo, conquanto reflitam as conquistas da vanguarda
cinematográfica europeia da década de 20, resultam direta e
eficazmente de sofisticado senso artístico.
13
Prenhe de sensibilidade e munido de plena consciência do
fenômeno cinematográfico, no qual a arte configura-se por meio da
utilização estética da imagem em movimento e não da estória que se
conta ou se pretende contar, Mário Peixoto constrói, num filme, a arte
pura, descompromissada de todo e qualquer elemento estranho à sua
especificidade. Se estrutura não apenas uma trama, mas, nada menos
de três, o faz com conhecimento e domínio do métier, imbuído das
conquistas e fatores mais avançados da arte. Sem se deixar contaminar
pelos vírus do facilitário, do gratuito e do inconsequente, não faz
concessões e nem se deixa embair por falsas premissas e não menos
enganosas conclusões. Não baixa a guarda em nenhum momento e
nessa porfia contra o desleixo, a mediocridade, a desinformação, a
inconsciência artística e a irresponsabilidade intelectual, articula os
componentes formais necessários e indispensáveis ao cometimento em
mira e os organiza de maneira brilhante e criativa. Sua segurança e
consciência do que pretende e do que faz são tantas, que não se
percebem hesitações nem se alvitram opções e alternativas. Faz o que
deve ser feito. Da melhor maneira possível.
Com Limite, em tão pouco tempo, pelas mãos (inteligência e
sensibilidade) de jovem imberbe, no centro de todas as precariedades
nacionais - no que tange à gestão da res publica e a atuação da
iniciativa privada ainda persistem e agravadas - em tão pouco tempo e
parcos trinta e cinco anos de existência, o cinema brasileiro atinge as
alturas conceptivas e elaborativas do melhor Machado e do mais
esplendoroso Euclides.
Só quem sabe que filmar não é apenas focalizar a câmera sobre
o objeto, tem condições de avaliar a grandeza de Limite, o salto
14
fenomenal que o cinema brasileiro consuma com ele, alcançando de
imediato o topo - pretensamente inacessível - da também mais alta
realização mundial. Por isso, seu diretor não precisava, e nem precisa,
de reconhecimento internacional, a ponto de, segundo se informa,
forjar inexistente artigo de Eisenstein sobre o filme.
Com Eisenstein ou sem ele, Limite é e tem lugar garantido no
patrimônio artístico que a humanidade vem construindo no decorrer
de milênios, desde as primordiais inquietações do homem primitivo,
gizando artisticamente em sólidas paredes de cavernas suas
preocupações e ainda precárias experiências, porém, fundamentais e
de consequências eternas.
*
Mas, o que é Limite?
Limite, como cinema, é tudo e um pouco (ou muito) mais.
Talvez - ou com certeza - só quem acompanha com interesse
descompromissado ou só compromissado com a arte a produção
cinematográfica pode avaliar tal afirmação.
Limite é tudo e ainda mais, porque, primeiro, origina-se de
aguda, perspicaz, informada e totalizante concepção da arte
cinematográfica e, depois, porque efetiva plenamente, na prática, essa
percepção.
Daí resulta obra compacta, sólida, amadurecida. Um hino à
beleza, à arte e à possibilidade do ser humano de produzi-las, criá-las
e, não menos importante, ter condições pessoais e culturais de
desfrutá-las, o que, por enquanto, ainda é restrito a poucos.
15
O fazer e o prazer estético constituem a maior (e talvez a única)
possibilidade humana de sublimação de suas limitações, precariedades
e, principalmente, transitoriedade.
Limite, como cinema, alça-se às culminâncias dessa
virtualidade. Se fazê-lo é notável aventura intelectual, poder apreciá-lo
em suas qualidades cinemáticas e estéticas não o é menos.
Isto posto, o que é Limite?
Se se disser que Limite é - como Otávio de Faria afirmava que
está (apud Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, de Gláuber Rocha.
Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1963, p. 39) - já basta.
Mas, só para quem o assiste com olhos para ver, informação para
avaliar, sensibilidade para aproveitá-lo.
Sua beleza - e, portanto, eficácia estética - reside nele próprio
com dispensa de qualquer outro elemento. Ou seja, nas próprias
imagens captadas pela câmera e fotografadas em movimento. Cada
tomada, cada fotograma, perfaz realização artística, dispensando seu
natural encadeamento. Isoladas, as imagens já são, em si e por si
mesmas, verdadeiros poemas cinematográficos. Cada focalização de
um objeto ou de detalhe da paisagem ou de corpo sólido constitui obra
de arte autônoma, que independe de seu relacionamento ideológico ou
mesmo mecânico com sua própria concatenação e sucessiva
continuidade.
Com isso, a valorização do objeto ou do detalhe é absoluta,
resgatando sua existência, integridade e importância da permanente
desatenção que lhe vota o geralmente conspurcado olhar humano.
16
Se a continuidade de uma focalização (sobre o mesmo objeto)
alcança a operosidade referida, sua sucessão (concatenada e acrescida
a novos objetos) perfaz conjunto estético dinâmico, vital e vigoroso.
Assim, Limite pode ser decomposto em suas partes (seus
mínimos fotogramas e tomadas) e, isolada ou simultaneamente,
considerado e usufruído em seu conjunto.
Cada imagem - por sua plenitude, força e eficiência - dispensa,
pois, o todo para, por si mesma, constituir-se autonomamente arte. Sua
articulação interna e sucessão dinâmica, a par formarem harmonioso
conjunto, multiplicam e renovam a cada momento o prazer estético do
espectador. Diante disso, de unidades como essas, de conjunto como
esse, quase são indestacáveis passagens ou imagens notáveis, já que,
umas e outras, o são.
Contudo, sempre é possível chamar a atenção para certas
particularidades mais relevantes, seja por seu valor intrínseco, seja
pela reiteração em filmes posteriores, mesmo que, ao final, algumas
ou muita delas, por sua vez, derivem de realizações europeias
anteriores, conhecidas do diretor. Sua incidência em Limite demanda
conhecimento dessa produção e confronto ou colação com o filme, o
que está por ser feito ou, caso já existente, requer maior divulgação ou
simplesmente divulgação, que os meios da comunicação - como sua
clientela, ou seja, a maioria da sociedade comprometida com o dernier
cri, a moda, o extravagante e o residual, e, pois, com o precário e o
transitório - não têm disposição para fazer. Sob esse aspecto, pode ser
destacada a focalização de árvores de baixo para cima (usada, entre
outros, por René Clair, em Un Chapeau de Paille d’Italie, França,
1927); a personagem caminhando pela estrada (utilizada por Chaplin,
17
em O Grande Ditador, EE. UU., 1940, e, provavelmente, em outros
filmes até anteriores a Limite); a sombra humana com vivacidade, para
não dizer com vida, esbatida na parede (vista, também, em Uma
Aventura aos Quarenta, Brasil, 1947, de Silveira Sampaio); a posição
de desânimo de uma das personagens, o amante de alegada morfética
(em O Grito, Itália, 1957, de Antonioni); os pés e pernas de
personagens (Ganga Bruta, Brasil, 1933, de Humberto Mauro, e
Pacto Sinistro, EE.UU., 1951, de Alfred Hitchcock); o fantástico
bailado das águas (Miramar, Brasil, 1997, de Júlio Bressane).
Além dessas cenas com suas (algumas) referências posteriores,
podem ser destacadas num todo completamente destacável: a
apresentação a partir do solo de duas personagens conversando; a
circunvolução da paisagem circundante acompanhando a tontura da
personagem, que, ao invés de qualidade, Plínio Sussekind Rocha
considerava defeito (apud Introdução ao Cinema Brasileiro, de Alex
Viani. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura/Instituto
Nacional do Livro, 1959, pp. 53/54); a visão das mãos do pianista a
partir do corpo; as expressões, mais, notadamente, as bocas dos
espectadores rindo de filme de Carlitos; o reflexo de árvores na água.
Em Limite a valorização da vista e da imagem alcança níveis tão
altos, que o barco, o mar, a paisagem, natural e urbana, a natureza e o
universo enfim, além do ser humano, por seu rosto, corpo, vestimenta,
movimentos e, principalmente, imobilidade, adquirem, cada um de per
si ou integrados no conjunto, valor estético e de solidez compacta
muitas vezes ou quase sempre despercebidos cotidianamente.
As três estórias que as personagens no barco relatam entre si, em
cenas retrospectivas, conquanto não se entenda com clareza esse
18
diálogo - afinal, trata-se de filme mudo - atingem três destinos nele
reunidos, que, conquanto relatos ficcionais, não empanam e nem,
muito menos, subjugam a forma cinematográfica.
Se a forma geralmente é instrumentalizada para viabilização do
conteúdo, nesse filme, ao contrário, instrumentaliza-se a trama,
adjetivando-a enquanto se substantiva seu vetor veicular, sem retirar
do tema sua verdade e carnadura humana, elaborando a síntese que
configura a arte ficcional: qualidade estética (forma) e verdade
humana (conteúdo).
Além de tudo, na cópia (também notável) que a Funarte produz
e distribui, o filme é acompanhado, todo o tempo, por trilha musical
perfeitamente articulada à poesia e à música da imagem, extraída de
partituras de Borodin, César Frank, Debussy, Prokofieff, Ravel, Satie
e Stravinsky.
Não o Brasil apenas, mas, se o ser humano em particular e a
sociedade em geral tivessem condições de formação e informação
cultural e artística para atingir o prazer estético proporcionado pelas
artes, Limite (e tantas outras obras) seriam (deveriam ser) tão
populares como um jogo de futebol ou outro esporte nacional.
Ainda haverá de chegar a época em que o ser humano, egresso
do primitivismo, terá superado a atual fase de sua ainda pré-história e
em que a produção do lixo cultural dejetado pela sociedade terá
desaparecido, entronizando-se em seu lugar a melhor manifestação de
sua inteligência, esforço e sensibilidade.
Nesse tempo, Limite e outras obras terão sua vez e a
popularidade que merecem e que a sociedade, então verdadeiramente
civilizada, e por sê-lo, exigirá e usufruirá.
19
GANGA BRUTA
A Consciência Artística
Se de filme para filme amplia-se e solidifica-se o domínio de
Humberto Mauro sobre o entender e o fazer cinematográfico, em
Ganga Bruta (1932) esse aprimoramento atinge sua plenitude,
revelando cineasta perfeitamente consciente do fenômeno
cinematográfico.
À semelhança de Machado de Assis, não é só sob o aspecto
técnico-formal - e nem poderia sê-lo sob pena de não se perfazer - que
abarca os recursos mecânicos da câmera, a elaboração estética da
imagem e a percepção das possibilidades oferecidas pela montagem,
que Mauro apresenta aperfeiçoamento constante até alcançar o clímax
desse processo.
Essa trajetória ascensional também ocorre na compreensão da
natureza humana e na filigranagem significativa de suas manifestações
e no conteúdo e modos do inter-relacionamento entre os indivíduos.
Como sua temática essencial (e única) centra-se até então em
torno do relacionamento amoroso de personagens na faixa etária de
sua eclosão e resolução, esse específico (e especial) modo de união
entre as pessoas é não só revelado em algumas de suas variações
como, principalmente, mais aprofundado e até mesmo tragicizado.
A linha evolutiva do conhecimento e das concepções de Mauro
sobre o mundo caracteriza-se, pois, por enfeixar todo o complexo
fílmico-ficcional, conquanto, como acontece com qualquer outro
criador, balizada e condicionada pelos elementos culturais (em seu
20
amplo e abrangente sentido), temporais e espaciais, que informam e
moldam seu entendimento das coisas e do mundo.
Em Ganga Bruta, como nos filmes que o antecedem, também
surgem obstáculos ao comércio sentimental, interrompendo sua
espontânea manifestação. Contudo, a diferença é não só de natureza
como de intensidade e gravidade. Por primeiro, esse óbice é íntimo
num dos parceiros, traumatizado por anterior comoção.
Essa tecla é trabalhada pelo cineasta tanto ao nível do
significante quanto do significado, do conteúdo e sua exteriorização,
quanto do modo de conduzi-los narrativa e imageticamente.
As notas, soantes e dissonantes, e a tessitura relacional daí
decorrentes constroem-se e fluem sob condução segura e visualmente
requintada.
A imagem cinematográfica e sua montagem atingem sofisticada
elaboração estética e perfeita concatenação dialética, em que a ação
provoca não simples reações, mas, consequências que se articulam
num encadeamento ininterrupto.
Pode-se afirmar que isso é o que normal e naturalmente deve
ocorrer nas construções artísticas ficcionais e estar-se-á enunciando
verdade axiomática.
Todavia, em poucas obras consegue-se imantar, articular e
conduzir seus componentes com a argúcia e a pragmática
demonstradas em Ganga Bruta, mormente a partir de elementos
triviais, dos quais se extrai a natureza íntima, imprimindo-lhe
concomitantemente beleza estética, que a transmuda, valoriza e
universaliza.
21
Tirante algumas cenas cinematograficamente pouco expressivas,
o filme é um continuum de sofisticadas construções imagéticas, em
que se fundem o olhar (as possibilidades fotográficas e angulares da
câmera) e a imagem dele resultante.
Esse olhar ultrapassa a direta (e altamente complexa)
visualização da matéria que enfoca para mostrá-la simultaneamente
como se apresenta em sua solidez e concretude e também - e, no caso,
principalmente - em sua beleza, quase sempre imperceptível à
verificação meramente mecânica e/ou orgânica.
Ganga Bruta é, pois, resultante da observação e percepção de
estético e dialético olhar do artista no processamento da transfusão de
matéria e ideia, ação e contemplação, visão e beleza.
Suas imagens mais elaboradas e a sutileza relacional que
estabelece entre os protagonistas, notadamente na série (e
variabilidade) expressional da heroína, antecedem os grandes
cineastas europeus dos anos cinquenta que dilataram seu alcance e
profundidade.
As cenas iniciais do filme transcorridas no âmbito do palacete
residencial, palco da tragédia, por sua vez antecipam (e são de igual
nível) às de Orson Welles nove anos depois, em Soberba (The
Magnificent Ambersons, EE.UU., 1942).
22
Limite
Ganga Bruta
23
PORTO DAS CAIXAS
O Espaço do Ódio
Cinema é mostrar (revelando) como os seres humanos
comportam-se, agem e relacionam-se uns com os outros e como e por
que comportamento, ação e relacionamento alteram-se ou alternam-se.
Tudo isso, numa só obra, de uma vez ou apenas um ou alguns
desses elementos, elegidos, destacados ou enfatizados no ou do
contexto em que se situam e no qual se processam.
O artista é livre para escolher ou optar como lhe aprouver por
qualquer dessas variantes e possíveis outras. A questão crucial, no
caso, consiste e resume-se na maneira de fazê-lo.
No filme Porto das Caixas (1962), Paulo César Saraceni (Rio de
Janeiro/RJ, 1933-2012) focaliza o relacionamento de um casal a partir
de visceral incompatibilidade.
Muita tinta correu e correrá e muitas obras foram e serão escritas
sobre o tema. Poucas, porém, tiveram (uma delas, a notável peça A
Dança da Morte, 1901, de Strindbergh) ou terão o poder e a
propriedade destiladora do fel e da hostilidade que podem marcar a
desintegração do mais íntimo dos relacionamentos humanos. Talvez,
por isso, quando deteriorado, o mais acerbo e pungente.
Saraceni, sobre argumento do romancista Lúcio Cardoso,
baseado em fato real, coloca suas personagens já na última fase do
completo degringolamento de sua ligação.
E o que mostra é o reverso da moeda, o oposto de tudo que leva
um casal a se associar na mais pessoal e total união possível entre dois
24
seres humanos, já que implica (ou deve implicar) num complexo de
sentimentos, emoções e atração mútuas que envolve possibilidades
físicas, morais, intelectuais e emotivas manifestadas com a intensidade
e qualidade indispensáveis a impulsionar um para o outro, de modo a
se necessitarem, completarem e bastarem.
Nada há mais cruel, pois, do que casal constituído nesses
termos, ou que assim deve ter sido inicialmente constituído, cujo
relacionamento deteriore-se a ponto do sentimento amoroso
transformar-se em rancor e ódio, a todo momento exteriorizados em
indiferença, desprezo e agressões verbais, quando não físicas.
Saraceni, com meticulosidade, paciência e adequação, joga suas
personagens no vórtice dessa erupção, sem deixá-las, porém, soltas ou
desarticuladas. Com rigor (e vigor) as coloca frente a frente no exíguo
espaço de sua pobreza, observando-as destilar o veneno de degradado
relacionamento.
Não cogita nem se ocupa de sua vida pregressa e nem das causas
e do lento processo desse deterioramento. Apanha-o e o articula já no
auge de seu desenvolvimento, pejado de crueldade, amargura e
hostilidade.
Esse microcosmo convivencial desenvolve-se em ambientação
precária e nua de quaisquer atrativos, que, por si e à parte, prefigura
drama paralelo que, no tempo e espaço fílmicos, vincula-se à tragédia
humana, perfazendo indissociável conjunto de aguda e agressiva
aspereza e infelicidade.
A imagem e seu conteúdo amalgamam-se numa mesma e dura
matéria para, juntos, comporem atroz quadro de aviltamento das
relações humanas.
25
A feiura e a aridez dos décors, da paisagem e das locações
exteriores acompanham, refletem e compartilham a natureza do drama
humano que neles se desenrola. Por sua vez (e aí reside o maior ou o
grande mérito da realização), drama destituído de qualquer resquício
de espetacularização, já que mostrado na nudez de suas manifestações,
tão direta e objetivamente como se fosse (só) o olho da câmera a vê-lo
e acompanhá-lo.
Por isso, não só as palavras e diálogos travados entre as
personagens são substantivos e essenciais, porém, tudo o mais, desde
os décors, os elementos paisagísticos e materiais que as circundam
como também seus gestos, postura, atitudes e movimentos, além das
expressões faciais e tonalidades vocais.
Filme, enfim, em que até a precariedade infraestrutural contribui
e compõe conjunto para compatilizá-lo com a gravidade do drama
humano e seu desenlace.
26
OS CAFAJESTES
A Natureza do Ser
Ezra Pound, o escritor ianque, diz que o critério de avaliação
artística, ou seja, do mérito ou não da obra de arte, é a comparação.
Apenas a comparação, já que não há tábua geral de valores e, muito
menos, prévio programa direcional do fazer artístico. Se não se pode
absolutizar o método, como, aliás, qualquer coisa, o fato é que
comparar constitui o melhor, senão o único sistema avaliativo da arte.
Ao se assistir a Os Cafajestes (1962), de Rui Guerra
(Maputo/Moçambique, 1931-), melhor se verifica ou se aquilata a
eficácia desse preceito ao se compará-lo com El Justicero (1966), de
Nélson Pereira dos Santos. Isto, apenas por transcorrer a estória de
ambos em idêntico contexto geográfico, mais ou menos na mesma
época, e, por isso, forçosamente, referir-se a alguns tipos que o
habitam na mesma ocasião.
Param, por aí, contudo, as semelhanças, que, aliás, nem o são,
mas, tão-somente pontos geográficos e históricos referenciais.
Enquanto o filme de Nélson documenta e expõe a frivolidade de certo
segmento da juventude carioca, Os Cafajestes inventariam, em
profundidade, definida situação existencial.
Nela, debatem-se os costumeiros cafajestes, mas, o filme não se
cinge a contar e desenvolver uma estória. Ao seccionar episódio do
cotidiano dos protagonistas, efetua corte vertical em sua razão de
existir, não utilizando visão horizontal dos fatos senão para
exteriorizar determinado modo de viver.
27
Na maneira de agir e não na ação propriamente dita é que se
expressa o mundo interior das personagens. Nada mais apropriado
para captar a realidade humana vivenciada.
Poucos são os filmes em que o comportamento das pessoas é
mais importante ficcionalmente do que os atos que praticam. Esses
poderiam ser outros e até ocorridos em ambiente diverso. O que
importa, no caso, é sua motivação e a forma como se perfaz.
Assim, personagens que, por sua condição, são normalmente
estereotipadas nos filmes comerciais, em Os Cafajestes apresentam-se
com autenticidade e densidade. Se naqueles são a estória e os atos que
contam, aqui, ao contrário, o que tem importância é a revelação da
estrutura das personagens, tanto fazendo seja essa ou aquela a
conjuntura ou os fatos.
Enfim, tem-se o ser humano, e não apenas sua circunstância, que
não é exposto condicionado e relativizado pelo meio, mas, em sua
natureza íntima, recôndita, no núcleo permanente e específico que o
distingue de todas as outras criaturas e o singulariza como único no
universo. Essa especificidade humana, em uma de suas manifestações,
é que constitui e centraliza o tema do filme.
As angulações, os enquadramentos, a fotografia, os locais da
ação e a dialogação adstrita ao essencial convergem e se adequam à
necessidade expressional. Os primeiros planos, as pausas e os
silêncios, mais eloquentes estes do que a costumeira tagalerice dos
filmes convencionais, refletem contextura fílmica complexa, onde
sobressaem a qualidade estética e a verdade humana, apanágio da arte.
28
VIDAS SECAS
Ficção e Imagem
Como se sabe, o romance brasileiro possui duas vertentes
principais: a clássica e a barroca. A primeira, caracterizada,
principalmente, pela objetividade, rigor, distanciamento emocional
dos fatos e isenção. A segunda, marcada, notadamente, pela
exuberância criativa e subjetividade. Romantismo e realismo
representam tais tendências no romance brasileiro. José de Alencar e
Machado de Assis, respectivamente, seus primeiros maiores autores.
De linhagem clássica, na linha machadiana, tem-se, depois de
Machado e, como seu mais alto exemplo, Graciliano Ramos.
Nélson Pereira dos Santos elege uma das obras mais marcantes
deste último para filmagem no início da década de 1960. Daí surge o
filme Vidas Secas (1963), extraído do romance homônimo, de 1938.
Já se expôs ad nauseam que esse filme tanto é grande obra
cinematográfica como é fiel (fidelíssimo até) à obra literária.
Até aí nada de mais. Poderia não sê-lo e configurar grande
filme. Poderia filmar o romance passo a passo e redundar em fracasso
cinematográfico.
É que, sabe-se, literatura e cinema, como qualquer das demais e
ainda poucas formas de arte, são construções autônomas, com
pressupostos e linguagens diversas e específicas, nada tendo, sob esse
aspecto, em comum. Mas, genericamente, como artes que são,
possuem elementos similares. Do contrário, não seriam artes. Por
29
conterem linguagem e estrutura diferentes, são independentes entre si,
não se subordinando e nem tendo hegemonia uma sobre a outra.
Em consequência, geralmente, quanto mais fiel um filme à obra
literária e teatral que lhe serve de argumento, maior sua
descaracterização como obra de arte.
Não é por aí, portanto, que se avalia filme baseado em romance,
conto ou peça teatral. Sua análise incide apenas sobre a especificidade
que torna o cinema não apenas uma das artes, mas, arte.
Acontece, todavia, que Nélson Pereira dos Santos consegue em
Vidas Secas (filme), ser fiel a Vidas Secas (romance). Do ponto de
vista cinematográfico isso, como se viu, não tem a menor importância
e nem vem ao caso.
O que ocorre, na espécie, é que o livro, conquanto conservando
sua estrutura romanesca, é que é fiel ao cinema, conjugando, em si,
virtualidades literárias com visualização da realidade. Ou seja,
Graciliano Ramos não se limita a verbalizar seu conhecimento e
recriação do real. A eles aduz visão imagética, na qual as palavras não
só captam e recriam a realidade como também a traduzem
plasticamente. Mediante palavras constrói imagens visuais.
A extrema sintonia filme-romance deve, no caso, ser explicada
não pela submissão do cinema à literatura. Mas, também, não desta
àquele. E, sim, da alta virtualidade do romancista de verbal e
estruturalmente visualizar o real. Se realizar essa façanha com
imagens não é fácil, muito mais difícil é lográ-la com palavras.
Graciliano o consegue.
Mas, se é assim, o mérito de Nélson Pereira dos Santos é de
efetivar em imagens cinematográficas o que constitui imagética no
30
romance. Um livro que, sem perda de suas qualidades, já nasce
fílmico e o precede. Daí, a perfeição do filme, o extremo rigor da
construção, a limpidez da imagem, a contenção verbal e depuração
ficcional, a recriação do essencial. Sob tais aspectos, o filme é,
cinematograficamente, tão ou mais funcional que o romance o é
literariamente. É que o livro, conquanto excelente, não atinge
ficcionalmente a complexidade e unidade estrutural de, por exemplo,
São Bernardo, do mesmo Graciliano, ou de Dom Casmurro, de
Machado. É mais sucessão de quadros e acontecimentos desenrolados
a partir de fato desencadeador imediato (a seca), agravado por uma
constante econômica estrutural (o latifúndio).
Já o filme é, cinematograficamente, perfeito. Nada lhe sobra.
Nada lhe falta. Tudo que é filmado é apropriado. Mas, não só o
apropriado é filmado. É que, além disso, tudo é feito adequadamente.
A direção e desempenho dos atores, em que se destacam sobremaneira
Átila Iório como Fabiano e a cachorra Baleia, cuja última aparição
representa um dos grandes momentos não só do cinema, mas, da
imagem.
Existem várias obras-primas cinematográficas. Uma delas é
Vidas Secas, de Nélson Pereira dos Santos.
31
OS FUZIS
Verdade e Arte
Entre os intelectuais de esquerda lavrou – e ainda lavra – o
equívoco de subordinar a expressão artística à mensagem social,
política e filosófica. A obra, em consequência, não passaria, nesses
casos, de veículo ou instrumental ideológico, sacrificando-se (quando
qualificado o autor) ou não atingindo (na hipótese de incompetência) o
nível artístico.
Contudo, não é a escolha do tema ou a orientação que se lhe
imprime os responsáveis por esse descaminho ou frustração.
Ao contrário do que geralmente se pensa e se propala, o assunto
e sua diretriz são neutros do ponto de vista artístico, independendo do
posicionamento político-ideológico e social do autor, não importando
sua condição, posição, atitude ou conduta e correspondente objetivo
religioso, social, político e ideológico. Quaisquer sejam, o que conta e
vai ser aferido é o valor estético da realização, isto é, conforme Hegel,
sua concepção e expressão, traduzidas em profundidade e propriedade
de conteúdo e criatividade formal.
Por isso, pode-se ter grande poema tematizando simples árvore
de beira da estrada e poema sem nenhum valor abordando o destino da
humanidade.
O caso do filme Os Fuzis (1963), de Rui Guerra
(Maputo/Moçambique, 1931-), é exemplar de como se reúnem e são
sintetizadas intenção engajada e forma artística, sem subordinação
desta àquela, como convém.
32
À evidência que, além disso, é indispensável que o autor seja
artista, tenha talento, consciência e informação estética acompanhados
de persistente exercício elaborativo.
Os Fuzis alia visão, posicionamento e crítica social com alto
grau de realização cinematográfica, na utilização adequada e vigorosa
dos meios expressionais da arte, do que decorre forte conteúdo
humano e social expresso em apropriada construção formal.
O desdobrar do fio narrativo (a estória, seu desenvolvimento e
pormenores) é procedido eficientemente, de modo que a condição
(classe, origem) e a situação (as circunstâncias do momento) dos
retirantes da seca nordestina que chegam à cidade, bem como do
poder econômico local e do destacamento policial convocado para
protegê-lo de possível saque, plasmam-se a partir de seu conteúdo e
natureza, ambos desvendados em suas implicações, determinantes, por
sua vez, de visões da vida e do mundo, de condutas e atitudes.
Nesse sentido, o caminhoneiro (Átila Iório) lucidamente verbera
um dos soldados: “Está todo mundo morrendo de fome e você diz que
está tudo em ordem?”, para acrescentar, amargo e revoltado, “ao
invés de comida mandam você para manter a ordem, para defender o
armazém”.
A amargura do cineasta/personagem poderia,
independentemente de seu significado, realizar-se temática e
cinematograficamente de maneira sectária e superficial, no primeiro
caso, e canhestra no segundo, sendo ambas essas perspectivas
indissociáveis, ou seja, não sendo possível uma ter valor e a outra não.
A concepção e a expressão perfazem-se sempre no mesmo nível,
independentemente, repita-se, da posição ideológica do autor,
33
podendo haver, por exemplo, obras de grande valor artístico de cunho
religioso ou anti-religioso.
Na espécie, em Os Fuzis ambas também se equivalem, correndo
a ação pejada de conteúdo e significado paralelamente,
simbioticamente, à força e adequação da linguagem que a viabiliza,
expõe e conduz.
A propriedade e a eficácia do corpus fílmico patenteiam-se
homogênea e fortemente do início ao fim, da primeira à última
tomada, em estruturação e articulação temática tão intensas quanto sua
exposição visual, em que objeto e imagem, conteúdo e forma, sons,
ruídos, rezas e cantorias interagem, compondo um todo único,
inseparável.
Em consequência, as personagens (seus modos, atitudes e
relacionamentos), as locações exteriores (e seus espaços) e as
abordagens de interiores (dos móveis e objetos que os guarnecem)
compõem bloco humano, material e imagético-formal consistente,
dinâmico e autêntico nas manifestações e relacionamentos, nas
propriedades e funcionalidades, sintetizando beleza e dinamismo
expressional, do que resulta um dos melhores filmes do cinema, em
verdade e arte.
34
DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL
As Alternativas Possíveis
A estrutura do universo é binária ou dualista, como ensinava
Pitágoras. Pelo menos na sua aparência mais visível. Sol e lua, noite e
dia, claro e escuro, bem e mal, bom e ruim, Deus e Diabo, alto e
baixo, ímpar e par, gordo e magro, líquido e sólido, água e terra, o
sertão e o mar, etc, etc.
Nem sempre, porém, essa bipolaridade é antinômica.
Frequentemente, é complementar. Se o bom e o ruim se repelem, o sol
e a lua, o dia e a noite se não se complementam, pelo menos
apresentam necessária diversificação. Em muitos casos inevitável.
A estrutura do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de
Gláuber Rocha, para lá da beleza e propriedade do título, reflete a
composição binária do universo inserida no contexto humano.
Se sua trama é simples, o camponês nordestino esmagado pela
concentração da propriedade da terra - agravada pela natureza inóspita
- e lançado entre a violência e a religiosidade exacerbada, seu modus
faciendi é soberbo. Uma das obras-primas do cinema e da arte.
Baseado no drama permanente do nordestino alijado do domínio
da terra e de qualquer bem que não seja sua própria humanidade, o
filme concentra e sintetiza positivas e eficazes conquistas da arte
cinematográfica na utilização de seus meios e possibilidades
expressionais e o conhecimento fático e teórico da problemática
regional.
35
Assistindo-o e tendo-se certa noção dessas coordenadas da arte e
do real, percebe-se que Gláuber, autor da estória e dos diálogos, além
de diretor do filme, hauriu as principais fontes matrizes geradoras
desses conhecimentos.
Porém, não só. Muito mais do que isso, pois, isso está ao
alcance de qualquer um e é de saber generalizado, Gláuber aduziu o
toque pessoal do artista.
Então, a estorinha simples do vaqueiro e sua mulher (Manuel e
Rosa), esmagados pelo latifúndio e jogados no vórtice bipendular do
Nordeste de evasão e revolta (passiva num caso e violenta noutro),
seja, na primeira hipótese, da religiosidade messiânica, seja, na
segunda, do cangaceirismo desorientado. Ambas, atitudes de inócua
praticidade. Sabe-se de fora, objetivamente. Mas, naquele contexto
fechado constituem as alternativas possíveis aos inconformados. O
contrário, é a aceitação passiva, o conformismo usual. É a situação do
vaqueiro Fabiano e sua mulher, de Vidas Secas, o romance (1938) de
Graciliano Ramos e filme (1963) de Nélson Pereira dos Santos. E,
também a de Rosa, em Deus e o Diabo.
Nesse sentido, esses dois filmes completam-se ao enfocar, um, a
vida cotidiana, real, “normal” e, o outro, as atitudes e as ações
contrárias à exploração, à fome e à total e absoluta falta de
perspectivas outras que não seja o viver e vegetar em meio às maiores
privações.
Ambos os filmes, um em sua objetividade clássica (Vidas
Secas), outro em sua exuberância barroca (Deus e o Diabo na Terra
do Sol), retratam e retraçam o Nordeste sertanejo. Por trás deles e
antes deles, Euclides da Cunha, o romance social nordestino, o
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neorrealismo italiano, Rio, 40 Graus (1955), também de Nélson, a
filmografia de Buñuel, O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, este de
redescoberta ficcional do cangaço, tema inaugurado no cinema por
Filho Sem Mãe (1925), de Tancredo Seabra, e Lampião, Fera do
Nordeste (1930), de Guilherme Gaudio, e pelo documentário da
realidade vivida, em Lampião, o Rei do Cangaço (1936), do mascate
sírio-libanês Abraão Jacó (ou Benjamin Abraão Butto).
Se a trama de Deus e o Diabo na Terra do Sol é o usual, o que
todos sabem à saciedade, o que o torna, então, não apenas obra de
arte, mas, obra-prima artística? O tratamento. A maneira de elaborar o
filme, de lidar com o tema, não apenas de enfocá-lo, porque isso já faz
parte do conteúdo.
O que distingue, em cinema, o artista do apenas diretor é o
modo de utilizar os meios expressionais da arte, no caso, a linguagem
cinematográfica. Nesse aspecto (e em qualquer outro também),
Gláuber é extremamente competente, perspicaz, informado, criativo e
sensível. E faz uma obra perfeita, em que seu toque genial contempla
todos os detalhes.
O filme é um dos mais vigorosos do cinema, o que transparece
não só nos cortes, nos enquadramentos e na montagem, mas, espraia-
se por tudo, a começar pela escolha, direção e desempenho dos atores.
Excepcionais. Aliás, como tudo no filme, como todo o filme.
A contextualização da ação do beato Sebastião e da raiva
explosiva de Corisco está muito além da competência profissional de
simples diretor e das possibilidades técnicas da máquina.
Perfaz construção ficcional cinematográfica ao nível, em sua
grandiosidade, das epopeias homéricas e, em seu extravasamento e
37
desfecho, das tragédias gregas e shakespearianas. Sua força é tanta
que só tais paradigmas podem equivalê-la.
A aparente doçura e contenção do beato Sebastião disfarça sua
implícita violência e crueldade. A exuberância explosiva de Corisco, o
diabo loiro de Lampião, esconde a ternura, também inata, do ser
humano. Inexorável binariedade, constante bipolaridade.
A desabalada carreira final de Manuel e Rosa (esta, não tendo
prosseguido pelo fato da atriz ter caído, segundo se afirma), não
encerra a grandiosa saga, sendo, ao contrário, abertura de
possibilidades.
38
SÃO PAULO S/A
O Fel da Vida
Segundo Erza Pound - e com razão - “o artista é a antena da
raça”. Essa assertiva tanto pode ser entendida (e aplicada) em sentido
prospectivo e presentificado quanto no perspectivo. Contudo, o artista
não é adivinho ou profeta, na acepção que se quer emprestar,
enganadamente, aos escritores bíblicos que vatacinariam
acontecimentos.
Na realidade, o artista é apenas – o que não é pouco - indivíduo
sensível, curioso, inteligente, interessado, informado e atento à aventura
humana e ao espetáculo do mundo, seja em relação ao passado, ao
presente e ao futuro, separada ou concomitantemente.
Daquele, como do presente, procura, como sismógrafo, conhecer,
captar e extrair a substância e o significado que jazem sob e por trás das
aparências, ora enganosas, ora espelhantes ou reflexas.
Com esse conhecimento aventa as possibilidades do
desenvolvimento natural da marcha do mundo e das manifestações
humanas.
Nada, pois, de mágico, de revelação ou de outras causas
semelhantes e/ou correlatas, sendo inaceitáveis, portanto, as teorias e
entendimentos, por incomprovados e incomprováveis, como o
perfilhado, por exemplo, por Henrique Abílio em Crítica Pura (São
Paulo, S.E. Panorama Ltda., s. d.) de que “arte é revelação” (p.54 e 55).
O artista, pois, é aquele que, antes de tudo, interessa-se, observa,
acompanha e medita sobre a realidade, transformando as resultantes
desses procedimentos em arte.
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É o que faz, natural e eficazmente, em São Paulo S/A (1964), Luís
Sérgio Person (São Paulo/SP, 1936-1976).
Nesse filme, uma das obras-primas do cinema brasileiro, Person
articula a matéria ficcional a partir do conhecimento interno de sua
estrutura e contextualização, captando, expondo e criando a realidade
artística equivalente à realidade haurida, expressando-a imageticamente,
com o que a documenta e eterniza artisticamente.
O protagonista, em suas manifestações, comportamento e
relacionamentos amorosos e profissionais compõe individualização
humana que apreende, reflete e sintetiza a condição humana situada em
determinada ambientação espaço-temporal, o que, aliás, é apanágio de
toda grande obra de arte ficcional.
Nesse processo de criar realidade artística a partir da realidade
concreta o cineasta transpõe desta para aquela sua essência, sentido e
significado. O protagonista é, assim, o protótipo da categoria de
indivíduos que existia ao tempo da realização fílmica, refletindo seu
ambiente e tendência.
Se a maioria de seus pares subordina-se às imposições
conjunturais, aceitando-as ou tolerando-as, já que difícil, senão
inexequível ou pelo menos atritante e prejudicial, repudiá-las e renegá-
las, o protagonista insurge-se, rompendo os condicionamentos que o
mantêm atrelado a modo, rotina e objetivo de vida tornados sufocantes e
insuportáveis.
A insatisfação e inaceitação pela personagem da engrenagem
social tal qual estruturada e em funcionamento, com sua intrínseca
vileza, é, pois, paradigmática do estado de espírito disseminado à época
entre parcela da juventude, que rejeita a herança do modo de
estruturação da sociedade que lhe foi legada pelas gerações anteriores.
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Se ela se rebela, esse ato não reflete apenas atividade pessoal isolada,
constituindo, ao contrário, manifestação emblemática da parcela viva de
sua geração, que mesmo não levando seu inconformismo ao extremo ou
justamente por não fazê-lo, o carrega e com ele convive amargurada e
sofridamente.
Se de modo geral é esse o filme, nas dobras de seu
desenvolvimento factual destila-se o fel social e relacional ao contato
com a realidade comercial da sociedade e os descompassos e agruras
amorosas.
A impossibilidade de alterar a ordem das coisas, cuja força
promana, entre outras razões, de sua organização milenar, leva a
impasses que só se resolvem pelo rompimento manifestado de diversas e
variadas maneiras. Uma delas, a do protagonista, de recomeçar em
outras condições.
São Paulo S/A constitui, pois, a trajetória, a síntese e a expressão
do inconformismo e do repúdio de parte de uma geração às
condicionantes e imposições econômico-sociais. Se o filme se acha atado
a determinada circunstância, atinge também o passado e o futuro, nos
quais idênticos ou semelhantes impasses e rupturas deram-se e sempre
irão ocorrer até que a organização social se subordine às necessidades e
aspirações humanas, o que ainda não acontece.
Person, mercê de sensibilidade e percepção da realidade, compôs o
testamento vivencial de sua geração e não simplesmente o intelectual.
Ao fazê-lo, submeteu-o a pertinente e atilado tratamento cinematográfico
num filme tão vigoroso em sua estruturação quanto belo
imageticamente, no qual enquadramentos e angulações obedecem a
consciente direcionamento.
41
Muito (ou tudo) que veio depois no país em matéria de
cinematografia nele possui precedente, inspiração e diretriz. Se se
admira, por exemplo, o ritmo e a imagética de Terra Estrangeira (1995),
de Válter Sales Júnior e Daniela Thomas, encontram-se já (e também) no
filme de Person equivalentes predicados de beleza, modernidade e
desenvoltura.
São Paulo S/A tem, duas décadas depois, seu correspondente em
Filme Demência (1985), de Carlos Reinchenbach Filho, muito
significativamente dedicado a Person. Como aquele, este constitui a
tradução cinematográfica do estupor e da perplexidade da mesma
espécie de indivíduo.
Só que nesse interregno o país mudou e a insatisfação, a
inapetência e desorientação do protagonista do primeiro transformou-se
numa amargura angustiada.
Assim, têm-se nesses dois filmes o retrato do inconformismo
geracional latente e recorrente na exata tradução de suas conotações
essenciais, mesmo que, no primeiro caso, esteja-se no processo de
industrialização, quando, no segundo, reflita-se já certa
desindustrialização.
Como em toda grande obra de arte ficcional, nesse filme também
se criam realidades artísticas tão palpáveis e consistentes como a
realidade concreta ou até mais, dada sua possibilidade referencial. Esta,
submetida ininterruptamente ao movimento da matéria, esvai-se ou
altera-se, aquelas, no entanto, quando significativas e autênticas como
em São Paulo S/A, incorporam-se permanentemente ao patrimônio
artístico da humanidade.
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NOITE VAZIA
Os Impulsos Íntimos
Nenhum drama humano é alheio à ficção. Nem poderia sê-lo,
justamente porque o gênero configura-se a partir do grande painel da
vida, compondo-se da aventura dos indivíduos, isolados ou em
conjunto, no inter-relacionamento que estabelecem.
A questão, sempre, é diferençar e separar, qual trigo do joio, a
obra que efetivamente apreende, retrata e retraça o significado e o
conteúdo desse drama daquela que o deturpa, escamoteia e falsifica.
No primeiro caso - o único que conta, vale e interessa - cumpre
distinguir e destacar as obras que mais pertinente e profundamente
atingem o eixo da trama articulada e das questões explícitas ou
subjacentes abordadas, sob o ângulo, pois, da verticalidade do exame
temático e da construção estética.
Já sob prisma da amplitude horizontal, ocorre extensa e variada
gama de possibilidades, tantas quantas a própria existência humana
comporta.
A filmografia de Válter Hugo Curi (São Paulo/SP, 1929-2003)
elege a problemática amorosa e o relacionamento masculino-feminino
como seus principais eixos, preocupando-se o cineasta com essas
manifestações humanas, sempre (ou pelo menos na maioria
esmagadora dos casos) sob a ótica masculina.
Em Noite Vazia (1964) Curi extrapola tais coordenadas,
sobrepondo ao relacionamento entre os sexos o vazio existencial de
um de seus protagonistas e a perplexidade de outro.
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A problemática central do filme não é, pois, o intercâmbio
amoroso e/ou físico entre os sexos, não opostos, como se costuma
afirmar, mas, complementares. O que realmente preocupa e ocupa o
cineasta são as proposições íntimas e a textura intelecto-emocional
que guarnecem suas personagens masculinas. Ambas conducentes ao
sexo, não como válvula de escape ou compulsão orgânica. Porém,
como algo que preencha a vacuidade existencial de um e resolva a
perplexidade do outro.
Nelas, se o apelo permanente do sexo ocupa-lhes o tempo e
simultaneamente atende à uma necessidade fisiológica, o
direcionamento ou limitação à sua prática mercantilizada, além de não
contemplar suas carências afetivas, os frustram, impelindo-os, como
ao jogador viciado, a palmilhar o inútil itinerário de suas ânsias,
carências e buscas.
Com elevada perspicácia, o cineasta estrutura
diversificadamente os protagonistas, que, se unidos no propósito
imediato de chercher la femme, partem de exigências diferentes e,
num certo sentido, até contrárias.
Nélson procura aplacar sua angústia, tentando encontrar na noite
relacionamento marcado pela autenticidade. Por isso, é sempre
relutantemente que aceita os impositivos convites do amigo.
Já Luís simplificadamente restringe-se à materialidade da
condição humana.
A construção das duas personagens femininas parte da
finalidade (e limitação) da profissionalização do sexo, cingida à
contrapartida financeira da momentânea entrega do corpo.
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Contudo, à semelhança do duo masculino, tornado complexo
pela diferenciação entre os parceiros, no caso da dupla feminina tem-
se, pelo menos em parte, seus afins.
A personagem interpretada por Odete Lara paraleliza-se com
Luís e, por isso, entram em constantes choques. Já a prostituta
encarnada por Norma Benguell, do mesmo modo que Nélson, almeja
relacionamento amoroso sentimental.
As atitudes e manifestações desses casais refletem tais
disposições, com a explícita verborragia e a desabrida conduta de um
e a atitude discreta do outro, que exprime seu sentimento no silêncio,
na expressão e no olhar.
Verifica-se, portanto, consciência e pertinência na configuração
e articulação dessas personagens, de sua maneira ser, expressa em
correspondente comportamento.
Não há, no caso, mergulho nas complexidades subjetivas do
indivíduo, porém, apresentação pertinente e consistente de
manifestações do universo humano mediante domínio dos elementos
que formam e informam a realização cinematográfica no melhor ou
pelo menos num dos dois ou três melhores filmes do cineasta.
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A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA
O Conto e o Filme
Do conto homônimo de Guimarães Rosa, inserto em Sagarana
(1946), surge o filme A Hora e a Vez de Augusto Matraga (1965), de
Roberto Santos (São Paulo/ SP, 1928 - 1987), em pleno movimento do
cinema novo.
Os atributos do filme não decorrem direta e obrigatoriamente de
iguais qualidades do conto, visto que, como se sabe, são espécimes de
artes diversas por terem especificidades intransferíveis, congeniais e
próprias.
O texto original, seja ele qual for, sempre será escrito
diretamente para o cinema ou extraído de obra literária. De uma ou de
outra forma, deverá ser forçosamente submetido a tratamento
adequado para se transformar em imagens. Nessa prévia elaboração e
na que lhe é diretamente aplicada no ato da filmagem e depois na
montagem, é que se constrói ou não a obra de arte,
independentemente, pois, da qualidade ou de sua falta no texto
primitivo. Por isso, como também se sabe, de boa obra literária pode
ou não decorrer bom filme, dependendo da orientação, pretensão e
qualificativos do diretor e não das ocorrentes ou inocorrentes
qualidades do texto básico.
Se dele extrai-se apenas o tema, o filme forçosamente será ruim,
porque a qualidade da ficção, ao contrário do que a maioria pensa, não
é simplesmente narrar ou contar uma estória, mas, como afirma Hegel,
46
o importante “reside na concepção e na expressão”, ou seja, no que
dizer e na maneira de dizê-lo.
Quando se aproveita, além da trama, também a contextura
humana contida no texto e se a submete a rigoroso tratamento estético
cinematográfico, que só outro artista (o cineasta) pode imprimir, tem-
se, então, filme consistente, sem que isso implique em fidelidade, já
que, como dito, sendo artes autônomas, essa não é categoria que se
leve ou que se deva levar em consideração, por também dela decorrer
a pecha de submissão.
O filme de Roberto Santos utiliza a saga do protagonista
mantendo sua essência humana originária sem qualquer laivo literário.
Toma e retoma sua estória, reconstruindo-a segundo as exigências e
requisitos da arte cinematográfica.
Se o entrecho é o mesmo, se a textura humana é a mesma, a
realização, a obra, é outra, inteiramente alicerçada em pressupostos
específicos, totalmente diversos dos literários, que descrevem,
enquanto aqui se mostram, não apenas os cenários internos e externos,
mas, principalmente, os seres humanos em ação, materializados (ou
representados) por outros seres humanos, na encarnação vital das
personagens.
Enquanto literatura, o conto é magnífico. Enquanto cinema, o
filme é excelente, constituindo um dos mais significativos arquétipos
dessa arte.
A sensibilidade, o tirocínio e a segurança de Santos evidenciam-
se com tais vigor e intensidade, que o filme, da primeira à última e em
todas as cenas intermediárias, apresenta-se em igual nível de
equilíbrio e homogeneidade. Não perde, em nenhum momento,
47
mesmo ou até principalmente naqueles em que o protagonista age em
frontal oposição à sua natureza, a tensa contenção que lhe imprime a
direção, por força, também, da essencialização a que é submetido, em
grau tão alto e eficaz, que todas as cenas, gestos, diálogos e
manifestações das personagens são-lhes indispensáveis.
A utilização da câmera, a direção e interpretação dos atores, a
seleção de aspectos, ângulos e pormenores dos décors e das locações
exteriores, também compõem e integram o conjunto fílmico com as
mesmas virtualidades e iguais proficiência, rigor e sensibilidade
ocorrentes nos demais componentes fílmicos.
Todas as cenas, como acentuado, são não só importantes como
antológicas, não se podendo destacar nenhuma delas acima das
demais.
Contudo, três pelo menos devem permanecer com mais força na
memória do espectador, pela firmeza e precisão de sua feitura e pela
construção ou criação sagaz e pertinente: as cenas iniciais, as da
recepção dada pelo protagonista em sua modesta vivenda ao bando de
Bem-Bem e as cenas finais da luta na igreja. A primeira, pela
ambiência física e humanamente tensa e expectante do lugarejo; a
segunda, pela autenticidade e simplicidade da acolhida e seus
pormenores, além da naturalidade da satisfação do protagonista; a
terceira, pela estonteante surpresa de sua eclosão e incisivos e
perfeitos desenvolvimento e finalização, pelo que constituem
momentos inolvidáveis do cinema.
Enfim, uma obra-prima. Uma das brilhantes obras-primas do
cinema brasileiro.
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O BANDIDO DA LUZ VERMELHA
As Vísceras Expostas
Como já se tem escrito muitas vezes, o verdadeiro cinema não é
constituído pelos clichês convencionais que se limitam, superficial e
apressadamente, a contar uma estória de começo, meio e fim.
O autêntico cinema, aquele que tem importância estética e
cultural e que, por isso, permanecerá, incorporando-se ao patrimônio
artístico-cultural da humanidade, é construído sobre outros
pressupostos, visando fins diversos daqueles almejados pelas
produções comerciais.
Esse cinema, por essas razões e por sua maior exigência, não
merece a atenção do público, que não só o ignora como até lhe é
hostil.
A recíproca, evidentemente, não é verdadeira, já que desagradar
ao público não é seu objetivo, mas, decorrência natural da defasagem
entre este, com seu despreparo cultural e intelectual, e a complexidade
e sofisticação da obra de arte.
Os grandes artistas (músicos, dramaturgos, escritores e
cineastas), bem que gostariam que todos usufruíssem, entendessem e
participassem do prazer estético que só a arte propicia.
No entanto, poucos são os indivíduos, em qualquer época e
lugar, que têm condições pessoais e capacidade intelectual
indispensáveis a esse usufruto.
Todavia, não são as obras de arte e seus autores os prejudicados,
que o objetivo do artista não é (e nem deve ser) fama e dinheiro, mas,
49
tão-só (o que é muito e é tudo), a infinita satisfação de criar e de
artisticamente participar, se integrar e compor o conjunto do universo
para sempre ou pelo menos enquanto ele durar ou permanecer com
vida inteligente. Quem perde e passa pela vida sem nem desconfiar do
fascínio e prazer que só a arte contém e transmite, são aqueles - quase
todos - que a desconhecem, não entendem e até a hostilizam, como o
policial do filme O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério
Sganzerla (Joaçaba/SC, 1946-2004).
Um cineasta jovem, pois, de apenas 22 (vinte e dois anos), que
dirige, sendo ainda autor do argumento e do roteiro, um dos melhores
filmes do cinema brasileiro e, sem deixar por menos, logo em sua
estreia no longa-metragem.
Justamente esse filme, com mais alguns outros, integram o
seleto e restrito clube das obras de arte autênticas.
Por ser de arte não é fácil. Nem de ser feito e nem de ser
assistido pelo espectador condicionado pelos filmes comerciais
convencionais, que ao invés de terem autoria, possuem receituário de
facilidades e ingredientes destinados a cativar e agradar aos que
apenas querem passatempo descompromissado.
Ao contrário desse tipo de filme, O Bandido da Luz Vermelha
não explora os instintos do espectador e nem apela à sua emoção ou
sentimento. Focalizando a atuação real de bandido que assombra São
Paulo durante certo tempo, Sganzerla o insere num contexto pessoal
de impasses, incompreensões e crueldades, sem relegar ao oblívio
suas origens mesquinhas, nem que seja de passagem.
Despido de todo atavio, recortado o perfil do protagonista da
crua realidade do baixo-mundo dos marginais, assaltantes e
50
assassinos, o filme revela, em linguagem e montagem dinâmicas e
criativas, sua atividade e universo mental extraídos desse ambiente,
situando-os em uma resultante de sub-humanidade e absoluta
marginalidade.
A visão do cineasta fundamenta-se na contextura da realidade.
Não do real aparente, facilmente constatável, embora, por isso, não
percebido em suas implicações e verdadeiro sentido. Porém, visão que
imerge na e emerge da essência do real, de onde retira sua fonte de
informação, conhecimento e reflexão.
Munido de tão percuciente quão arguto instrumental intelectual,
Sganzerla não é presa da realidade e nem a ela se subordina. Ao
contrário, sobre ela age e atua, alargando e aprofundando
concomitantemente sua percepção.
Ao extirpar do real o tumor que o lacera e perturba, que é a ação
insensível, cruel, anti-humana e antissocial do protagonista, o cineasta,
ao invés de disfarçá-la ou escondê-la, desvenda-a e retrata-a à luz do
dia, num ato de conscientização e purgação. Ao invés de focalizar a
falsa beleza de cartão postal de ambientes luxuosos, escancara o
ventre sórdido do lixão da cidade, da favela e da boca do lixo de São
Paulo.
Entretanto, mais importante do que isso - e isso é obra do ser
humano vivendo em extremado sistema de competição, no qual,
essencialmente, cada um age contra todos e todos contra cada um,
com as devidas atenuantes, que as há - Sganzerla mostra o indivíduo
moído pela engrenagem desse sistema e desventra o próprio ser
humano, expondo as vísceras e fibras que compõem e formam sua
natureza.
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O filme é rico, ainda, de referências, sugestões e alusões as mais
diretas e contundentes.
E se é obra da inteligência, o é também do destemor dos que não
foram contaminados pelo conformismo e pela sutil rede das
conveniências.
Por isso, é corajoso, não por denunciar ou acusar, que isso deflui
do próprio entrecho, mas, por enfrentar não simples caso isolado,
porém, as entranhas da espécie, e no ato de sua apropriação pelo
conhecimento e pela recriação artística, nelas se inserir e delas
participar.
Esse o maior desassombro. Talvez superior - se isso é possível -
do que o de Dante ao enfrentar as pústulas e os inomináveis castigos
infernais, visto que o périplo dantesco é aventura da inteligência e da
imaginação. A de Sganzerla representa mergulho e participação no
inferno concreto, palpável, cotidiano. No inferno existente. Não no
suposto.
Costuma-se classificar o filme como policial. É e não é.
No primeiro caso, porque focaliza criminoso em ação e seu
cerco pela polícia.
No segundo, por que não é somente isso, como se viu. É muito
mais. É tudo o mais. É o que subjaz e compõe o cerne e a base
estrutural da própria sociedade.
Diante do exposto, nem é necessário referir-se às virtualidades
cinematográficas e artísticas do filme, tão grandes, vigorosas,
complexas e adequadas como seu mergulho na espessa concretude do
real.
52
FOME DE AMOR
Jogo Perverso
Nélson Pereira dos Santos vinha de uma carreira
cinematográfica de acentuado cunho realista, a exemplo de Rio, 40
Graus (1955), do improvisado Mandacaru Vermelho (1960) e do
clássico Vidas Secas (1963), quando, subitamente, envereda por outro
caminho no que tange ao topos geográfico e ao status social de suas
personagens, tanto em El Justicero (1966) quanto em Fome de Amor
(1968), baseado este em peça de Guilherme Figueiredo.
Se no primeiro pretendeu liquidar sua projetada trilogia carioca,
o fez de tal modo que El Justicero distancia-se consideravelmente de
seus primeiros parceiros, notadamente, de Rio, 40 Graus, que se está
frente à outra perspectiva, de talhe diverso, não só pela geografia e
condição das personagens como pelo enfoque imprimido ao entrecho.
Já em Fome de Amor, conquanto nucleie a estória na mesma
classe social focalizada em El Justicero, a pequeno-burguesia carioca,
e não deixe também de ressaltar seus aspectos fúteis, a pretensão, se
não é maior que naquele filme, pelo menos é melhor resolvida.
No jogo perverso que articula entre os dois casais que
protagonizam o drama, extrapola a simples constatação naturalista ou
mimética, aprofundando a radiografia do caráter e da personalidade do
quarteto, em que se associam os elementos que se assemelham e se
dissociam as personagens que divergem por sua concepção e postura
diante da vida.
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O corte é tão visceral que no ato comparativo desnuda a
biotipologia desses casais, radicalizando pouco a pouco as diferenças
ocorrentes entre eles, encobertas pelos disfarces naturais da conduta e
da convivência civilizada. Não ocultas, contudo, da visão do artista,
que as constrói conforme seu cerne ontológico, do âmago do ser,
desvelando sua natureza concreta de modo vivenciado e vital,
conforme a carnadura de suas manifestações e não por imposição de
preconceitos hauridos em fontes informacionais desligadas do
contexto da vida.
A trama é conduzida com a sutileza que sagacidade e
sensibilidade propiciam, mediante o encadeamento dos fatos e
acontecimentos, que expõem comportamentos e atitudes. Sob a
aparência da simplicidade flui o significado da ação revelando o perfil
de cada personagem.
Se resta incompreensível e mesmo extravagante, num entrecho
circunscrito a atividades de caráter doméstico e cotidiano, a figura do
revolucionário surdo-mudo-cego, além de permitir a eclosão de
sentimentos puros e impuros, é simbólica do estado (e da situação) das
esquerdas latino-americanas à época.
A cena final é o colapso e o clímax patético e doloroso das duas
coordenadas momentaneamente juntadas pelo cineasta, a
revolucionária e a doméstica, neste caso representada pela
personagem de boa índole e retos propósitos.
A reação hilariante dos demais, inclusive do tipo frívolo e de
suas companheiras anódinas, que saúdam o desarvoramento do novo
casal, refletem a insensibilidade e o desprezo que a maioria vota a
54
ideais e princípios, que muitas e frequentes vezes desarticulam-se e
desorientam-se face à ocorrência do egoísmo e da maldade humana.
A linguagem cinematográfica, os cortes, as angulações e a
montagem obedecem à execução elaborada e não poucas vezes
requintada, correlacionada às situações ficcionais, demonstrando, não
a influência da corrente intimista que, então e desde longe, digladiava,
no cinema brasileiro, com a tendência realista, mas, atilada concepção
pessoal.
O cineasta, em síntese complexa, une essas coordenadas, nelas
mesclando elementos de ambas com consciente segurança do fazer
cinematográfico, resultando filme singular dentro de sua já
considerável filmografia, de fatura sofisticada, insuscetível, portanto,
de abordagem ligeira e de juízos peremptórios daqueles que encaram a
problemática existencial de modo seletivo e excludente,
simplificando-a pela unilateralidade de sua visão, interesse e
(in)compreensão.
55
MACUNAÍMA
Padecimento Existencial
O filme Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade (Rio
de Janeiro/RJ, 1932-1988), não tem para o cinema nacional a mesma
significação que possui para a literatura brasileira o romance
homônimo de Mário de Andrade, de 1928, no qual se baseia.
Não tem, porque o romance representou inovação verbal,
ficcional e de percepção da realidade do país. Elaborado nos quadros
do movimento modernista, de imediato colocou a ficção latino-
americana na ponta da vanguarda universal de renovação,
experimentação e ousadia, tendo, porém e também, esgotado as
possibilidades criativas do autor, a ponto de Mário não mais
reproduzir tal procedimento nas demais obras, tanto de romance,
contos (mesmo tendo alguns excelentes e entre os melhores de nossa
literatura) e na poesia (onde se restringiu em seguir processo
vindicado pelo modernismo de total liberdade formuladora, mas, nessa
faina, fazendo prosa ao invés de poesia, para a qual não tinha aptidão).
O preciosismo parnasiano não justifica a prosificação (e, em muitos
casos, banalização) da poesia procedida pelos modernistas.
Se o filme não tem, para o cinema, o mesmo significado que o
romance para a literatura, visto destituído de pretensão e sentido
inovador da linguagem, como realização em si, contudo, é importante,
principalmente porque capta, constrói e veicula cinematograficamente
o esbanjamento lúdico-carnavalesco e tropicalista da civilização
56
brasileira, um dos mosaicos formadores do amplo painel que a
compõe.
Nesse sentido, o filme é, do começo ao fim, da primeira (notável
e inolvidável) cena do parto do protagonista até sua consumição pela
iara, obra-prima cinematográfica, que não perde tom e ritmo nem
quando Macunaíma e seus irmãos vão para a cidade, envolvendo-se
em aventura rocambolesca despropositada.
Mas, é no seu início, na mata, que o filme atinge os melhores
momentos, geralmente ocorridos ao redor da mãe de Macunaíma,
verdadeira representante da natureza brasileira, resistente, tenaz, mas
nada feliz com seus filhos e com a vida que leva. Poderia (e poderá)
mesmo o Brasil estar contente com seus habitantes?
Refletindo a geral irresponsabilidade civilizatória brasileira,
limitam-se tais filhos a viver com o que podem dela obter, o que, dada
sua (deles) anomia e carência de iniciativa, técnica e disposição, é
muito pouco.
Esse viver vegetativo e extrativo, como o dos índios, configura
uma das peculiaridades permanentes do país.
Joaquim Pedro o constrói filmicamente com habilidade e
percepção de seu sentido profundo e, de modo tão pertinente, que o
torna insuscetível de alteração. A partir de sua elaboração passou a
existir como se sempre tivesse existido nem sendo possível que assim
não fosse.
Todavia, por mais força tenha a estática e o imobilismo, eles não
constituem impedimento para a urbanização desordenada do país. Na
trajetória da ligação entre essas fases procede-se a transformação do
57
protagonista, propiciatória de maior facilidade de sua inserção e ação
na nova realidade.
Se aí a trama perde muito de graça e naturalidade, como ocorreu
no processo de urbanização, não deixa o filme de conter e manter as
particularidades mais vivas da existência anterior, mesmo porque
persiste nos mesmos lineamentos do realismo mágico que o
caracteriza.
Se há diluição desses atributos nesses novos espaço e tempo,
ainda se mantém intato seu sistema nervoso central, recuperado,
posteriormente, com a volta do herói à paisagem primitiva.
Paira sobre o filme inteligência investigadora e atenta, servida
por forte dose de sensibilidade e fundamentada num conhecimento
dialético e atualizado da realidade brasileira, permitindo a construção
e interpretação cinematográfica do sentido que alicerça a obra literária
original.
O que mais o singulariza é a tessitura relacional entre os
protagonistas, firmada na índole e na postura de cada um e sua
decorrente atitude diante dos fatos e da vida. É algo tão concreto
quanto o solo em que pisam e se movimentam. Se este é permanente e
eles transitórios, no momento fílmico, dada sua conformação
integrativa, ambos os contextos vinculam-se, a natureza sendo
habitada e as personagens submetendo o exercício de viver ao
estritamente necessário.
Esse convívio, porém, visto seu caráter peculiar, é extravagante,
permitindo que cada ato das personagens e a correspondente cena
fílmica constituam surpresa comportamental.
58
O livro (como o filme) reparte-se entre o rural e o urbano.
Naquele, o habitante branco restrito a um viver vegetativo e
meramente extrativo. Neste, o salto temporal entre o primitivismo
existencial e a precariedade extrativista para a metrópole moderna,
complexa e ao mesmo tempo caótica, composta por comportamentos
tão desarvorados que nada ficam a dever, em extravagância, à
encarnação física das crendices populares rurais do monstro cabeludo
e da iara, ambos antropófagos.
Sob essas capas díspares, viceja subjacente o caráter do povo e
da civilização que plasma e sob a qual mais padece do que vive.
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Os Cafajestes
Vidas Secas
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Deus e Diabo na Terra do Sol
Macunaíma
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A CASA ASSASSINADA
A Ação Reflexa
Não é fácil ao cineasta realizar filme intimista, como muitos
romancistas preferiram fazer na literatura. A imagem cinematográfica
exige, por princípio, o movimento. Não quer isso dizer, no entanto –
sem configurar contradição, ao contrário – que só é cinema ou bom
cinema os filmes de muita ação e agitação. Não é porque a imagem
incessantemente se move que pessoas e coisas filmadas devem
acompanhá-la. O que se sucede ininterruptamente é a imagem, vindo
uma após outra. O objeto filmado, matéria da imagem, forma outra
realidade, conquanto a componha. Todavia, tanto um quanto outra
perfazem corpos distintos, independentes. Se não existe imagem,
fotográfica ou cinematográfica, sem conteúdo, este prescinde daquela,
tendo existência autônoma.
No entanto, a imagem, mesmo sempre se vinculando ao que
contém, não lhe está jungida, podendo desvencilhar-se e passar a
focalizar outro ou outros objetos, aleatória ou intencionalmente.
Em consequência, não importa à imagem cinematográfica, para
se constituir, que seu conteúdo seja estático ou não, desde que ela não
o seja.
Assim, pode-se perfeitamente realizar filme intimista, carregado
de subjetividade, sem prejuízo da ininterrupta sucessividade imagética
cinematográfica.
Contudo, dada sua natural dificuldade, poucos são os cineastas
que se aventuram a esse cometimento.
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Ao filmar o tema do romance Crônica da Casa Assassinada
(1959), de Lúcio Cardoso, o cineasta Paulo César Saraceni (Rio de
Janeiro/RJ, 1933-2012) poderia optar por dirigir obra intimista ou de
ação.
No filme daí resultante, A Casa Assassinada (1970), elege a
segunda via, procurando conciliar, em grande tour-de-force, as
angústias pessoais e os conflitos interpessoais de suas sofridas e
amargas personagens. Se aquelas as convulsionam intimamente, sua
materialização fílmica só se dá quando as opõem entre si,
exteriorizadas em ação nem que seja, como no caso, dialógica.
Ao contrário do que se supõe, a ação fílmica não se concretiza
apenas em movimentação física das personagens, mas,
principalmente, no seu relacionamento interpessoal mediante gestos,
olhares, expressões faciais e oralização de seus interesses, propósitos,
temores e toda a gama de emoções características do ser humano.
No caso, a movimentação corporal ocorrente mais não faz e
mais não significa do que a procura do outro ou o encontro com o
outro para, por meio da palavra, expor desavenças, amores ou
contrariedades.
Em decorrência disso, ao decidir-se o cineasta pela verbalização
da subjetividade individual e pela exterioridade conflitual, envereda
pela ação. Porém, não a ação em si ou por si mesma, mas, como
reflexo da intimidade do indivíduo posta frente ao mundo, à realidade
concreta que o circunda.
Se se substitui a personagem pensando consigo mesma pela
personagem dialogando com outrem, não se perde de todo, contudo, o
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cerne substancial de sua subjetividade e tortura íntima, que se
manifesta também na face, na postura e nas atitudes.
Os dramas individuais entrelaçam-se numa rede contristadora
apenas rompida pelos contatos amorosos, que mais a complicam e
enredam em dramas carregados de intrínseca tragicidade num filme
belo na soturnidade de suas vivências, décors e exuberante paisagem
rural, todas marcadas pela decadência e estagnação econômico-social
familiar, que moldam os caracteres, acentuam e agravam as
pendências quando não as originam e deflagram.
A segurança diretiva do cineasta e sua consciência do fazer
fílmico conferem iguais atributos às interpretações, onde se salienta a
notável performance de Norma Benguel, que domina as cenas em que
aparece numa das melhores interpretações do cinema pela alta carga
de consistência que imprime à personagem.
Se no filme a ação é exposta pela dialogação, que assume, pois,
importância capital, a precariedade da gravação e/ou da transmissão
do som prejudica sua plena inteligibilidade e, por extensão, o próprio
filme, que exige, para sua fruição, sejam compreendidas as agruras,
paixões e conflitos em jogo.
Destaca-se, ainda, no filme a preocupação direcional pelos
enquadramentos das personagens nos décors e nas locações externas,
em mútua e constante interação e valorização, como se as pessoas não
pudessem existir e movimentar-se fora da paisagem e como se esta
não tivesse importância sem a presença humana.
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SÃO BERNARDO, O FILME
Verbo e Imagem
De todos os filmes de ficção de Leon Hirszman (Rio de
janeiro/RJ, 1937-1987), abrangendo A Falecida (1965), Garota de
Ipanema (1967), São Bernardo (1971) e Eles Não Usam Black-Tie
(1981), o mais consistente e melhor realizado é, sem dúvida, São
Bernardo, baseado no romance homônimo, de 1934, de Graciliano
Ramos. Não em razão da força da obra literária, um dos melhores
romances brasileiros, que bom filme não depende de bom texto. Ao
contrário, é comum no cinema grandes filmes extraídos de livros
fracos e vice-versa. O filme, como toda obra de qualquer arte,
configura-se a partir de elementos específicos e próprios.
É bem verdade que um texto forte – como é o romance de
Graciliano – pode ocasionar, em mãos inábeis, apenas mera ilustração
movimentada da estória literária.
Se Hirszhman transporta para a tela a trama romanesca, como
qualquer diretor faz com o argumento roteirizado em que se baseia,
recria, no entanto, em termos cinemáticos, o tema original e não
apenas o reconstitui filmicamente.
Procedendo cinematograficamente, cria, mercê do poder da
fotografia, dos recursos de mobilidade e movimentação da câmera e
das possibilidades da montagem, outra arte. Ou seja, aquela a que se
propôs: cinema.
O resultado é, também, como o romance o é literariamente,
filme forte, denso, ágil e interessante, no qual as qualidades
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romanescas, conquanto destituídas do encanto do texto bem
formulado (específico literário), são resguardadas e acrescidas da
magia, fascínio e eficácia da imagem em movimento (propriedade
cinemática).
Preservando o mesmo recurso do romance, de narrativa de sua
vida pelo próprio protagonista, Hirszhman, que corria o risco de
literatizar ou literaturar o filme pelo privilegiamento da palavra,
subordina, no entanto, esse exercício verbal ao contexto fílmico, de
modo a funcionar, tal qual no romance, como elemento auxiliar do
desenvolvimento da ação, já que esse recurso não é particular da
literatura nem do cinema, mas, da ficção.
Tem-se, então, fluindo – paralela, equilibrada e simultaneamente
– imagem, verbo e ação. Se a imagem é indispensável no caso, já que
sem ela não há filme, quando o verbo prevalece e assume seu lugar,
praticamente se congela, expectante, enquanto prossegue o
dilaceramento moral e emocional do protagonista.
Mas, não só quando Paulo Honório, a personagem em questão,
posta-se estática a verbalizar seu mundo pregresso, ocorre sincronia.
Ela acontece sempre, mesmo e até principalmente quando pensa (e
ouvimos seus pensamentos) e simultaneamente caminha (e
observamos seus passos), como na cena transcorrida no pasto, em que
cogita e perambula no meio do gado.
Se o som transmite o pensamento, a imagem capta os
movimentos do corpo e apreende a expressão do rosto que traduz as
nuanças do intelecto e o íntimo das emoções.
É por isso – e outras possibilidades – que o cinema é
considerado a arte síntese. Manejado com inteligência e sensibilidade
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congrega e resume as demais artes, sem prejuízo, porém, de suas
especificidades e virtualidades.
Além das qualidades apontadas, São Bernardo, o filme,
completa-se com a utilização adequada dos demais elementos
cinematográficos.
O décor dos interiores é despido de ornamentos, mesmo quando
a opulência material é alcançada, como exigem, tanto as
circunstâncias de tempo e lugar quanto o caráter e o modo de ser das
personagens.
A paisagem exposta nas cenas exteriores não excede o
estritamente necessário ao enquadramento das pessoas e às exigências
da ação.
Excelentes, tanto por seus efeitos visuais quanto dramáticos, são
as cenas em que Paulo Honório aproxima-se, a cavalo e sob forte
chuva, da residência de seu devedor e, já no interior da casa, nua de
atavios, trava com ele forte diálogo, em que se contrastam seu vigor e
energia com a tibieza do interlocutor.
Aliás, a direção e interpretação de Oton Bastos e de Isabel
Ribeiro, no papel de sua esposa intelectual e sensível, constituem,
também, pontos altos desse filme crispante e homogêneo.
67
ALELUIA GRETCHEN
Relacionamento Complexo
Apesar de todas as dificuldades, entre as quais sobrelevam a
concorrência predatória do cinema estadunidense, o condicionamento
do público pelo mau-gosto e a geral ojeriza do brasileiro de se ver
retratado com seriedade na tela, que se confunde e também abrange a
cíclica e recidiva baixa autoestima nacional, o cinema brasileiro,
malgrado isso e muito mais, tem apresentado linha média evolutiva
acentuada. Muitas, e não só algumas, de suas produções ombreiam-se
- sem favor ou ufanismo inconsequente e tão deletério como seu
oposto, no eterno pêndulo em que os extremos se confundem - com os
melhores espécimes cinematográficos universais.
Nem é necessário recordar o melhor Humberto Mauro e nem as
obras-primas do cinema novo. Nessas últimas décadas, mesmo quando
a produção aparentemente esteve em descenso, vários foram os
exemplos de grandes filmes nacionais.
Um deles, dos mais notáveis, é Aleluia Gretchen (1976), de
Sílvio Back (Blumenau/SC, 1937-).
Só cinema desenvolvido de país com algum domínio de suas
possibilidades culturais consegue alcançar o nível de seriedade e
adequação obtido nesse filme. Analisado tanto nos lineamentos gerais,
como nos pormenores, que vão desde a personalidade e atuação das
personagens principais até as minúcias e enquadramentos do décor,
ressaltam-se as qualidades apontadas.
68
O filme não se limita, como a maioria de seus congêneres, daqui
e de alhures, principalmente destes, a contar a estória. Se há trama (e
há), o que interessa ao cineasta é plasmar e revelar o mundo mental e
comportamental dos membros da família alemã focalizada e dos três
brasileiros que mais de perto com ela convivem.
Assim, têm-se individualidades complexas como a da
protagonista, esfíngica e dominadora. O alheamento de seu marido, as
sutis diferenças entre o caráter das duas irmãs. As distintas esferas
mentais dos brasileiros, o integralista agressivo e violento (pelo menos
em seus arroubos retóricos), o criado, que, como a maioria de seus
semelhantes, gira em torno de universo de vivências e pretensões
limitadíssimas e, finalmente, o vendedor viajante com fumaças de
negociante e que, mesmo casado com uma das filhas do casal alemão,
não consegue se integrar na família e, muito menos, entendê-la, tal a
disparidade entre as preocupações e percepção do mundo de um e de
outra.
Onipresente, permeando tudo, da compreensão da vida e das
coisas às relações no âmbito familiar e, notadamente, com o mundo
exterior, encontra-se a ideologia nazista, incorporada como elemento
congenial do povo alemão, como característica particular e especial,
que não é, mas, que nele encontra caldo de cultura e caráter nacional
altamente apropriado a seu desenvolvimento, inclusive, e isso tem de
ser reconhecido, também por força de suas especificidades, bem como
da civilização que sedimentou.
O filme como aliás devem ser (e normalmente são as obras
verdadeiramente artísticas) não julga. Mas, pelas já assinaladas
seriedade, responsabilidade e propósitos do diretor, constrói e não
69
simplesmente reconstitui, num painel restrito em abrangência (apenas
sobre uma família) e amplo em profundidade, a estrutura do grupo
enfocado.
Ao ultrapassar os limites da narrativa de fatos e acontecimentos
para adentrar o mundo do relacionamento interpessoal no que tem de
sutilezas, dubiedades, motivações e condicionantes de vária ordem e
espécie, Aleluia Gretchen insere-se na melhor tradição artística
brasileira, que vem de Machado de Assis e passa por Lima Barreto,
Graciliano Ramos e Cornélio Pena, o que constitui, no caso e em
todos os casos, a melhor companhia possível.
70
CABARÉ MINEIRO
Circunstâncias e Procedimentos
No cinema, pertence à família dos inovadores criativos o filme
Cabaré Mineiro (1979), de Carlos Alberto Prates Correia (Montes
Claros/MG, 1941-), realizado, como todos os demais, em Montes
Claros/Minas Gerais (Crioulo Doido, 1971; Perdida, 1975; Noites do
Sertão, 1984; Minas-Texas, 1989). Embebido no topos e no tom locais
até a medula e erigindo como seu enfoque o modus regional, o
cineasta constrói, a partir de perspectiva universal e universalizante,
como seu predecessor Guimarães Rosa, de Grande Sertão: Veredas
(1956) e Corpo de Baile (1956), um apenas espacialmente circunscrito
microscomo. Não é à toa que se inspira no conto “Soroco, Sua Mãe e
Sua Filha”, de Rosa.
O filme, sem deixar um momento sequer de ser o que é, ou seja,
enfoque vivenciado localmente, emerge de seu contexto,
generalizando o particular e particularizando o geral, num amálgama
onde a vivência regional fortemente estratificada e o caráter do ser
humano são projetados no tempo futuro, após captados em sua
essência mais profunda por meio de um fazer artístico competente e
sensível.
Não há, aqui, a narrativa ou relato de uma estória, mas, muito
mais, a apreensão de circunstâncias e procedimentos que, nos limites
de seu levantamento, captam e externam o caráter, os elementos, as
constâncias, os modos e fazeres de vivenciamento particular e
simultaneamente universal.
71
Trama, ação, enredo e intriga não são primordiais, constituindo
comumente entraves à visão crítica do íntimo do ser humano exposta
cruamente em gestos, expressões, olhares e modos vários, já que a
ação humana restringe-se, nesse filme, em ser, estar e se relacionar.
A estrutura fílmica, as imagens e a linguagem cinematográfica
constituem o que de mais avançado existe em cinema e reporta-se às
experiências e fazeres de seus mais inventivos e inquietos
realizadores, confluindo, nele, sintetizados, principalmente,
Bergmann, Fellini e Gláuber. Para muitos pode passar despercebida,
mas, é patente. Não no sentido de repetição ou mesmo influência,
mas, de absorção criadora aliada à capacidade inventiva.
Como Festa (1989), de Ugo Giorgetti, outra obra maior do
cinema, remete a Esperando Godot, a peça de Samuel Becket, Cabaré
Mineiro encontra-se com as grandezas citadas nas encruzilhadas
artísticas do mundo com idêntica força criadora, senão com igual
excelência. Sua consistência origina-se da confluência dessas forças
com a vontade e a consciência do fazer.
Em qualquer país e época é muito. No Brasil de hoje constitui
relevante façanha. Aliás, em que época a sociedade brasileira ofereceu
boas e melhores condições à criação artística, ao experimento,
descoberta e desenvolvimento científico e tudo o mais?
72
São Bernardo
Aleluia Gretchen
73
PIXOTE, A LEI DO MAIS FRACO
Desassombro e Contundência
Os filmes podem ser divididos, basicamente, em duas espécies:
ficção e documentário. O que não é uma é outra. Naquela, imagina-se
o tema, tece-se a intriga, arquiteta-se o entrecho. Enfim, procura-se
contar uma estória, conquanto essa não seja sua finalidade, nem
primeira nem mais importante. Nesta, a documental, ao contrário,
focaliza-se uma realidade tal como se apresenta, sem aduzir-lhe
qualquer dose de imaginação.
Em linhas gerais, em teoria, uma classe excluiria a outra. Na
prática, contudo, não é bem assim.
Ocorrem, e são mais frequentes do que se pensa, os exemplos
que configuram terceira categoria: a ficção documental.
Nesse caso, a água mistura-se ao óleo, porque embora
totalmente diversos os dois primeiros grupos, consegue-se uni-los de
tal modo, que da simbiose resulta outro produto, um tertius genus
perfeitamente válido, autônomo e caracterizado, com pressupostos
específicos.
É que sobre dado contexto constrói-se trama, na qual a liberdade
imaginativa cede espaço à realidade concreta, conformando-se o
enredo a seus limites. Mas, não só isso. Se só fosse isso, não passaria
de reportagem ou mero noticiário.
Enfoca-se a realidade tal qual é, mediada por visão crítica e
criativa, que a mostra destituída de enfeites e deturpações. Sem receio
de enfrentá-la, se áspera e inóspita. Sem o estômago fraco das
74
consciências que, sob o pretexto da falsa beleza da ostentação e do
brilho fácil, escondem-se atrás dos biombos de condicionantes
mentais conservadoras e excludentes.
Ficção-documentário com todas as qualidades dessa síntese
entre o real e o ficcional, é o vigoroso Pixote, A Lei do Mais Fraco
(1980), de Hector Babenco (Buenos Aires/Argentina, 1946-2016). É
tão poderosa essa união entre os dois gêneros nesse filme, que deles o
cineasta só extrai virtualidades.
Nos ambientes sórdidos dos internamentos governamentais de
jovens delinquentes e da vida marginalizada de quem não teve lar nem
a mínima oportunidade, move-se grupo de jovens, que, nascidos
excluídos das benesses da civilização, continuam delas não só
afastados, como perseguidos pela prática de atos antissociais,
realizados muitas vezes para sua sobrevivência mais elementar.
O filme não julga nem exagera. Também não esconde nem
enfeita.
Não é o Nélson Rodrigues de "A Vida Como Ela É", na qual se
secciona do todo parte específica e sobre ela desdobra-se colcha de
retalhos de desvios e sordidez. Que também existem e ocorrem, como
se sabe, mas, não são o mais importante e muito menos o único móvel
da existência.
Ao contrário disso, Babenco é servido por visão realista, mas,
totalizadora da vida, que não elege (nem exclui) aspectos e fatos,
porém, atinge a essência.
Além disso, que é a base sobre a qual solidifica sua obra, o
cineasta utiliza, com propriedade, as possibilidades da linguagem
75
cinematográfica, conduzindo adequadamente a narrativa e a
amostragem social.
O filme é impactante pelo desassombro e pela contundência.
Murro em ponta de faca é, talvez, um dos atos mais dolorosos que se
pode efetuar. Contudo, é o que Babenco faz. É o que mostra. Por isso,
o que faz e mostra não é agradável. Pelo contrário.
Todavia, quer se queira quer não, é essa a conjuntura. Só os
responsáveis por ela e a classe média escapista não a querem ver. Não
a repelem e nem pretendem modificá-la. Rejeitam, apenas, sua visão,
lembrança e presença.
Esse avestruzismo, todavia, não a elimina. Pior, esse quadro
cada vez mais se avoluma e incomoda. E quase ninguém se abalança a
estudá-lo, perquirindo as causas, propondo providências e,
principalmente, implementando-as. Nem muito menos o filme
aventura-se a pesquisar sua causalidade e sugerir soluções, já que não
é essa a finalidade da arte. Outros são os fóruns próprios (e urgentes).
O que Hector Babenco faz é compreendê-la e retratá-la. Mais não se
precisa, no caso. Nem se pode exigir.
Num filme em que nada é idealizado e alcandorado, além de
todas as qualidades apontadas, sobrelevam, ainda, como, aliás, nem
poderia deixar de ser, isenção e consciência da realidade.
A direção e interpretação dos atores, o décor, os cortes e os
enquadramentos concorrem para a homogeneidade do filme, que não
representa apenas uma evolução na cinematografia brasileira, mas,
constitui novo patamar de amadurecimento e conscientização. Para se
aquilatar isso, para se avaliar não só sua grandeza, mas, também, seu
significado dentro de nosso contexto cinematográfico, é suficiente
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OBRAS-PRIMAS DO CINEMA BRASILEIRO

  • 1. ENSAIOS DE CRÍTICA CINEMATOGRÁFICA GUIDO BILHARINHO OBRAS-PRIMAS DO CINEMA BRASILEIRO Edição Revista Dimensão Edições Uberaba 2017
  • 3. 3 Copyright © Guido Bilharinho Bilharinho, Guido B492o Obras-primas do cinema brasileiro/Guido Bilharinho – Uberaba, Brasil: Revista Dimensão Edições, 2017. 408 p.: il - - (Ensaios de Crítica Cinematográfica). 1. Cinema brasileiro - História e crítica. I. Título II. Série. CDD 791.430981 Ficha Catalográfica Elaborada Por: Sônia Maria Resende Paolinelli - Bibliotecária CRB-6/1191 Planejamento Gráfico Guido Bilharinho (guidobilharinho@yahoo.com.br) Capa Cena do filme Macunaíma edição Revista Dimensão Edições Caixa Postal 140 38001-970 − Uberaba/Brasil Editoração Gráfica Gabriela Resende Freire
  • 4. 4 SUMÁRIO NOTA PRELIMINAR Obras-Primas do Cinema Brasileiro.............................................10 OBRAS-PRIMAS ANOS 30 Limite - A Arte Pura.......................................................................12 Ganga Bruta - A Consciência Artística..........................................19 ANOS 60 Porto das Caixas - O Espaço do Ódio............................................23 Os Cafajestes - A Natureza do Ser.................................................26 Vidas Secas - Ficção e Imagem......................................................28 Os Fuzis - Verdade e Arte..............................................................31 Deus e o Diabo na Terra do Sol - As Alternativas Possíveis.........34 São Paulo S/A - O Fel da Vida.......................................................38 Noite Vazia - Os Impulsos Íntimos.................................................42 A Hora e a Vez de Augusto Matraga - O Conto e o Filme.............45 O Bandido da Luz Vermelha - As Vísceras Expostas....................48 Fome de Amor - Jogo Perverso......................................................52 Macunaíma - Padecimento Existencial..........................................55 ANOS 70 A Casa Assassinada - A Ação Reflexa...........................................61
  • 5. 5 São Bernardo, O Filme - Verbo e Imagem....................................64 Aleluia Gretchen - Relacionamento Complexo..............................67 Cabaré Mineiro - Circunstâncias e Procedimentos........................70 ANOS 80 Pixote, A Lei do Mais Fraco - Desassombro e Contundência......73 Sargento Getúlio - As Circunstâncias e Suas Exigências..............77 Brás Cubas - As Mágicas Imagens................................................81 Sonho de Valsa - Concepção e Realização.....................................84 Festa - Limites e Imposições..........................................................88 Os Sermões do Padre Vieira - A Intervenção na Realidade..........91 ANOS 90 Bocage, o Triunfo do Amor - Cinema Poético...............................95 Outras Estórias - Ação e Expressão...............................................98 São Jerônimo - Realidade e Imagem............................................101 Dois Córregos - Idealização e Materialidade...............................104 ANOS 2000 Filme de Amor - O Espaço Contingente.......................................108 Cleópatra - A Expressão da Imagem...........................................111 A Erva do Rato - Obra de Arte.....................................................115 FILMES ÓTIMOS E MUITO BONS ANOS 20 Fragmentos da Vida - A Época e o Lugar...................................118
  • 6. 6 ANOS 30 O Descobrimento do Brasil - A Criação do Passado...................121 ANOS 50 Floradas na Serra - Sutileza e Equilíbrio....................................124 Rio, 40 Graus - A Revelação do Povo.........................................127 A Estrada - Objetividade e Veracidade........................................130 O Grande Momento - A Prevalência da Realidade......................133 Estranho Encontro - Consciência e Elaboração...........................136 ANOS 60 Assalto ao Trem Pagador - A Realidade Humana.......................141 A Grande Cidade - A Vida Dilemática........................................144 O Padre e a Moça - O Meio e o Modo.........................................147 Cara a Cara - O Tudo e o Nada...................................................151 O Quarto - Matéria e Existência..................................................155 Copacabana Me Engana - A Realidade Artística........................158 A Margem - A Imagem da Materialidade.....................................161 Câncer - Liberdade Expressional.................................................164 Jardim de Guerra - O Ser e o Fato...............................................167 Matou a Família e Foi ao Cinema - Os Fios das Tragédias........170 A Mulher de Todos - As Situações e Seus Espaços......................173 O Anjo Nasceu - Trajetória Bandida............................................176 O Profeta da Fome - Obra Autoral...............................................178 ANOS 70 A Família do Barulho - O Insólito e o Enigmático......................183
  • 7. 7 O Capitão Bandeira Contra o Dr. Moura Brasil - O Real e o Onírico..............................................................................186 Prata Palomares - A Verdade Pessoal.........................................189 Cabeças Cortadas - Alusões e Referências..................................192 Bang Bang - Perspicácia e Beleza................................................195 Como Era Gostoso o Meu Francês - Choque de Civilizações.....198 Rainha Diaba - Realismo e Arte..................................................200 Cassi Jones, o Magnífico Sedutor - Comédia Dramática.............203 As Deusas - Verdade e Beleza......................................................206 Joana Francesa - A Tragédia Inexorável.....................................209 O Rei do Baralho - Procedimento Ficcional................................212 Triste Trópico - A Revelação do Caos.........................................215 Doramundo - A Conjuntura e Suas Circunstâncias......................218 À Flor da Pele - O Amor Amado.................................................222 Gordos e Magros - Novo Macunaíma..........................................225 A Lira do Delírio - A Poética da Existência.................................228 Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia - A Conjuntura e Sua Personagem....................................................................231 Os Mucker - Arte e Realidade......................................................235 Samba da Criação do Mundo - O Filme e Sua Celebri- dade.........................................................................................239 O Gigante da América - Espaços e Circunstâncias......................242 ANOS 80 Gaijin, Caminhos da Liberdade - As Novas Perspectivas...........247 Das Tripas Coração - O Avesso da Aparência............................250 Tabu - Ensaio Poético...................................................................254
  • 8. 8 Memórias do Cárcere - O Livro e o Filme...................................257 Noites do Sertão - Consistência e Beleza.....................................262 O Homem Que Virou Suco - A Duplicidade da Espécie..............264 A Hora da Estrela - Sensibilidade e Poesia..................................268 Filme Demência - Drama Faustiano.............................................271 Imagens do Inconsciente - A Sabedoria Que Não Se Sabe..........274 A Marvada Carne - Inteligência e Humor....................................283 A Cor do Seu Destino - O Epitáfio Definitivo..............................286 Anjos da Noite - O Olho da Câmera.............................................289 Anjos do Arrabalde - As Limitações Usuais................................292 A Bela Palomera - Mágica e Poesia.............................................295 Um Trem Para as Estrelas - A Crueza do Real...........................297 Natal da Portela - Registro Humano............................................300 Que Bom Te Ver Viva - Objetividade e Autenticidade.................303 Minas-Texas - Liberdade Criadora...............................................305 ANOS 90 Curta os Gaúchos - Arte e Verdade.............................................309 Alma Corsária - Realidade e Arte................................................312 O Mandarim - Som e Imagem......................................................314 Terra Estrangeira - O Predomínio da Imagem............................316 Baile Perfumado - A Trajetória do Nordestern............................319 O Judeu - O Julgamento da História............................................323 Como Nascem os Anjos - Os Momentos Decisivos......................326 O Sertão das Memórias - Tempo e Espaço..................................330 Miramar - A Estética da Imagem.................................................333 O Cineasta da Selva - Um Cineasta do Mundo............................336
  • 9. 9 Contos de Lígia - O Mundo Num Olhar.......................................340 Estorvo - O Ser e a Realidade.......................................................344 Cronicamente Inviável - A Amarga Ironia...................................348 Cruz e Sousa, o Poeta do Desterro - Poema de Imagens.............352 Por Trás do Pano - O Teatro no Cinema.....................................355 Hans Staden - A Imagem dos Fatos.............................................359 Amélia - A Imposição da Vontade................................................362 ANOS 2000 Bicho de Sete Cabeças - Tragédia Contemporânea......................368 Tônica Dominante - Organização e Harmonia.............................371 Abril Despedaçado - O Domínio do Espaço................................375 Babilônia 2000 - O Dia, a Vida....................................................379 Cidade de Deus - Trajetória de Percalços....................................382 Dias de Nietzsche em Turim - O Filósofo na Cidade...................386 Cinema, Aspirina e Urubus - Câmera e Imagem.........................390 Santiago - O Ambiente e Seus Espaços.......................................393 Jogo de Cena - O Universo Humano...........................................395 Moscou - O Construtivismo Artístico...........................................398 CINEASTAS DESTACADOS Relação Nominal.........................................................................403 FILMES BONS Relação Nominal.........................................................................404
  • 10. 10 NOTA PRELIMINAR OBRAS-PRIMAS DO CINEMA BRASILEIRO A cinematografia brasileira é uma das mais pujantes e importantes do mundo, conquanto, no país, não se tenha percebido essa relevância, tanto por desinteresse e menosprezo a tudo que é nacional quanto pela mentalidade colonizada subordinativa que prevalece na classe dominante, com nefastos reflexos na classe média. À evidência, que alguns filmes de boa extração e alta qualidade podem estar ausentes do levantamento que ora se inicia, circunstância advinda da impossibilidade de vê-los ou revê-los. Duas ausências, no entanto, entre os classificados como Obras- Primas e Ótimos e Muito Bons, devem causar certa espécie, as de O Cangaceiro, de Lima Barreto, e de Terra em Transe, de Gláuber Rocha, altamente reputados por alguns dos raros estudiosos do cinema brasileiro. Todavia, como exposto nos artigos que os analisam, respectivamente, nos livros O Cinema Brasileiro Nos Anos 50 e 60 (Uberaba, Instituto Triangulino de Cultura, 2009) e Seis Cineastas Brasileiros (Uberaba, Instituto Triangulino de Cultura, 2012), tais filmes, conquanto possuam inegáveis qualidades, carecem de homogeneidade, tendo altos e baixos que os desequilibram e lhes retiram a condição de obras-primas e mesmo de serem considerados ótimos ou muito bons.
  • 11. 11 Em consequência, antes de se lamentar ou se profligar suas faltas, indispensável conhecer os textos a eles referentes. Em contrapartida, inúmeros filmes, praticamente desconhecidos e que passaram despercebidos à época de seus lançamentos e pouco ou nunca são lembrados, integram as presentes listagens de Obras- Primas, Ótimos e Muito Bons, ora recuperados do olvido e evidenciados, como merecem. A arte, como se sabe, é apanágio do ser humano e, por isso, universal, suplantando e predominando sobre espaços e épocas, em decorrência do que a inventariação que se segue não pretende mais do que realçar a arte cinematográfica de estrato universal praticada no Brasil. Cumpre conhecê-la e divulgá-la, que é o que, aqui e agora, mais uma vez se pretende fazer. * Os artigos que compõem esta obra foram extraídos, em sua maioria absoluta, dos seis livros desta coleção atinentes ao cinema brasileiro, bem como os referentes aos filmes classificados como Bons, estes, ao final, apenas relacionados: O Cinema Brasileiro nos Anos 90 (2000), O Cinema Brasileiro nos Anos 80 (2002), O Cinema Brasileiro nos Anos 90 - Novos Filmes (2004), O Cinema Brasileiro nos Anos 70 (2007), O Cinema Brasileiro nos Anos 50 e 60 (2009) e Seis Cineastas Brasileiros (2012), compondo, a respeito do cinema brasileiro, série tão inédita quão abrangente. O Autor
  • 12. 12 OBRAS-PRIMAS LIMITE A Arte Pura Escrever ou falar sobre o filme Limite (1930), de Mário Peixoto (Bruxelas/Bélgica, 1908-1992), é tecer série de loas e panegíricos, tal sua perfeição. Com 22 anos de idade, quando o cinema era pouco mais velho, com apenas 35 anos de existência, Mário Peixoto realiza, no Brasil - país em que o cinema até então era precário em todos os sentidos - uma das obras-primas do cinema e da arte em geral. É difícil, pois, conseguir o equilíbrio necessário para enfrentar tanta e tamanha reunião de elementos opostos. De um lado, a juventude do cineasta, que - consta - desde 1928 (com 20 anos!), já escrevera o roteiro, o atraso do país na matéria e a própria falta de tradição da arte cinematográfica. De outro, em meio a tantas limitações (sem alusão), obra artística e cinematograficamente excepcional. Em Limite não há senões, só qualidades. Sua concepção, desde as estórias, modo de contá-las e, principalmente, a maneira sutil de fazê-lo, conquanto reflitam as conquistas da vanguarda cinematográfica europeia da década de 20, resultam direta e eficazmente de sofisticado senso artístico.
  • 13. 13 Prenhe de sensibilidade e munido de plena consciência do fenômeno cinematográfico, no qual a arte configura-se por meio da utilização estética da imagem em movimento e não da estória que se conta ou se pretende contar, Mário Peixoto constrói, num filme, a arte pura, descompromissada de todo e qualquer elemento estranho à sua especificidade. Se estrutura não apenas uma trama, mas, nada menos de três, o faz com conhecimento e domínio do métier, imbuído das conquistas e fatores mais avançados da arte. Sem se deixar contaminar pelos vírus do facilitário, do gratuito e do inconsequente, não faz concessões e nem se deixa embair por falsas premissas e não menos enganosas conclusões. Não baixa a guarda em nenhum momento e nessa porfia contra o desleixo, a mediocridade, a desinformação, a inconsciência artística e a irresponsabilidade intelectual, articula os componentes formais necessários e indispensáveis ao cometimento em mira e os organiza de maneira brilhante e criativa. Sua segurança e consciência do que pretende e do que faz são tantas, que não se percebem hesitações nem se alvitram opções e alternativas. Faz o que deve ser feito. Da melhor maneira possível. Com Limite, em tão pouco tempo, pelas mãos (inteligência e sensibilidade) de jovem imberbe, no centro de todas as precariedades nacionais - no que tange à gestão da res publica e a atuação da iniciativa privada ainda persistem e agravadas - em tão pouco tempo e parcos trinta e cinco anos de existência, o cinema brasileiro atinge as alturas conceptivas e elaborativas do melhor Machado e do mais esplendoroso Euclides. Só quem sabe que filmar não é apenas focalizar a câmera sobre o objeto, tem condições de avaliar a grandeza de Limite, o salto
  • 14. 14 fenomenal que o cinema brasileiro consuma com ele, alcançando de imediato o topo - pretensamente inacessível - da também mais alta realização mundial. Por isso, seu diretor não precisava, e nem precisa, de reconhecimento internacional, a ponto de, segundo se informa, forjar inexistente artigo de Eisenstein sobre o filme. Com Eisenstein ou sem ele, Limite é e tem lugar garantido no patrimônio artístico que a humanidade vem construindo no decorrer de milênios, desde as primordiais inquietações do homem primitivo, gizando artisticamente em sólidas paredes de cavernas suas preocupações e ainda precárias experiências, porém, fundamentais e de consequências eternas. * Mas, o que é Limite? Limite, como cinema, é tudo e um pouco (ou muito) mais. Talvez - ou com certeza - só quem acompanha com interesse descompromissado ou só compromissado com a arte a produção cinematográfica pode avaliar tal afirmação. Limite é tudo e ainda mais, porque, primeiro, origina-se de aguda, perspicaz, informada e totalizante concepção da arte cinematográfica e, depois, porque efetiva plenamente, na prática, essa percepção. Daí resulta obra compacta, sólida, amadurecida. Um hino à beleza, à arte e à possibilidade do ser humano de produzi-las, criá-las e, não menos importante, ter condições pessoais e culturais de desfrutá-las, o que, por enquanto, ainda é restrito a poucos.
  • 15. 15 O fazer e o prazer estético constituem a maior (e talvez a única) possibilidade humana de sublimação de suas limitações, precariedades e, principalmente, transitoriedade. Limite, como cinema, alça-se às culminâncias dessa virtualidade. Se fazê-lo é notável aventura intelectual, poder apreciá-lo em suas qualidades cinemáticas e estéticas não o é menos. Isto posto, o que é Limite? Se se disser que Limite é - como Otávio de Faria afirmava que está (apud Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, de Gláuber Rocha. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1963, p. 39) - já basta. Mas, só para quem o assiste com olhos para ver, informação para avaliar, sensibilidade para aproveitá-lo. Sua beleza - e, portanto, eficácia estética - reside nele próprio com dispensa de qualquer outro elemento. Ou seja, nas próprias imagens captadas pela câmera e fotografadas em movimento. Cada tomada, cada fotograma, perfaz realização artística, dispensando seu natural encadeamento. Isoladas, as imagens já são, em si e por si mesmas, verdadeiros poemas cinematográficos. Cada focalização de um objeto ou de detalhe da paisagem ou de corpo sólido constitui obra de arte autônoma, que independe de seu relacionamento ideológico ou mesmo mecânico com sua própria concatenação e sucessiva continuidade. Com isso, a valorização do objeto ou do detalhe é absoluta, resgatando sua existência, integridade e importância da permanente desatenção que lhe vota o geralmente conspurcado olhar humano.
  • 16. 16 Se a continuidade de uma focalização (sobre o mesmo objeto) alcança a operosidade referida, sua sucessão (concatenada e acrescida a novos objetos) perfaz conjunto estético dinâmico, vital e vigoroso. Assim, Limite pode ser decomposto em suas partes (seus mínimos fotogramas e tomadas) e, isolada ou simultaneamente, considerado e usufruído em seu conjunto. Cada imagem - por sua plenitude, força e eficiência - dispensa, pois, o todo para, por si mesma, constituir-se autonomamente arte. Sua articulação interna e sucessão dinâmica, a par formarem harmonioso conjunto, multiplicam e renovam a cada momento o prazer estético do espectador. Diante disso, de unidades como essas, de conjunto como esse, quase são indestacáveis passagens ou imagens notáveis, já que, umas e outras, o são. Contudo, sempre é possível chamar a atenção para certas particularidades mais relevantes, seja por seu valor intrínseco, seja pela reiteração em filmes posteriores, mesmo que, ao final, algumas ou muita delas, por sua vez, derivem de realizações europeias anteriores, conhecidas do diretor. Sua incidência em Limite demanda conhecimento dessa produção e confronto ou colação com o filme, o que está por ser feito ou, caso já existente, requer maior divulgação ou simplesmente divulgação, que os meios da comunicação - como sua clientela, ou seja, a maioria da sociedade comprometida com o dernier cri, a moda, o extravagante e o residual, e, pois, com o precário e o transitório - não têm disposição para fazer. Sob esse aspecto, pode ser destacada a focalização de árvores de baixo para cima (usada, entre outros, por René Clair, em Un Chapeau de Paille d’Italie, França, 1927); a personagem caminhando pela estrada (utilizada por Chaplin,
  • 17. 17 em O Grande Ditador, EE. UU., 1940, e, provavelmente, em outros filmes até anteriores a Limite); a sombra humana com vivacidade, para não dizer com vida, esbatida na parede (vista, também, em Uma Aventura aos Quarenta, Brasil, 1947, de Silveira Sampaio); a posição de desânimo de uma das personagens, o amante de alegada morfética (em O Grito, Itália, 1957, de Antonioni); os pés e pernas de personagens (Ganga Bruta, Brasil, 1933, de Humberto Mauro, e Pacto Sinistro, EE.UU., 1951, de Alfred Hitchcock); o fantástico bailado das águas (Miramar, Brasil, 1997, de Júlio Bressane). Além dessas cenas com suas (algumas) referências posteriores, podem ser destacadas num todo completamente destacável: a apresentação a partir do solo de duas personagens conversando; a circunvolução da paisagem circundante acompanhando a tontura da personagem, que, ao invés de qualidade, Plínio Sussekind Rocha considerava defeito (apud Introdução ao Cinema Brasileiro, de Alex Viani. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura/Instituto Nacional do Livro, 1959, pp. 53/54); a visão das mãos do pianista a partir do corpo; as expressões, mais, notadamente, as bocas dos espectadores rindo de filme de Carlitos; o reflexo de árvores na água. Em Limite a valorização da vista e da imagem alcança níveis tão altos, que o barco, o mar, a paisagem, natural e urbana, a natureza e o universo enfim, além do ser humano, por seu rosto, corpo, vestimenta, movimentos e, principalmente, imobilidade, adquirem, cada um de per si ou integrados no conjunto, valor estético e de solidez compacta muitas vezes ou quase sempre despercebidos cotidianamente. As três estórias que as personagens no barco relatam entre si, em cenas retrospectivas, conquanto não se entenda com clareza esse
  • 18. 18 diálogo - afinal, trata-se de filme mudo - atingem três destinos nele reunidos, que, conquanto relatos ficcionais, não empanam e nem, muito menos, subjugam a forma cinematográfica. Se a forma geralmente é instrumentalizada para viabilização do conteúdo, nesse filme, ao contrário, instrumentaliza-se a trama, adjetivando-a enquanto se substantiva seu vetor veicular, sem retirar do tema sua verdade e carnadura humana, elaborando a síntese que configura a arte ficcional: qualidade estética (forma) e verdade humana (conteúdo). Além de tudo, na cópia (também notável) que a Funarte produz e distribui, o filme é acompanhado, todo o tempo, por trilha musical perfeitamente articulada à poesia e à música da imagem, extraída de partituras de Borodin, César Frank, Debussy, Prokofieff, Ravel, Satie e Stravinsky. Não o Brasil apenas, mas, se o ser humano em particular e a sociedade em geral tivessem condições de formação e informação cultural e artística para atingir o prazer estético proporcionado pelas artes, Limite (e tantas outras obras) seriam (deveriam ser) tão populares como um jogo de futebol ou outro esporte nacional. Ainda haverá de chegar a época em que o ser humano, egresso do primitivismo, terá superado a atual fase de sua ainda pré-história e em que a produção do lixo cultural dejetado pela sociedade terá desaparecido, entronizando-se em seu lugar a melhor manifestação de sua inteligência, esforço e sensibilidade. Nesse tempo, Limite e outras obras terão sua vez e a popularidade que merecem e que a sociedade, então verdadeiramente civilizada, e por sê-lo, exigirá e usufruirá.
  • 19. 19 GANGA BRUTA A Consciência Artística Se de filme para filme amplia-se e solidifica-se o domínio de Humberto Mauro sobre o entender e o fazer cinematográfico, em Ganga Bruta (1932) esse aprimoramento atinge sua plenitude, revelando cineasta perfeitamente consciente do fenômeno cinematográfico. À semelhança de Machado de Assis, não é só sob o aspecto técnico-formal - e nem poderia sê-lo sob pena de não se perfazer - que abarca os recursos mecânicos da câmera, a elaboração estética da imagem e a percepção das possibilidades oferecidas pela montagem, que Mauro apresenta aperfeiçoamento constante até alcançar o clímax desse processo. Essa trajetória ascensional também ocorre na compreensão da natureza humana e na filigranagem significativa de suas manifestações e no conteúdo e modos do inter-relacionamento entre os indivíduos. Como sua temática essencial (e única) centra-se até então em torno do relacionamento amoroso de personagens na faixa etária de sua eclosão e resolução, esse específico (e especial) modo de união entre as pessoas é não só revelado em algumas de suas variações como, principalmente, mais aprofundado e até mesmo tragicizado. A linha evolutiva do conhecimento e das concepções de Mauro sobre o mundo caracteriza-se, pois, por enfeixar todo o complexo fílmico-ficcional, conquanto, como acontece com qualquer outro criador, balizada e condicionada pelos elementos culturais (em seu
  • 20. 20 amplo e abrangente sentido), temporais e espaciais, que informam e moldam seu entendimento das coisas e do mundo. Em Ganga Bruta, como nos filmes que o antecedem, também surgem obstáculos ao comércio sentimental, interrompendo sua espontânea manifestação. Contudo, a diferença é não só de natureza como de intensidade e gravidade. Por primeiro, esse óbice é íntimo num dos parceiros, traumatizado por anterior comoção. Essa tecla é trabalhada pelo cineasta tanto ao nível do significante quanto do significado, do conteúdo e sua exteriorização, quanto do modo de conduzi-los narrativa e imageticamente. As notas, soantes e dissonantes, e a tessitura relacional daí decorrentes constroem-se e fluem sob condução segura e visualmente requintada. A imagem cinematográfica e sua montagem atingem sofisticada elaboração estética e perfeita concatenação dialética, em que a ação provoca não simples reações, mas, consequências que se articulam num encadeamento ininterrupto. Pode-se afirmar que isso é o que normal e naturalmente deve ocorrer nas construções artísticas ficcionais e estar-se-á enunciando verdade axiomática. Todavia, em poucas obras consegue-se imantar, articular e conduzir seus componentes com a argúcia e a pragmática demonstradas em Ganga Bruta, mormente a partir de elementos triviais, dos quais se extrai a natureza íntima, imprimindo-lhe concomitantemente beleza estética, que a transmuda, valoriza e universaliza.
  • 21. 21 Tirante algumas cenas cinematograficamente pouco expressivas, o filme é um continuum de sofisticadas construções imagéticas, em que se fundem o olhar (as possibilidades fotográficas e angulares da câmera) e a imagem dele resultante. Esse olhar ultrapassa a direta (e altamente complexa) visualização da matéria que enfoca para mostrá-la simultaneamente como se apresenta em sua solidez e concretude e também - e, no caso, principalmente - em sua beleza, quase sempre imperceptível à verificação meramente mecânica e/ou orgânica. Ganga Bruta é, pois, resultante da observação e percepção de estético e dialético olhar do artista no processamento da transfusão de matéria e ideia, ação e contemplação, visão e beleza. Suas imagens mais elaboradas e a sutileza relacional que estabelece entre os protagonistas, notadamente na série (e variabilidade) expressional da heroína, antecedem os grandes cineastas europeus dos anos cinquenta que dilataram seu alcance e profundidade. As cenas iniciais do filme transcorridas no âmbito do palacete residencial, palco da tragédia, por sua vez antecipam (e são de igual nível) às de Orson Welles nove anos depois, em Soberba (The Magnificent Ambersons, EE.UU., 1942).
  • 23. 23 PORTO DAS CAIXAS O Espaço do Ódio Cinema é mostrar (revelando) como os seres humanos comportam-se, agem e relacionam-se uns com os outros e como e por que comportamento, ação e relacionamento alteram-se ou alternam-se. Tudo isso, numa só obra, de uma vez ou apenas um ou alguns desses elementos, elegidos, destacados ou enfatizados no ou do contexto em que se situam e no qual se processam. O artista é livre para escolher ou optar como lhe aprouver por qualquer dessas variantes e possíveis outras. A questão crucial, no caso, consiste e resume-se na maneira de fazê-lo. No filme Porto das Caixas (1962), Paulo César Saraceni (Rio de Janeiro/RJ, 1933-2012) focaliza o relacionamento de um casal a partir de visceral incompatibilidade. Muita tinta correu e correrá e muitas obras foram e serão escritas sobre o tema. Poucas, porém, tiveram (uma delas, a notável peça A Dança da Morte, 1901, de Strindbergh) ou terão o poder e a propriedade destiladora do fel e da hostilidade que podem marcar a desintegração do mais íntimo dos relacionamentos humanos. Talvez, por isso, quando deteriorado, o mais acerbo e pungente. Saraceni, sobre argumento do romancista Lúcio Cardoso, baseado em fato real, coloca suas personagens já na última fase do completo degringolamento de sua ligação. E o que mostra é o reverso da moeda, o oposto de tudo que leva um casal a se associar na mais pessoal e total união possível entre dois
  • 24. 24 seres humanos, já que implica (ou deve implicar) num complexo de sentimentos, emoções e atração mútuas que envolve possibilidades físicas, morais, intelectuais e emotivas manifestadas com a intensidade e qualidade indispensáveis a impulsionar um para o outro, de modo a se necessitarem, completarem e bastarem. Nada há mais cruel, pois, do que casal constituído nesses termos, ou que assim deve ter sido inicialmente constituído, cujo relacionamento deteriore-se a ponto do sentimento amoroso transformar-se em rancor e ódio, a todo momento exteriorizados em indiferença, desprezo e agressões verbais, quando não físicas. Saraceni, com meticulosidade, paciência e adequação, joga suas personagens no vórtice dessa erupção, sem deixá-las, porém, soltas ou desarticuladas. Com rigor (e vigor) as coloca frente a frente no exíguo espaço de sua pobreza, observando-as destilar o veneno de degradado relacionamento. Não cogita nem se ocupa de sua vida pregressa e nem das causas e do lento processo desse deterioramento. Apanha-o e o articula já no auge de seu desenvolvimento, pejado de crueldade, amargura e hostilidade. Esse microcosmo convivencial desenvolve-se em ambientação precária e nua de quaisquer atrativos, que, por si e à parte, prefigura drama paralelo que, no tempo e espaço fílmicos, vincula-se à tragédia humana, perfazendo indissociável conjunto de aguda e agressiva aspereza e infelicidade. A imagem e seu conteúdo amalgamam-se numa mesma e dura matéria para, juntos, comporem atroz quadro de aviltamento das relações humanas.
  • 25. 25 A feiura e a aridez dos décors, da paisagem e das locações exteriores acompanham, refletem e compartilham a natureza do drama humano que neles se desenrola. Por sua vez (e aí reside o maior ou o grande mérito da realização), drama destituído de qualquer resquício de espetacularização, já que mostrado na nudez de suas manifestações, tão direta e objetivamente como se fosse (só) o olho da câmera a vê-lo e acompanhá-lo. Por isso, não só as palavras e diálogos travados entre as personagens são substantivos e essenciais, porém, tudo o mais, desde os décors, os elementos paisagísticos e materiais que as circundam como também seus gestos, postura, atitudes e movimentos, além das expressões faciais e tonalidades vocais. Filme, enfim, em que até a precariedade infraestrutural contribui e compõe conjunto para compatilizá-lo com a gravidade do drama humano e seu desenlace.
  • 26. 26 OS CAFAJESTES A Natureza do Ser Ezra Pound, o escritor ianque, diz que o critério de avaliação artística, ou seja, do mérito ou não da obra de arte, é a comparação. Apenas a comparação, já que não há tábua geral de valores e, muito menos, prévio programa direcional do fazer artístico. Se não se pode absolutizar o método, como, aliás, qualquer coisa, o fato é que comparar constitui o melhor, senão o único sistema avaliativo da arte. Ao se assistir a Os Cafajestes (1962), de Rui Guerra (Maputo/Moçambique, 1931-), melhor se verifica ou se aquilata a eficácia desse preceito ao se compará-lo com El Justicero (1966), de Nélson Pereira dos Santos. Isto, apenas por transcorrer a estória de ambos em idêntico contexto geográfico, mais ou menos na mesma época, e, por isso, forçosamente, referir-se a alguns tipos que o habitam na mesma ocasião. Param, por aí, contudo, as semelhanças, que, aliás, nem o são, mas, tão-somente pontos geográficos e históricos referenciais. Enquanto o filme de Nélson documenta e expõe a frivolidade de certo segmento da juventude carioca, Os Cafajestes inventariam, em profundidade, definida situação existencial. Nela, debatem-se os costumeiros cafajestes, mas, o filme não se cinge a contar e desenvolver uma estória. Ao seccionar episódio do cotidiano dos protagonistas, efetua corte vertical em sua razão de existir, não utilizando visão horizontal dos fatos senão para exteriorizar determinado modo de viver.
  • 27. 27 Na maneira de agir e não na ação propriamente dita é que se expressa o mundo interior das personagens. Nada mais apropriado para captar a realidade humana vivenciada. Poucos são os filmes em que o comportamento das pessoas é mais importante ficcionalmente do que os atos que praticam. Esses poderiam ser outros e até ocorridos em ambiente diverso. O que importa, no caso, é sua motivação e a forma como se perfaz. Assim, personagens que, por sua condição, são normalmente estereotipadas nos filmes comerciais, em Os Cafajestes apresentam-se com autenticidade e densidade. Se naqueles são a estória e os atos que contam, aqui, ao contrário, o que tem importância é a revelação da estrutura das personagens, tanto fazendo seja essa ou aquela a conjuntura ou os fatos. Enfim, tem-se o ser humano, e não apenas sua circunstância, que não é exposto condicionado e relativizado pelo meio, mas, em sua natureza íntima, recôndita, no núcleo permanente e específico que o distingue de todas as outras criaturas e o singulariza como único no universo. Essa especificidade humana, em uma de suas manifestações, é que constitui e centraliza o tema do filme. As angulações, os enquadramentos, a fotografia, os locais da ação e a dialogação adstrita ao essencial convergem e se adequam à necessidade expressional. Os primeiros planos, as pausas e os silêncios, mais eloquentes estes do que a costumeira tagalerice dos filmes convencionais, refletem contextura fílmica complexa, onde sobressaem a qualidade estética e a verdade humana, apanágio da arte.
  • 28. 28 VIDAS SECAS Ficção e Imagem Como se sabe, o romance brasileiro possui duas vertentes principais: a clássica e a barroca. A primeira, caracterizada, principalmente, pela objetividade, rigor, distanciamento emocional dos fatos e isenção. A segunda, marcada, notadamente, pela exuberância criativa e subjetividade. Romantismo e realismo representam tais tendências no romance brasileiro. José de Alencar e Machado de Assis, respectivamente, seus primeiros maiores autores. De linhagem clássica, na linha machadiana, tem-se, depois de Machado e, como seu mais alto exemplo, Graciliano Ramos. Nélson Pereira dos Santos elege uma das obras mais marcantes deste último para filmagem no início da década de 1960. Daí surge o filme Vidas Secas (1963), extraído do romance homônimo, de 1938. Já se expôs ad nauseam que esse filme tanto é grande obra cinematográfica como é fiel (fidelíssimo até) à obra literária. Até aí nada de mais. Poderia não sê-lo e configurar grande filme. Poderia filmar o romance passo a passo e redundar em fracasso cinematográfico. É que, sabe-se, literatura e cinema, como qualquer das demais e ainda poucas formas de arte, são construções autônomas, com pressupostos e linguagens diversas e específicas, nada tendo, sob esse aspecto, em comum. Mas, genericamente, como artes que são, possuem elementos similares. Do contrário, não seriam artes. Por
  • 29. 29 conterem linguagem e estrutura diferentes, são independentes entre si, não se subordinando e nem tendo hegemonia uma sobre a outra. Em consequência, geralmente, quanto mais fiel um filme à obra literária e teatral que lhe serve de argumento, maior sua descaracterização como obra de arte. Não é por aí, portanto, que se avalia filme baseado em romance, conto ou peça teatral. Sua análise incide apenas sobre a especificidade que torna o cinema não apenas uma das artes, mas, arte. Acontece, todavia, que Nélson Pereira dos Santos consegue em Vidas Secas (filme), ser fiel a Vidas Secas (romance). Do ponto de vista cinematográfico isso, como se viu, não tem a menor importância e nem vem ao caso. O que ocorre, na espécie, é que o livro, conquanto conservando sua estrutura romanesca, é que é fiel ao cinema, conjugando, em si, virtualidades literárias com visualização da realidade. Ou seja, Graciliano Ramos não se limita a verbalizar seu conhecimento e recriação do real. A eles aduz visão imagética, na qual as palavras não só captam e recriam a realidade como também a traduzem plasticamente. Mediante palavras constrói imagens visuais. A extrema sintonia filme-romance deve, no caso, ser explicada não pela submissão do cinema à literatura. Mas, também, não desta àquele. E, sim, da alta virtualidade do romancista de verbal e estruturalmente visualizar o real. Se realizar essa façanha com imagens não é fácil, muito mais difícil é lográ-la com palavras. Graciliano o consegue. Mas, se é assim, o mérito de Nélson Pereira dos Santos é de efetivar em imagens cinematográficas o que constitui imagética no
  • 30. 30 romance. Um livro que, sem perda de suas qualidades, já nasce fílmico e o precede. Daí, a perfeição do filme, o extremo rigor da construção, a limpidez da imagem, a contenção verbal e depuração ficcional, a recriação do essencial. Sob tais aspectos, o filme é, cinematograficamente, tão ou mais funcional que o romance o é literariamente. É que o livro, conquanto excelente, não atinge ficcionalmente a complexidade e unidade estrutural de, por exemplo, São Bernardo, do mesmo Graciliano, ou de Dom Casmurro, de Machado. É mais sucessão de quadros e acontecimentos desenrolados a partir de fato desencadeador imediato (a seca), agravado por uma constante econômica estrutural (o latifúndio). Já o filme é, cinematograficamente, perfeito. Nada lhe sobra. Nada lhe falta. Tudo que é filmado é apropriado. Mas, não só o apropriado é filmado. É que, além disso, tudo é feito adequadamente. A direção e desempenho dos atores, em que se destacam sobremaneira Átila Iório como Fabiano e a cachorra Baleia, cuja última aparição representa um dos grandes momentos não só do cinema, mas, da imagem. Existem várias obras-primas cinematográficas. Uma delas é Vidas Secas, de Nélson Pereira dos Santos.
  • 31. 31 OS FUZIS Verdade e Arte Entre os intelectuais de esquerda lavrou – e ainda lavra – o equívoco de subordinar a expressão artística à mensagem social, política e filosófica. A obra, em consequência, não passaria, nesses casos, de veículo ou instrumental ideológico, sacrificando-se (quando qualificado o autor) ou não atingindo (na hipótese de incompetência) o nível artístico. Contudo, não é a escolha do tema ou a orientação que se lhe imprime os responsáveis por esse descaminho ou frustração. Ao contrário do que geralmente se pensa e se propala, o assunto e sua diretriz são neutros do ponto de vista artístico, independendo do posicionamento político-ideológico e social do autor, não importando sua condição, posição, atitude ou conduta e correspondente objetivo religioso, social, político e ideológico. Quaisquer sejam, o que conta e vai ser aferido é o valor estético da realização, isto é, conforme Hegel, sua concepção e expressão, traduzidas em profundidade e propriedade de conteúdo e criatividade formal. Por isso, pode-se ter grande poema tematizando simples árvore de beira da estrada e poema sem nenhum valor abordando o destino da humanidade. O caso do filme Os Fuzis (1963), de Rui Guerra (Maputo/Moçambique, 1931-), é exemplar de como se reúnem e são sintetizadas intenção engajada e forma artística, sem subordinação desta àquela, como convém.
  • 32. 32 À evidência que, além disso, é indispensável que o autor seja artista, tenha talento, consciência e informação estética acompanhados de persistente exercício elaborativo. Os Fuzis alia visão, posicionamento e crítica social com alto grau de realização cinematográfica, na utilização adequada e vigorosa dos meios expressionais da arte, do que decorre forte conteúdo humano e social expresso em apropriada construção formal. O desdobrar do fio narrativo (a estória, seu desenvolvimento e pormenores) é procedido eficientemente, de modo que a condição (classe, origem) e a situação (as circunstâncias do momento) dos retirantes da seca nordestina que chegam à cidade, bem como do poder econômico local e do destacamento policial convocado para protegê-lo de possível saque, plasmam-se a partir de seu conteúdo e natureza, ambos desvendados em suas implicações, determinantes, por sua vez, de visões da vida e do mundo, de condutas e atitudes. Nesse sentido, o caminhoneiro (Átila Iório) lucidamente verbera um dos soldados: “Está todo mundo morrendo de fome e você diz que está tudo em ordem?”, para acrescentar, amargo e revoltado, “ao invés de comida mandam você para manter a ordem, para defender o armazém”. A amargura do cineasta/personagem poderia, independentemente de seu significado, realizar-se temática e cinematograficamente de maneira sectária e superficial, no primeiro caso, e canhestra no segundo, sendo ambas essas perspectivas indissociáveis, ou seja, não sendo possível uma ter valor e a outra não. A concepção e a expressão perfazem-se sempre no mesmo nível, independentemente, repita-se, da posição ideológica do autor,
  • 33. 33 podendo haver, por exemplo, obras de grande valor artístico de cunho religioso ou anti-religioso. Na espécie, em Os Fuzis ambas também se equivalem, correndo a ação pejada de conteúdo e significado paralelamente, simbioticamente, à força e adequação da linguagem que a viabiliza, expõe e conduz. A propriedade e a eficácia do corpus fílmico patenteiam-se homogênea e fortemente do início ao fim, da primeira à última tomada, em estruturação e articulação temática tão intensas quanto sua exposição visual, em que objeto e imagem, conteúdo e forma, sons, ruídos, rezas e cantorias interagem, compondo um todo único, inseparável. Em consequência, as personagens (seus modos, atitudes e relacionamentos), as locações exteriores (e seus espaços) e as abordagens de interiores (dos móveis e objetos que os guarnecem) compõem bloco humano, material e imagético-formal consistente, dinâmico e autêntico nas manifestações e relacionamentos, nas propriedades e funcionalidades, sintetizando beleza e dinamismo expressional, do que resulta um dos melhores filmes do cinema, em verdade e arte.
  • 34. 34 DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL As Alternativas Possíveis A estrutura do universo é binária ou dualista, como ensinava Pitágoras. Pelo menos na sua aparência mais visível. Sol e lua, noite e dia, claro e escuro, bem e mal, bom e ruim, Deus e Diabo, alto e baixo, ímpar e par, gordo e magro, líquido e sólido, água e terra, o sertão e o mar, etc, etc. Nem sempre, porém, essa bipolaridade é antinômica. Frequentemente, é complementar. Se o bom e o ruim se repelem, o sol e a lua, o dia e a noite se não se complementam, pelo menos apresentam necessária diversificação. Em muitos casos inevitável. A estrutura do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Gláuber Rocha, para lá da beleza e propriedade do título, reflete a composição binária do universo inserida no contexto humano. Se sua trama é simples, o camponês nordestino esmagado pela concentração da propriedade da terra - agravada pela natureza inóspita - e lançado entre a violência e a religiosidade exacerbada, seu modus faciendi é soberbo. Uma das obras-primas do cinema e da arte. Baseado no drama permanente do nordestino alijado do domínio da terra e de qualquer bem que não seja sua própria humanidade, o filme concentra e sintetiza positivas e eficazes conquistas da arte cinematográfica na utilização de seus meios e possibilidades expressionais e o conhecimento fático e teórico da problemática regional.
  • 35. 35 Assistindo-o e tendo-se certa noção dessas coordenadas da arte e do real, percebe-se que Gláuber, autor da estória e dos diálogos, além de diretor do filme, hauriu as principais fontes matrizes geradoras desses conhecimentos. Porém, não só. Muito mais do que isso, pois, isso está ao alcance de qualquer um e é de saber generalizado, Gláuber aduziu o toque pessoal do artista. Então, a estorinha simples do vaqueiro e sua mulher (Manuel e Rosa), esmagados pelo latifúndio e jogados no vórtice bipendular do Nordeste de evasão e revolta (passiva num caso e violenta noutro), seja, na primeira hipótese, da religiosidade messiânica, seja, na segunda, do cangaceirismo desorientado. Ambas, atitudes de inócua praticidade. Sabe-se de fora, objetivamente. Mas, naquele contexto fechado constituem as alternativas possíveis aos inconformados. O contrário, é a aceitação passiva, o conformismo usual. É a situação do vaqueiro Fabiano e sua mulher, de Vidas Secas, o romance (1938) de Graciliano Ramos e filme (1963) de Nélson Pereira dos Santos. E, também a de Rosa, em Deus e o Diabo. Nesse sentido, esses dois filmes completam-se ao enfocar, um, a vida cotidiana, real, “normal” e, o outro, as atitudes e as ações contrárias à exploração, à fome e à total e absoluta falta de perspectivas outras que não seja o viver e vegetar em meio às maiores privações. Ambos os filmes, um em sua objetividade clássica (Vidas Secas), outro em sua exuberância barroca (Deus e o Diabo na Terra do Sol), retratam e retraçam o Nordeste sertanejo. Por trás deles e antes deles, Euclides da Cunha, o romance social nordestino, o
  • 36. 36 neorrealismo italiano, Rio, 40 Graus (1955), também de Nélson, a filmografia de Buñuel, O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, este de redescoberta ficcional do cangaço, tema inaugurado no cinema por Filho Sem Mãe (1925), de Tancredo Seabra, e Lampião, Fera do Nordeste (1930), de Guilherme Gaudio, e pelo documentário da realidade vivida, em Lampião, o Rei do Cangaço (1936), do mascate sírio-libanês Abraão Jacó (ou Benjamin Abraão Butto). Se a trama de Deus e o Diabo na Terra do Sol é o usual, o que todos sabem à saciedade, o que o torna, então, não apenas obra de arte, mas, obra-prima artística? O tratamento. A maneira de elaborar o filme, de lidar com o tema, não apenas de enfocá-lo, porque isso já faz parte do conteúdo. O que distingue, em cinema, o artista do apenas diretor é o modo de utilizar os meios expressionais da arte, no caso, a linguagem cinematográfica. Nesse aspecto (e em qualquer outro também), Gláuber é extremamente competente, perspicaz, informado, criativo e sensível. E faz uma obra perfeita, em que seu toque genial contempla todos os detalhes. O filme é um dos mais vigorosos do cinema, o que transparece não só nos cortes, nos enquadramentos e na montagem, mas, espraia- se por tudo, a começar pela escolha, direção e desempenho dos atores. Excepcionais. Aliás, como tudo no filme, como todo o filme. A contextualização da ação do beato Sebastião e da raiva explosiva de Corisco está muito além da competência profissional de simples diretor e das possibilidades técnicas da máquina. Perfaz construção ficcional cinematográfica ao nível, em sua grandiosidade, das epopeias homéricas e, em seu extravasamento e
  • 37. 37 desfecho, das tragédias gregas e shakespearianas. Sua força é tanta que só tais paradigmas podem equivalê-la. A aparente doçura e contenção do beato Sebastião disfarça sua implícita violência e crueldade. A exuberância explosiva de Corisco, o diabo loiro de Lampião, esconde a ternura, também inata, do ser humano. Inexorável binariedade, constante bipolaridade. A desabalada carreira final de Manuel e Rosa (esta, não tendo prosseguido pelo fato da atriz ter caído, segundo se afirma), não encerra a grandiosa saga, sendo, ao contrário, abertura de possibilidades.
  • 38. 38 SÃO PAULO S/A O Fel da Vida Segundo Erza Pound - e com razão - “o artista é a antena da raça”. Essa assertiva tanto pode ser entendida (e aplicada) em sentido prospectivo e presentificado quanto no perspectivo. Contudo, o artista não é adivinho ou profeta, na acepção que se quer emprestar, enganadamente, aos escritores bíblicos que vatacinariam acontecimentos. Na realidade, o artista é apenas – o que não é pouco - indivíduo sensível, curioso, inteligente, interessado, informado e atento à aventura humana e ao espetáculo do mundo, seja em relação ao passado, ao presente e ao futuro, separada ou concomitantemente. Daquele, como do presente, procura, como sismógrafo, conhecer, captar e extrair a substância e o significado que jazem sob e por trás das aparências, ora enganosas, ora espelhantes ou reflexas. Com esse conhecimento aventa as possibilidades do desenvolvimento natural da marcha do mundo e das manifestações humanas. Nada, pois, de mágico, de revelação ou de outras causas semelhantes e/ou correlatas, sendo inaceitáveis, portanto, as teorias e entendimentos, por incomprovados e incomprováveis, como o perfilhado, por exemplo, por Henrique Abílio em Crítica Pura (São Paulo, S.E. Panorama Ltda., s. d.) de que “arte é revelação” (p.54 e 55). O artista, pois, é aquele que, antes de tudo, interessa-se, observa, acompanha e medita sobre a realidade, transformando as resultantes desses procedimentos em arte.
  • 39. 39 É o que faz, natural e eficazmente, em São Paulo S/A (1964), Luís Sérgio Person (São Paulo/SP, 1936-1976). Nesse filme, uma das obras-primas do cinema brasileiro, Person articula a matéria ficcional a partir do conhecimento interno de sua estrutura e contextualização, captando, expondo e criando a realidade artística equivalente à realidade haurida, expressando-a imageticamente, com o que a documenta e eterniza artisticamente. O protagonista, em suas manifestações, comportamento e relacionamentos amorosos e profissionais compõe individualização humana que apreende, reflete e sintetiza a condição humana situada em determinada ambientação espaço-temporal, o que, aliás, é apanágio de toda grande obra de arte ficcional. Nesse processo de criar realidade artística a partir da realidade concreta o cineasta transpõe desta para aquela sua essência, sentido e significado. O protagonista é, assim, o protótipo da categoria de indivíduos que existia ao tempo da realização fílmica, refletindo seu ambiente e tendência. Se a maioria de seus pares subordina-se às imposições conjunturais, aceitando-as ou tolerando-as, já que difícil, senão inexequível ou pelo menos atritante e prejudicial, repudiá-las e renegá- las, o protagonista insurge-se, rompendo os condicionamentos que o mantêm atrelado a modo, rotina e objetivo de vida tornados sufocantes e insuportáveis. A insatisfação e inaceitação pela personagem da engrenagem social tal qual estruturada e em funcionamento, com sua intrínseca vileza, é, pois, paradigmática do estado de espírito disseminado à época entre parcela da juventude, que rejeita a herança do modo de estruturação da sociedade que lhe foi legada pelas gerações anteriores.
  • 40. 40 Se ela se rebela, esse ato não reflete apenas atividade pessoal isolada, constituindo, ao contrário, manifestação emblemática da parcela viva de sua geração, que mesmo não levando seu inconformismo ao extremo ou justamente por não fazê-lo, o carrega e com ele convive amargurada e sofridamente. Se de modo geral é esse o filme, nas dobras de seu desenvolvimento factual destila-se o fel social e relacional ao contato com a realidade comercial da sociedade e os descompassos e agruras amorosas. A impossibilidade de alterar a ordem das coisas, cuja força promana, entre outras razões, de sua organização milenar, leva a impasses que só se resolvem pelo rompimento manifestado de diversas e variadas maneiras. Uma delas, a do protagonista, de recomeçar em outras condições. São Paulo S/A constitui, pois, a trajetória, a síntese e a expressão do inconformismo e do repúdio de parte de uma geração às condicionantes e imposições econômico-sociais. Se o filme se acha atado a determinada circunstância, atinge também o passado e o futuro, nos quais idênticos ou semelhantes impasses e rupturas deram-se e sempre irão ocorrer até que a organização social se subordine às necessidades e aspirações humanas, o que ainda não acontece. Person, mercê de sensibilidade e percepção da realidade, compôs o testamento vivencial de sua geração e não simplesmente o intelectual. Ao fazê-lo, submeteu-o a pertinente e atilado tratamento cinematográfico num filme tão vigoroso em sua estruturação quanto belo imageticamente, no qual enquadramentos e angulações obedecem a consciente direcionamento.
  • 41. 41 Muito (ou tudo) que veio depois no país em matéria de cinematografia nele possui precedente, inspiração e diretriz. Se se admira, por exemplo, o ritmo e a imagética de Terra Estrangeira (1995), de Válter Sales Júnior e Daniela Thomas, encontram-se já (e também) no filme de Person equivalentes predicados de beleza, modernidade e desenvoltura. São Paulo S/A tem, duas décadas depois, seu correspondente em Filme Demência (1985), de Carlos Reinchenbach Filho, muito significativamente dedicado a Person. Como aquele, este constitui a tradução cinematográfica do estupor e da perplexidade da mesma espécie de indivíduo. Só que nesse interregno o país mudou e a insatisfação, a inapetência e desorientação do protagonista do primeiro transformou-se numa amargura angustiada. Assim, têm-se nesses dois filmes o retrato do inconformismo geracional latente e recorrente na exata tradução de suas conotações essenciais, mesmo que, no primeiro caso, esteja-se no processo de industrialização, quando, no segundo, reflita-se já certa desindustrialização. Como em toda grande obra de arte ficcional, nesse filme também se criam realidades artísticas tão palpáveis e consistentes como a realidade concreta ou até mais, dada sua possibilidade referencial. Esta, submetida ininterruptamente ao movimento da matéria, esvai-se ou altera-se, aquelas, no entanto, quando significativas e autênticas como em São Paulo S/A, incorporam-se permanentemente ao patrimônio artístico da humanidade.
  • 42. 42 NOITE VAZIA Os Impulsos Íntimos Nenhum drama humano é alheio à ficção. Nem poderia sê-lo, justamente porque o gênero configura-se a partir do grande painel da vida, compondo-se da aventura dos indivíduos, isolados ou em conjunto, no inter-relacionamento que estabelecem. A questão, sempre, é diferençar e separar, qual trigo do joio, a obra que efetivamente apreende, retrata e retraça o significado e o conteúdo desse drama daquela que o deturpa, escamoteia e falsifica. No primeiro caso - o único que conta, vale e interessa - cumpre distinguir e destacar as obras que mais pertinente e profundamente atingem o eixo da trama articulada e das questões explícitas ou subjacentes abordadas, sob o ângulo, pois, da verticalidade do exame temático e da construção estética. Já sob prisma da amplitude horizontal, ocorre extensa e variada gama de possibilidades, tantas quantas a própria existência humana comporta. A filmografia de Válter Hugo Curi (São Paulo/SP, 1929-2003) elege a problemática amorosa e o relacionamento masculino-feminino como seus principais eixos, preocupando-se o cineasta com essas manifestações humanas, sempre (ou pelo menos na maioria esmagadora dos casos) sob a ótica masculina. Em Noite Vazia (1964) Curi extrapola tais coordenadas, sobrepondo ao relacionamento entre os sexos o vazio existencial de um de seus protagonistas e a perplexidade de outro.
  • 43. 43 A problemática central do filme não é, pois, o intercâmbio amoroso e/ou físico entre os sexos, não opostos, como se costuma afirmar, mas, complementares. O que realmente preocupa e ocupa o cineasta são as proposições íntimas e a textura intelecto-emocional que guarnecem suas personagens masculinas. Ambas conducentes ao sexo, não como válvula de escape ou compulsão orgânica. Porém, como algo que preencha a vacuidade existencial de um e resolva a perplexidade do outro. Nelas, se o apelo permanente do sexo ocupa-lhes o tempo e simultaneamente atende à uma necessidade fisiológica, o direcionamento ou limitação à sua prática mercantilizada, além de não contemplar suas carências afetivas, os frustram, impelindo-os, como ao jogador viciado, a palmilhar o inútil itinerário de suas ânsias, carências e buscas. Com elevada perspicácia, o cineasta estrutura diversificadamente os protagonistas, que, se unidos no propósito imediato de chercher la femme, partem de exigências diferentes e, num certo sentido, até contrárias. Nélson procura aplacar sua angústia, tentando encontrar na noite relacionamento marcado pela autenticidade. Por isso, é sempre relutantemente que aceita os impositivos convites do amigo. Já Luís simplificadamente restringe-se à materialidade da condição humana. A construção das duas personagens femininas parte da finalidade (e limitação) da profissionalização do sexo, cingida à contrapartida financeira da momentânea entrega do corpo.
  • 44. 44 Contudo, à semelhança do duo masculino, tornado complexo pela diferenciação entre os parceiros, no caso da dupla feminina tem- se, pelo menos em parte, seus afins. A personagem interpretada por Odete Lara paraleliza-se com Luís e, por isso, entram em constantes choques. Já a prostituta encarnada por Norma Benguell, do mesmo modo que Nélson, almeja relacionamento amoroso sentimental. As atitudes e manifestações desses casais refletem tais disposições, com a explícita verborragia e a desabrida conduta de um e a atitude discreta do outro, que exprime seu sentimento no silêncio, na expressão e no olhar. Verifica-se, portanto, consciência e pertinência na configuração e articulação dessas personagens, de sua maneira ser, expressa em correspondente comportamento. Não há, no caso, mergulho nas complexidades subjetivas do indivíduo, porém, apresentação pertinente e consistente de manifestações do universo humano mediante domínio dos elementos que formam e informam a realização cinematográfica no melhor ou pelo menos num dos dois ou três melhores filmes do cineasta.
  • 45. 45 A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA O Conto e o Filme Do conto homônimo de Guimarães Rosa, inserto em Sagarana (1946), surge o filme A Hora e a Vez de Augusto Matraga (1965), de Roberto Santos (São Paulo/ SP, 1928 - 1987), em pleno movimento do cinema novo. Os atributos do filme não decorrem direta e obrigatoriamente de iguais qualidades do conto, visto que, como se sabe, são espécimes de artes diversas por terem especificidades intransferíveis, congeniais e próprias. O texto original, seja ele qual for, sempre será escrito diretamente para o cinema ou extraído de obra literária. De uma ou de outra forma, deverá ser forçosamente submetido a tratamento adequado para se transformar em imagens. Nessa prévia elaboração e na que lhe é diretamente aplicada no ato da filmagem e depois na montagem, é que se constrói ou não a obra de arte, independentemente, pois, da qualidade ou de sua falta no texto primitivo. Por isso, como também se sabe, de boa obra literária pode ou não decorrer bom filme, dependendo da orientação, pretensão e qualificativos do diretor e não das ocorrentes ou inocorrentes qualidades do texto básico. Se dele extrai-se apenas o tema, o filme forçosamente será ruim, porque a qualidade da ficção, ao contrário do que a maioria pensa, não é simplesmente narrar ou contar uma estória, mas, como afirma Hegel,
  • 46. 46 o importante “reside na concepção e na expressão”, ou seja, no que dizer e na maneira de dizê-lo. Quando se aproveita, além da trama, também a contextura humana contida no texto e se a submete a rigoroso tratamento estético cinematográfico, que só outro artista (o cineasta) pode imprimir, tem- se, então, filme consistente, sem que isso implique em fidelidade, já que, como dito, sendo artes autônomas, essa não é categoria que se leve ou que se deva levar em consideração, por também dela decorrer a pecha de submissão. O filme de Roberto Santos utiliza a saga do protagonista mantendo sua essência humana originária sem qualquer laivo literário. Toma e retoma sua estória, reconstruindo-a segundo as exigências e requisitos da arte cinematográfica. Se o entrecho é o mesmo, se a textura humana é a mesma, a realização, a obra, é outra, inteiramente alicerçada em pressupostos específicos, totalmente diversos dos literários, que descrevem, enquanto aqui se mostram, não apenas os cenários internos e externos, mas, principalmente, os seres humanos em ação, materializados (ou representados) por outros seres humanos, na encarnação vital das personagens. Enquanto literatura, o conto é magnífico. Enquanto cinema, o filme é excelente, constituindo um dos mais significativos arquétipos dessa arte. A sensibilidade, o tirocínio e a segurança de Santos evidenciam- se com tais vigor e intensidade, que o filme, da primeira à última e em todas as cenas intermediárias, apresenta-se em igual nível de equilíbrio e homogeneidade. Não perde, em nenhum momento,
  • 47. 47 mesmo ou até principalmente naqueles em que o protagonista age em frontal oposição à sua natureza, a tensa contenção que lhe imprime a direção, por força, também, da essencialização a que é submetido, em grau tão alto e eficaz, que todas as cenas, gestos, diálogos e manifestações das personagens são-lhes indispensáveis. A utilização da câmera, a direção e interpretação dos atores, a seleção de aspectos, ângulos e pormenores dos décors e das locações exteriores, também compõem e integram o conjunto fílmico com as mesmas virtualidades e iguais proficiência, rigor e sensibilidade ocorrentes nos demais componentes fílmicos. Todas as cenas, como acentuado, são não só importantes como antológicas, não se podendo destacar nenhuma delas acima das demais. Contudo, três pelo menos devem permanecer com mais força na memória do espectador, pela firmeza e precisão de sua feitura e pela construção ou criação sagaz e pertinente: as cenas iniciais, as da recepção dada pelo protagonista em sua modesta vivenda ao bando de Bem-Bem e as cenas finais da luta na igreja. A primeira, pela ambiência física e humanamente tensa e expectante do lugarejo; a segunda, pela autenticidade e simplicidade da acolhida e seus pormenores, além da naturalidade da satisfação do protagonista; a terceira, pela estonteante surpresa de sua eclosão e incisivos e perfeitos desenvolvimento e finalização, pelo que constituem momentos inolvidáveis do cinema. Enfim, uma obra-prima. Uma das brilhantes obras-primas do cinema brasileiro.
  • 48. 48 O BANDIDO DA LUZ VERMELHA As Vísceras Expostas Como já se tem escrito muitas vezes, o verdadeiro cinema não é constituído pelos clichês convencionais que se limitam, superficial e apressadamente, a contar uma estória de começo, meio e fim. O autêntico cinema, aquele que tem importância estética e cultural e que, por isso, permanecerá, incorporando-se ao patrimônio artístico-cultural da humanidade, é construído sobre outros pressupostos, visando fins diversos daqueles almejados pelas produções comerciais. Esse cinema, por essas razões e por sua maior exigência, não merece a atenção do público, que não só o ignora como até lhe é hostil. A recíproca, evidentemente, não é verdadeira, já que desagradar ao público não é seu objetivo, mas, decorrência natural da defasagem entre este, com seu despreparo cultural e intelectual, e a complexidade e sofisticação da obra de arte. Os grandes artistas (músicos, dramaturgos, escritores e cineastas), bem que gostariam que todos usufruíssem, entendessem e participassem do prazer estético que só a arte propicia. No entanto, poucos são os indivíduos, em qualquer época e lugar, que têm condições pessoais e capacidade intelectual indispensáveis a esse usufruto. Todavia, não são as obras de arte e seus autores os prejudicados, que o objetivo do artista não é (e nem deve ser) fama e dinheiro, mas,
  • 49. 49 tão-só (o que é muito e é tudo), a infinita satisfação de criar e de artisticamente participar, se integrar e compor o conjunto do universo para sempre ou pelo menos enquanto ele durar ou permanecer com vida inteligente. Quem perde e passa pela vida sem nem desconfiar do fascínio e prazer que só a arte contém e transmite, são aqueles - quase todos - que a desconhecem, não entendem e até a hostilizam, como o policial do filme O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla (Joaçaba/SC, 1946-2004). Um cineasta jovem, pois, de apenas 22 (vinte e dois anos), que dirige, sendo ainda autor do argumento e do roteiro, um dos melhores filmes do cinema brasileiro e, sem deixar por menos, logo em sua estreia no longa-metragem. Justamente esse filme, com mais alguns outros, integram o seleto e restrito clube das obras de arte autênticas. Por ser de arte não é fácil. Nem de ser feito e nem de ser assistido pelo espectador condicionado pelos filmes comerciais convencionais, que ao invés de terem autoria, possuem receituário de facilidades e ingredientes destinados a cativar e agradar aos que apenas querem passatempo descompromissado. Ao contrário desse tipo de filme, O Bandido da Luz Vermelha não explora os instintos do espectador e nem apela à sua emoção ou sentimento. Focalizando a atuação real de bandido que assombra São Paulo durante certo tempo, Sganzerla o insere num contexto pessoal de impasses, incompreensões e crueldades, sem relegar ao oblívio suas origens mesquinhas, nem que seja de passagem. Despido de todo atavio, recortado o perfil do protagonista da crua realidade do baixo-mundo dos marginais, assaltantes e
  • 50. 50 assassinos, o filme revela, em linguagem e montagem dinâmicas e criativas, sua atividade e universo mental extraídos desse ambiente, situando-os em uma resultante de sub-humanidade e absoluta marginalidade. A visão do cineasta fundamenta-se na contextura da realidade. Não do real aparente, facilmente constatável, embora, por isso, não percebido em suas implicações e verdadeiro sentido. Porém, visão que imerge na e emerge da essência do real, de onde retira sua fonte de informação, conhecimento e reflexão. Munido de tão percuciente quão arguto instrumental intelectual, Sganzerla não é presa da realidade e nem a ela se subordina. Ao contrário, sobre ela age e atua, alargando e aprofundando concomitantemente sua percepção. Ao extirpar do real o tumor que o lacera e perturba, que é a ação insensível, cruel, anti-humana e antissocial do protagonista, o cineasta, ao invés de disfarçá-la ou escondê-la, desvenda-a e retrata-a à luz do dia, num ato de conscientização e purgação. Ao invés de focalizar a falsa beleza de cartão postal de ambientes luxuosos, escancara o ventre sórdido do lixão da cidade, da favela e da boca do lixo de São Paulo. Entretanto, mais importante do que isso - e isso é obra do ser humano vivendo em extremado sistema de competição, no qual, essencialmente, cada um age contra todos e todos contra cada um, com as devidas atenuantes, que as há - Sganzerla mostra o indivíduo moído pela engrenagem desse sistema e desventra o próprio ser humano, expondo as vísceras e fibras que compõem e formam sua natureza.
  • 51. 51 O filme é rico, ainda, de referências, sugestões e alusões as mais diretas e contundentes. E se é obra da inteligência, o é também do destemor dos que não foram contaminados pelo conformismo e pela sutil rede das conveniências. Por isso, é corajoso, não por denunciar ou acusar, que isso deflui do próprio entrecho, mas, por enfrentar não simples caso isolado, porém, as entranhas da espécie, e no ato de sua apropriação pelo conhecimento e pela recriação artística, nelas se inserir e delas participar. Esse o maior desassombro. Talvez superior - se isso é possível - do que o de Dante ao enfrentar as pústulas e os inomináveis castigos infernais, visto que o périplo dantesco é aventura da inteligência e da imaginação. A de Sganzerla representa mergulho e participação no inferno concreto, palpável, cotidiano. No inferno existente. Não no suposto. Costuma-se classificar o filme como policial. É e não é. No primeiro caso, porque focaliza criminoso em ação e seu cerco pela polícia. No segundo, por que não é somente isso, como se viu. É muito mais. É tudo o mais. É o que subjaz e compõe o cerne e a base estrutural da própria sociedade. Diante do exposto, nem é necessário referir-se às virtualidades cinematográficas e artísticas do filme, tão grandes, vigorosas, complexas e adequadas como seu mergulho na espessa concretude do real.
  • 52. 52 FOME DE AMOR Jogo Perverso Nélson Pereira dos Santos vinha de uma carreira cinematográfica de acentuado cunho realista, a exemplo de Rio, 40 Graus (1955), do improvisado Mandacaru Vermelho (1960) e do clássico Vidas Secas (1963), quando, subitamente, envereda por outro caminho no que tange ao topos geográfico e ao status social de suas personagens, tanto em El Justicero (1966) quanto em Fome de Amor (1968), baseado este em peça de Guilherme Figueiredo. Se no primeiro pretendeu liquidar sua projetada trilogia carioca, o fez de tal modo que El Justicero distancia-se consideravelmente de seus primeiros parceiros, notadamente, de Rio, 40 Graus, que se está frente à outra perspectiva, de talhe diverso, não só pela geografia e condição das personagens como pelo enfoque imprimido ao entrecho. Já em Fome de Amor, conquanto nucleie a estória na mesma classe social focalizada em El Justicero, a pequeno-burguesia carioca, e não deixe também de ressaltar seus aspectos fúteis, a pretensão, se não é maior que naquele filme, pelo menos é melhor resolvida. No jogo perverso que articula entre os dois casais que protagonizam o drama, extrapola a simples constatação naturalista ou mimética, aprofundando a radiografia do caráter e da personalidade do quarteto, em que se associam os elementos que se assemelham e se dissociam as personagens que divergem por sua concepção e postura diante da vida.
  • 53. 53 O corte é tão visceral que no ato comparativo desnuda a biotipologia desses casais, radicalizando pouco a pouco as diferenças ocorrentes entre eles, encobertas pelos disfarces naturais da conduta e da convivência civilizada. Não ocultas, contudo, da visão do artista, que as constrói conforme seu cerne ontológico, do âmago do ser, desvelando sua natureza concreta de modo vivenciado e vital, conforme a carnadura de suas manifestações e não por imposição de preconceitos hauridos em fontes informacionais desligadas do contexto da vida. A trama é conduzida com a sutileza que sagacidade e sensibilidade propiciam, mediante o encadeamento dos fatos e acontecimentos, que expõem comportamentos e atitudes. Sob a aparência da simplicidade flui o significado da ação revelando o perfil de cada personagem. Se resta incompreensível e mesmo extravagante, num entrecho circunscrito a atividades de caráter doméstico e cotidiano, a figura do revolucionário surdo-mudo-cego, além de permitir a eclosão de sentimentos puros e impuros, é simbólica do estado (e da situação) das esquerdas latino-americanas à época. A cena final é o colapso e o clímax patético e doloroso das duas coordenadas momentaneamente juntadas pelo cineasta, a revolucionária e a doméstica, neste caso representada pela personagem de boa índole e retos propósitos. A reação hilariante dos demais, inclusive do tipo frívolo e de suas companheiras anódinas, que saúdam o desarvoramento do novo casal, refletem a insensibilidade e o desprezo que a maioria vota a
  • 54. 54 ideais e princípios, que muitas e frequentes vezes desarticulam-se e desorientam-se face à ocorrência do egoísmo e da maldade humana. A linguagem cinematográfica, os cortes, as angulações e a montagem obedecem à execução elaborada e não poucas vezes requintada, correlacionada às situações ficcionais, demonstrando, não a influência da corrente intimista que, então e desde longe, digladiava, no cinema brasileiro, com a tendência realista, mas, atilada concepção pessoal. O cineasta, em síntese complexa, une essas coordenadas, nelas mesclando elementos de ambas com consciente segurança do fazer cinematográfico, resultando filme singular dentro de sua já considerável filmografia, de fatura sofisticada, insuscetível, portanto, de abordagem ligeira e de juízos peremptórios daqueles que encaram a problemática existencial de modo seletivo e excludente, simplificando-a pela unilateralidade de sua visão, interesse e (in)compreensão.
  • 55. 55 MACUNAÍMA Padecimento Existencial O filme Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade (Rio de Janeiro/RJ, 1932-1988), não tem para o cinema nacional a mesma significação que possui para a literatura brasileira o romance homônimo de Mário de Andrade, de 1928, no qual se baseia. Não tem, porque o romance representou inovação verbal, ficcional e de percepção da realidade do país. Elaborado nos quadros do movimento modernista, de imediato colocou a ficção latino- americana na ponta da vanguarda universal de renovação, experimentação e ousadia, tendo, porém e também, esgotado as possibilidades criativas do autor, a ponto de Mário não mais reproduzir tal procedimento nas demais obras, tanto de romance, contos (mesmo tendo alguns excelentes e entre os melhores de nossa literatura) e na poesia (onde se restringiu em seguir processo vindicado pelo modernismo de total liberdade formuladora, mas, nessa faina, fazendo prosa ao invés de poesia, para a qual não tinha aptidão). O preciosismo parnasiano não justifica a prosificação (e, em muitos casos, banalização) da poesia procedida pelos modernistas. Se o filme não tem, para o cinema, o mesmo significado que o romance para a literatura, visto destituído de pretensão e sentido inovador da linguagem, como realização em si, contudo, é importante, principalmente porque capta, constrói e veicula cinematograficamente o esbanjamento lúdico-carnavalesco e tropicalista da civilização
  • 56. 56 brasileira, um dos mosaicos formadores do amplo painel que a compõe. Nesse sentido, o filme é, do começo ao fim, da primeira (notável e inolvidável) cena do parto do protagonista até sua consumição pela iara, obra-prima cinematográfica, que não perde tom e ritmo nem quando Macunaíma e seus irmãos vão para a cidade, envolvendo-se em aventura rocambolesca despropositada. Mas, é no seu início, na mata, que o filme atinge os melhores momentos, geralmente ocorridos ao redor da mãe de Macunaíma, verdadeira representante da natureza brasileira, resistente, tenaz, mas nada feliz com seus filhos e com a vida que leva. Poderia (e poderá) mesmo o Brasil estar contente com seus habitantes? Refletindo a geral irresponsabilidade civilizatória brasileira, limitam-se tais filhos a viver com o que podem dela obter, o que, dada sua (deles) anomia e carência de iniciativa, técnica e disposição, é muito pouco. Esse viver vegetativo e extrativo, como o dos índios, configura uma das peculiaridades permanentes do país. Joaquim Pedro o constrói filmicamente com habilidade e percepção de seu sentido profundo e, de modo tão pertinente, que o torna insuscetível de alteração. A partir de sua elaboração passou a existir como se sempre tivesse existido nem sendo possível que assim não fosse. Todavia, por mais força tenha a estática e o imobilismo, eles não constituem impedimento para a urbanização desordenada do país. Na trajetória da ligação entre essas fases procede-se a transformação do
  • 57. 57 protagonista, propiciatória de maior facilidade de sua inserção e ação na nova realidade. Se aí a trama perde muito de graça e naturalidade, como ocorreu no processo de urbanização, não deixa o filme de conter e manter as particularidades mais vivas da existência anterior, mesmo porque persiste nos mesmos lineamentos do realismo mágico que o caracteriza. Se há diluição desses atributos nesses novos espaço e tempo, ainda se mantém intato seu sistema nervoso central, recuperado, posteriormente, com a volta do herói à paisagem primitiva. Paira sobre o filme inteligência investigadora e atenta, servida por forte dose de sensibilidade e fundamentada num conhecimento dialético e atualizado da realidade brasileira, permitindo a construção e interpretação cinematográfica do sentido que alicerça a obra literária original. O que mais o singulariza é a tessitura relacional entre os protagonistas, firmada na índole e na postura de cada um e sua decorrente atitude diante dos fatos e da vida. É algo tão concreto quanto o solo em que pisam e se movimentam. Se este é permanente e eles transitórios, no momento fílmico, dada sua conformação integrativa, ambos os contextos vinculam-se, a natureza sendo habitada e as personagens submetendo o exercício de viver ao estritamente necessário. Esse convívio, porém, visto seu caráter peculiar, é extravagante, permitindo que cada ato das personagens e a correspondente cena fílmica constituam surpresa comportamental.
  • 58. 58 O livro (como o filme) reparte-se entre o rural e o urbano. Naquele, o habitante branco restrito a um viver vegetativo e meramente extrativo. Neste, o salto temporal entre o primitivismo existencial e a precariedade extrativista para a metrópole moderna, complexa e ao mesmo tempo caótica, composta por comportamentos tão desarvorados que nada ficam a dever, em extravagância, à encarnação física das crendices populares rurais do monstro cabeludo e da iara, ambos antropófagos. Sob essas capas díspares, viceja subjacente o caráter do povo e da civilização que plasma e sob a qual mais padece do que vive.
  • 60. 60 Deus e Diabo na Terra do Sol Macunaíma
  • 61. 61 A CASA ASSASSINADA A Ação Reflexa Não é fácil ao cineasta realizar filme intimista, como muitos romancistas preferiram fazer na literatura. A imagem cinematográfica exige, por princípio, o movimento. Não quer isso dizer, no entanto – sem configurar contradição, ao contrário – que só é cinema ou bom cinema os filmes de muita ação e agitação. Não é porque a imagem incessantemente se move que pessoas e coisas filmadas devem acompanhá-la. O que se sucede ininterruptamente é a imagem, vindo uma após outra. O objeto filmado, matéria da imagem, forma outra realidade, conquanto a componha. Todavia, tanto um quanto outra perfazem corpos distintos, independentes. Se não existe imagem, fotográfica ou cinematográfica, sem conteúdo, este prescinde daquela, tendo existência autônoma. No entanto, a imagem, mesmo sempre se vinculando ao que contém, não lhe está jungida, podendo desvencilhar-se e passar a focalizar outro ou outros objetos, aleatória ou intencionalmente. Em consequência, não importa à imagem cinematográfica, para se constituir, que seu conteúdo seja estático ou não, desde que ela não o seja. Assim, pode-se perfeitamente realizar filme intimista, carregado de subjetividade, sem prejuízo da ininterrupta sucessividade imagética cinematográfica. Contudo, dada sua natural dificuldade, poucos são os cineastas que se aventuram a esse cometimento.
  • 62. 62 Ao filmar o tema do romance Crônica da Casa Assassinada (1959), de Lúcio Cardoso, o cineasta Paulo César Saraceni (Rio de Janeiro/RJ, 1933-2012) poderia optar por dirigir obra intimista ou de ação. No filme daí resultante, A Casa Assassinada (1970), elege a segunda via, procurando conciliar, em grande tour-de-force, as angústias pessoais e os conflitos interpessoais de suas sofridas e amargas personagens. Se aquelas as convulsionam intimamente, sua materialização fílmica só se dá quando as opõem entre si, exteriorizadas em ação nem que seja, como no caso, dialógica. Ao contrário do que se supõe, a ação fílmica não se concretiza apenas em movimentação física das personagens, mas, principalmente, no seu relacionamento interpessoal mediante gestos, olhares, expressões faciais e oralização de seus interesses, propósitos, temores e toda a gama de emoções características do ser humano. No caso, a movimentação corporal ocorrente mais não faz e mais não significa do que a procura do outro ou o encontro com o outro para, por meio da palavra, expor desavenças, amores ou contrariedades. Em decorrência disso, ao decidir-se o cineasta pela verbalização da subjetividade individual e pela exterioridade conflitual, envereda pela ação. Porém, não a ação em si ou por si mesma, mas, como reflexo da intimidade do indivíduo posta frente ao mundo, à realidade concreta que o circunda. Se se substitui a personagem pensando consigo mesma pela personagem dialogando com outrem, não se perde de todo, contudo, o
  • 63. 63 cerne substancial de sua subjetividade e tortura íntima, que se manifesta também na face, na postura e nas atitudes. Os dramas individuais entrelaçam-se numa rede contristadora apenas rompida pelos contatos amorosos, que mais a complicam e enredam em dramas carregados de intrínseca tragicidade num filme belo na soturnidade de suas vivências, décors e exuberante paisagem rural, todas marcadas pela decadência e estagnação econômico-social familiar, que moldam os caracteres, acentuam e agravam as pendências quando não as originam e deflagram. A segurança diretiva do cineasta e sua consciência do fazer fílmico conferem iguais atributos às interpretações, onde se salienta a notável performance de Norma Benguel, que domina as cenas em que aparece numa das melhores interpretações do cinema pela alta carga de consistência que imprime à personagem. Se no filme a ação é exposta pela dialogação, que assume, pois, importância capital, a precariedade da gravação e/ou da transmissão do som prejudica sua plena inteligibilidade e, por extensão, o próprio filme, que exige, para sua fruição, sejam compreendidas as agruras, paixões e conflitos em jogo. Destaca-se, ainda, no filme a preocupação direcional pelos enquadramentos das personagens nos décors e nas locações externas, em mútua e constante interação e valorização, como se as pessoas não pudessem existir e movimentar-se fora da paisagem e como se esta não tivesse importância sem a presença humana.
  • 64. 64 SÃO BERNARDO, O FILME Verbo e Imagem De todos os filmes de ficção de Leon Hirszman (Rio de janeiro/RJ, 1937-1987), abrangendo A Falecida (1965), Garota de Ipanema (1967), São Bernardo (1971) e Eles Não Usam Black-Tie (1981), o mais consistente e melhor realizado é, sem dúvida, São Bernardo, baseado no romance homônimo, de 1934, de Graciliano Ramos. Não em razão da força da obra literária, um dos melhores romances brasileiros, que bom filme não depende de bom texto. Ao contrário, é comum no cinema grandes filmes extraídos de livros fracos e vice-versa. O filme, como toda obra de qualquer arte, configura-se a partir de elementos específicos e próprios. É bem verdade que um texto forte – como é o romance de Graciliano – pode ocasionar, em mãos inábeis, apenas mera ilustração movimentada da estória literária. Se Hirszhman transporta para a tela a trama romanesca, como qualquer diretor faz com o argumento roteirizado em que se baseia, recria, no entanto, em termos cinemáticos, o tema original e não apenas o reconstitui filmicamente. Procedendo cinematograficamente, cria, mercê do poder da fotografia, dos recursos de mobilidade e movimentação da câmera e das possibilidades da montagem, outra arte. Ou seja, aquela a que se propôs: cinema. O resultado é, também, como o romance o é literariamente, filme forte, denso, ágil e interessante, no qual as qualidades
  • 65. 65 romanescas, conquanto destituídas do encanto do texto bem formulado (específico literário), são resguardadas e acrescidas da magia, fascínio e eficácia da imagem em movimento (propriedade cinemática). Preservando o mesmo recurso do romance, de narrativa de sua vida pelo próprio protagonista, Hirszhman, que corria o risco de literatizar ou literaturar o filme pelo privilegiamento da palavra, subordina, no entanto, esse exercício verbal ao contexto fílmico, de modo a funcionar, tal qual no romance, como elemento auxiliar do desenvolvimento da ação, já que esse recurso não é particular da literatura nem do cinema, mas, da ficção. Tem-se, então, fluindo – paralela, equilibrada e simultaneamente – imagem, verbo e ação. Se a imagem é indispensável no caso, já que sem ela não há filme, quando o verbo prevalece e assume seu lugar, praticamente se congela, expectante, enquanto prossegue o dilaceramento moral e emocional do protagonista. Mas, não só quando Paulo Honório, a personagem em questão, posta-se estática a verbalizar seu mundo pregresso, ocorre sincronia. Ela acontece sempre, mesmo e até principalmente quando pensa (e ouvimos seus pensamentos) e simultaneamente caminha (e observamos seus passos), como na cena transcorrida no pasto, em que cogita e perambula no meio do gado. Se o som transmite o pensamento, a imagem capta os movimentos do corpo e apreende a expressão do rosto que traduz as nuanças do intelecto e o íntimo das emoções. É por isso – e outras possibilidades – que o cinema é considerado a arte síntese. Manejado com inteligência e sensibilidade
  • 66. 66 congrega e resume as demais artes, sem prejuízo, porém, de suas especificidades e virtualidades. Além das qualidades apontadas, São Bernardo, o filme, completa-se com a utilização adequada dos demais elementos cinematográficos. O décor dos interiores é despido de ornamentos, mesmo quando a opulência material é alcançada, como exigem, tanto as circunstâncias de tempo e lugar quanto o caráter e o modo de ser das personagens. A paisagem exposta nas cenas exteriores não excede o estritamente necessário ao enquadramento das pessoas e às exigências da ação. Excelentes, tanto por seus efeitos visuais quanto dramáticos, são as cenas em que Paulo Honório aproxima-se, a cavalo e sob forte chuva, da residência de seu devedor e, já no interior da casa, nua de atavios, trava com ele forte diálogo, em que se contrastam seu vigor e energia com a tibieza do interlocutor. Aliás, a direção e interpretação de Oton Bastos e de Isabel Ribeiro, no papel de sua esposa intelectual e sensível, constituem, também, pontos altos desse filme crispante e homogêneo.
  • 67. 67 ALELUIA GRETCHEN Relacionamento Complexo Apesar de todas as dificuldades, entre as quais sobrelevam a concorrência predatória do cinema estadunidense, o condicionamento do público pelo mau-gosto e a geral ojeriza do brasileiro de se ver retratado com seriedade na tela, que se confunde e também abrange a cíclica e recidiva baixa autoestima nacional, o cinema brasileiro, malgrado isso e muito mais, tem apresentado linha média evolutiva acentuada. Muitas, e não só algumas, de suas produções ombreiam-se - sem favor ou ufanismo inconsequente e tão deletério como seu oposto, no eterno pêndulo em que os extremos se confundem - com os melhores espécimes cinematográficos universais. Nem é necessário recordar o melhor Humberto Mauro e nem as obras-primas do cinema novo. Nessas últimas décadas, mesmo quando a produção aparentemente esteve em descenso, vários foram os exemplos de grandes filmes nacionais. Um deles, dos mais notáveis, é Aleluia Gretchen (1976), de Sílvio Back (Blumenau/SC, 1937-). Só cinema desenvolvido de país com algum domínio de suas possibilidades culturais consegue alcançar o nível de seriedade e adequação obtido nesse filme. Analisado tanto nos lineamentos gerais, como nos pormenores, que vão desde a personalidade e atuação das personagens principais até as minúcias e enquadramentos do décor, ressaltam-se as qualidades apontadas.
  • 68. 68 O filme não se limita, como a maioria de seus congêneres, daqui e de alhures, principalmente destes, a contar a estória. Se há trama (e há), o que interessa ao cineasta é plasmar e revelar o mundo mental e comportamental dos membros da família alemã focalizada e dos três brasileiros que mais de perto com ela convivem. Assim, têm-se individualidades complexas como a da protagonista, esfíngica e dominadora. O alheamento de seu marido, as sutis diferenças entre o caráter das duas irmãs. As distintas esferas mentais dos brasileiros, o integralista agressivo e violento (pelo menos em seus arroubos retóricos), o criado, que, como a maioria de seus semelhantes, gira em torno de universo de vivências e pretensões limitadíssimas e, finalmente, o vendedor viajante com fumaças de negociante e que, mesmo casado com uma das filhas do casal alemão, não consegue se integrar na família e, muito menos, entendê-la, tal a disparidade entre as preocupações e percepção do mundo de um e de outra. Onipresente, permeando tudo, da compreensão da vida e das coisas às relações no âmbito familiar e, notadamente, com o mundo exterior, encontra-se a ideologia nazista, incorporada como elemento congenial do povo alemão, como característica particular e especial, que não é, mas, que nele encontra caldo de cultura e caráter nacional altamente apropriado a seu desenvolvimento, inclusive, e isso tem de ser reconhecido, também por força de suas especificidades, bem como da civilização que sedimentou. O filme como aliás devem ser (e normalmente são as obras verdadeiramente artísticas) não julga. Mas, pelas já assinaladas seriedade, responsabilidade e propósitos do diretor, constrói e não
  • 69. 69 simplesmente reconstitui, num painel restrito em abrangência (apenas sobre uma família) e amplo em profundidade, a estrutura do grupo enfocado. Ao ultrapassar os limites da narrativa de fatos e acontecimentos para adentrar o mundo do relacionamento interpessoal no que tem de sutilezas, dubiedades, motivações e condicionantes de vária ordem e espécie, Aleluia Gretchen insere-se na melhor tradição artística brasileira, que vem de Machado de Assis e passa por Lima Barreto, Graciliano Ramos e Cornélio Pena, o que constitui, no caso e em todos os casos, a melhor companhia possível.
  • 70. 70 CABARÉ MINEIRO Circunstâncias e Procedimentos No cinema, pertence à família dos inovadores criativos o filme Cabaré Mineiro (1979), de Carlos Alberto Prates Correia (Montes Claros/MG, 1941-), realizado, como todos os demais, em Montes Claros/Minas Gerais (Crioulo Doido, 1971; Perdida, 1975; Noites do Sertão, 1984; Minas-Texas, 1989). Embebido no topos e no tom locais até a medula e erigindo como seu enfoque o modus regional, o cineasta constrói, a partir de perspectiva universal e universalizante, como seu predecessor Guimarães Rosa, de Grande Sertão: Veredas (1956) e Corpo de Baile (1956), um apenas espacialmente circunscrito microscomo. Não é à toa que se inspira no conto “Soroco, Sua Mãe e Sua Filha”, de Rosa. O filme, sem deixar um momento sequer de ser o que é, ou seja, enfoque vivenciado localmente, emerge de seu contexto, generalizando o particular e particularizando o geral, num amálgama onde a vivência regional fortemente estratificada e o caráter do ser humano são projetados no tempo futuro, após captados em sua essência mais profunda por meio de um fazer artístico competente e sensível. Não há, aqui, a narrativa ou relato de uma estória, mas, muito mais, a apreensão de circunstâncias e procedimentos que, nos limites de seu levantamento, captam e externam o caráter, os elementos, as constâncias, os modos e fazeres de vivenciamento particular e simultaneamente universal.
  • 71. 71 Trama, ação, enredo e intriga não são primordiais, constituindo comumente entraves à visão crítica do íntimo do ser humano exposta cruamente em gestos, expressões, olhares e modos vários, já que a ação humana restringe-se, nesse filme, em ser, estar e se relacionar. A estrutura fílmica, as imagens e a linguagem cinematográfica constituem o que de mais avançado existe em cinema e reporta-se às experiências e fazeres de seus mais inventivos e inquietos realizadores, confluindo, nele, sintetizados, principalmente, Bergmann, Fellini e Gláuber. Para muitos pode passar despercebida, mas, é patente. Não no sentido de repetição ou mesmo influência, mas, de absorção criadora aliada à capacidade inventiva. Como Festa (1989), de Ugo Giorgetti, outra obra maior do cinema, remete a Esperando Godot, a peça de Samuel Becket, Cabaré Mineiro encontra-se com as grandezas citadas nas encruzilhadas artísticas do mundo com idêntica força criadora, senão com igual excelência. Sua consistência origina-se da confluência dessas forças com a vontade e a consciência do fazer. Em qualquer país e época é muito. No Brasil de hoje constitui relevante façanha. Aliás, em que época a sociedade brasileira ofereceu boas e melhores condições à criação artística, ao experimento, descoberta e desenvolvimento científico e tudo o mais?
  • 73. 73 PIXOTE, A LEI DO MAIS FRACO Desassombro e Contundência Os filmes podem ser divididos, basicamente, em duas espécies: ficção e documentário. O que não é uma é outra. Naquela, imagina-se o tema, tece-se a intriga, arquiteta-se o entrecho. Enfim, procura-se contar uma estória, conquanto essa não seja sua finalidade, nem primeira nem mais importante. Nesta, a documental, ao contrário, focaliza-se uma realidade tal como se apresenta, sem aduzir-lhe qualquer dose de imaginação. Em linhas gerais, em teoria, uma classe excluiria a outra. Na prática, contudo, não é bem assim. Ocorrem, e são mais frequentes do que se pensa, os exemplos que configuram terceira categoria: a ficção documental. Nesse caso, a água mistura-se ao óleo, porque embora totalmente diversos os dois primeiros grupos, consegue-se uni-los de tal modo, que da simbiose resulta outro produto, um tertius genus perfeitamente válido, autônomo e caracterizado, com pressupostos específicos. É que sobre dado contexto constrói-se trama, na qual a liberdade imaginativa cede espaço à realidade concreta, conformando-se o enredo a seus limites. Mas, não só isso. Se só fosse isso, não passaria de reportagem ou mero noticiário. Enfoca-se a realidade tal qual é, mediada por visão crítica e criativa, que a mostra destituída de enfeites e deturpações. Sem receio de enfrentá-la, se áspera e inóspita. Sem o estômago fraco das
  • 74. 74 consciências que, sob o pretexto da falsa beleza da ostentação e do brilho fácil, escondem-se atrás dos biombos de condicionantes mentais conservadoras e excludentes. Ficção-documentário com todas as qualidades dessa síntese entre o real e o ficcional, é o vigoroso Pixote, A Lei do Mais Fraco (1980), de Hector Babenco (Buenos Aires/Argentina, 1946-2016). É tão poderosa essa união entre os dois gêneros nesse filme, que deles o cineasta só extrai virtualidades. Nos ambientes sórdidos dos internamentos governamentais de jovens delinquentes e da vida marginalizada de quem não teve lar nem a mínima oportunidade, move-se grupo de jovens, que, nascidos excluídos das benesses da civilização, continuam delas não só afastados, como perseguidos pela prática de atos antissociais, realizados muitas vezes para sua sobrevivência mais elementar. O filme não julga nem exagera. Também não esconde nem enfeita. Não é o Nélson Rodrigues de "A Vida Como Ela É", na qual se secciona do todo parte específica e sobre ela desdobra-se colcha de retalhos de desvios e sordidez. Que também existem e ocorrem, como se sabe, mas, não são o mais importante e muito menos o único móvel da existência. Ao contrário disso, Babenco é servido por visão realista, mas, totalizadora da vida, que não elege (nem exclui) aspectos e fatos, porém, atinge a essência. Além disso, que é a base sobre a qual solidifica sua obra, o cineasta utiliza, com propriedade, as possibilidades da linguagem
  • 75. 75 cinematográfica, conduzindo adequadamente a narrativa e a amostragem social. O filme é impactante pelo desassombro e pela contundência. Murro em ponta de faca é, talvez, um dos atos mais dolorosos que se pode efetuar. Contudo, é o que Babenco faz. É o que mostra. Por isso, o que faz e mostra não é agradável. Pelo contrário. Todavia, quer se queira quer não, é essa a conjuntura. Só os responsáveis por ela e a classe média escapista não a querem ver. Não a repelem e nem pretendem modificá-la. Rejeitam, apenas, sua visão, lembrança e presença. Esse avestruzismo, todavia, não a elimina. Pior, esse quadro cada vez mais se avoluma e incomoda. E quase ninguém se abalança a estudá-lo, perquirindo as causas, propondo providências e, principalmente, implementando-as. Nem muito menos o filme aventura-se a pesquisar sua causalidade e sugerir soluções, já que não é essa a finalidade da arte. Outros são os fóruns próprios (e urgentes). O que Hector Babenco faz é compreendê-la e retratá-la. Mais não se precisa, no caso. Nem se pode exigir. Num filme em que nada é idealizado e alcandorado, além de todas as qualidades apontadas, sobrelevam, ainda, como, aliás, nem poderia deixar de ser, isenção e consciência da realidade. A direção e interpretação dos atores, o décor, os cortes e os enquadramentos concorrem para a homogeneidade do filme, que não representa apenas uma evolução na cinematografia brasileira, mas, constitui novo patamar de amadurecimento e conscientização. Para se aquilatar isso, para se avaliar não só sua grandeza, mas, também, seu significado dentro de nosso contexto cinematográfico, é suficiente