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Bilharinho, Guido
B492c O Cinema de Bergman e Fellini /Guido Bilharinho. -- 2.
ed. -- Uberaba, Brasil: Revista Dimensão Edições, 2018.
209 p. : il. -- (Ensaios de Crítica Cinematográfica).
1. Cinema-História. 2. Bergman, Ingmar, 1918-2007. 3.
Fellini, Federico, 1920-1993. I. Título. II. Série.
CDD 791.4309
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA POR:
Sônia Maria Resende Paolinelli - Bibliotecária CRB-6/1191
Organização e
Planejamento Gráfico
Guido Bilharinho
(guidobilharinho@yahoo.com.br)
Capa
Cena de A Fonte da Donzela, de Bergman
Edição
Revista Dimensão Edições
Caixa Postal 140
38001-970 − Uberaba/Brasil
Direito Autoral
Escritório de Direitos Autorais
Protocolo nº 0021/2018
Editoração Gráfica
Gabriela Resende Freire
4
SUMÁRIO
Nota Preliminar
O Cinema de Bergman e Fellini.................................................14
CRÍTICA
INGMAR BERGMAN
Anos 40
Crise – O Próprio e o Impróprio................................................18
Chove Em Nosso Amor – Garras à Mostra................................21
Um Barco Para a Índia – A Vida Concreta...............................23
Música na Noite – O Sofrimento e a Vida.................................26
Porto – Um Meio, Um Modo.....................................................29
Prisão – O Drama e Sua Condução...........................................32
Sede de Paixões – Os Dons da Vida...........................................34
Ilustrações..................................................................................37
Anos 50
Rumo à Felicidade – A Vida e Seu Transcurso.........................39
Juventude – A Revelação do Amor............................................41
Mônica e o Desejo – Percurso Amoroso....................................44
Quando as Mulheres Esperam – A Versão Feminina...............48
Noites de Circo – A Imposição da Realidade............................50
5
Uma Lição de Amor – Comédia Inteligente..............................53
Sonhos de Mulheres – Frustração e Desengano........................55
Ilustrações..................................................................................57
Sorrisos de Uma Noite de Amor – Sutileza e Perspicácia.........59
O Sétimo Selo – A Vida e a Morte..............................................63
Morangos Silvestres – Sonhos e Reminiscências.....................66
No Limiar da Vida – As Personagens e Sua Problemática.......69
O Rosto – A Realidade Desvendada...........................................72
A Fonte da Donzela – A Lancinante Beleza...............................75
Ilustrações..................................................................................77
Anos 60
O Olho do Diabo – Comédia Crítica..........................................79
Através de Um Espelho – Os Mundos Pessoais........................82
Luz de Inverno – Dúvida e Franqueza......................................86
O Silêncio – Fantasmas e Lembranças......................................89
Para Não Falar de Todas Essas Mulheres − Choro e Ranger dos
Dentes...................................................................................93
Persona – Quando Duas Mulheres Contendem........................94
A Hora do Lobo – O Sofrimento Estético..................................97
Vergonha – O Amor na Guerra...............................................100
A Paixão de Ana – Formas e Conteúdos.................................103
O Rito – A Precariedade da Espécie.........................................106
Ilustrações................................................................................110
Anos 70
A Hora do Amor – Um Bergman Menor..................................112
6
Gritos e Sussurros – Requinte e Poesia...................................115
Cenas de Um Casamento – Fatos e Evidências.......................118
A Flauta Mágica – Criatividade e Perícia................................121
Face a Face - A Fragilização Emocional..................................125
O Ovo da Serpente – Realidade e Angústia.............................128
Sonata de Outono – Acerto de Contas.....................................131
Anos 80
Da Vida das Marionetes – O Substrato Psicanalítico.............135
Fanny e Alexandre – Um Bergman Irreconhecível.................138
Depois do Ensaio – Racionalidade e Emoção..........................142
Anos 2000
Saraband - A Neutralidade da Técnica....................................145
Ilustrações................................................................................146
FEDERICO FELLINI
Anos 50
Os Boas Vidas – Espontaneidade e Autenticidade..................149
A Estrada da Vida – Foto-Radiografia da Realidade..............152
A Trapaça – O Significado da Ação.........................................155
As Noites de Cabíria – A Rejeição da Realidade.....................158
A Doce Vida – A Existência Amarga........................................161
Anos 60
Oito e Meio – Depois, o Dilúvio...............................................165
7
Julieta dos Espíritos – A Dimensão da Arte............................168
Satíricon – Beleza e Criatividade..............................................171
Ilustrações.................................................................................175
Anos 70
Roma – Circunstâncias e Ocorrências.....................................177
Amarcord – O Passado Inalterável.........................................180
Casanova – O Vazio Existencial..............................................183
Ensaio de Orquestra – Realidade e Parábola..........................186
Anos 80
A Cidade das Mulheres – As Situações Incontroláveis............191
E La Nave Va – Parábola e Realidade.....................................194
Ginger e Fred – Efeitos e Sintomas.........................................198
Entrevista – Testemunho e Paixão..........................................201
Anos 90
A Voz da Lua – Poesia e Fábula..............................................204
Ilustrações................................................................................207
8
NOTAS PRELIMINARES
9
UMA PROPOSTA DE CRÍTICA
CINEMATOGRÁFICA
O leitor e o espectador comumente consideram bons os
filmes e livros de ficção quando a estória, o enredo, agrada-
lhes. Esse o critério que os norteia. Na realidade, falta de.
Em si, a estória que se conta e os fatos, a ação e os acon-
tecimentos que a recheiam não têm a importância, nem ao
menos secundária, que se lhes atribuem. Normalmente, só
atrapalham. As peripécias das personagens e as voltas que a
estória dá apenas constituem elementos exteriores ao cerne
dramático. Este e o tratamento que lhe é conferido é que dife-
renciam a arte do mero divertissement, do best-seller comer-
coal digestivo, editorial ou cinematográfico.
Toda enxurrada de filmes que normalmente tem sucesso
de público e nos meios de comunicação (estes, por gênese, con-
dição, natureza e propósito, instrumentalizados pela indústria
de entretenimento), não passa de simples produção industrial,
sem nenhum valor artístico, cultural e humano.
A indústria e o comércio cinematográficos possuem es-
trutura que, apenas para simplesmente sobreviver, que é o mí-
nimo que lhes pode acontecer, necessitam de produção e co-
mercialização permanentes e em série, já que essa grande má-
quina, mesmo quando parada ou sub-utilizada, consome
enorme soma de recursos.
10
Daí a necessidade vital de fabricar e exibir filmes comer-
cializáveis, de amplo agrado e apelo popular, com o tríplice
objetivo de remuneração do capital investido, de sua própria
manutenção e de lucratividade, esta, aliás, a finalidade básica
e razão primeira de sua existência.
Há outra, porém. É que ao oferecer à sociedade tais
obras descartáveis, ainda a mantém ideologicamente confor-
mada e alienada, já que afastada do conhecimento e discussão
das questões e problemas realmente importantes.
Assim, agindo nas articulações desse círculo vicioso, o
sustenta, desenvolve e aprofunda, quando não o cria em seto-
res novos. Alimentando o gosto superficial e inconseqüente do
público e realimentando-se desse mesmo gosto, a avassalante
indústria de entretenimento aumenta cada vez mais sua in-
fluência, já que seus produtos passam a ser indispensáveis, en-
tre outros motivos, para preenchimento do tempo de lazer.
Para atendimento, pois, desses objetivos, tanto no setor
cinematográfico quanto no editorial, no musical, etc., impõe-se
a produção massiva de artefatos de entretenimento despidos
de criatividade, profundidade, complexidade e, principalmen-
te, de qualquer compromisso com os valores artísticos e cultu-
rais e com a verdade e realidade humanas.
Ao invés disso, o que se tem, como já dito, são meros pro-
dutos comerciais com ação, acontecimentos, violência e trama
urdidos e desenvolvidos sobre falsos problemas ou, quando
não e pior, sobre questões efetivas, porém, tratadas com a fal-
11
sidade, a superficialidade e a leviandade que os referidos obje-
tivos determinam.
Todavia, é necessário que se saiba e se proclame sempre
(responsabilidade fundamental dos professores de todos os
graus e em geral por eles não exercida em sua atividade de
correia de alimentação entre o conhecimento e a juventude),
que na arte ficcional (romances, contos, peças de teatro e fil-
mes), o que menos importa é a estória como sucessão de atos e
ocorrências ou como simples trama. Tais fatores, por sinal,
por si sós, não configuram arte. Apenas compõem o gênero fic-
cional, distinguindo-o, por exemplo, da poesia e do ensaio na
literatura e do documentário ou da reportagem no cinema.
O que é essencial é o que se faz disso e com isso. É o tra-
tamento artístico e a orientação, a profundidade e a amplitude
conteudística que se lhe imprimem.
*
A pretensão, pois, mais perseguida nos estudos e livros
que deverão compor a coleção Ensaios de Crítica Cinematográ-
fica, inaugurada com a presente obra, é, principalmente, ten-
tando desmistificar as imposturas da indústria de entreteni-
mento no cinema, fornecer elementos de entendimento, discus-
são, análise e julgamento dos filmes comentados, procurando
conscientizar ou, quando menos, chamar a atenção para reali-
zações, ideias e empreendimentos cinematográficos realmente
expressivos.
12
Representa mera gota d'água nos oceanos, simples grão
de areia nas praias e desertos do mundo, sabe-se, Mas, o que
tem isso? Aliás, é por isso mesmo que se faz indispensável. Se
assim não fosse, se todas ou pelo menos a maioria das pessoas
se preocupassem e se ocupassem com as realizações artísticas,
o debate cultural e questões correlatas, não haveria necessida-
de desse esforço, a não ser sob o aspecto de crítica cinemato-
gráfica, se é que realmente alcança esse desiderato, visto ater-
se mais à análise da configuração do conteúdo dramático e
suas implicações do que ao exame e avaliação do tratamento
estético-formal, mesmo porque, em questão de forma, a maio-
ria absoluta dos filmes é convencional.
No entanto, a abordagem de certos aspectos dos filmes
objetos dessas análises, cuja publicação não obedece à seqüên-
cia temporal de sua elaboração, mas, à ordem cronológica au-
toral, nacional ou de gêneros dos filmes - no caso, apenas os
que se pôde ver ou rever a partir de 1993 - não implica em que
somente tais aspectos são importantes ou dignos de menção.
Apenas significa que foram os que mais chamaram a atenção
ou preocuparam o Autor. Nada mais que isso.
Outros ângulos de exame e apreciação existem, já que a
obra de arte, por mais restrito e concentrado seu tema, é calei-
doscópica e multiforme, constituindo microcosmo que desafia
(e inúmeras vezes exige) múltipla e variada investigação.
No mais, essa série de ensaios não se prende nem se res-
tringe aos lançamentos mais recentes ou à atualidade das ten-
dências e enfoques, mas - sem prejuízo do eventual exame de
13
obras menores, menos relevantes ou até irrelevantes - vincula-
se a um corpus genérico, definitivo, permanente e abrangente
da arte cinematográfica, que, por sua importância, valor e
sentido, integra e forma o patrimônio artístico, intelectual e
cultural da humanidade e cujos espécimes, desde os inaugurais
aos mais recentes, estão, em sua grande maioria, ou não tar-
darão a estar, cômoda e permanentemente, à disposição dos
interessados em filmotecas públicas e particulares, em casas
produtoras ou locadoras de vídeo e, ainda, em canais comuns
ou especiais de televisão, à semelhança dos livros em bibliote-
cas e livrarias. Entramos numa nova era! Mais uma vez.
O Autor
*Nota preliminar da primeira edição.
14
O CINEMA DE BERGMAN E FELLINI
Esgotada a primeira edição de O Cinema de Bergman,
Fellini e Hitchcock e face a constantes pedidos, necessário se
tornava providenciar a segunda edição.
Acontece, porém, que no período medeado entre esta e a
primeira edição, foi lançada no país, pela Versátil, a obra
completa de Bergman.
Assim, de seus catorze filmes comentados na edição inau-
gural saltou-se, nesta, para quarenta e um, oportunizando-se,
em consequência, visão analítico-crítica de praticamente toda
sua extensa e qualificada filmografia.
Em vista disso, e para que a presente edição não fugisse
aos padrões da coleção, atingindo considerável número de pá-
ginas, optou-se dela excluir os comentários atinentes à obra de
Hitchcock, por sua vez aumentada de mais três filmes.
Todavia, deixando os dois grandes cineastas europeus
num só livro, programou-se juntar, em única obra, os artigos
referentes aos filmes de Hitchcock com os atinentes à filmogra-
fia de Woody Allen em O Cinema de Hitchcock e Woody Allen,
Uberaba, Revista Dimensão Edições, 2017.
Desse modo, permite-se aos interessados nas análises
procedidas nesses livros a oportunidade de acessar em blog a
primeira e obter a segunda em papel.
Não é outro, aliás, o propósito desta coleção, iniciada em
1999 e, dada a carência editorial brasileira no gênero, tornada
15
o maior senão o único empreendimento do país no setor, o que,
dada a modéstia editorial destes livros, inexistente distribuição
e total carência de receptividade pela mídia, representa ainda
muito pouco na área dos estudos cinematográficos no Brasil,
país em que as universidades e a mídia impressa, televisiva e
radiofônica limitam-se, quando raramente dedicam tempo e
espaço para as artes, às produções do eixo Rio-São Paulo, não
levando em consideração a já considerável e importante pro-
dução cultura brasileira manifestada em todos os quadrantes
do país.
O Autor
16
CRÍTICA
17
B E R G M A N
18
CRISE
O Próprio e o Impróprio
Ao contrário de alguns outros cineastas (Eisenstein, Orson
Welles e Gláuber Rocha, por exemplo), ou de romancistas como
Norman Mailer, autores que logo no primeiro ou segundo filme
ou romance já realizam obras-primas (O Encouraçado Po-
temkin, Cidadão Kane, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Os
Nus e os Mortos, respectivamente), Ingmar Bergman (Suécia,
1918-2007), estreia com obra comum, esquemática e simples,
aliás, de todos seus filmes, o mais simples, Crise (Kris, Suécia,
1945), conquanto não destituído de qualidades e até surpreen-
dente, num estreante, pela segurança da direção.
Se outros atributos o filme não tivesse, a seleção e direção
dos atores, por si, constitui qualidade que o recomenda, reve-
lando, desde então, as possibilidades de Bergman, embora nin-
guém pudesse antever (e prever) à época as culminâncias que
haveria de atingir e a irradiação universal que sua obra obteria.
O fato é que Crise, baseado em peça teatral sueca, não pas-
sa de melodrama que distribui as personagens segundo esque-
ma adredemente fixado, a mãe biológica (Jeni), que não pôde
criar a filha (Neli), a mãe de criação (Ingeborg), o desfrutável
amante daquela (Jacques) e o inquilino já maduro da casa (Ulf).
Todas estereótipos, usados e abusados em sem-número de
obras, principalmente em romances e dramas teatrais popula-
rescos.
19
À evidência, que num quadro desses, Jeni é rica e sustenta
amante jovem, enquanto Ingeborg é solteirona pobre, só e ape-
gada à Neli, Jacques é aproveitador e Ulf, o enamorado de Neli,
cheio de boas intenções e meio insonso. Ingredientes de melo-
drama, todos.
Se o receituário (a trama) e os ingredientes (as persona-
gens, seus biótipos e relacionamentos) jazem alheios e até in-
fensos e opostos aos requisitos mais comezinhos da arte e do fa-
zer artístico, sobra ao filme, como aventado, a segura e perti-
nente direção, que atinge o máximo na sequência em que Jeni,
chegada à cidadezinha para buscar a filha, recebe a surpresa da
vinda do amante. Sua atitude, expressões e contentamento são
demonstrados de maneira tão apropriada, espontânea e autênti-
ca, que essa sequência pode ser considerada uma das mais bri-
lhantes do cinema, principalmente porque vem logo após tenso
diálogo entre Jeni e Ingeborg, permitindo imediata comparação
entre a postura da personagem (e a interpretação da atriz) num
e noutro caso.
A performance diretiva de Bergman não se destaca apenas
na direção dos atores, mas, também na orientação geral impri-
mida aos movimentos da câmera e seus perfeitos enquadramen-
tos cenográficos.
Nesse sentido, as cenas do baile se destacam como grande
cinema, não só pela eficácia como também pela criatividade da
composição cênica e angulações camerísticas.
Se todo o filme é e está enquadrado no esquema melodra-
mático usual, a manifestação de Jacques na estação ferroviária
(outra brilhante sequência cinematográfica), no decorrer do diá-
20
logo que entretém com Ingeborg, revela o que a obra posterior
de Bergman iria confirmar: a manifestada complexidade da
condição humana quando provocada ou atingida por fator fun-
damental, no caso, o amor e o encontro da pureza, confrontando
condições díspares e provocando radical crise existencial.
O fato é que Jacques se transforma, como reconhece:
“Até eu conhecer sua garotinha [....] não sou mais alguém
sombrio numa vida sombria [....] Neli é, de certo modo, real
[....] Ela é tão real que eu me tornei ainda mais irreal e comecei
a me perguntar por que vivo minha vida de fantasma. Eu po-
deria tê-la como minha âncora na realidade para meu próprio
bem.”
Já o desate do filme é de todo impróprio porque próprio
dos melodramas, grande defeito do texto em que o filme se ba-
seia, que não enfrenta a resolução da problemática humana pos-
ta em questão, optando pela tangencial da fuga.
21
CHOVE EM NOSSO AMOR
Garras à Mostra
Já em seu segundo filme, Chove em Nosso Amor (Det
Regnar Paa Voar Kärlek, Suécia, 1946), Bergman mostra suas
garras de futuro grande cineasta.
O filme é convencional e totalmente subordinado à estória,
ou seja, sua finalidade é construí-la, organizá-la, expô-la e con-
duzi-la linearmente, com começo, meio e fim, contando, inclu-
sive, com narrador que até chega a interferir na trama.
Mas começo, meio e fim consistentes. Se a narrativa desli-
za cronologicamente desde o encontro casual dos protagonistas,
o entrecho estrutura-se a partir de três eixos, que não são os
principais porque são os únicos: a) o liame amoroso que une o
par e as dificuldades em que estão e que ainda vão enfrentar,
porém, desde então, em conjunto; b) a humanidade em seu en-
torno, maniqueisticamente distribuída entre bons e aproveita-
dores, conquanto não maus; c) o sistema estatal, burocrático,
frio, desumanizador.
Se é filme não só influenciado pelo neorrealismo, mas, ne-
orrealista ele próprio, é lustrado e iluminado por tênue pátina
romântica no que tange ao relacionamento dos protagonistas,
equilibrada, porém, pela autenticidade, adequando e submeten-
do as “agruras” e as “doçuras” do amor ao duplo crivo da emoci-
onalidade e da racionalidade, resultando poetizado e simultane-
amente prosaico.
22
Já os seres humanos que gravitam ao redor dos protago-
nistas apresentam-se tipologicamente variados, abarcando des-
de a bondade do jardineiro à irracibilidade da esposa, verdadei-
ra Xantipa, passando pela bondade da vizinha e a equivocada
colaboração dos dois amigos que circulam pelo lugarejo até
atingir a figura ladina e exploradora do burguês, que não perde
vaza, em todas as circunstâncias, de tirar proveito financeiro
das situações, não sem demonstrar também laivos de bondade,
conquanto oportunistas.
Diante da amostragem da burocracia sueca da época, não
se admira que a do Brasil seja também tão engessante e regres-
siva. Na Suécia, atualmente, deve ser pior do que o mostrado no
filme, porque a natureza do sistema estatal imposto pela classe
dominante é de cada vez mais submeter a sociedade a seu con-
trole, condicionamento e direcionamento.
No que se relaciona ao posicionamento do casal protago-
nista, a análise de toda sua luta sintetiza-se na frase chave do
advogado de defesa (pois até julgamento se tem), de que todo
“seu esforço é para se adequar à sociedade”, mesmo sendo ela o
que é.
Contudo, nesse itinerário sobram, de um lado, bondade e
compreensão que amparam, apóiam e impulsionam e, de outro,
egoísmo, incompreensão e mesmo maldade que agridem, difi-
cultam e procuram obstaculizar, às vezes conseguindo, o pro-
cesso vivencial do próximo.
23
UM BARCO PARA A ÍNDIA
A Vida Concreta
Tanto Um Barco Para a Índia (Skepp Till Indialand, Sué-
cia, 1947) como outros filmes de Ingmar Bergman do período
são influenciados pelo neorrealismo italiano.
Deliberada e conscientemente essa linhagem fílmica extrai
da concreticidade da vida a problemática existencial objeto de
sua preocupação.
O ser humano situado e condicionado pela materialidade
de seu espaço no mundo, base sobre a qual erige o drama de sua
porfia pela sobrevivência e os passes e impasses de seu relacio-
namento familiar e amoroso.
Nesse filme, como em Porto (Hammstad, Suécia, 1948),
por sinal ambos transcorridos em ambiente portuário e na
mesma faina, têm-se personagens limitadas e delimitadas por
suas condições de vida, em lares conturbados e, em consequên-
cia, de intrincados entrelaçamentos amorosos.
Em Um Barco Para a Índia, Alexander Blom, de persona-
lidade forte e dominadora, impõe seu modo de pensar e viver ao
microcosmo familiar, infelicitando-o. Com sua esposa, filho e a
namorada Sally (de ambos) compõe o grupo central de “perso-
nagens intensas e misteriosas” de que teria falado Bazin.
De fato, todas elas, nos parâmetros contingenciadores mas
impositivos de seus sexos, têm personalidades vigorosas (por is-
so, rigorosas), que marcam e demarcam seu espaço no contexto
em que vivem e agem.
24
Se as condições materiais de vida as conformam a restrito
círculo de ação e atuação, não as destinam nem confinam, po-
rém, à vegetatividade e nem afetam ou restringem sua percep-
ção das coisas e das relações humanas.
De todas elas, justamente Blom, o imperativo (ou impera-
dor), é a mais frágil emocionalmente, suprindo essa debilidade
congênita com imposição (e exibição) de força. As demais, ao
contrário, revelam-se amadurecidas e conscientes, constituindo
fortes criações ficcionais, conquanto ainda circunscritas às fon-
tes primárias (mas fundamentais) da existência.
A concepção e o modo de vida de Blom dramatizam o rela-
cionamento do núcleo familiar até à exacerbação.
Já Sally, no albor de seu relacionamento apaixonado com
Johannes, o filho do casal, antes que ele cumpra seu ideal e des-
tino de sair aos mares, do mesmo modo que a heroína de Porto,
demonstra seus receios, em diálogo carregado de premonição:
“— Vamos abraçar bem e nos sentir felizes e infelizes en-
quanto isso durar.
— Claro que irá durar (diz ele).
— Durará para você. Você está como deveria. Mas eu te-
mo o amanhã e todos os dias que virão. Sinto que não há nada
que dure. Nem a tristeza nem o amor. Nada que seja doloroso
ou belo. Não para mim.”
Depois de percorridos os mares, Johannes volta para bus-
cá-la. A encontra dilacerada emocionalmente. Com forte dom de
persuasão, numa das sequências mais densas e tensas do cine-
ma, conquanto explícita e direta, no molde neorrealista, procura
25
recuperá-la, infundindo-lhe confiança e o chamamento do futu-
ro, em diálogo crispado:
“— Sally, me ouça. Vimos o que aconteceu a meu pai. Isso
não pode acontecer a você. Precisa se libertar dessa prisão.
Não pode fechar a porta e ficar cada vez mais assustada. Pre-
cisa superar isso, mesmo que tudo pareça perdido.”
Nos cânones do neorrealismo, as personagens jovens, tan-
to nesse filme como em Porto e outros, procuram vencer as li-
mitações e condicionantes de suas origens e formação e se lan-
çam confiantes ao futuro.
Nesse mundo, formado de necessidades concretas, de luta
pela sobrevivência e de dificuldades de relacionamento, ainda
não se introduzira a angústia existencial, a incomunicabilidade,
a incompreensão do outro e a solidão.
Mas, não demorará muito para essa problemática crucial
ocupar a mente e a filmografia de Bergman.
26
MÚSICA NA NOITE
O Sofrimento e a Vida
Em 1945, estreando com Crise (Kris, Suécia), Ingmar
Bergman a partir daí e até 1963 realizou um filme por ano, em
certos anos até dois, numa produção não só metodicamente
executada quanto consistente e, em alguns casos, excepcional.
Em 1947, além do filme anteriormente comentado, de ta-
lho neorrealista, Um Barco Para a Índia, dirige Música na Noi-
te (Musik i Mörker, Suécia), que não se enquadra nos cânones
da referida tendência, consistindo num drama de coordenadas
gerais e universais.
Fundamentado em dois temas cruciais, a cegueira e o
amor, o filme pauta-se pela fixação da tragédia que se abate so-
bre Bengt, o protagonista, por sua penosa adaptação à nova
condição e pela emergência do amor.
Bergman desenvolve com segurança e pertinência esses fi-
os narrativos simultaneamente ocorrentes, porém não paralela e
independentemente, mas, em sua convergência e prossegui-
mento comum.
À paulatina conformação de Bengt, um pianista, adiciona-
se o tênue surgimento do amor entre ele e a jovem que efetua os
serviços domésticos na residência que habita.
Tanto uma quanto outra dessas situações são tratadas e
desenvolvidas pelo cineasta com extrema sensibilidade.
Poucos são os filmes em que esses temas atingem tão alta
desenvoltura e sutileza quanto em Música na Noite.
27
O sofrimento do protagonista, que em alguns momentos
chega às raias do desespero, é tão doloroso quanto sua irreme-
diabilidade. Nada há a fazer, aceite-se ou não a cegueira.
À impossibilidade de continuar, como antes, a ver as coi-
sas adicionam-se as dificuldades daí decorrentes do mergulho
total na escuridão. À contida, mas, impactante cena da desco-
berta pelo protagonista de sua nova condição, ainda no hospital,
quando, recobrando os sentidos, pede para que se abram as ja-
nelas, seguem-se situações confrangedoras, tornando-se a pior
delas a transcorrida na estação férrea, em que Bengt é ignorado
e deixado de lado, só e humilhado.
O diálogo que mantém com a personagem cega inconfor-
mada constitui súmula e radiografia de uma das maiores des-
graças físicas das inúmeras que costumam golpear o simultane-
amente perfeito e imperfeito, fantástico (que outro termo?) e
frágil arcabouço orgânico humano:
Diz a outra personagem:
“— É tão difícil acostumar com isso, não há diferença en-
tre o dia e a noite.”
Ao que pondera Bengt, prosseguindo-se o diálogo:
“— É difícil, mas você se acostuma.
— Você se acostuma? Acredita mesmo nisso?
— Não, acho que tem razão. Nunca se acostuma a isso.
— Só o pensamento que nunca a luz se fará (sic) nova-
mente.
— E nunca a escuridão.
— Nunca a escuridão, disse isso?
28
— Não. Luz e sombra, estas palavras não fazem mais sen-
tido.”
A tragédia é tanta que o protagonista, após levar soco de
rival, ao invés de se enraivecer e reagir, dirige-se-lhe com ale-
gria:
“— Obrigado. Essa foi a primeira vez que me tratam co-
mo uma pessoa normal.”
Toda a tragédia da cegueira está aí traduzida.
Já o surgimento e desenvolvimento do amor é banhado
também de sofrimento, mas, temperado, nimbado, de ternura e
poesia em tons e linhas tão tênues e etéreos, que a par desses
atributos e até mesmo por eles, resgatam o sentido da vida, im-
primindo-lhe razão para viver além das condicionantes sensori-
ais, instintivas e automáticas que caracterizam os seres vivos.
Música na Noite sintetiza, sensível, inteligente e poetica-
mente, o sofrimento e a vida, atenuado um pelo amor e pela
música que, por sua vez, sustém, dá sentido e impulsiona a ou-
tra, amalgamando arte e humanidade.
Por meio de linguagem e estruturação ficcional convencio-
nais, porém vigorosa uma e consistente outra, Bergman realiza
obra esteticamente elaborada e ficcionalmente densa, em que a
cegueira é tratada artística e autenticamente, ao contrário, por
exemplo, do que acontece com o mesmo assunto em Ensaio So-
bre a Cegueira (Brasil/ Canadá/ Japão, 2008), de Fernando
Meireles, onde o tema é espetacularizado.
29
PORTO
Um Meio, Um Modo
Em 1945 eclodia na Itália o neorrealismo no cinema com
Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta), de Roberto Rossel-
lini, seguido de outros filmes, seus e de diversos outros cineas-
tas do país.
Ingmar Bergman, que estreara nesse mesmo ano com Cri-
se (kris), não ficou infenso à influência dessa vigorosa e inova-
dora tendência.
Em Porto (Hamnstad, Suécia, 1948) também perfilha suas
coordenadas básicas juntamente com preocupações atinentes à
conduta humana.
Se elege como protagonistas um marinheiro e estivador e
uma filha de marinheiro, ambos da marinha mercante, centran-
do neles o fulcro do drama e em torno deles orbitando as demais
personagens, também elementos do povo, não deixa de mostrar
a baixeza e a sordidez de alguns de seus elementos, como nos
três operários que abordam acintosamente o casal na saída de
sessão de cinema.
Contudo, o mais importante do filme é a problemática pes-
soal da protagonista Berit e seu relacionamento com o mari-
nheiro Gösta.
Berit sintetiza o sofrimento curtido desde a mais tenra in-
fância num lar tumultuoso dominado por mãe despótica e in-
compreensiva, circunstância que marca e pauta sua vida e suas
reações. Seu relacionamento com Gösta sofre os efeitos negati-
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vos dessa criação e sofrida vivência, custando a atingir a poeti-
cidade que nimba e anima todo jovem par amoroso.
A realidade que o neorrealismo descobre, elege e revela
como tema ficcional impõe sua força, imprimindo ao filme a ve-
racidade dos fatos e a autenticidade da natureza humana sub-
metida às contingências de seu estar e agir no mundo.
Ainda não se molda, nos parâmetros dessa perspectiva, o
ser como ele é e como se relaciona consigo próprio. Mas, a seri-
edade e perspicácia dos cineastas dessa estirpe vislumbram e
bordejam, a partir dos fundamentos mais básicos da existência,
as grandes coordenadas do íntimo humano que serão trabalha-
das, posteriormente, em alguns filmes do próprio Bergman, de
Fellini, Visconti e Antonioni, principalmente.
Sem se conhecer, primeiro, o ser humano situacionado
não seria possível atingir o coração da matéria de que é feito.
Bergman, evidentemente, ainda não o atinge nesse filme,
mas seu casal de protagonistas, deixado algumas vezes com sua
insegurança, receios e problemática vivencial e relacional, de-
monstra a perplexidade do ser humano com seu ego fragilizado
pelas pressões e condicionamentos impostos pelo mundo for-
mado, mantido e animado pelos outros seres humanos, confor-
me responde Berit à indagação de Gösta:
“— Está feliz agora?
— Sim. Porém teria sido melhor se nunca tivéssemos nos
conhecido. Agora que conheço a felicidade apenas será pior
mais tarde.”
Em outra oportunidade, a uma sua afirmativa antepõe:
“— Eu tenho você.
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— Isso não é grande coisa para se ter.”
Se o filme centra-se e concentra-se em torno de Berit prin-
cipalmente, de Gösta e da convivência de ambos, amealha tam-
bém, neorrealisticamente, todos os aspectos e nuanças do con-
texto geoespacial onde vivem, de ambientes simples, de instala-
ções portuárias e seu entorno social de salões de bailes e cine-
mas de rua, não sem também, de maneira competente e atilada,
denunciar o ambiente contristador de reformatórios para moças
e a frieza profissional de seus dirigentes e coadjuvantes, que no
caso mais mal do que bem fazem à formação das adolescentes
advindas de lares desestruturados.
Porto é filme que mostra e demonstra, revela e ao mesmo
tempo desvela um meio, um modo e um mundo e, neles, o so-
frimento humano, neorrealística e bergmanianamente.
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PRISÃO
O Drama e Sua Condição
No mesmo ano em que realiza Sede de Paixões, um de seus
melhores filmes antes de 1952, Bergman dirige Prisão (Fängel-
se, Suécia, 1949), que nada fica a dever àquele. Ao contrário.
Sob o prisma da complexidade narrativa e do entrecruzamento
de relacionamentos pessoais lhe é superior. Na realidade, é o
filme mais complexo e criativo do cineasta nesses anos.
Prisão, que nada tem a ver com penitenciárias e, sim, com
as contingências, circunstâncias e limitações naturais do ser
humano no mundo, não se restringe a simplesmente narrar es-
tória compartimentada na qual as personagens desde o início já
se apresentam delineadas e encaixadas em seus devidos ou in-
devidos lugares.
A ambientação em estúdio cinematográfico revela desde
logo o descompasso entre o casal Tomás e Sofi e o interesse do
diretor/personagem por ela.
Se a proposta do antigo professor para roteiro de filme (de
que a terra é o inferno e o diabo reina nela) não é aceita, a de
Tomás, mais do que isso, imbrica o tema central do filme, con-
sistente no relacionamento de Birgitta e Peter. Ou seja, a suges-
tão de roteiro de filme de Tomás constitui a partir do momento
de sua efetivação o próprio filme.
O drama de Birgitta, ao assumir e centralizar a narrativa,
segue em crescente intensidade, colhendo nas malhas de seu
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desenvolvimento a Tomás, já rompido com Sofi, ao menos tem-
porariamente.
De plano ressaltam-se os perfeitos talhes caracterológicos
das personagens, desde a autenticidade e personalidade de Bir-
gitta ao disparatado modo de ser e agir de Peter, um falto de ca-
ráter, medíocre, pretensioso e impositivo. De igual modo, res-
salta-se a firmeza e seriedade de Sofi em contraposição à fraca
personalidade de Tomás.
Os dramas desses casais com suas interligações compõem
o cerne narrativo, que se desdobra com firmeza e coerência até o
desenlace, representativo de fuga à luta, já que a morte nunca é
e nem deve ser solução para problemas e impasses, mesmo que,
como no caso, a fragilização e aprisionamento do ser humano
em malhas relacionais e existenciais apresentem-se impositivos
e aplastantes.
Contudo, a seriedade do enfoque e do drama e sua condu-
ção antecipam e entremostram as potencialidades intelectuais e
artísticas de Bergman.
O drama humano da personagem situacionada e contin-
genciada, presa nas malhas em que se cinge e por elas é paulati-
namente envolvida e aprisionada, constitui o grande tema desse
e o será futuramente de alguns outros dos melhores filmes do
cineasta.
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SEDE DE PAIXÕES
Os Dons da Vida
Bergman não é daqueles que de início, como referido ante-
riormente, realizam obras primas, como Eisenstein, Mário Pei-
xoto, Orson Welles, Gláuber Rocha e Norman Mailer, por
exemplo.
Ao contrário disso, perlustra caminho de estudos, buscas,
observações e informações culturais e estéticas e concomitante
amadurecimento, a exemplo, entre tantos outros, de Machado
de Assis, Guimarães Rosa, Dostoievski e Fellini.
Sede de Paixões (Törst, Suécia, 1949) confirma a assertiva
e sendo seu sétimo longa-metragem, é um dos mais substancio-
sos deles e, pode-se dizer, sob o prisma da abordagem emocio-
nal feminina e, por extensão, do ser humano, o melhor dentre os
onze primeiros e antes do décimo segundo Mônica e o Desejo
(Sommarem Med Monika, Suécia, 1952). Mas, tanto ele quanto
este e qualquer um dos demais dessa fase ainda estão longe do
que de melhor Bergman realizaria.
Nele, como dificilmente em outro filme antes de 1950 de
qualquer realizador, estruturam-se perfis femininos variáveis
com profundidade analítica.
Cada uma de suas duas principais personagens femininas
(Rute e Viola) é complexa, problemática, angustiosa e angustia-
da.
Agredidas por acontecimentos traumáticos irrecuperáveis
(mortes e esterilidade), as tensões, impulsos e insatisfações daí
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derivados as afetam consideravelmente, transformando-as
permanentemente em seres insatisfeitos, tristes e intranquilos.
Viola, atingida pela morte do marido, lembrança a que se
prende, extrapola o desgosto que essa perda lhe causa (mais de
apego a algo concreto do que propriamente de sua falta, como
lhe lembra o médico que a assiste, que, aliás, necessita de
acompanhamento psicanalítico mais do que ela), para vagar em
contínuo desassossego e mesmo desequilíbrio.
Rute também sofre perda, a da criança que não pôde dar à
luz e se descobre estéril daí em diante, tanto que sua conduta e
modo de ser antes (no decorrer de seu relacionamento com Ra-
ul) e depois, já com o marido Bertil, são totalmente diversos,
enveredando por constante inquietação e externalização pala-
vrosa de sofrimento.
Contudo, não obstante tais ocorrências, o que Bergman
constrói e expõe é mais do que essas consequências. É um esta-
do ou condição insatisfatória, de inapetência para, vivendo, usu-
fruir os dons da vida.
Ambas, perderam a capacidade de, mesmo sofrendo, com-
partilhar intimamente momentos ou fases de sofrimento e satis-
fação, tristeza e alegria, revolta e serenidade, destempero e equi-
líbrio, em alternância que facultaria, extraídos dos pequenos e
dos grandes atos da existência, o proveito, a satisfação e a felici-
dade que proporcionam, entre eles, e dos maiores, o amor que,
por sinal, pode ser desastroso como demonstra o filme Infiel
(Trolósa, Suécia, 1999), dirigido por Liv Ullmann sob roteiro de
Bergman.
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Na realidade, são criaturas cujo eixo vivencial foi destruído
ou, quando menos, seriamente avariado, só lhes restando amar-
gura e desorientação.
Já Valborg, a dançarina de balé colega e amiga de Rute,
age conforme sua condição biológica impõe, sendo visível a sa-
tisfação que se lhe espelha na fisionomia quando se abrem pers-
pectivas de consumação de seus desejos ao se deparar com Viola
na rua e esta a convida para ir a seu apartamento, demonstran-
do também visível desgosto com a frustração do encontro alme-
jado, em decorrência da retirada abrupta da outra ao perceber
sua real intenção.
Sede de Paixões antecipa o Bergman das futuras grandes
(e grandiosas) obras. Nele já se encontram os substratos e a
substância humana que as caracterizam e as tornam monumen-
tos da criação artística.
Não se pode deixar passar sem referência a até certo ponto
espantosa e de toda maneira inusitada e até incompreensível,
para quem não atenta para a complexidade e variedade dos se-
res humanos e suas manifestações, reação de Bertil quando Ru-
te lhe diz, após ele lhe ter contado o sonho no qual a mata, que
ele, assim, seria livre e independente, ao que ele retruca:
“Livre e independente é pior do que esse inferno em que
vivemos.”
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Crise
Chove Em Nosso Amor
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Um Barco Para a Índia
Prisão
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RUMO À FELICIDADE
A Vida e Seu Transcurso
Em Rumo à Felicidade (Till Glädje, Suécia, 1950), Berg-
man trata exclusivamente, como faz frequentemente nessa fase,
do amor entre jovem casal. E o faz, como sempre, de maneira
consistente, para não dizer soberba, tal a acuidade com que arti-
cula e desenvolve o tema, a propriedade com que o conduz e a
autenticidade que lhe imprime.
Conquanto o gênero humano, por ser da mesma espécie,
possua elementos comuns de constituição, ação e reação, cada
um de seus componentes ama o outro de maneira especial.
Por sua vez, cada casal constrói entre si e para si mundo
próprio, que o isola dos demais, contendo características peculi-
ares de vivência e convivência.
Com a obra fílmica de Bergman não se passa de maneira
diferente. Cada um dos filmes dedicados à trajetória amorosa de
jovem par apresenta situações diversas, conformadas e confir-
madas por problemática igualmente singularizada.
Além disso, e mais relevante do que isso, que é particulari-
dade natural da espécie, Bergman infunde ao relacionamento de
suas personagens tal dose de essencialidade e humanidade, que
sua união ostenta, como nesse caso, extrema substanciosidade,
abrangendo os aspectos mais importantes da vida.
Em Rumo à Felicidade, por isso, mesclam-se, como na re-
alidade, momentos de poetização com tropeços, desacertos e
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amarguras que também geralmente incidem e empanam a feli-
cidade do casal.
Desentendimentos e incompreensões derivados de diversa
formação e conformação de personalidade e entendimento do
mundo e da vida costumam enxamear a existência em comum,
como ocorre também nesse filme.
Nele jaz implícita, explícita e exposta naturalmente a dife-
rença, em alguns ou muitos casos enorme, entre a dedicação
feminina ao lar, aos filhos e ao conjunto familiar e o comporta-
mento dispersivo e frequentemente alheado do homem, que ge-
ralmente não responde e nem corresponde aos requisitos e exi-
gências naturais e normais da convivência a dois e a responsabi-
lidade de gerar, criar e formar novos seres humanos, oriundos
de seu ser e do amor comum.
Nesse filme, mais do que em qualquer outro de Bergman,
dos que se conhecem, essa disparidade é bem coordenada e tra-
balhada e diretamente evidenciada, alternando-se momentos de
grande beleza poética com a ácida corrosão dos desacertos e
transviamentos, para culminar numa cena final que amalgama,
como poucas, realismo e emoção, demonstrando que a vida e
seu transcurso são superiores aos maiores transtornos e desas-
tres e que sua continuidade, conforme plasmada nos descen-
dentes, encerra esperança, mesmo que eivada, ou até por isso,
de recordações dolorosas.
41
JUVENTUDE
A Revelação do Amor
Um dos temas recorrentes da obra de Ingmar Bergman,
além da solidão e da incomunicabilidade humana, é o amor. Vá-
rios de seus filmes, desde os títulos que refletem, expõem ou
sintetizam seus temas, tratam específica e às vezes exclusiva-
mente da atração que une duas pessoas, a ponto de uma não
poder viver sem a outra.
O amor é sentimento fundamental na juventude, onde as-
sume importância capital e até supervalorização excessiva de-
corrente da própria natureza humana, que o não dispensa, sen-
do, pois, natural e impositiva sua ocorrência.
E tanto o é, que as pessoas nessa fase da vida, com possí-
veis exceções, sempre desenvolvem de maneira absoluta o sen-
timento amoroso em relação a outra de igual ou aproximada
faixa etária.
É o que ocorre com as personagens que Bergman cria e
trabalha no filme sugestivamente intitulado Juventude (Som-
marlek, Suécia, 1951).
A sutileza e propriedade com que trata o amor são nele
bastante acentuadas, tornando-o superior até mesmo a outros
que realizou posteriormente sobre o mesmo tema, não obstante
sua linearidade expositiva e convencionalismo de linguagem.
Do mesmo modo que a realidade e a natureza humana im-
põem o surgimento do amor entre dois jovens, Bergman, como
demiurgo, suscita esse sentimento em suas personagens, Maria
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e Henrique, nesse fazer engendrando também as próprias per-
sonagens, sua visão do mundo, seu feixe de emoções e reações,
infundindo-lhes densidade humana.
Faz isso com a maestria que torna indistinguível a ficção
da realidade. Como escreveu o poeta Arici Curvelo no poema
“Às Vezes”, referindo-se aos artistas em geral, que criam “outra
realidade que expande a realidade”.
O relacionamento amoroso entre os protagonistas desse
filme é tão consistente e apropriado, que a partir dele tem-se, no
mundo, mais um caso de amor tão real como os normalmente
ocorrentes.
E como em toda ligação amorosa, a de Bergman é cercada
de tons poéticos, alegrias e felicidade, que alteiam o par acima
da cotidianidade e das exigências práticas, insuflando-lhes nova
dimensão vivencial, algo novo, indefinível, que eleva os amoro-
sos a patamar superior de existência.
Juventude não é apenas filme sobre o amor. É mais. É
obra que revela o amor, mostrando o que ele é, como é e por que
é.
Por isso é poético, luminoso, belo, de alegria e satisfação
íntimas, imperecíveis no desfrute desse mútuo sentimento, que
não se limita a expor a eclosão e exteriorização do amor como
geralmente é habitual, mas, imprime na face das personagens a
repercussão de seu íntimo e as alterações e manifestações que as
assaltam.
Mas, também é filme que focaliza a quebra desse liame,
suas consequências e as marcas que deixa, inapagáveis.
43
A transição de uma a outra fase existencial e o corte axial
provocado na personagem, só a realidade produz igual ao drama
bergmaniano, que inverte os polos usais impondo que a realida-
de só será autêntica e terá sentido se imitar a arte, sua grande
arte.
Nesse e em todo sentido possível, é lapidar o diálogo man-
tido entre a protagonista e seu tio, quando ela expõe visceral e
entranhada revolta contra os acontecimentos. Diz o tio:
“Há apenas uma coisa a fazer, proteger-se, erguer mu-
ros. Proteger-se do toque do infortúnio.”
A vida prossegue, conquanto marcada por fenda emotiva
imperecível, recuperando a força da natureza humana e encer-
rando-se o filme com uma das cenas mais sutis e sintéticas da
arte ficcional, pela forma e sentido como se expressa.
Símbolo bergmaniano da juventude e do amor da juventu-
de, surge, no filme, os morangos silvestres, que iriam anos de-
pois intitular uma das maiores obras–primas da arte, o filme
desse título, do qual Juventude é fonte inspiradora, até mesmo
na belíssima focalização de aspectos da natureza. A tomada ini-
cial da paisagem já evoca fortemente Morangos Silvestres, con-
quanto ainda sem a sutileza e beleza de sua congênere no citado
filme.
44
MÔNICA E O DESEJO
Percurso Amoroso
A obra fílmica de Ingmar Bergman apresenta duas grandes
linhas temáticas.
Ambas importantes. Uma, que o notabiliza, nucleada na
condição humana em si, do ser no mundo. Outra, de sua situa-
ção, de seu modo de estar e agir. Isso, até onde essas coordena-
das apresentam características e conotações próprias ou, ao
menos, mais relevantemente distintas.
No primeiro caso, entre outros filmes, sobrelevam, Mo-
rangos Silvestres (Smultronstället, Suécia, 1957), O Silêncio
(Tystnaden, Suécia, 1963), A Hora do Lobo (Vargtimmen, Sué-
cia, 1968), Gritos e Sussurros (Viskningar Och Rop, Suécia,
1972). No segundo, seus filmes anteriores a 1956, entre eles
Mônica e o Desejo (Sommaren Med Monika, Suécia, 1952), e,
ainda, também entre outros, A Fonte da Donzela (Jungfrukäl-
lan, Suécia, 1960), Cenas de Um Casamento (Scener Ur Ett
Äktenskap, Suécia, 1973), O Ovo da Serpente (Das Schlangenei,
Alemanha/EE.UU., 1977), e Fanny e Alexandre (Fanny Och
Alexander, 1982).
Na primeira vertente, tem-se mergulho vertical na pro-
blemática existencial, com ênfase na incomunicabilidade e no
relacionamento interpessoal, incursionando o cineasta pelas
profundidades íntimas do ser, explorando os escaninhos da
mente, da racionalidade e das emoções.
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A segunda linhagem de filmes representa corte horizontal
na existência humana, considerando seu estar e agir no mundo.
Mônica e o Desejo, inserindo-se nessa última espécie, é,
pois, explícito, conquanto não seja simples. Nele, Bergman ex-
põe o problema do relacionamento amoroso entre dois jovens.
Sem, no entanto, restringir o foco de suas preocupações somen-
te a seu conteúdo. Faz isso excepcionalmente bem. Mas, não só
isso, vez que contextualiza o casal e o amor que os une, exibin-
do-os em todo o complexo de relações humanas: em casa, com
os pais; no trabalho, com os empregadores; na vida social, com
os circunstantes.
Contudo, não em simples reportação a esses ambientes, a
modo da visão jornalística da existência, sempre ligeira e super-
ficial. Mas, à maneira bergmaniana, de expor o ser humano so-
lidamente arraigado às suas inúmeras contingências limitado-
ras, geradoras de contradições e impasses quando conflitantes
realidade e pretensão.
Com economia de meios, o cineasta sintetiza em poucas
cenas a posição familiar e profissional de cada um dos protago-
nistas, desvendando, simultaneamente, tanto situados quanto
em ação, seu universo mental, condição intelectual e ideário
existencial. Um, responsável e apreensivo com os compromissos
assumidos. Outro, vinculado a seus desejos e preocupado ape-
nas com a maneira de satisfazê-los, estabelecendo-se, assim,
contradição de propósitos e atitudes.
Realista, o filme revela a vida como ela realmente é, não
seccionando ou privilegiando aspectos nem isolando situações
ou exagerando posicionamentos.
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Nos cânones, pois, do realismo, a abordagem explicita po-
sições, sentimentos, ideias e conflitos tais como ocorrem nor-
malmente no cotidiano, sem preocupação com as motivações ín-
timas dos atos das personagens, mas, com as causas objetivas de
sua condição social, formação pessoal e problemas advindos da
falta de recursos materiais. As condições e posturas das perso-
nagens explicam-se por si mesmas, simplesmente acontecendo.
O filme reflete influência do movimento neorrealista itali-
ano eclodido nos meados da década de quarenta e, então, no
auge de sua repercussão, embora já a caminho de esgotamento
na Itália no ano em que esse filme é realizado, circunstância
ainda não percebida à época.
Todavia, Mônica e o Desejo não se restringe a ser, apenas,
filme de talhe neorrealista ou realista. É mais do que isso. Con-
quanto manifesto e expresso na criação e amostragem de drama
humano e fortemente vinculado a circunstâncias materiais con-
cretas, vai mais além e também mais fundo ao expor, antes de
tudo, o conteúdo ou o cerne do liame íntimo, sentimental, que
une os protagonistas, embora longe ainda da complexidade al-
cançada em obras posteriores. Revela, porém, concomitante-
mente, contida e rigorosamente, além de conhecimento da con-
dição humana e sensível apreensão das sutilezas e meandros de
suas manifestações, o desfazimento desse vínculo e sua subja-
cente motivação deflagradora.
Têm-se, poeticamente, a gênese e o desenvolvimento do
amor, com sua alegria e satisfação. Acidamente, seu lento depe-
recimento.
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Tudo isso por meio de eficaz utilização dos recursos da
câmera, com belas imagens e exploração estética de ângulos e
perspectivas da paisagem natural e urbana, malgrado ligeira e
perceptível falha de direção e interpretação de um dos atores na
cena em que o protagonista luta, à beira-mar, com seu desafeto.
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QUANDO AS MULHERES ESPERAM
A Versão Feminina
A mulher — sua condição, posicionamento e reações — é o
tema central de Bergman na maioria de seus filmes.
Em Quando as Mulheres Esperam (Kvinnors Väntan,
Suécia, 1952), o título, o brasileiro pelo menos, salienta essa
preocupação, indicando-a como o assunto básico do filme.
Enquanto quatro mulheres aguardam em casa de veraneio
a chegada de seus maridos, narram umas para as outras episó-
dios das convivências com seus esposos, em que se entremos-
tram o estado das coisas e a natureza dos vínculos que as unem
a eles.
Uma delas, Annette, justamente a que deflagra o enredo,
revela, com absoluta sinceridade e cheia de amargura, a situa-
ção do casal: “O que nos tornamos? Um casal de fantoches chi-
neses corteses”.
Raquel, conquanto narre extensamente episódio de infide-
lidade conjugal e suas consequências, também enfoca o estado
atual de seu relacionamento.
As demais, Marta e Carin, limitam-se a lembrar, cada uma
um tanto longamente, situações que vivenciaram com seus ma-
ridos, não deixando esta, porém, de evocar sua realidade ma-
trimonial, incursionando a primeira, em sua rememoração, a
episódio ocorrido em horrorosa boate parisiense, como afirma,
ensejando a Bergman estigmatizar, de uma vez por todas, os es-
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petáculos que tais casas oferecem aos turistas ao salientar seu
aspecto grotesco e acentuada artificialidade.
No contexto da filmografia do cineasta sueco, esse e seus
demais filmes até então, não obstante sua categoria, não se
comparam com suas futuras obras primas.
Conquanto isso, e não poderia normalmente ser de outro
modo, nele e neles encontra-se e desenvolve-se o germe que irá
se corporificar nas citadas obras, demonstrando, acima de tudo,
o arcabouço mental e cultural do cineasta que, com o tempo,
ampliará e aprofundará sua concepção e visão do mundo aos
limites da máxima compreensão intelectual e da exímia elabo-
ração artística, compondo corpus criativo que, a exemplo de
Shakespeare, destacará para sempre sua época e a civilização de
seu país, permanecendo indefinidamente como testemunho de
fixação estética das mais sérias, argutas e profundas preocupa-
ções humanas.
Tais filmes, mesmo os melhores deles, não fariam falta se
não existissem frente ao que Bergman faz depois.
Contudo, como se sabe − e os quatro primeiros romances
de Machado de Assis (Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena e
Iaiá Garcia) estão aí para provar − são básicos para essa futura
configuração, sem os quais ela não se efetivaria.
As Mulheres Esperam, não obstante seu limitado alcance
analítico, é veiculado por meio de sofisticada exposição imagéti-
ca, por força de ângulos e enquadramentos precisos e poéticos
que valorizam e realçam os movimentos e as posturas das per-
sonagens, mesmo quando banais algumas das cenas que as en-
volvem ou de que participam.
50
NOITES DE CIRCO
A Imposição da Realidade
O filme Noites de Circo (Gycklarnas Afton, Suécia, 1953),
de Ingmar Bergman, é muito mais sobre o ser humano e sua
existência do que propriamente sobre o circo, não obstante
transcorrer quase todo num deles.
Embora crie o circo, sua estrutura física e apetrechos e ne-
le coloque as personagens características (proprietário, palhaço,
anão e demais figurantes), o que é focalizado é o ser humano.
Conquanto articule nesse microcosmo especial os relacio-
namentos possíveis e usuais entre seus componentes, o que se
ressalta é a problemática humana e convivencial de Alberto, o
proprietário, e de Ana, artista circense, sua amante (Harriet An-
dersson).
Dessa problemática destaca Bergman dois aspectos bási-
cos para o ser humano: a luta pela sobrevivência e a união amo-
rosa, questões que ocupam e nucleiam o filme. São o filme.
No desenvolvimento desses dois eixos centrais da narrati-
va, o cineasta cria e expõe as situações pelo que a realidade obje-
tiva informa e forma na mente humana, nela traçando as coor-
denadas da vida subjetiva e como, nesta, os problemas se mani-
festam e se resolvem ou não se resolvem.
Por isso, preenche a narrativa com as atitudes e as reações
manifestadas pelo casal protagonista frente ao que a condição
financeira impõe e o conteúdo de sua atração mútua determina.
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Não obstante explicite o comportamento do casal, não dei-
xa de revelar uma constante da existência humana e uma con-
tradição emocional.
No primeiro caso, o impulso centrífugo dos protagonistas
de se livrarem da contingência em que vegetam ao invés de vice-
jarem e se acharem realizados. A precariedade econômico-
financeira os expele para fora do núcleo vivencial, no tateamen-
to de possíveis saídas pelas quais se livrem e se libertem.
Ambos se lançam pelas portas que se abrem com o desam-
paro de sua precariedade, utilizando as estreitas oportunidades
que surgem como possibilidades de libertação.
Se exitosos, teriam outra vida com novas perspectivas. Ca-
so contrário, permaneceriam na mesma posição, agravada pela
frustração e pela decepção.
No segundo caso, expõe o cineasta uma das múltiplas con-
tradições do ser humano, quando o protagonista, na sua tentati-
va de mudar de situação, não exita em se descartar da amante,
mas, reage, com amargura e até com violência, quando a desco-
bre momentaneamente infiel.
Além do sentimento amoroso ainda existente, parece pre-
dominar nessa atitude - e em todas as análogas ou assemelha-
das – o sentimento de posse e exclusividade, que não admite
transgressão. Por mais que o ser humano seja gregário e sociá-
vel e dependa do acolhimento do outro, ele é, e não poderia ser
de outra forma, o centro de si mesmo, constituindo universo ao
redor do qual tudo orbita, mesmo que ele não possa determinar-
lhe conteúdo, significado e rumos.
52
Noites de Circo, não obstante sua narrativa direta, é o
oposto do divertimento em seu humanismo vinculado às condi-
cionantes e imposições da realidade.
53
UMA LIÇÃO DE AMOR
Comédia Inteligente
Pode-se dizer de Uma Lição de Amor (En lektion i Kärlek,
Suécia, 1954), de Ingmar Bergman, que é comédia inteligente.
Atributo que se ressalta desde o início e se caracteriza pela se-
quência transcorrida no consultório médico do protagonista
(Gunnar Björnstrand), onde já se prepara o epílogo do filme.
Os diálogos aí, como em todo o transcurso da película, são
incisivos e diretos, como, aliás, costuma ser a interlocução em
comédias do gênero.
A narrativa é explícita, linear, mas, nem por isso deixa de
enfocar problemático relacionamento conjugal, tratado, todavia,
não obstante a gravidade que assume a disrupção amorosa, de
maneira a dele extrair e expor a componente cômica, no que o
cineasta brasileiro Luís de Barros denominava apropriadamente
de “visão cômica da vida”.
O filme, com exceção do encontro e diálogo do protagonis-
ta com a filha adolescente, é marcado por sequências descontra-
ídas, leves e de ritmo ágil.
Uma, a do frustrado primeiro casamento da protagonista
(Eva Dahlbeck), tanto em seu apartamento quanto no aparta-
mento do noivo, onde se desenrola cenas de pastelão inimagi-
náveis entre os discretos e racionais suecos.
Surpreendente pela inusitada situação e brilhante pelos
diálogos e desempenho interpretativo, a sequência desenrolada
no trem, que se salienta por imprimir a encontro crucial do ca-
54
sal, em vias de separação definitiva, perspicaz equilíbrio entre a
dramaticidade do momento e sua ínsita comicidade, extraída da
personalidade de ambos, mesclando atos cômicos com o sério
teor das questões por eles vividas.
Sequência também destacável, constitui a transcorrida no
“inferninho”, na qual, além do mais, como bumerangue, volta-
se contra a pretensão do amante da protagonista a armação por
ele montada.
Enfim, filme que revela, à semelhança de outras de suas
comédias, a faceta cômica de cineasta celebrizado (e cultuado)
justamente por propostas de elaboração e articulação dos graves
problemas da incomunicabilidade e solidão humanas, tratados
no mais alto nível filosófico e antropológico. Aliás, como Sha-
kespeare, a cujas alturas se equipara, que legou, ao lado de ter-
ríveis tragédias e dramas pungentes, série de leves e descom-
promissadas comédias, meros derivativos.
55
SONHOS DE MULHERES
Frustração e Desengano
Sonhos de Mulheres (Kvinnodröm, Suécia, 1955), de Ing-
mar Bergman, é filme mediano como vários dos que dirigiu na
década de 1950, nem se podendo comparar com suas obras-
primas, aquelas que o revelaram e o tornaram célebre.
Essa mediania não está isenta, todavia, de certo valor, já
que cineasta dessa envergadura procura-se elevar acima da ma-
lha do mero espetáculo, um dos produtos mais rendosos a ali-
mentar a compulsão e o condicionamento consumista da socie-
dade, nesse caso, no segmento do entretenimento.
Do mesmo modo de seus outros filmes, Bergman elege te-
ma consistente e lhe dá tratamento condizente com seus propó-
sitos autorais de criação e análise do ser humano e de seu rela-
cionamento.
Nesse filme não deixa por menos ao criar e desenvolver
duas personagens que protagonizam o enredo, a modelo (Harri-
et Anderson) e a diretora da agência de fotos de moda (Eva
Dahlbeck).
Se a primeira é imatura e facilmente enredada pelo desejo
de possuir belos vestidos e jóias caras, transcendendo o simples
impulso consumista, a segunda, executiva articulada e de forte
personalidade, é dominada por conturbado amor.
Sobre essa bipolaridade vivencial o cineasta constrói, com
a seriedade que imprime aos dramas que elabora, a problemáti-
ca de dois seres humanos entretecidos no exercício de viver.
Se a modelo mantém relacionamento amoroso, sua natu-
reza e exteriorização diferem do sustentado pela diretora da
56
agência em consequência da diferenciação de suas personalida-
des, por isso marcado por lances infantilóides, demonstrados
também, como não poderia deixar de ser, já que conjuminal, na
extravagante aventura que a envolve e conduz com idoso que
por ela se encanta (Gunnar Björnstrand), o qual só o patético
salva do ridículo na sua carência de convivência feminina dada
a peculiaridade de seu contexto familiar. Os desejos da modelo
de tomar sorvete e passear de montanha russa externalizam e
complementam esse viés comportamental, aflorado desde o iní-
cio fílmico com sua atitude com o namorado.
Já as agruras amorosas da diretora da agência percorrem
outra linha de manifestação até com laivos de dramaticidade. As
reações que externa (e extrema) no trem e sua conduta com o
amante correspondem ao perfil de executiva prática e madura,
mas, subordinada e dobrável, porém, como todo ser humano, ao
sentimento amoroso até o limite da consciência e da quebra da
ilusão.
Em Sonhos de Mulheres, que se reparte entre os apelos
das jóias e dos vestidos caros e do usufruto de divertimentos in-
fantis e o drama de dificultada e dificultosa relação amorosa,
conquanto isso, a essa consistente problemática humana, o ci-
neasta não efetua, como em suas melhores obras, a exploração
do íntimo das personagens, permanecendo ao nível de amostra-
gem comportamental externalizada e observável sem necessida-
de de perquirições e de percepção mais aprofundada da nature-
za humana, constituindo meio-termo entre o naturalismo das
manifestações exteriorizadas e os refolhos recônditos dessa im-
pressionante e infinitamente variável natureza.
57
Juventude
Noites de Circo
58
Uma Lição de Amor
Sonhos de Mulheres
59
SORRISOS DE UMA NOITE DE AMOR
Sutileza e Perspicácia
À semelhança de Shakespeare, a quem se equipara, Ing-
mar Bergman, autor de obras de grande complexidade de con-
cepção e elaboração, abordando séria problemática humana de
solidão, angústia e incomunicabilidade, também realizou comé-
dias.
Se o dramaturgo britânico, paralelamente a dramas e tra-
gédias terríveis (Hamlet, Macbeth e Rei Lear, por exemplo) e
dramas históricos consistentes (Ricardo II e III, Rei Henrique
IV, V, VI e VIII), escreveu comédias (Medida Por Medida, A
Megera Domada e As Alegres Comadres de Windsor, entre
elas), Bergman, ao lado da profundidade filosófica e antropo-
cêntrica de alguns dos filmes mais densos do cinema, também
dirigiu comédias, mas não só isso, mas, até mesmo comédia ro-
mântica como Sorrisos de Uma Noite de Amor, inicialmente
denominada no Brasil de Sorrisos de Uma Noite de Verão
(Sommarnattens Leende, Suécia, 1955), demonstrando toda sua
versatilidade criadora, com leveza e humor surpreendentes no
autor tão angustioso (mais que angustiado) de O Silêncio
(1963), A Hora do Lobo (1968) e Gritos e Sussurros (1922), en-
tre outros.
A comédia bergmaniana em questão apresenta inúmeras
características que a distinguem da generalidade comum do gê-
nero.
60
Uma delas, é seu viés teatralizante, com os diálogos (for-
tes, incisivos e bem concebidos) articulados para apresentações
no palco, a partir mesmo da postura e entonação dos atores, no-
tadamente do advogado Egerman e da atriz Desirée, os prota-
gonistas da ação fílmica em torno dos quais giram as demais
personagens.
A par isso, que não compromete o filme, principalmente
porque transcorrida a estória em época e meio social estrutu-
ralmente conservador e moralmente liberado, a dinâmica e o
ritmo da ação, aliados à inteligência e sutileza das proposições
expressas pelas personagens, imprimem à narrativa celeridade e
consistência.
Mais ou tão só que a comum comicidade, o que se tem é
humor sutil e perspicaz em que subsiste permanente crítica
comportamental das personagens, sem descuramento de condi-
ções e situações dramáticas, como a angústia e a perplexidade
do jovem Henrik, filho do primeiro casamento de Egerman, di-
vidido entre sua moralidade religiosa de clérigo e os apelos do
sexo e do amor (“Senhor, retire essa infeliz virtude de mim. Eu
não aguento mais”) ou a revolta da condessa Malcolm com as
infidelidades do marido, movida por seu amor a ele.
Já as parcerias amorosas, Egerman e Desirée, Petra (a cri-
ada e sua volubilidade) e seu namorado, transcorrem natural-
mente, conduzida, a primeira, por comportamento racional e, a
segunda, por impulsos espontâneos.
A montagem e textura diegética dos imbróglios amorosos e
sua inserção e interinfluência no conjunto dramático são estru-
turadas e formuladas com tanta perspicácia e adequação, que os
61
elevam à condição de problemática humana central para as per-
sonagens, visto resolvidas as demais necessidades e exigências
econômico-sociais do estamento social focalizado, com seus
componentes solidamente incrustados nos respectivos setores e
misteres.
A característica da sagacidade e causticidade bem humo-
rada do filme sobressai nos seguintes e expressivos diálogos en-
tre Desirée e sua mãe:
“– Por que terminou com o conde?
– Ele me ameaçou com um atiçador.
– Que coisa terrível. Mas ele deve ter tido as suas razões.
– Pela primeira vez, eu era realmente inocente.
– Então deve ter ocorrido no início da noite.”
Em outros momentos:
– “Por que não escreve as suas memórias?
– Querida filha eu recebi todos estes bens para não escre-
ver as minhas memórias.”
*
– “Você ama mesmo aquele idiota?
– Qual deles?
– Qual deles você acha?
– Ah, esse, sim, eu amo.”
*
– Sua personalidade é forte demais. Puxou seu pai.
– Qual deles? Eu tive tantos.”
E, ainda, no diálogo entre Desirée e a condessa Malcolm:
“– Eu tenho um plano (Desirée)
– Eu estou nele? (condessa Malcom)
62
– Muito
– Vai ser honesta?
– Por que não? A final, somos inimigas.”
Por fim, salienta-se, em contraponto aos dramas humanos,
a poeticidade de belíssimas e expressivas tomadas, como o per-
curso de Egerman entre o escritório e a residência logo no início
do filme, a carruagem pela estrada em paradisíaca paisagem, a
condessa cavalgando pelo campo, o passeio de barco de Henrik
e Anne, além de flagrantes de cisnes no lago e o amanhecer no
campo em pleno verão sueco.
Destacam-se também, pelo bom gosto e pertinência, a se-
quência do epílogo fílmico, na qual Bergman canta seu louvor à
vida e à paisagem por intermédio do criado que se apaixona por
Petra e após ter com ela relacionamento amoroso, proclama
“não há vida melhor que esta”, terminada com as cenas antoló-
gicas em que ele externa essa satisfação de frente para os cam-
pos e de costas para a câmera, tendo Petra lateralmente às suas
costas, sorrindo e olhando para o céu e, ainda, a cena que encer-
ra a película com a caminhada de ambos emoldurados por ex-
pressivo moinho.
63
O SÉTIMO SELO
A Vida e a Morte
O filme O Sétimo Selo (Det Sjunde Inseglet, Suécia, 1956),
de Ingmar Bergman, situa-se, quanto à estrutura narrativa, num
meio termo entre suas obras mais simples (a exemplo dos filmes
da década de 1940, de Mônica e o Desejo, 1952; de A Fonte da
Donzela, 1960; e de Fanny e Alexandre, 1982), e as de maior
profundidade e complexidade (como Morangos Silvestres,
1957; O Silêncio, 1963; A Hora do Lobo, 1968; Gritos e Sussur-
ros, 1972).
À semelhança das primeiras, rastreia relato cronológico,
focalizando o cotidiano e a apresentação, numa aldeia, de trou-
pe de saltimbancos, onde se destaca casal de artistas perfeita-
mente entrosado, marital e profissionalmente.
A modo das segundas, ao evidenciar paralelamente, pri-
meiro em separado e depois conjuntamente com a atuação da
troupe, existencialmente angustiado cavaleiro medieval e seu fi-
losófico escudeiro, adiciona, ao mundo objetivo e pragmático, a
complexidade subjetiva e intelectual.
Extroversão e ação. Introspecção e meditação.
Mais (só mais) do que simples encontro dessas facetas da
realidade medieval, tem-se, de um lado, descontração, despreo-
cupação e a alegria simples do viver, como se o céu e a felicidade
fossem aqui na terra.
Já o cavaleiro e seu escudeiro representam a consciência
da transitoriedade da vida com a presença acerba da certeza da
64
morte, que surge personalizada, travando mortal jogo de xadrez
com a personagem na tentativa inglória e infrutífera, desta úl-
tima, de adiar o encontro definitivo com a Ceifadora. Ao preten-
der encontrar Deus e o Diabo, como se fossem individualidades
definidas e não apenas representações ou símbolos imaginários
do Bem e do Mal, o perspicaz cavaleiro procura sua salvação.
Se de um lado, tem-se o céu dos artistas com seu amor es-
pontâneo e autêntico e a riqueza inimaginável de filho bebê, for-
te e saudável, e a alegria das representações teatrais, de outro,
coloca-se o assédio da morte, o inferno angustioso do conheci-
mento e da consciência das coisas.
Nesse corte vertical e profundo no espesso universo medi-
eval, Bergman expõe sua dupla face, o binômio em que se parte
e reparte, simultaneamente antropocêntrico (a vida estuante
dos artistas) e teocêntrico (a ansiedade assoberbante do cavalei-
ro). Um filme também concomitantemente analítico e sintético,
exibindo fatos e circunstâncias concentrados em espaço e tempo
definidos.
Nesse cadinho de variada argamassa, adicionam-se ocor-
rências múltiplas, caracterizadoras de cada um desses mundos.
De um lado, além do relacionamento dos artistas, até mesmo
adultério solucionado mais ridícula do que comicamente. De
outro, a procissão dos flagelados, as previsões apocalípticas de
seu líder, a peste negra, o status material e social dos aldeãos, a
maldade humana, a execução na fogueira de jovem acusada de
relações com o Diabo.
Em suma, quadro abrangente e quase completo, físico,
emocional e mental da Idade Média europeia, a que faltou ape-
65
nas, entre suas características mais conhecidas, a amostragem
do poder dos senhores feudais em oposição à desvalia dos ser-
vos da gleba. Afora isso, tudo do que mais se propala da época
está no filme, no qual sobressai, por seu significado permanen-
te, o duelo do ser humano com a Morte, cujo resultado, anteci-
padamente conhecido, é o maior, senão o único drama que asso-
la o ser humano.
O jogo de xadrez disputado individual e inutilmente com a
Morte representa inconformismo com seu inexorável poder,
momentaneamente desviado e diferido, nunca elidido. Mais
fundamente, é o exercício da inteligência humana na luta infru-
tífera contra seu perecimento.
A discreta e calma personificação da Morte nesse filme en-
contra precedente em A Morte Cansada (Der Müde Tod, Ale-
manha, 1921), de Fritz lang.
O Sétimo Selo é filme perfeito, tanto formalmente quanto
na reconstituição fisica e intelectual do mundo medieval euro-
peu, com sua precariedade material e absorvente preocupação
com o destino humano post-mortem antes que com a vida.
66
MORANGOS SILVESTRES
Sonhos e Reminiscências
Morangos Silvestres (Smulstronstället, Suécia, 1957),
constitui um dos melhores filmes de Bergman. Causa impacto e
impressiona à época de seu lançamento.
Realizado em três tempos ficcionais (presente, passado e o
mundo onírico), o revezamento entre eles confere-lhe estrutura-
ção inusual.
A alternância, todavia, se dá apenas na sucessão de ima-
gens, visto não ser conveniente sua concomitância, ou seja, os
três níveis da trama apresentarem-se simultaneamente, embora
possível tecnicamente, conforme demonstrado nas cenas inici-
ais de Os Imorais (The Grifters, EE.UU., 1990), do britânico
Stephen Frears.
Contudo, sob o aspecto temático, os sonhos e as reminis-
cências do protagonista permeiam o presente. Sucedem-se em
imagens belíssimas, enquadramentos e angulações apropriadas
e, em comparação com algumas outras obras mais intimistas de
Bergman, com relativamente poucos primeiros planos.
A estória real do presente flui cronologicamente de manei-
ra brilhante.
A viagem do protagonista e os incidentes domésticos ocor-
ridos no seu curso compõem o eixo central da urdidura temáti-
ca. Por si só, já perfazem excelente filme, conquanto só aparen-
temente destituído de profundidade.
67
A inserção, nesse contexto, de seus estranhos e enigmáti-
cos sonhos, uns conforme sua narração, outros ocorrentes no
decurso do presente, e a incidência das recordações mais dolo-
ridas de sua vida à medida que, no transcurso da viagem, entra
em contato com os sítios de sua juventude, permite ao diretor
lidar com o onírico, o passado e o presente, reconstruindo e re-
velando a vida emocional e o arcabouço mental da personagem.
Uns e outros confluindo para fixar-lhe o perfil e, interagindo,
modificar-lhe o comportamento.
Os choques do presente, a lembrança dos traumas emoci-
onais do passado e os enigmas oníricos, ocasionados (ou permi-
tidos) pela quebra da rotina diária, tornam-se, sob a orientação
e direção de Bergman, uma das obras primas do cinema pela
forma requintada, esplendor das imagens, perspicácia e sutileza
dos enfoques, brilhantismo dos diálogos e abrangente significa-
do.
O encontro de três gerações, com diversificadas visões do
mundo sutilmente defluídas das respectivas atitudes, representa
outra das virtualidades do filme. A cena em que os três jovens
caronistas homenageiam o protagonista com um buquê de flo-
res campestres é das mais expressivas do cinema, pela beleza da
imagem, eficaz angulação e implícito sentido.
O filme todo, da primeira à última tomada, nas cenas mais
banais e nos insólitos décors de equívocos sonhos, no relacio-
namento que estabelece entre as personagens, na racionalidade
(e aparente) frieza dos desencontros de um casal e da conflitiva
convivência de outro, é dos mais sensíveis e sofisticados possí-
veis.
68
A fluência das imagens e a aparente linearidade da estória
podem dar a impressão de simplicidade, o que é enganoso. Sua
alta complexidade é que é, mercê das qualidades apontadas,
deslindada fluida e primorosamente ante os olhos e a percepção
do espectador. Este, sim, poderá ser singelo, não atinando com
as implicações do filme, ou, sendo inteligente e perspicaz, ab-
sorver sua profundidade temática e grandeza formal.
69
NO LIMIAR DA VIDA
As Personagens e Sua Problemática
O título de No Limiar da Vida (Nära Livet, Suécia, 1958),
de Ingmar Bergman, corresponde direta e inteiramente à temá-
tica abordada.
Em qualquer gênero ficcional, dificilmente haverá obra
que capte com mais propriedade questões cruciais e aspectos re-
levantes que envolvem a maternidade.
Para isso e por isso, Bergman reúne três parturientes no
mesmo quarto de hospital especializado, interpretadas por In-
grid Thulin, Bibi Anderson e Eva Dahlbeck.
Três mulheres, três problemáticas diversas por suas ori-
gens, determinantes e condicionamentos.
Se para duas delas (Ellius e Stina), o momento se apresen-
ta igual e intensamente problematizado, seus comportamentos,
reações e perspectivas são inteiramente diferentes.
Se ambas são vítimas do mesmo desenlace, conquanto di-
vergente o feixe de seus componentes motivadores, o vivencia-
mento por elas do respectivo infortúnio, conforme criado e con-
duzido pelo cineasta, traduz sua essência vital.
Acima e além de qualquer questionamento e discussão so-
bre o significado da existência do ser humano, os atos da con-
cepção, gestação e maternidade resumem e encerram, em si e
por si mesmos, seu sentido mais profundo e fundamental, que
independe de fatores e considerações exteriores e alheios a eles.
Daí sua importância.
70
Contudo, esse procedimento extrapola os limites dos atos
físicos, envolvendo o relacionamento amoroso dos genitores e o
entendimento que cada um tem dele e de seu significado.
Se para Ellius, “a vida passou pelo meu útero e escoou
como água”, não é só esse seu drama, constituindo a gravidez e
o parto momentos deflagadores de conscientização do conteúdo
e da natureza de seu vínculo com o esposo, questão, como todas
as demais no filme, em que emoção e sentimento são submeti-
dos a elevado grau de racionalização.
Já para Stina ou sra. Andersson, o parto representa o ápice
da união e da felicidade, sendo seu drama unicamente provoca-
do pelo resultado, de todo inesperado, mas que nele e a ele se
restringe.
O conflito é bem outro para a terceira parturiente, a jovem
Hjördis, que ali está, não ainda para dar à luz, mas, para tratar
das sequelas de tentativa de aborto, já que mãe solteira com
tormentosa convivência com a mãe, o que a joga num abismo de
insegurança.
Seu drama, pois, é, para ela, tão importante como os de-
mais, a ponto de chegar a dizer que sua situação “é horrível, é
como se a própria vida tivesse morrido. É como se nada nunca
mais fosse nascer”.
Destaca-se ainda, no filme, o desempenho profissional e
humano da enfermeira Brita, símbolo da profissão.
A direção e interpretação das atrizes protagonistas são ex-
cepcionais, envolventes, pertinentes e condicentes com a índole
de cada uma das personagens e sua problemática.
71
No caso, suas atribuições encerram e resumem situações
típicas de gravidez e maternidade ocorrentes diária e univer-
salmente, expostas em síntese concentrada em poucas horas de
ação num filme que, se não é criativo e inventivo, é dos mais
substanciosos da filmografia de Bergman.
72
O ROSTO
A Realidade Desvendada
A vida corre normal para o establishment, estando cada
um de seus componentes no lugar ou posto próprio, exercendo
seu pobre (e podre) poder, velando pelo statu quo e guardando
as aparências.
Aí chega o elemento perturbador, munido, por sua vez, de
predicados singulares, como, no caso, a força da personalidade e
a capacidade hipnótica e ilusionista.
Aquilo que parecia estratificado e sólido continua assim,
que não é mera presença ou atuação individual que irá abalá-lo
e, muito menos, pô-lo abaixo.
Contudo, seu tranquilo pavoneamento, suas certezas e,
principalmente, a crosta de exterioridades e falsas atitudes que
encobrem a realidade individual e o relacionamento social e fa-
miliar ressentem-se da força do novo e do independente.
O choque é tanto mais profundo quanto mais falsamente
brilhante o verniz que oculta e disfarça a verdade nua e crua das
coisas, dando-lhes enganoso esplendor e ilusório aspecto.
O advento da troupe do ilusionista cria fator de inquieta-
ção, que tumultua a rotina estabelecida, fazendo eclodir os pro-
blemas subjacentes no relacionamento familiar e a afetada
tranquilidade dos bem-pensantes. Desencadeia-se, a partir daí,
processo de revelações e rebeldias, mesmo que momentâneas,
mesmo que, em alguns casos, infrutíferas. O impacto provoca,
de imediato, o afloramento de problemática vivencial e relacio-
73
nal jazida soterrada pelo costume, o comodismo, a convivência e
a conveniência.
Esse o tema central de O Rosto (Ansiktet, Suécia, 1958), de
Ingmar Bergman, um de seus mais densos e contundentes fil-
mes.
O universo dos interesses e das simulações apresenta-se
compacto, mas, basta qualquer agente estranho e forte para
desvendá-lo e pôr a nu seus arraigados conservadorismo, con-
vencionalismo e imposturas.
O poder exercido constitui o guardião desse mundo, sob o
qual, no entanto, pulsam as necessidades vitais do ser humano
por ele abafadas e reprimidas.
No filme, a força impactante e demolidora do novo trans-
torna a rotina, trinca o verniz, mas, não tem, em todos os casos,
a capacidade de subversão permanente das coisas, voltando,
depois, muitas delas, ao curso costumeiro. Mas, algumas situa-
ções resolvem-se e outras restam pelo menos conhecidas e cons-
cientizadas, o que já representa importante e muitas vezes deci-
sivo passo para futuras alterações e, possivelmente, soluções ou,
no mínimo, revelações, melhorias e avanços.
Bergman opõe, como todo grande artista, a autenticidade
contra a artificialidade, a verdade contra a mentira dissimulada
das coisas que se fingem e se fantasiam de modo diverso e mui-
tas vezes oposto à sua natureza. Para isso realiza filme sólido em
sua contextura ficcional, consistente como construção cinema-
tográfica e de rara beleza como criação artística. Maneja com
mestria a câmera na captação do claro-escuro da paisagem ex-
terna e do décor de interiores. Explora com argúcia as reentrân-
74
cias, sinuosidades e entulhos do décor. Cria clima de tensiona-
mento não só entre as personagens, mas, até mesmo entre al-
gumas delas e os elementos e a ambiência que as cercam.
A segurança diretiva e a consciência de um propósito evi-
denciam-se desde a cena inicial, de estranha beleza, despida de
todo enfeite e glamour e construída a partir dos objetos e seres
focalizados em angulações que lhes realçam e exploram o inco-
mum, o estranho e o insólito, imprimindo-lhes fantasmagórico
fusionamento de seres e coisas.
As personagens são as mais extravagantes possíveis na sua
representação emblemática e paradigmática das ocorrências da
vida. A direção e representação dos atores transmitem o conte-
údo humano das personagens e toda a gama de significados de
sua existência, modo de ser e atuação num dos filmes capitais
do cinema.
75
A FONTE DA DONZELA
A Lancinante Beleza
Se poesia é beleza e tragédia é dor e se beleza não combina
com sofrimento, e se não lhe for antípoda é pelo menos incom-
patível, como se elaborar obra em que esses dois elementos tão
díspares se unam simbioticamente, concorrendo de iguais modo
e conformidade para sua formação?
Se uma é beleza, pureza, alegria, vida e outra é sua nega-
ção?
É possível?
É possível.
É exatamente isso que Ingmar Bergman faz em A Fonte da
Donzela (Jungfrukällan, Suécia, 1959), um dos mais belos e ao
mesmo tempo mais trágicos filmes já realizados.
Inserido nos limites da narrativa, excede-a em perfeição.
Confinado na necessidade de estabelecer a sucessão de atos, ati-
tudes e acontecimentos que a compõem, infunde-lhe precisão,
conexão e intrínseca dinâmica, emanada da articulação de seus
diversos elementos. Obrigado a organizar e distender o fio nar-
rativo, o faz com vigor, segurança e determinação. Tangido a li-
dar com anjo, demônios e seres humanos, os reúne no mesmo
espaço e em idêntico tempo, confrontando-os. Compelido a des-
tilar todo o horror desse encontro e embate, exercita-o, no en-
tanto, humana e poeticamente.
Assim, se se tem de um lado a inocência, a pureza, a bele-
za, a poesia enfim encarnada, e, de outro, a impulsividade e a
76
bestialidade em seu mais alto grau, logra-se, como resultado
desse heterogêneo amálgama, filme em que a dignidade huma-
na é contemplada tanto quanto sua face oposta nos exatos ter-
mos em que se manifestam, constituindo monumento desse
compósito extravagante.
Toda essa confluência, que se transforma em conjunto trá-
gico, violento e mortal, expõe-se em ambientes construídos em
consonância com a vinculação do tempo e do espaço em minu-
dências físicas e gestos pessoais compatíveis e exatos. Se neles e
nisso ressumbra a realidade, nos exteriores explode e vigora a
poesia da imagem na paisagem vista (e sentida) em sua harmô-
nica beleza, onde se cruzam a mocidade que a tonifica e os cér-
beros abjetos que a poluem e conspurcam.
Nessa dimensão neutra, mas, generosa e propiciatória, a
maldade impõe-se à bondade, destruindo-a dupla e sucessiva-
mente, antes, ao conspurcá-la, depois, ao eliminá-la, em se-
quência de beleza imagética, que mais ainda exacerba a inaudita
brutalidade com que se manifesta e se materializa.
77
O Sétimo Selo
Morangos Silvestres
78
O Rosto
A Fonte da Donzela
79
O OLHO DO DIABO
Comédia Crítica
A existência de comédias na filmografia de Ingmar Berg-
man chega a ser surpreendente. O cineasta prima justamente
pela seriedade, causticidade e dramaticidade no enfoque de
questões vitais do ser humano, não só existenciais como de rela-
cionamentos interpessoais.
Contudo, Bergman realizou algumas comédias, entre elas
O Olho do Diabo (Djävulens Öga, Suécia, 1960). Porém, nela, à
semelhança de Hitchcock em O Terceiro Tiro (The Trouble
With Harry, EE.UU., 1955), que a faz em torno de um cadáver, o
cineasta sueco não deixa por menos, leva a efeito uma delas logo
com o Diabo. E não se despe nem se desfaz do olhar cáustico e
crítico. Já o olho do Diabo é o órgão físico mesmo, que está nada
mais nada menos do que com prosaico e humano terçol.
Mas, é a partir daí (e disso) que é deflagrada a ação, com o
envio à terra de emissário para desencaminhar donzela que ain-
da teima em persistir virgem, circunstância que seria a causa do
incômodo de Satanás.
O tema, por si só, já é surrealista e hilariante, tal a extra-
vagância da propositura.
Mas, isso é apenas a origem e razão de ser da trama. No
desenvolvimento desta é que se manifesta a visão analítica e crí-
tica do cineasta. As personagens humanas é que possuem con-
sistência e sua problemática é que emerge ao contato da ação
dos agentes satânicos. O Diabo e seus sequazes não têm impor-
80
tância. São criações artificiais da imaginação, agindo tão-
somente como instrumentos provocadores e desencadeadores
das atitudes e paixões humanas. Essas, sim, constituem a ques-
tão fílmica.
A vida corre aparentemente normal e suave em sua simpli-
cidade e rotina cotidiana para um pastor protestante. No que se
refere a ele e sua filha até que sim. Vivem (ou estão) plenamente
satisfeitos e realizados. Por isso, são refratários aos cantos e en-
cantos dos enviados demoníacos, nada lhes abalando preten-
sões, propósitos e procedimentos. A não ser, de leve, o surpre-
endente beijo da filha noiva no encarregado de transviá-la. Beijo
que em si não tem importância, só assumindo gravidade a pos-
terior mentira em negá-lo.
A figura do pai e pastor (não patrão, como no conhecido
filme dos Irmãos Taviani), encarna a bondade, a sinceridade,
mas, também, certa ingenuidade.
Normalmente, esses elementos andam juntos nas obras de
ficção. Mas, será que para se ser bom é necessário ser-se ingê-
nuo e vice-versa? Ou não passa essa ocorrência de generalização
estereotipada? Ou, ainda, de particularidade da natureza huma-
na ou da organização social que não permite ou propicia a con-
comitante incidência de bondade e argúcia?
No caso, como é personagem bergmaniana, o que, entre
tantas outras coisas, significa complexidade e autenticidade, o
pastor contraria seu viés ingênuo e revela atributos de bondade
e compreensão humana até o limite, à primeira vista, de escassa
probabilidade. Essa impressão persiste enquanto não se obser-
var suas atitudes e preocupações com a esposa, pressupondo
81
tormentos maiores do que simples insatisfação sentimental e
sexual.
A sutileza e a requintada construção ficcional de Bergman
embasam e perpassam o episódio, como, aliás, todo o filme,
desde seu arcabouço aos mínimos detalhes, gestos, posturas e
circunstâncias.
O Olho do Diabo só é “comédia”, como o Terceiro Tiro
também o é, para permitirem a Bergman e Hitchcock, princi-
palmente ao primeiro, liberdade imaginativa, desenvoltura nar-
rativa, quebra e superação dos limites da realidade, que não te-
riam nos parâmetros da normalidade da vida e na sujeição à sua
impositiva lógica.
O certo é que Bergman realiza filme perspicaz (mais um),
onde acima de suas múltiplas virtualidades, que atingem todos
os aspectos e elementos, ressalta-se a inteligência dos diálogos,
dificilmente encontrável, nas proporções nele ocorrentes, em
qualquer outro filme.
É, porém, incompreensível (e injustificável) que obra artís-
tica desse nível e de cineasta dessa importância, realizada no já
distante ano de 1960, só no final da década de 90 tenha chegado
ao Brasil.
Registre-se que o tema da presença demoníaca a introdu-
zir a cizânia entre os seres humanos e a espalhar a maldade no
mundo encontra notável precedente no cinema, conquanto
dramático e trágico, no filme Páginas do Livro de Satã (Blade
af Satans Bog, Dinamarca, 1919), de Carl T. Dreyer.
82
ATRAVÉS DE UM ESPELHO
Os Mundos Pessoais
Em Através de Um Espelho (Säsom i en Spegel, Suécia,
1961), Ingmar Bergman filma a desestruturação de uma família,
centrada e culminada num verão em casa de praia: Davi (Gun-
nar Bjönstrand), escritor e pai de Karin (Harriet Andersson) e
Minus e sogro de Martin (Max von Sydow), médico.
A alegria e efusão iniciais de todos saindo do mar e atin-
gindo o cais e a esportiva designação de tarefas a cada um são
enganosas.
Na realidade, cada personagem é problemática e, com ex-
ceção de Martin, que é pessoa simples, as demais são comple-
xas, enredadas e manietadas por laços emocionais e psicológicos
que a cordialidade forçada não consegue disfarçar e, conquanto
os atenue, não impede sua manifestação.
Excetuando Karin, justamente por representar nesse quar-
teto a exceção, as demais vivem e convivem com seu inferno
particular.
Karin, tomada por insanidade, desliga-se dessa “normali-
dade,” que é o comum da espécie, para adentrar num mundo
especial de impressões específicas e próprias de estado mental
degradado, que mais ainda a vitima na duplicidade de alternân-
cias de lucidez e visionarismo.
Em diálogo com o irmão, revela suas visões e reconhece
essa dualidade:
83
“– Karin, isso não é real para mim.
– É sim. Uma entidade desce da montanha. Ele anda pela
mata escura. Há bestas selvagens na escuridão silenciosa. De-
ve ser real. Eu não estarei sonhando, estou dizendo a verdade.
Às vezes estou neste mundo às vezes no outro. Não consigo evi-
tar.”
Depois, com o pai:
“– Não quero mais tratamentos.
[...]
Não posso viver em dois mundos. Tenho que escolher.
Não posso ficar perambulando entre os dois.”
Com seu problematizado relacionamento com o pai, a
quem acusa de falta de compreensão e de diálogo, e torturado
por fragilidade emocional, que explode no início do filme em
rompante característico, dele se esperando a qualquer momento
atitude intempestiva, Minus, o irmão, demonstra, em diálogo
com Karin, percepção coerciva da realidade:
“– Imagino se estão todos enjaulados. Você na sua jaula,
eu na minha. Cada um em sua prisão.”
Martin, que se considera não ser “muito complexo. Meu
mundo é bem simples, claro e humano”, é desnudado (e revela-
do) pela indagação de Davi se “desejou que a Karin morresse”,
que é devolvida com negação acumulada de acusação: “de jeito
nenhum. Apenas você pensaria tal coisa”.
Já Davi, iguala-se a Minus em fragilidade e perplexidade,
não obstante sua forte intelectualidade. A acusação de Martin
de que “há uma coisa sobre a qual você não entende nada. A
84
vida” é mais explicada e exposta em outra oportunidade, quan-
do confessa à filha:
“– Sabe, Karin, traçamos um círculo imaginário ao nosso
redor para afastar aquilo que não faz parte do nosso jogo se-
creto. Cada vez que a vida rompe esse círculo os jogos se tor-
nam insignificantes e ridículos. E então construímos um novo
círculo e novas defesas.
– Pobre papai.
– Sim, pobre papai, forçado a viver na realidade.”
Assertiva que resume, expõe e denuncia o drama universal
e recorrente de todo (ou de boa parte) dos grandes artistas cria-
dores, “forçados a viver na realidade”, quando, como diz Fer-
nando Pessoa, para o artista “a vida não basta”, sendo a arte a
confissão disso.
O artista e o cientista querem viver em seus mundos cria-
tivos, mas a realidade muitas vezes ou quase sempre os forçam a
viver na realidade ou, pelo menos, os jogam nela, envolvendo-os
irremediavelmente.
Esse o grande drama geral e universal trabalhado por
Bergman nesse filme, de linguagem convencional, mas, reve-
lando competência no manejo da câmera e nas angulações das
imagens, além da poética visualização de aspectos da natureza e
pormenores dos décors.
Por fim, constitui filme expositivamente simples – e até
explicativo conforme os diálogos e afirmações citadas demons-
tram – enfocando personagens, notadamente Davi, e tirante Ka-
rin por sua doença mental, complexas, porém desnudadas de
sua carapaça e analisadas e expostas tão clara e eficazmente
85
como raramente se vê, aliás, como vistas “através de um espe-
lho”.
Ecoam, e ecoarão sempre, os gritos finais de Karin (“Eu vi
Deus”) e de Minus (“Papai falou comigo!”), que resumem, cada
um a seu modo, o importante ou o significativo em seus respec-
tivos mundos.
*
Notáveis, antológicas, sobre tudo, a cena tensa do diálogo
de sogro e genro no barco e a cena, patética e tão ou mais autên-
tica e espontânea que se ocorrente na realidade, de Martin e
Davi socorrendo Karin na escada durante uma de suas crises.
86
LUZ DE INVERNO
Dúvida e Franqueza
Luz de Inverno (Nattvardsgästerna, Suécia, 1962), de In-
gmar Bergman, é tão explícito quanto seu antecessor Através de
Um Espelho (Säsom i en Spegel, Suécia, 1961).
Explícito, porém, não simples, já que põe, expõe e trata de
maneira equilibrada a questão da dúvida religiosa de pastor da
igreja, provavelmente anglicana, com adequado nível de auten-
ticidade e propriedade. Com tal perícia e dosagem dos elemen-
tos do quadro mental e emocional da personagem, que proble-
mática tão íntima e pessoal torna-se de interesse.
O fio narrativo é composto e tecido de três dimensões vis-
cerais e vivenciais do protagonista (Gunnar Björnstrand), impo-
sitivas e concomitantemente emergentes e dominantes: à dúvi-
da religiosa que o assalta acresce seu vivo amor pela esposa fale-
cida e o assédio de solteirona problemática por ele apaixonada
(Ingrid Thulin).
A isso ajunta-se o drama do paroquiano Jonas Persson
(Max von Sydow), que revela, antes de tudo, incompreensão e
inabilidade por parte do pastor, que ao invés de ouvi-lo, orientá-
lo e aliviá-lo, transmite-lhe seus problemas, assoberbando-o e
agravando sua perturbação.
A questão central, porém, no momento da transcorrência
do filme, é a agudização da crise religiosa do pastor, exposta cla-
ramente na exposição, mais que diálogo, a Jonas Persson:
87
“– Se Deus não existe isso realmente faria alguma dife-
rença? A vida se tornaria compreensível. Seria um alívio. E a
morte seria a extinção da vida. O fim do corpo e do espírito.
Crueldade, solidão e medo... todas estas coisas seriam claras e
transparentes. O sofrimento é incompreensível, portanto não
exige explicação. Não existe um criador. Nenhum provedor da
vida. Nenhum desígnio.”
Crente de sua descrença, pretensamente reconciliado con-
sigo, afirma para sua apaixonada: “Agora estou livre. Finalmen-
te livre. Tive esperança de que tudo não seria ilusões, sonhos e
mentiras”.
Contudo, a questão não é tão fácil de ser resolvida, como,
de maneira hábil, é demonstrado posteriormente pela manifes-
tação do sacristão.
Já na dimensão amorosa presente, nenhuma indecisão o
perturba, conforme externada com franqueza à sofrida namora-
da, quando esta lhe indaga da falecida esposa:
“– Eu a amava. Ouviu? Eu a amava. E eu não amo você,
porque amo a minha esposa. Quando ela morreu, eu também
morri. Não me importo com o que aconteça comigo. Estou
sendo claro? Eu a amava, e ela era tudo que você jamais pode-
ria ser e insiste em querer ser.”
*
A ambientação, com seus décors de interiores e locações
externas, é focalizada de modo a ressaltar poética e funcional-
mente os aspectos e os espaços internos e externos que a com-
põem, formando quadro expressivo, no qual as personagens
plenamente se integram sob angulações e precisos movimentos
88
da câmera, com primeiríssimos planos das fisionomias das per-
sonagens expondo e refletindo angústia, perplexidade e sofri-
mento sem os arrebatamentos e os exteriorizações ruidosas ca-
racterísticas de certos povos latinos.
A sobriedade comportamental é plasmada sobre e sob
fundo ambiental sereno e indiferente ao drama humano, com-
pondo todo único e artístico.
89
O SILÊNCIO
Fantasmas e Lembranças
Dos três filmes sucessivos de Ingmar Bergman, Através de
Um Espelho (1961), Luz de Inverno (1962) e O Silêncio (Tystna-
den, Suécia, 1963), o mais consistente, não só por ser o mais
concentrado, é o último, que dimensiona a convivência de duas
irmãs, Ester (Ingrid Thulin) e Ana (Gunnel Lindblom) e do pe-
queno (e esperto) João, filho desta.
É o mais concentrado porque se circunscreve a tecer o po-
sicionamento de uma irmã em relação à outra, desde o deta-
lhamento de atos cotidianos comezinhos aos abismos, no caso,
sondáveis, que se interpõem entre elas. Mesmo quando surge
terceira personagem relacionada com Ana, ela não só não tem
poder de afastar uma da outra, como, ao contrário, as aproxima
mais. Todavia, não no sentido amigável desse ato, mas, como
estopim ou revelação de sua condição de interdependência.
Se da parte da Ester, a mais velha e intelectualmente mais
cultivada e desenvolvida, esse estado emocional é de conteúdo
emocional e mesmo sensual, da parte de Ana é de teor intelectu-
al.
A tensão entre essas situações díspares só aumenta com a
compulsória aproximação e convivência entre as duas por esta-
rem em viagem, ora no vagão de locomotiva, ora em quarto de
hotel, até explodir conflito aberto, com Ana repudiando a irmã,
tentando se libertar de sua dependência intelectual, a ponto de
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O CINEMA DE BERGMAN E FELLINI

  • 1.
  • 2. 2
  • 3. 3 Copyright © Guido Bilharinho Bilharinho, Guido B492c O Cinema de Bergman e Fellini /Guido Bilharinho. -- 2. ed. -- Uberaba, Brasil: Revista Dimensão Edições, 2018. 209 p. : il. -- (Ensaios de Crítica Cinematográfica). 1. Cinema-História. 2. Bergman, Ingmar, 1918-2007. 3. Fellini, Federico, 1920-1993. I. Título. II. Série. CDD 791.4309 FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA POR: Sônia Maria Resende Paolinelli - Bibliotecária CRB-6/1191 Organização e Planejamento Gráfico Guido Bilharinho (guidobilharinho@yahoo.com.br) Capa Cena de A Fonte da Donzela, de Bergman Edição Revista Dimensão Edições Caixa Postal 140 38001-970 − Uberaba/Brasil Direito Autoral Escritório de Direitos Autorais Protocolo nº 0021/2018 Editoração Gráfica Gabriela Resende Freire
  • 4. 4 SUMÁRIO Nota Preliminar O Cinema de Bergman e Fellini.................................................14 CRÍTICA INGMAR BERGMAN Anos 40 Crise – O Próprio e o Impróprio................................................18 Chove Em Nosso Amor – Garras à Mostra................................21 Um Barco Para a Índia – A Vida Concreta...............................23 Música na Noite – O Sofrimento e a Vida.................................26 Porto – Um Meio, Um Modo.....................................................29 Prisão – O Drama e Sua Condução...........................................32 Sede de Paixões – Os Dons da Vida...........................................34 Ilustrações..................................................................................37 Anos 50 Rumo à Felicidade – A Vida e Seu Transcurso.........................39 Juventude – A Revelação do Amor............................................41 Mônica e o Desejo – Percurso Amoroso....................................44 Quando as Mulheres Esperam – A Versão Feminina...............48 Noites de Circo – A Imposição da Realidade............................50
  • 5. 5 Uma Lição de Amor – Comédia Inteligente..............................53 Sonhos de Mulheres – Frustração e Desengano........................55 Ilustrações..................................................................................57 Sorrisos de Uma Noite de Amor – Sutileza e Perspicácia.........59 O Sétimo Selo – A Vida e a Morte..............................................63 Morangos Silvestres – Sonhos e Reminiscências.....................66 No Limiar da Vida – As Personagens e Sua Problemática.......69 O Rosto – A Realidade Desvendada...........................................72 A Fonte da Donzela – A Lancinante Beleza...............................75 Ilustrações..................................................................................77 Anos 60 O Olho do Diabo – Comédia Crítica..........................................79 Através de Um Espelho – Os Mundos Pessoais........................82 Luz de Inverno – Dúvida e Franqueza......................................86 O Silêncio – Fantasmas e Lembranças......................................89 Para Não Falar de Todas Essas Mulheres − Choro e Ranger dos Dentes...................................................................................93 Persona – Quando Duas Mulheres Contendem........................94 A Hora do Lobo – O Sofrimento Estético..................................97 Vergonha – O Amor na Guerra...............................................100 A Paixão de Ana – Formas e Conteúdos.................................103 O Rito – A Precariedade da Espécie.........................................106 Ilustrações................................................................................110 Anos 70 A Hora do Amor – Um Bergman Menor..................................112
  • 6. 6 Gritos e Sussurros – Requinte e Poesia...................................115 Cenas de Um Casamento – Fatos e Evidências.......................118 A Flauta Mágica – Criatividade e Perícia................................121 Face a Face - A Fragilização Emocional..................................125 O Ovo da Serpente – Realidade e Angústia.............................128 Sonata de Outono – Acerto de Contas.....................................131 Anos 80 Da Vida das Marionetes – O Substrato Psicanalítico.............135 Fanny e Alexandre – Um Bergman Irreconhecível.................138 Depois do Ensaio – Racionalidade e Emoção..........................142 Anos 2000 Saraband - A Neutralidade da Técnica....................................145 Ilustrações................................................................................146 FEDERICO FELLINI Anos 50 Os Boas Vidas – Espontaneidade e Autenticidade..................149 A Estrada da Vida – Foto-Radiografia da Realidade..............152 A Trapaça – O Significado da Ação.........................................155 As Noites de Cabíria – A Rejeição da Realidade.....................158 A Doce Vida – A Existência Amarga........................................161 Anos 60 Oito e Meio – Depois, o Dilúvio...............................................165
  • 7. 7 Julieta dos Espíritos – A Dimensão da Arte............................168 Satíricon – Beleza e Criatividade..............................................171 Ilustrações.................................................................................175 Anos 70 Roma – Circunstâncias e Ocorrências.....................................177 Amarcord – O Passado Inalterável.........................................180 Casanova – O Vazio Existencial..............................................183 Ensaio de Orquestra – Realidade e Parábola..........................186 Anos 80 A Cidade das Mulheres – As Situações Incontroláveis............191 E La Nave Va – Parábola e Realidade.....................................194 Ginger e Fred – Efeitos e Sintomas.........................................198 Entrevista – Testemunho e Paixão..........................................201 Anos 90 A Voz da Lua – Poesia e Fábula..............................................204 Ilustrações................................................................................207
  • 9. 9 UMA PROPOSTA DE CRÍTICA CINEMATOGRÁFICA O leitor e o espectador comumente consideram bons os filmes e livros de ficção quando a estória, o enredo, agrada- lhes. Esse o critério que os norteia. Na realidade, falta de. Em si, a estória que se conta e os fatos, a ação e os acon- tecimentos que a recheiam não têm a importância, nem ao menos secundária, que se lhes atribuem. Normalmente, só atrapalham. As peripécias das personagens e as voltas que a estória dá apenas constituem elementos exteriores ao cerne dramático. Este e o tratamento que lhe é conferido é que dife- renciam a arte do mero divertissement, do best-seller comer- coal digestivo, editorial ou cinematográfico. Toda enxurrada de filmes que normalmente tem sucesso de público e nos meios de comunicação (estes, por gênese, con- dição, natureza e propósito, instrumentalizados pela indústria de entretenimento), não passa de simples produção industrial, sem nenhum valor artístico, cultural e humano. A indústria e o comércio cinematográficos possuem es- trutura que, apenas para simplesmente sobreviver, que é o mí- nimo que lhes pode acontecer, necessitam de produção e co- mercialização permanentes e em série, já que essa grande má- quina, mesmo quando parada ou sub-utilizada, consome enorme soma de recursos.
  • 10. 10 Daí a necessidade vital de fabricar e exibir filmes comer- cializáveis, de amplo agrado e apelo popular, com o tríplice objetivo de remuneração do capital investido, de sua própria manutenção e de lucratividade, esta, aliás, a finalidade básica e razão primeira de sua existência. Há outra, porém. É que ao oferecer à sociedade tais obras descartáveis, ainda a mantém ideologicamente confor- mada e alienada, já que afastada do conhecimento e discussão das questões e problemas realmente importantes. Assim, agindo nas articulações desse círculo vicioso, o sustenta, desenvolve e aprofunda, quando não o cria em seto- res novos. Alimentando o gosto superficial e inconseqüente do público e realimentando-se desse mesmo gosto, a avassalante indústria de entretenimento aumenta cada vez mais sua in- fluência, já que seus produtos passam a ser indispensáveis, en- tre outros motivos, para preenchimento do tempo de lazer. Para atendimento, pois, desses objetivos, tanto no setor cinematográfico quanto no editorial, no musical, etc., impõe-se a produção massiva de artefatos de entretenimento despidos de criatividade, profundidade, complexidade e, principalmen- te, de qualquer compromisso com os valores artísticos e cultu- rais e com a verdade e realidade humanas. Ao invés disso, o que se tem, como já dito, são meros pro- dutos comerciais com ação, acontecimentos, violência e trama urdidos e desenvolvidos sobre falsos problemas ou, quando não e pior, sobre questões efetivas, porém, tratadas com a fal-
  • 11. 11 sidade, a superficialidade e a leviandade que os referidos obje- tivos determinam. Todavia, é necessário que se saiba e se proclame sempre (responsabilidade fundamental dos professores de todos os graus e em geral por eles não exercida em sua atividade de correia de alimentação entre o conhecimento e a juventude), que na arte ficcional (romances, contos, peças de teatro e fil- mes), o que menos importa é a estória como sucessão de atos e ocorrências ou como simples trama. Tais fatores, por sinal, por si sós, não configuram arte. Apenas compõem o gênero fic- cional, distinguindo-o, por exemplo, da poesia e do ensaio na literatura e do documentário ou da reportagem no cinema. O que é essencial é o que se faz disso e com isso. É o tra- tamento artístico e a orientação, a profundidade e a amplitude conteudística que se lhe imprimem. * A pretensão, pois, mais perseguida nos estudos e livros que deverão compor a coleção Ensaios de Crítica Cinematográ- fica, inaugurada com a presente obra, é, principalmente, ten- tando desmistificar as imposturas da indústria de entreteni- mento no cinema, fornecer elementos de entendimento, discus- são, análise e julgamento dos filmes comentados, procurando conscientizar ou, quando menos, chamar a atenção para reali- zações, ideias e empreendimentos cinematográficos realmente expressivos.
  • 12. 12 Representa mera gota d'água nos oceanos, simples grão de areia nas praias e desertos do mundo, sabe-se, Mas, o que tem isso? Aliás, é por isso mesmo que se faz indispensável. Se assim não fosse, se todas ou pelo menos a maioria das pessoas se preocupassem e se ocupassem com as realizações artísticas, o debate cultural e questões correlatas, não haveria necessida- de desse esforço, a não ser sob o aspecto de crítica cinemato- gráfica, se é que realmente alcança esse desiderato, visto ater- se mais à análise da configuração do conteúdo dramático e suas implicações do que ao exame e avaliação do tratamento estético-formal, mesmo porque, em questão de forma, a maio- ria absoluta dos filmes é convencional. No entanto, a abordagem de certos aspectos dos filmes objetos dessas análises, cuja publicação não obedece à seqüên- cia temporal de sua elaboração, mas, à ordem cronológica au- toral, nacional ou de gêneros dos filmes - no caso, apenas os que se pôde ver ou rever a partir de 1993 - não implica em que somente tais aspectos são importantes ou dignos de menção. Apenas significa que foram os que mais chamaram a atenção ou preocuparam o Autor. Nada mais que isso. Outros ângulos de exame e apreciação existem, já que a obra de arte, por mais restrito e concentrado seu tema, é calei- doscópica e multiforme, constituindo microcosmo que desafia (e inúmeras vezes exige) múltipla e variada investigação. No mais, essa série de ensaios não se prende nem se res- tringe aos lançamentos mais recentes ou à atualidade das ten- dências e enfoques, mas - sem prejuízo do eventual exame de
  • 13. 13 obras menores, menos relevantes ou até irrelevantes - vincula- se a um corpus genérico, definitivo, permanente e abrangente da arte cinematográfica, que, por sua importância, valor e sentido, integra e forma o patrimônio artístico, intelectual e cultural da humanidade e cujos espécimes, desde os inaugurais aos mais recentes, estão, em sua grande maioria, ou não tar- darão a estar, cômoda e permanentemente, à disposição dos interessados em filmotecas públicas e particulares, em casas produtoras ou locadoras de vídeo e, ainda, em canais comuns ou especiais de televisão, à semelhança dos livros em bibliote- cas e livrarias. Entramos numa nova era! Mais uma vez. O Autor *Nota preliminar da primeira edição.
  • 14. 14 O CINEMA DE BERGMAN E FELLINI Esgotada a primeira edição de O Cinema de Bergman, Fellini e Hitchcock e face a constantes pedidos, necessário se tornava providenciar a segunda edição. Acontece, porém, que no período medeado entre esta e a primeira edição, foi lançada no país, pela Versátil, a obra completa de Bergman. Assim, de seus catorze filmes comentados na edição inau- gural saltou-se, nesta, para quarenta e um, oportunizando-se, em consequência, visão analítico-crítica de praticamente toda sua extensa e qualificada filmografia. Em vista disso, e para que a presente edição não fugisse aos padrões da coleção, atingindo considerável número de pá- ginas, optou-se dela excluir os comentários atinentes à obra de Hitchcock, por sua vez aumentada de mais três filmes. Todavia, deixando os dois grandes cineastas europeus num só livro, programou-se juntar, em única obra, os artigos referentes aos filmes de Hitchcock com os atinentes à filmogra- fia de Woody Allen em O Cinema de Hitchcock e Woody Allen, Uberaba, Revista Dimensão Edições, 2017. Desse modo, permite-se aos interessados nas análises procedidas nesses livros a oportunidade de acessar em blog a primeira e obter a segunda em papel. Não é outro, aliás, o propósito desta coleção, iniciada em 1999 e, dada a carência editorial brasileira no gênero, tornada
  • 15. 15 o maior senão o único empreendimento do país no setor, o que, dada a modéstia editorial destes livros, inexistente distribuição e total carência de receptividade pela mídia, representa ainda muito pouco na área dos estudos cinematográficos no Brasil, país em que as universidades e a mídia impressa, televisiva e radiofônica limitam-se, quando raramente dedicam tempo e espaço para as artes, às produções do eixo Rio-São Paulo, não levando em consideração a já considerável e importante pro- dução cultura brasileira manifestada em todos os quadrantes do país. O Autor
  • 17. 17 B E R G M A N
  • 18. 18 CRISE O Próprio e o Impróprio Ao contrário de alguns outros cineastas (Eisenstein, Orson Welles e Gláuber Rocha, por exemplo), ou de romancistas como Norman Mailer, autores que logo no primeiro ou segundo filme ou romance já realizam obras-primas (O Encouraçado Po- temkin, Cidadão Kane, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Os Nus e os Mortos, respectivamente), Ingmar Bergman (Suécia, 1918-2007), estreia com obra comum, esquemática e simples, aliás, de todos seus filmes, o mais simples, Crise (Kris, Suécia, 1945), conquanto não destituído de qualidades e até surpreen- dente, num estreante, pela segurança da direção. Se outros atributos o filme não tivesse, a seleção e direção dos atores, por si, constitui qualidade que o recomenda, reve- lando, desde então, as possibilidades de Bergman, embora nin- guém pudesse antever (e prever) à época as culminâncias que haveria de atingir e a irradiação universal que sua obra obteria. O fato é que Crise, baseado em peça teatral sueca, não pas- sa de melodrama que distribui as personagens segundo esque- ma adredemente fixado, a mãe biológica (Jeni), que não pôde criar a filha (Neli), a mãe de criação (Ingeborg), o desfrutável amante daquela (Jacques) e o inquilino já maduro da casa (Ulf). Todas estereótipos, usados e abusados em sem-número de obras, principalmente em romances e dramas teatrais popula- rescos.
  • 19. 19 À evidência, que num quadro desses, Jeni é rica e sustenta amante jovem, enquanto Ingeborg é solteirona pobre, só e ape- gada à Neli, Jacques é aproveitador e Ulf, o enamorado de Neli, cheio de boas intenções e meio insonso. Ingredientes de melo- drama, todos. Se o receituário (a trama) e os ingredientes (as persona- gens, seus biótipos e relacionamentos) jazem alheios e até in- fensos e opostos aos requisitos mais comezinhos da arte e do fa- zer artístico, sobra ao filme, como aventado, a segura e perti- nente direção, que atinge o máximo na sequência em que Jeni, chegada à cidadezinha para buscar a filha, recebe a surpresa da vinda do amante. Sua atitude, expressões e contentamento são demonstrados de maneira tão apropriada, espontânea e autênti- ca, que essa sequência pode ser considerada uma das mais bri- lhantes do cinema, principalmente porque vem logo após tenso diálogo entre Jeni e Ingeborg, permitindo imediata comparação entre a postura da personagem (e a interpretação da atriz) num e noutro caso. A performance diretiva de Bergman não se destaca apenas na direção dos atores, mas, também na orientação geral impri- mida aos movimentos da câmera e seus perfeitos enquadramen- tos cenográficos. Nesse sentido, as cenas do baile se destacam como grande cinema, não só pela eficácia como também pela criatividade da composição cênica e angulações camerísticas. Se todo o filme é e está enquadrado no esquema melodra- mático usual, a manifestação de Jacques na estação ferroviária (outra brilhante sequência cinematográfica), no decorrer do diá-
  • 20. 20 logo que entretém com Ingeborg, revela o que a obra posterior de Bergman iria confirmar: a manifestada complexidade da condição humana quando provocada ou atingida por fator fun- damental, no caso, o amor e o encontro da pureza, confrontando condições díspares e provocando radical crise existencial. O fato é que Jacques se transforma, como reconhece: “Até eu conhecer sua garotinha [....] não sou mais alguém sombrio numa vida sombria [....] Neli é, de certo modo, real [....] Ela é tão real que eu me tornei ainda mais irreal e comecei a me perguntar por que vivo minha vida de fantasma. Eu po- deria tê-la como minha âncora na realidade para meu próprio bem.” Já o desate do filme é de todo impróprio porque próprio dos melodramas, grande defeito do texto em que o filme se ba- seia, que não enfrenta a resolução da problemática humana pos- ta em questão, optando pela tangencial da fuga.
  • 21. 21 CHOVE EM NOSSO AMOR Garras à Mostra Já em seu segundo filme, Chove em Nosso Amor (Det Regnar Paa Voar Kärlek, Suécia, 1946), Bergman mostra suas garras de futuro grande cineasta. O filme é convencional e totalmente subordinado à estória, ou seja, sua finalidade é construí-la, organizá-la, expô-la e con- duzi-la linearmente, com começo, meio e fim, contando, inclu- sive, com narrador que até chega a interferir na trama. Mas começo, meio e fim consistentes. Se a narrativa desli- za cronologicamente desde o encontro casual dos protagonistas, o entrecho estrutura-se a partir de três eixos, que não são os principais porque são os únicos: a) o liame amoroso que une o par e as dificuldades em que estão e que ainda vão enfrentar, porém, desde então, em conjunto; b) a humanidade em seu en- torno, maniqueisticamente distribuída entre bons e aproveita- dores, conquanto não maus; c) o sistema estatal, burocrático, frio, desumanizador. Se é filme não só influenciado pelo neorrealismo, mas, ne- orrealista ele próprio, é lustrado e iluminado por tênue pátina romântica no que tange ao relacionamento dos protagonistas, equilibrada, porém, pela autenticidade, adequando e submeten- do as “agruras” e as “doçuras” do amor ao duplo crivo da emoci- onalidade e da racionalidade, resultando poetizado e simultane- amente prosaico.
  • 22. 22 Já os seres humanos que gravitam ao redor dos protago- nistas apresentam-se tipologicamente variados, abarcando des- de a bondade do jardineiro à irracibilidade da esposa, verdadei- ra Xantipa, passando pela bondade da vizinha e a equivocada colaboração dos dois amigos que circulam pelo lugarejo até atingir a figura ladina e exploradora do burguês, que não perde vaza, em todas as circunstâncias, de tirar proveito financeiro das situações, não sem demonstrar também laivos de bondade, conquanto oportunistas. Diante da amostragem da burocracia sueca da época, não se admira que a do Brasil seja também tão engessante e regres- siva. Na Suécia, atualmente, deve ser pior do que o mostrado no filme, porque a natureza do sistema estatal imposto pela classe dominante é de cada vez mais submeter a sociedade a seu con- trole, condicionamento e direcionamento. No que se relaciona ao posicionamento do casal protago- nista, a análise de toda sua luta sintetiza-se na frase chave do advogado de defesa (pois até julgamento se tem), de que todo “seu esforço é para se adequar à sociedade”, mesmo sendo ela o que é. Contudo, nesse itinerário sobram, de um lado, bondade e compreensão que amparam, apóiam e impulsionam e, de outro, egoísmo, incompreensão e mesmo maldade que agridem, difi- cultam e procuram obstaculizar, às vezes conseguindo, o pro- cesso vivencial do próximo.
  • 23. 23 UM BARCO PARA A ÍNDIA A Vida Concreta Tanto Um Barco Para a Índia (Skepp Till Indialand, Sué- cia, 1947) como outros filmes de Ingmar Bergman do período são influenciados pelo neorrealismo italiano. Deliberada e conscientemente essa linhagem fílmica extrai da concreticidade da vida a problemática existencial objeto de sua preocupação. O ser humano situado e condicionado pela materialidade de seu espaço no mundo, base sobre a qual erige o drama de sua porfia pela sobrevivência e os passes e impasses de seu relacio- namento familiar e amoroso. Nesse filme, como em Porto (Hammstad, Suécia, 1948), por sinal ambos transcorridos em ambiente portuário e na mesma faina, têm-se personagens limitadas e delimitadas por suas condições de vida, em lares conturbados e, em consequên- cia, de intrincados entrelaçamentos amorosos. Em Um Barco Para a Índia, Alexander Blom, de persona- lidade forte e dominadora, impõe seu modo de pensar e viver ao microcosmo familiar, infelicitando-o. Com sua esposa, filho e a namorada Sally (de ambos) compõe o grupo central de “perso- nagens intensas e misteriosas” de que teria falado Bazin. De fato, todas elas, nos parâmetros contingenciadores mas impositivos de seus sexos, têm personalidades vigorosas (por is- so, rigorosas), que marcam e demarcam seu espaço no contexto em que vivem e agem.
  • 24. 24 Se as condições materiais de vida as conformam a restrito círculo de ação e atuação, não as destinam nem confinam, po- rém, à vegetatividade e nem afetam ou restringem sua percep- ção das coisas e das relações humanas. De todas elas, justamente Blom, o imperativo (ou impera- dor), é a mais frágil emocionalmente, suprindo essa debilidade congênita com imposição (e exibição) de força. As demais, ao contrário, revelam-se amadurecidas e conscientes, constituindo fortes criações ficcionais, conquanto ainda circunscritas às fon- tes primárias (mas fundamentais) da existência. A concepção e o modo de vida de Blom dramatizam o rela- cionamento do núcleo familiar até à exacerbação. Já Sally, no albor de seu relacionamento apaixonado com Johannes, o filho do casal, antes que ele cumpra seu ideal e des- tino de sair aos mares, do mesmo modo que a heroína de Porto, demonstra seus receios, em diálogo carregado de premonição: “— Vamos abraçar bem e nos sentir felizes e infelizes en- quanto isso durar. — Claro que irá durar (diz ele). — Durará para você. Você está como deveria. Mas eu te- mo o amanhã e todos os dias que virão. Sinto que não há nada que dure. Nem a tristeza nem o amor. Nada que seja doloroso ou belo. Não para mim.” Depois de percorridos os mares, Johannes volta para bus- cá-la. A encontra dilacerada emocionalmente. Com forte dom de persuasão, numa das sequências mais densas e tensas do cine- ma, conquanto explícita e direta, no molde neorrealista, procura
  • 25. 25 recuperá-la, infundindo-lhe confiança e o chamamento do futu- ro, em diálogo crispado: “— Sally, me ouça. Vimos o que aconteceu a meu pai. Isso não pode acontecer a você. Precisa se libertar dessa prisão. Não pode fechar a porta e ficar cada vez mais assustada. Pre- cisa superar isso, mesmo que tudo pareça perdido.” Nos cânones do neorrealismo, as personagens jovens, tan- to nesse filme como em Porto e outros, procuram vencer as li- mitações e condicionantes de suas origens e formação e se lan- çam confiantes ao futuro. Nesse mundo, formado de necessidades concretas, de luta pela sobrevivência e de dificuldades de relacionamento, ainda não se introduzira a angústia existencial, a incomunicabilidade, a incompreensão do outro e a solidão. Mas, não demorará muito para essa problemática crucial ocupar a mente e a filmografia de Bergman.
  • 26. 26 MÚSICA NA NOITE O Sofrimento e a Vida Em 1945, estreando com Crise (Kris, Suécia), Ingmar Bergman a partir daí e até 1963 realizou um filme por ano, em certos anos até dois, numa produção não só metodicamente executada quanto consistente e, em alguns casos, excepcional. Em 1947, além do filme anteriormente comentado, de ta- lho neorrealista, Um Barco Para a Índia, dirige Música na Noi- te (Musik i Mörker, Suécia), que não se enquadra nos cânones da referida tendência, consistindo num drama de coordenadas gerais e universais. Fundamentado em dois temas cruciais, a cegueira e o amor, o filme pauta-se pela fixação da tragédia que se abate so- bre Bengt, o protagonista, por sua penosa adaptação à nova condição e pela emergência do amor. Bergman desenvolve com segurança e pertinência esses fi- os narrativos simultaneamente ocorrentes, porém não paralela e independentemente, mas, em sua convergência e prossegui- mento comum. À paulatina conformação de Bengt, um pianista, adiciona- se o tênue surgimento do amor entre ele e a jovem que efetua os serviços domésticos na residência que habita. Tanto uma quanto outra dessas situações são tratadas e desenvolvidas pelo cineasta com extrema sensibilidade. Poucos são os filmes em que esses temas atingem tão alta desenvoltura e sutileza quanto em Música na Noite.
  • 27. 27 O sofrimento do protagonista, que em alguns momentos chega às raias do desespero, é tão doloroso quanto sua irreme- diabilidade. Nada há a fazer, aceite-se ou não a cegueira. À impossibilidade de continuar, como antes, a ver as coi- sas adicionam-se as dificuldades daí decorrentes do mergulho total na escuridão. À contida, mas, impactante cena da desco- berta pelo protagonista de sua nova condição, ainda no hospital, quando, recobrando os sentidos, pede para que se abram as ja- nelas, seguem-se situações confrangedoras, tornando-se a pior delas a transcorrida na estação férrea, em que Bengt é ignorado e deixado de lado, só e humilhado. O diálogo que mantém com a personagem cega inconfor- mada constitui súmula e radiografia de uma das maiores des- graças físicas das inúmeras que costumam golpear o simultane- amente perfeito e imperfeito, fantástico (que outro termo?) e frágil arcabouço orgânico humano: Diz a outra personagem: “— É tão difícil acostumar com isso, não há diferença en- tre o dia e a noite.” Ao que pondera Bengt, prosseguindo-se o diálogo: “— É difícil, mas você se acostuma. — Você se acostuma? Acredita mesmo nisso? — Não, acho que tem razão. Nunca se acostuma a isso. — Só o pensamento que nunca a luz se fará (sic) nova- mente. — E nunca a escuridão. — Nunca a escuridão, disse isso?
  • 28. 28 — Não. Luz e sombra, estas palavras não fazem mais sen- tido.” A tragédia é tanta que o protagonista, após levar soco de rival, ao invés de se enraivecer e reagir, dirige-se-lhe com ale- gria: “— Obrigado. Essa foi a primeira vez que me tratam co- mo uma pessoa normal.” Toda a tragédia da cegueira está aí traduzida. Já o surgimento e desenvolvimento do amor é banhado também de sofrimento, mas, temperado, nimbado, de ternura e poesia em tons e linhas tão tênues e etéreos, que a par desses atributos e até mesmo por eles, resgatam o sentido da vida, im- primindo-lhe razão para viver além das condicionantes sensori- ais, instintivas e automáticas que caracterizam os seres vivos. Música na Noite sintetiza, sensível, inteligente e poetica- mente, o sofrimento e a vida, atenuado um pelo amor e pela música que, por sua vez, sustém, dá sentido e impulsiona a ou- tra, amalgamando arte e humanidade. Por meio de linguagem e estruturação ficcional convencio- nais, porém vigorosa uma e consistente outra, Bergman realiza obra esteticamente elaborada e ficcionalmente densa, em que a cegueira é tratada artística e autenticamente, ao contrário, por exemplo, do que acontece com o mesmo assunto em Ensaio So- bre a Cegueira (Brasil/ Canadá/ Japão, 2008), de Fernando Meireles, onde o tema é espetacularizado.
  • 29. 29 PORTO Um Meio, Um Modo Em 1945 eclodia na Itália o neorrealismo no cinema com Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta), de Roberto Rossel- lini, seguido de outros filmes, seus e de diversos outros cineas- tas do país. Ingmar Bergman, que estreara nesse mesmo ano com Cri- se (kris), não ficou infenso à influência dessa vigorosa e inova- dora tendência. Em Porto (Hamnstad, Suécia, 1948) também perfilha suas coordenadas básicas juntamente com preocupações atinentes à conduta humana. Se elege como protagonistas um marinheiro e estivador e uma filha de marinheiro, ambos da marinha mercante, centran- do neles o fulcro do drama e em torno deles orbitando as demais personagens, também elementos do povo, não deixa de mostrar a baixeza e a sordidez de alguns de seus elementos, como nos três operários que abordam acintosamente o casal na saída de sessão de cinema. Contudo, o mais importante do filme é a problemática pes- soal da protagonista Berit e seu relacionamento com o mari- nheiro Gösta. Berit sintetiza o sofrimento curtido desde a mais tenra in- fância num lar tumultuoso dominado por mãe despótica e in- compreensiva, circunstância que marca e pauta sua vida e suas reações. Seu relacionamento com Gösta sofre os efeitos negati-
  • 30. 30 vos dessa criação e sofrida vivência, custando a atingir a poeti- cidade que nimba e anima todo jovem par amoroso. A realidade que o neorrealismo descobre, elege e revela como tema ficcional impõe sua força, imprimindo ao filme a ve- racidade dos fatos e a autenticidade da natureza humana sub- metida às contingências de seu estar e agir no mundo. Ainda não se molda, nos parâmetros dessa perspectiva, o ser como ele é e como se relaciona consigo próprio. Mas, a seri- edade e perspicácia dos cineastas dessa estirpe vislumbram e bordejam, a partir dos fundamentos mais básicos da existência, as grandes coordenadas do íntimo humano que serão trabalha- das, posteriormente, em alguns filmes do próprio Bergman, de Fellini, Visconti e Antonioni, principalmente. Sem se conhecer, primeiro, o ser humano situacionado não seria possível atingir o coração da matéria de que é feito. Bergman, evidentemente, ainda não o atinge nesse filme, mas seu casal de protagonistas, deixado algumas vezes com sua insegurança, receios e problemática vivencial e relacional, de- monstra a perplexidade do ser humano com seu ego fragilizado pelas pressões e condicionamentos impostos pelo mundo for- mado, mantido e animado pelos outros seres humanos, confor- me responde Berit à indagação de Gösta: “— Está feliz agora? — Sim. Porém teria sido melhor se nunca tivéssemos nos conhecido. Agora que conheço a felicidade apenas será pior mais tarde.” Em outra oportunidade, a uma sua afirmativa antepõe: “— Eu tenho você.
  • 31. 31 — Isso não é grande coisa para se ter.” Se o filme centra-se e concentra-se em torno de Berit prin- cipalmente, de Gösta e da convivência de ambos, amealha tam- bém, neorrealisticamente, todos os aspectos e nuanças do con- texto geoespacial onde vivem, de ambientes simples, de instala- ções portuárias e seu entorno social de salões de bailes e cine- mas de rua, não sem também, de maneira competente e atilada, denunciar o ambiente contristador de reformatórios para moças e a frieza profissional de seus dirigentes e coadjuvantes, que no caso mais mal do que bem fazem à formação das adolescentes advindas de lares desestruturados. Porto é filme que mostra e demonstra, revela e ao mesmo tempo desvela um meio, um modo e um mundo e, neles, o so- frimento humano, neorrealística e bergmanianamente.
  • 32. 32 PRISÃO O Drama e Sua Condição No mesmo ano em que realiza Sede de Paixões, um de seus melhores filmes antes de 1952, Bergman dirige Prisão (Fängel- se, Suécia, 1949), que nada fica a dever àquele. Ao contrário. Sob o prisma da complexidade narrativa e do entrecruzamento de relacionamentos pessoais lhe é superior. Na realidade, é o filme mais complexo e criativo do cineasta nesses anos. Prisão, que nada tem a ver com penitenciárias e, sim, com as contingências, circunstâncias e limitações naturais do ser humano no mundo, não se restringe a simplesmente narrar es- tória compartimentada na qual as personagens desde o início já se apresentam delineadas e encaixadas em seus devidos ou in- devidos lugares. A ambientação em estúdio cinematográfico revela desde logo o descompasso entre o casal Tomás e Sofi e o interesse do diretor/personagem por ela. Se a proposta do antigo professor para roteiro de filme (de que a terra é o inferno e o diabo reina nela) não é aceita, a de Tomás, mais do que isso, imbrica o tema central do filme, con- sistente no relacionamento de Birgitta e Peter. Ou seja, a suges- tão de roteiro de filme de Tomás constitui a partir do momento de sua efetivação o próprio filme. O drama de Birgitta, ao assumir e centralizar a narrativa, segue em crescente intensidade, colhendo nas malhas de seu
  • 33. 33 desenvolvimento a Tomás, já rompido com Sofi, ao menos tem- porariamente. De plano ressaltam-se os perfeitos talhes caracterológicos das personagens, desde a autenticidade e personalidade de Bir- gitta ao disparatado modo de ser e agir de Peter, um falto de ca- ráter, medíocre, pretensioso e impositivo. De igual modo, res- salta-se a firmeza e seriedade de Sofi em contraposição à fraca personalidade de Tomás. Os dramas desses casais com suas interligações compõem o cerne narrativo, que se desdobra com firmeza e coerência até o desenlace, representativo de fuga à luta, já que a morte nunca é e nem deve ser solução para problemas e impasses, mesmo que, como no caso, a fragilização e aprisionamento do ser humano em malhas relacionais e existenciais apresentem-se impositivos e aplastantes. Contudo, a seriedade do enfoque e do drama e sua condu- ção antecipam e entremostram as potencialidades intelectuais e artísticas de Bergman. O drama humano da personagem situacionada e contin- genciada, presa nas malhas em que se cinge e por elas é paulati- namente envolvida e aprisionada, constitui o grande tema desse e o será futuramente de alguns outros dos melhores filmes do cineasta.
  • 34. 34 SEDE DE PAIXÕES Os Dons da Vida Bergman não é daqueles que de início, como referido ante- riormente, realizam obras primas, como Eisenstein, Mário Pei- xoto, Orson Welles, Gláuber Rocha e Norman Mailer, por exemplo. Ao contrário disso, perlustra caminho de estudos, buscas, observações e informações culturais e estéticas e concomitante amadurecimento, a exemplo, entre tantos outros, de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Dostoievski e Fellini. Sede de Paixões (Törst, Suécia, 1949) confirma a assertiva e sendo seu sétimo longa-metragem, é um dos mais substancio- sos deles e, pode-se dizer, sob o prisma da abordagem emocio- nal feminina e, por extensão, do ser humano, o melhor dentre os onze primeiros e antes do décimo segundo Mônica e o Desejo (Sommarem Med Monika, Suécia, 1952). Mas, tanto ele quanto este e qualquer um dos demais dessa fase ainda estão longe do que de melhor Bergman realizaria. Nele, como dificilmente em outro filme antes de 1950 de qualquer realizador, estruturam-se perfis femininos variáveis com profundidade analítica. Cada uma de suas duas principais personagens femininas (Rute e Viola) é complexa, problemática, angustiosa e angustia- da. Agredidas por acontecimentos traumáticos irrecuperáveis (mortes e esterilidade), as tensões, impulsos e insatisfações daí
  • 35. 35 derivados as afetam consideravelmente, transformando-as permanentemente em seres insatisfeitos, tristes e intranquilos. Viola, atingida pela morte do marido, lembrança a que se prende, extrapola o desgosto que essa perda lhe causa (mais de apego a algo concreto do que propriamente de sua falta, como lhe lembra o médico que a assiste, que, aliás, necessita de acompanhamento psicanalítico mais do que ela), para vagar em contínuo desassossego e mesmo desequilíbrio. Rute também sofre perda, a da criança que não pôde dar à luz e se descobre estéril daí em diante, tanto que sua conduta e modo de ser antes (no decorrer de seu relacionamento com Ra- ul) e depois, já com o marido Bertil, são totalmente diversos, enveredando por constante inquietação e externalização pala- vrosa de sofrimento. Contudo, não obstante tais ocorrências, o que Bergman constrói e expõe é mais do que essas consequências. É um esta- do ou condição insatisfatória, de inapetência para, vivendo, usu- fruir os dons da vida. Ambas, perderam a capacidade de, mesmo sofrendo, com- partilhar intimamente momentos ou fases de sofrimento e satis- fação, tristeza e alegria, revolta e serenidade, destempero e equi- líbrio, em alternância que facultaria, extraídos dos pequenos e dos grandes atos da existência, o proveito, a satisfação e a felici- dade que proporcionam, entre eles, e dos maiores, o amor que, por sinal, pode ser desastroso como demonstra o filme Infiel (Trolósa, Suécia, 1999), dirigido por Liv Ullmann sob roteiro de Bergman.
  • 36. 36 Na realidade, são criaturas cujo eixo vivencial foi destruído ou, quando menos, seriamente avariado, só lhes restando amar- gura e desorientação. Já Valborg, a dançarina de balé colega e amiga de Rute, age conforme sua condição biológica impõe, sendo visível a sa- tisfação que se lhe espelha na fisionomia quando se abrem pers- pectivas de consumação de seus desejos ao se deparar com Viola na rua e esta a convida para ir a seu apartamento, demonstran- do também visível desgosto com a frustração do encontro alme- jado, em decorrência da retirada abrupta da outra ao perceber sua real intenção. Sede de Paixões antecipa o Bergman das futuras grandes (e grandiosas) obras. Nele já se encontram os substratos e a substância humana que as caracterizam e as tornam monumen- tos da criação artística. Não se pode deixar passar sem referência a até certo ponto espantosa e de toda maneira inusitada e até incompreensível, para quem não atenta para a complexidade e variedade dos se- res humanos e suas manifestações, reação de Bertil quando Ru- te lhe diz, após ele lhe ter contado o sonho no qual a mata, que ele, assim, seria livre e independente, ao que ele retruca: “Livre e independente é pior do que esse inferno em que vivemos.”
  • 38. 38 Um Barco Para a Índia Prisão
  • 39. 39 RUMO À FELICIDADE A Vida e Seu Transcurso Em Rumo à Felicidade (Till Glädje, Suécia, 1950), Berg- man trata exclusivamente, como faz frequentemente nessa fase, do amor entre jovem casal. E o faz, como sempre, de maneira consistente, para não dizer soberba, tal a acuidade com que arti- cula e desenvolve o tema, a propriedade com que o conduz e a autenticidade que lhe imprime. Conquanto o gênero humano, por ser da mesma espécie, possua elementos comuns de constituição, ação e reação, cada um de seus componentes ama o outro de maneira especial. Por sua vez, cada casal constrói entre si e para si mundo próprio, que o isola dos demais, contendo características peculi- ares de vivência e convivência. Com a obra fílmica de Bergman não se passa de maneira diferente. Cada um dos filmes dedicados à trajetória amorosa de jovem par apresenta situações diversas, conformadas e confir- madas por problemática igualmente singularizada. Além disso, e mais relevante do que isso, que é particulari- dade natural da espécie, Bergman infunde ao relacionamento de suas personagens tal dose de essencialidade e humanidade, que sua união ostenta, como nesse caso, extrema substanciosidade, abrangendo os aspectos mais importantes da vida. Em Rumo à Felicidade, por isso, mesclam-se, como na re- alidade, momentos de poetização com tropeços, desacertos e
  • 40. 40 amarguras que também geralmente incidem e empanam a feli- cidade do casal. Desentendimentos e incompreensões derivados de diversa formação e conformação de personalidade e entendimento do mundo e da vida costumam enxamear a existência em comum, como ocorre também nesse filme. Nele jaz implícita, explícita e exposta naturalmente a dife- rença, em alguns ou muitos casos enorme, entre a dedicação feminina ao lar, aos filhos e ao conjunto familiar e o comporta- mento dispersivo e frequentemente alheado do homem, que ge- ralmente não responde e nem corresponde aos requisitos e exi- gências naturais e normais da convivência a dois e a responsabi- lidade de gerar, criar e formar novos seres humanos, oriundos de seu ser e do amor comum. Nesse filme, mais do que em qualquer outro de Bergman, dos que se conhecem, essa disparidade é bem coordenada e tra- balhada e diretamente evidenciada, alternando-se momentos de grande beleza poética com a ácida corrosão dos desacertos e transviamentos, para culminar numa cena final que amalgama, como poucas, realismo e emoção, demonstrando que a vida e seu transcurso são superiores aos maiores transtornos e desas- tres e que sua continuidade, conforme plasmada nos descen- dentes, encerra esperança, mesmo que eivada, ou até por isso, de recordações dolorosas.
  • 41. 41 JUVENTUDE A Revelação do Amor Um dos temas recorrentes da obra de Ingmar Bergman, além da solidão e da incomunicabilidade humana, é o amor. Vá- rios de seus filmes, desde os títulos que refletem, expõem ou sintetizam seus temas, tratam específica e às vezes exclusiva- mente da atração que une duas pessoas, a ponto de uma não poder viver sem a outra. O amor é sentimento fundamental na juventude, onde as- sume importância capital e até supervalorização excessiva de- corrente da própria natureza humana, que o não dispensa, sen- do, pois, natural e impositiva sua ocorrência. E tanto o é, que as pessoas nessa fase da vida, com possí- veis exceções, sempre desenvolvem de maneira absoluta o sen- timento amoroso em relação a outra de igual ou aproximada faixa etária. É o que ocorre com as personagens que Bergman cria e trabalha no filme sugestivamente intitulado Juventude (Som- marlek, Suécia, 1951). A sutileza e propriedade com que trata o amor são nele bastante acentuadas, tornando-o superior até mesmo a outros que realizou posteriormente sobre o mesmo tema, não obstante sua linearidade expositiva e convencionalismo de linguagem. Do mesmo modo que a realidade e a natureza humana im- põem o surgimento do amor entre dois jovens, Bergman, como demiurgo, suscita esse sentimento em suas personagens, Maria
  • 42. 42 e Henrique, nesse fazer engendrando também as próprias per- sonagens, sua visão do mundo, seu feixe de emoções e reações, infundindo-lhes densidade humana. Faz isso com a maestria que torna indistinguível a ficção da realidade. Como escreveu o poeta Arici Curvelo no poema “Às Vezes”, referindo-se aos artistas em geral, que criam “outra realidade que expande a realidade”. O relacionamento amoroso entre os protagonistas desse filme é tão consistente e apropriado, que a partir dele tem-se, no mundo, mais um caso de amor tão real como os normalmente ocorrentes. E como em toda ligação amorosa, a de Bergman é cercada de tons poéticos, alegrias e felicidade, que alteiam o par acima da cotidianidade e das exigências práticas, insuflando-lhes nova dimensão vivencial, algo novo, indefinível, que eleva os amoro- sos a patamar superior de existência. Juventude não é apenas filme sobre o amor. É mais. É obra que revela o amor, mostrando o que ele é, como é e por que é. Por isso é poético, luminoso, belo, de alegria e satisfação íntimas, imperecíveis no desfrute desse mútuo sentimento, que não se limita a expor a eclosão e exteriorização do amor como geralmente é habitual, mas, imprime na face das personagens a repercussão de seu íntimo e as alterações e manifestações que as assaltam. Mas, também é filme que focaliza a quebra desse liame, suas consequências e as marcas que deixa, inapagáveis.
  • 43. 43 A transição de uma a outra fase existencial e o corte axial provocado na personagem, só a realidade produz igual ao drama bergmaniano, que inverte os polos usais impondo que a realida- de só será autêntica e terá sentido se imitar a arte, sua grande arte. Nesse e em todo sentido possível, é lapidar o diálogo man- tido entre a protagonista e seu tio, quando ela expõe visceral e entranhada revolta contra os acontecimentos. Diz o tio: “Há apenas uma coisa a fazer, proteger-se, erguer mu- ros. Proteger-se do toque do infortúnio.” A vida prossegue, conquanto marcada por fenda emotiva imperecível, recuperando a força da natureza humana e encer- rando-se o filme com uma das cenas mais sutis e sintéticas da arte ficcional, pela forma e sentido como se expressa. Símbolo bergmaniano da juventude e do amor da juventu- de, surge, no filme, os morangos silvestres, que iriam anos de- pois intitular uma das maiores obras–primas da arte, o filme desse título, do qual Juventude é fonte inspiradora, até mesmo na belíssima focalização de aspectos da natureza. A tomada ini- cial da paisagem já evoca fortemente Morangos Silvestres, con- quanto ainda sem a sutileza e beleza de sua congênere no citado filme.
  • 44. 44 MÔNICA E O DESEJO Percurso Amoroso A obra fílmica de Ingmar Bergman apresenta duas grandes linhas temáticas. Ambas importantes. Uma, que o notabiliza, nucleada na condição humana em si, do ser no mundo. Outra, de sua situa- ção, de seu modo de estar e agir. Isso, até onde essas coordena- das apresentam características e conotações próprias ou, ao menos, mais relevantemente distintas. No primeiro caso, entre outros filmes, sobrelevam, Mo- rangos Silvestres (Smultronstället, Suécia, 1957), O Silêncio (Tystnaden, Suécia, 1963), A Hora do Lobo (Vargtimmen, Sué- cia, 1968), Gritos e Sussurros (Viskningar Och Rop, Suécia, 1972). No segundo, seus filmes anteriores a 1956, entre eles Mônica e o Desejo (Sommaren Med Monika, Suécia, 1952), e, ainda, também entre outros, A Fonte da Donzela (Jungfrukäl- lan, Suécia, 1960), Cenas de Um Casamento (Scener Ur Ett Äktenskap, Suécia, 1973), O Ovo da Serpente (Das Schlangenei, Alemanha/EE.UU., 1977), e Fanny e Alexandre (Fanny Och Alexander, 1982). Na primeira vertente, tem-se mergulho vertical na pro- blemática existencial, com ênfase na incomunicabilidade e no relacionamento interpessoal, incursionando o cineasta pelas profundidades íntimas do ser, explorando os escaninhos da mente, da racionalidade e das emoções.
  • 45. 45 A segunda linhagem de filmes representa corte horizontal na existência humana, considerando seu estar e agir no mundo. Mônica e o Desejo, inserindo-se nessa última espécie, é, pois, explícito, conquanto não seja simples. Nele, Bergman ex- põe o problema do relacionamento amoroso entre dois jovens. Sem, no entanto, restringir o foco de suas preocupações somen- te a seu conteúdo. Faz isso excepcionalmente bem. Mas, não só isso, vez que contextualiza o casal e o amor que os une, exibin- do-os em todo o complexo de relações humanas: em casa, com os pais; no trabalho, com os empregadores; na vida social, com os circunstantes. Contudo, não em simples reportação a esses ambientes, a modo da visão jornalística da existência, sempre ligeira e super- ficial. Mas, à maneira bergmaniana, de expor o ser humano so- lidamente arraigado às suas inúmeras contingências limitado- ras, geradoras de contradições e impasses quando conflitantes realidade e pretensão. Com economia de meios, o cineasta sintetiza em poucas cenas a posição familiar e profissional de cada um dos protago- nistas, desvendando, simultaneamente, tanto situados quanto em ação, seu universo mental, condição intelectual e ideário existencial. Um, responsável e apreensivo com os compromissos assumidos. Outro, vinculado a seus desejos e preocupado ape- nas com a maneira de satisfazê-los, estabelecendo-se, assim, contradição de propósitos e atitudes. Realista, o filme revela a vida como ela realmente é, não seccionando ou privilegiando aspectos nem isolando situações ou exagerando posicionamentos.
  • 46. 46 Nos cânones, pois, do realismo, a abordagem explicita po- sições, sentimentos, ideias e conflitos tais como ocorrem nor- malmente no cotidiano, sem preocupação com as motivações ín- timas dos atos das personagens, mas, com as causas objetivas de sua condição social, formação pessoal e problemas advindos da falta de recursos materiais. As condições e posturas das perso- nagens explicam-se por si mesmas, simplesmente acontecendo. O filme reflete influência do movimento neorrealista itali- ano eclodido nos meados da década de quarenta e, então, no auge de sua repercussão, embora já a caminho de esgotamento na Itália no ano em que esse filme é realizado, circunstância ainda não percebida à época. Todavia, Mônica e o Desejo não se restringe a ser, apenas, filme de talhe neorrealista ou realista. É mais do que isso. Con- quanto manifesto e expresso na criação e amostragem de drama humano e fortemente vinculado a circunstâncias materiais con- cretas, vai mais além e também mais fundo ao expor, antes de tudo, o conteúdo ou o cerne do liame íntimo, sentimental, que une os protagonistas, embora longe ainda da complexidade al- cançada em obras posteriores. Revela, porém, concomitante- mente, contida e rigorosamente, além de conhecimento da con- dição humana e sensível apreensão das sutilezas e meandros de suas manifestações, o desfazimento desse vínculo e sua subja- cente motivação deflagradora. Têm-se, poeticamente, a gênese e o desenvolvimento do amor, com sua alegria e satisfação. Acidamente, seu lento depe- recimento.
  • 47. 47 Tudo isso por meio de eficaz utilização dos recursos da câmera, com belas imagens e exploração estética de ângulos e perspectivas da paisagem natural e urbana, malgrado ligeira e perceptível falha de direção e interpretação de um dos atores na cena em que o protagonista luta, à beira-mar, com seu desafeto.
  • 48. 48 QUANDO AS MULHERES ESPERAM A Versão Feminina A mulher — sua condição, posicionamento e reações — é o tema central de Bergman na maioria de seus filmes. Em Quando as Mulheres Esperam (Kvinnors Väntan, Suécia, 1952), o título, o brasileiro pelo menos, salienta essa preocupação, indicando-a como o assunto básico do filme. Enquanto quatro mulheres aguardam em casa de veraneio a chegada de seus maridos, narram umas para as outras episó- dios das convivências com seus esposos, em que se entremos- tram o estado das coisas e a natureza dos vínculos que as unem a eles. Uma delas, Annette, justamente a que deflagra o enredo, revela, com absoluta sinceridade e cheia de amargura, a situa- ção do casal: “O que nos tornamos? Um casal de fantoches chi- neses corteses”. Raquel, conquanto narre extensamente episódio de infide- lidade conjugal e suas consequências, também enfoca o estado atual de seu relacionamento. As demais, Marta e Carin, limitam-se a lembrar, cada uma um tanto longamente, situações que vivenciaram com seus ma- ridos, não deixando esta, porém, de evocar sua realidade ma- trimonial, incursionando a primeira, em sua rememoração, a episódio ocorrido em horrorosa boate parisiense, como afirma, ensejando a Bergman estigmatizar, de uma vez por todas, os es-
  • 49. 49 petáculos que tais casas oferecem aos turistas ao salientar seu aspecto grotesco e acentuada artificialidade. No contexto da filmografia do cineasta sueco, esse e seus demais filmes até então, não obstante sua categoria, não se comparam com suas futuras obras primas. Conquanto isso, e não poderia normalmente ser de outro modo, nele e neles encontra-se e desenvolve-se o germe que irá se corporificar nas citadas obras, demonstrando, acima de tudo, o arcabouço mental e cultural do cineasta que, com o tempo, ampliará e aprofundará sua concepção e visão do mundo aos limites da máxima compreensão intelectual e da exímia elabo- ração artística, compondo corpus criativo que, a exemplo de Shakespeare, destacará para sempre sua época e a civilização de seu país, permanecendo indefinidamente como testemunho de fixação estética das mais sérias, argutas e profundas preocupa- ções humanas. Tais filmes, mesmo os melhores deles, não fariam falta se não existissem frente ao que Bergman faz depois. Contudo, como se sabe − e os quatro primeiros romances de Machado de Assis (Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena e Iaiá Garcia) estão aí para provar − são básicos para essa futura configuração, sem os quais ela não se efetivaria. As Mulheres Esperam, não obstante seu limitado alcance analítico, é veiculado por meio de sofisticada exposição imagéti- ca, por força de ângulos e enquadramentos precisos e poéticos que valorizam e realçam os movimentos e as posturas das per- sonagens, mesmo quando banais algumas das cenas que as en- volvem ou de que participam.
  • 50. 50 NOITES DE CIRCO A Imposição da Realidade O filme Noites de Circo (Gycklarnas Afton, Suécia, 1953), de Ingmar Bergman, é muito mais sobre o ser humano e sua existência do que propriamente sobre o circo, não obstante transcorrer quase todo num deles. Embora crie o circo, sua estrutura física e apetrechos e ne- le coloque as personagens características (proprietário, palhaço, anão e demais figurantes), o que é focalizado é o ser humano. Conquanto articule nesse microcosmo especial os relacio- namentos possíveis e usuais entre seus componentes, o que se ressalta é a problemática humana e convivencial de Alberto, o proprietário, e de Ana, artista circense, sua amante (Harriet An- dersson). Dessa problemática destaca Bergman dois aspectos bási- cos para o ser humano: a luta pela sobrevivência e a união amo- rosa, questões que ocupam e nucleiam o filme. São o filme. No desenvolvimento desses dois eixos centrais da narrati- va, o cineasta cria e expõe as situações pelo que a realidade obje- tiva informa e forma na mente humana, nela traçando as coor- denadas da vida subjetiva e como, nesta, os problemas se mani- festam e se resolvem ou não se resolvem. Por isso, preenche a narrativa com as atitudes e as reações manifestadas pelo casal protagonista frente ao que a condição financeira impõe e o conteúdo de sua atração mútua determina.
  • 51. 51 Não obstante explicite o comportamento do casal, não dei- xa de revelar uma constante da existência humana e uma con- tradição emocional. No primeiro caso, o impulso centrífugo dos protagonistas de se livrarem da contingência em que vegetam ao invés de vice- jarem e se acharem realizados. A precariedade econômico- financeira os expele para fora do núcleo vivencial, no tateamen- to de possíveis saídas pelas quais se livrem e se libertem. Ambos se lançam pelas portas que se abrem com o desam- paro de sua precariedade, utilizando as estreitas oportunidades que surgem como possibilidades de libertação. Se exitosos, teriam outra vida com novas perspectivas. Ca- so contrário, permaneceriam na mesma posição, agravada pela frustração e pela decepção. No segundo caso, expõe o cineasta uma das múltiplas con- tradições do ser humano, quando o protagonista, na sua tentati- va de mudar de situação, não exita em se descartar da amante, mas, reage, com amargura e até com violência, quando a desco- bre momentaneamente infiel. Além do sentimento amoroso ainda existente, parece pre- dominar nessa atitude - e em todas as análogas ou assemelha- das – o sentimento de posse e exclusividade, que não admite transgressão. Por mais que o ser humano seja gregário e sociá- vel e dependa do acolhimento do outro, ele é, e não poderia ser de outra forma, o centro de si mesmo, constituindo universo ao redor do qual tudo orbita, mesmo que ele não possa determinar- lhe conteúdo, significado e rumos.
  • 52. 52 Noites de Circo, não obstante sua narrativa direta, é o oposto do divertimento em seu humanismo vinculado às condi- cionantes e imposições da realidade.
  • 53. 53 UMA LIÇÃO DE AMOR Comédia Inteligente Pode-se dizer de Uma Lição de Amor (En lektion i Kärlek, Suécia, 1954), de Ingmar Bergman, que é comédia inteligente. Atributo que se ressalta desde o início e se caracteriza pela se- quência transcorrida no consultório médico do protagonista (Gunnar Björnstrand), onde já se prepara o epílogo do filme. Os diálogos aí, como em todo o transcurso da película, são incisivos e diretos, como, aliás, costuma ser a interlocução em comédias do gênero. A narrativa é explícita, linear, mas, nem por isso deixa de enfocar problemático relacionamento conjugal, tratado, todavia, não obstante a gravidade que assume a disrupção amorosa, de maneira a dele extrair e expor a componente cômica, no que o cineasta brasileiro Luís de Barros denominava apropriadamente de “visão cômica da vida”. O filme, com exceção do encontro e diálogo do protagonis- ta com a filha adolescente, é marcado por sequências descontra- ídas, leves e de ritmo ágil. Uma, a do frustrado primeiro casamento da protagonista (Eva Dahlbeck), tanto em seu apartamento quanto no aparta- mento do noivo, onde se desenrola cenas de pastelão inimagi- náveis entre os discretos e racionais suecos. Surpreendente pela inusitada situação e brilhante pelos diálogos e desempenho interpretativo, a sequência desenrolada no trem, que se salienta por imprimir a encontro crucial do ca-
  • 54. 54 sal, em vias de separação definitiva, perspicaz equilíbrio entre a dramaticidade do momento e sua ínsita comicidade, extraída da personalidade de ambos, mesclando atos cômicos com o sério teor das questões por eles vividas. Sequência também destacável, constitui a transcorrida no “inferninho”, na qual, além do mais, como bumerangue, volta- se contra a pretensão do amante da protagonista a armação por ele montada. Enfim, filme que revela, à semelhança de outras de suas comédias, a faceta cômica de cineasta celebrizado (e cultuado) justamente por propostas de elaboração e articulação dos graves problemas da incomunicabilidade e solidão humanas, tratados no mais alto nível filosófico e antropológico. Aliás, como Sha- kespeare, a cujas alturas se equipara, que legou, ao lado de ter- ríveis tragédias e dramas pungentes, série de leves e descom- promissadas comédias, meros derivativos.
  • 55. 55 SONHOS DE MULHERES Frustração e Desengano Sonhos de Mulheres (Kvinnodröm, Suécia, 1955), de Ing- mar Bergman, é filme mediano como vários dos que dirigiu na década de 1950, nem se podendo comparar com suas obras- primas, aquelas que o revelaram e o tornaram célebre. Essa mediania não está isenta, todavia, de certo valor, já que cineasta dessa envergadura procura-se elevar acima da ma- lha do mero espetáculo, um dos produtos mais rendosos a ali- mentar a compulsão e o condicionamento consumista da socie- dade, nesse caso, no segmento do entretenimento. Do mesmo modo de seus outros filmes, Bergman elege te- ma consistente e lhe dá tratamento condizente com seus propó- sitos autorais de criação e análise do ser humano e de seu rela- cionamento. Nesse filme não deixa por menos ao criar e desenvolver duas personagens que protagonizam o enredo, a modelo (Harri- et Anderson) e a diretora da agência de fotos de moda (Eva Dahlbeck). Se a primeira é imatura e facilmente enredada pelo desejo de possuir belos vestidos e jóias caras, transcendendo o simples impulso consumista, a segunda, executiva articulada e de forte personalidade, é dominada por conturbado amor. Sobre essa bipolaridade vivencial o cineasta constrói, com a seriedade que imprime aos dramas que elabora, a problemáti- ca de dois seres humanos entretecidos no exercício de viver. Se a modelo mantém relacionamento amoroso, sua natu- reza e exteriorização diferem do sustentado pela diretora da
  • 56. 56 agência em consequência da diferenciação de suas personalida- des, por isso marcado por lances infantilóides, demonstrados também, como não poderia deixar de ser, já que conjuminal, na extravagante aventura que a envolve e conduz com idoso que por ela se encanta (Gunnar Björnstrand), o qual só o patético salva do ridículo na sua carência de convivência feminina dada a peculiaridade de seu contexto familiar. Os desejos da modelo de tomar sorvete e passear de montanha russa externalizam e complementam esse viés comportamental, aflorado desde o iní- cio fílmico com sua atitude com o namorado. Já as agruras amorosas da diretora da agência percorrem outra linha de manifestação até com laivos de dramaticidade. As reações que externa (e extrema) no trem e sua conduta com o amante correspondem ao perfil de executiva prática e madura, mas, subordinada e dobrável, porém, como todo ser humano, ao sentimento amoroso até o limite da consciência e da quebra da ilusão. Em Sonhos de Mulheres, que se reparte entre os apelos das jóias e dos vestidos caros e do usufruto de divertimentos in- fantis e o drama de dificultada e dificultosa relação amorosa, conquanto isso, a essa consistente problemática humana, o ci- neasta não efetua, como em suas melhores obras, a exploração do íntimo das personagens, permanecendo ao nível de amostra- gem comportamental externalizada e observável sem necessida- de de perquirições e de percepção mais aprofundada da nature- za humana, constituindo meio-termo entre o naturalismo das manifestações exteriorizadas e os refolhos recônditos dessa im- pressionante e infinitamente variável natureza.
  • 58. 58 Uma Lição de Amor Sonhos de Mulheres
  • 59. 59 SORRISOS DE UMA NOITE DE AMOR Sutileza e Perspicácia À semelhança de Shakespeare, a quem se equipara, Ing- mar Bergman, autor de obras de grande complexidade de con- cepção e elaboração, abordando séria problemática humana de solidão, angústia e incomunicabilidade, também realizou comé- dias. Se o dramaturgo britânico, paralelamente a dramas e tra- gédias terríveis (Hamlet, Macbeth e Rei Lear, por exemplo) e dramas históricos consistentes (Ricardo II e III, Rei Henrique IV, V, VI e VIII), escreveu comédias (Medida Por Medida, A Megera Domada e As Alegres Comadres de Windsor, entre elas), Bergman, ao lado da profundidade filosófica e antropo- cêntrica de alguns dos filmes mais densos do cinema, também dirigiu comédias, mas não só isso, mas, até mesmo comédia ro- mântica como Sorrisos de Uma Noite de Amor, inicialmente denominada no Brasil de Sorrisos de Uma Noite de Verão (Sommarnattens Leende, Suécia, 1955), demonstrando toda sua versatilidade criadora, com leveza e humor surpreendentes no autor tão angustioso (mais que angustiado) de O Silêncio (1963), A Hora do Lobo (1968) e Gritos e Sussurros (1922), en- tre outros. A comédia bergmaniana em questão apresenta inúmeras características que a distinguem da generalidade comum do gê- nero.
  • 60. 60 Uma delas, é seu viés teatralizante, com os diálogos (for- tes, incisivos e bem concebidos) articulados para apresentações no palco, a partir mesmo da postura e entonação dos atores, no- tadamente do advogado Egerman e da atriz Desirée, os prota- gonistas da ação fílmica em torno dos quais giram as demais personagens. A par isso, que não compromete o filme, principalmente porque transcorrida a estória em época e meio social estrutu- ralmente conservador e moralmente liberado, a dinâmica e o ritmo da ação, aliados à inteligência e sutileza das proposições expressas pelas personagens, imprimem à narrativa celeridade e consistência. Mais ou tão só que a comum comicidade, o que se tem é humor sutil e perspicaz em que subsiste permanente crítica comportamental das personagens, sem descuramento de condi- ções e situações dramáticas, como a angústia e a perplexidade do jovem Henrik, filho do primeiro casamento de Egerman, di- vidido entre sua moralidade religiosa de clérigo e os apelos do sexo e do amor (“Senhor, retire essa infeliz virtude de mim. Eu não aguento mais”) ou a revolta da condessa Malcolm com as infidelidades do marido, movida por seu amor a ele. Já as parcerias amorosas, Egerman e Desirée, Petra (a cri- ada e sua volubilidade) e seu namorado, transcorrem natural- mente, conduzida, a primeira, por comportamento racional e, a segunda, por impulsos espontâneos. A montagem e textura diegética dos imbróglios amorosos e sua inserção e interinfluência no conjunto dramático são estru- turadas e formuladas com tanta perspicácia e adequação, que os
  • 61. 61 elevam à condição de problemática humana central para as per- sonagens, visto resolvidas as demais necessidades e exigências econômico-sociais do estamento social focalizado, com seus componentes solidamente incrustados nos respectivos setores e misteres. A característica da sagacidade e causticidade bem humo- rada do filme sobressai nos seguintes e expressivos diálogos en- tre Desirée e sua mãe: “– Por que terminou com o conde? – Ele me ameaçou com um atiçador. – Que coisa terrível. Mas ele deve ter tido as suas razões. – Pela primeira vez, eu era realmente inocente. – Então deve ter ocorrido no início da noite.” Em outros momentos: – “Por que não escreve as suas memórias? – Querida filha eu recebi todos estes bens para não escre- ver as minhas memórias.” * – “Você ama mesmo aquele idiota? – Qual deles? – Qual deles você acha? – Ah, esse, sim, eu amo.” * – Sua personalidade é forte demais. Puxou seu pai. – Qual deles? Eu tive tantos.” E, ainda, no diálogo entre Desirée e a condessa Malcolm: “– Eu tenho um plano (Desirée) – Eu estou nele? (condessa Malcom)
  • 62. 62 – Muito – Vai ser honesta? – Por que não? A final, somos inimigas.” Por fim, salienta-se, em contraponto aos dramas humanos, a poeticidade de belíssimas e expressivas tomadas, como o per- curso de Egerman entre o escritório e a residência logo no início do filme, a carruagem pela estrada em paradisíaca paisagem, a condessa cavalgando pelo campo, o passeio de barco de Henrik e Anne, além de flagrantes de cisnes no lago e o amanhecer no campo em pleno verão sueco. Destacam-se também, pelo bom gosto e pertinência, a se- quência do epílogo fílmico, na qual Bergman canta seu louvor à vida e à paisagem por intermédio do criado que se apaixona por Petra e após ter com ela relacionamento amoroso, proclama “não há vida melhor que esta”, terminada com as cenas antoló- gicas em que ele externa essa satisfação de frente para os cam- pos e de costas para a câmera, tendo Petra lateralmente às suas costas, sorrindo e olhando para o céu e, ainda, a cena que encer- ra a película com a caminhada de ambos emoldurados por ex- pressivo moinho.
  • 63. 63 O SÉTIMO SELO A Vida e a Morte O filme O Sétimo Selo (Det Sjunde Inseglet, Suécia, 1956), de Ingmar Bergman, situa-se, quanto à estrutura narrativa, num meio termo entre suas obras mais simples (a exemplo dos filmes da década de 1940, de Mônica e o Desejo, 1952; de A Fonte da Donzela, 1960; e de Fanny e Alexandre, 1982), e as de maior profundidade e complexidade (como Morangos Silvestres, 1957; O Silêncio, 1963; A Hora do Lobo, 1968; Gritos e Sussur- ros, 1972). À semelhança das primeiras, rastreia relato cronológico, focalizando o cotidiano e a apresentação, numa aldeia, de trou- pe de saltimbancos, onde se destaca casal de artistas perfeita- mente entrosado, marital e profissionalmente. A modo das segundas, ao evidenciar paralelamente, pri- meiro em separado e depois conjuntamente com a atuação da troupe, existencialmente angustiado cavaleiro medieval e seu fi- losófico escudeiro, adiciona, ao mundo objetivo e pragmático, a complexidade subjetiva e intelectual. Extroversão e ação. Introspecção e meditação. Mais (só mais) do que simples encontro dessas facetas da realidade medieval, tem-se, de um lado, descontração, despreo- cupação e a alegria simples do viver, como se o céu e a felicidade fossem aqui na terra. Já o cavaleiro e seu escudeiro representam a consciência da transitoriedade da vida com a presença acerba da certeza da
  • 64. 64 morte, que surge personalizada, travando mortal jogo de xadrez com a personagem na tentativa inglória e infrutífera, desta úl- tima, de adiar o encontro definitivo com a Ceifadora. Ao preten- der encontrar Deus e o Diabo, como se fossem individualidades definidas e não apenas representações ou símbolos imaginários do Bem e do Mal, o perspicaz cavaleiro procura sua salvação. Se de um lado, tem-se o céu dos artistas com seu amor es- pontâneo e autêntico e a riqueza inimaginável de filho bebê, for- te e saudável, e a alegria das representações teatrais, de outro, coloca-se o assédio da morte, o inferno angustioso do conheci- mento e da consciência das coisas. Nesse corte vertical e profundo no espesso universo medi- eval, Bergman expõe sua dupla face, o binômio em que se parte e reparte, simultaneamente antropocêntrico (a vida estuante dos artistas) e teocêntrico (a ansiedade assoberbante do cavalei- ro). Um filme também concomitantemente analítico e sintético, exibindo fatos e circunstâncias concentrados em espaço e tempo definidos. Nesse cadinho de variada argamassa, adicionam-se ocor- rências múltiplas, caracterizadoras de cada um desses mundos. De um lado, além do relacionamento dos artistas, até mesmo adultério solucionado mais ridícula do que comicamente. De outro, a procissão dos flagelados, as previsões apocalípticas de seu líder, a peste negra, o status material e social dos aldeãos, a maldade humana, a execução na fogueira de jovem acusada de relações com o Diabo. Em suma, quadro abrangente e quase completo, físico, emocional e mental da Idade Média europeia, a que faltou ape-
  • 65. 65 nas, entre suas características mais conhecidas, a amostragem do poder dos senhores feudais em oposição à desvalia dos ser- vos da gleba. Afora isso, tudo do que mais se propala da época está no filme, no qual sobressai, por seu significado permanen- te, o duelo do ser humano com a Morte, cujo resultado, anteci- padamente conhecido, é o maior, senão o único drama que asso- la o ser humano. O jogo de xadrez disputado individual e inutilmente com a Morte representa inconformismo com seu inexorável poder, momentaneamente desviado e diferido, nunca elidido. Mais fundamente, é o exercício da inteligência humana na luta infru- tífera contra seu perecimento. A discreta e calma personificação da Morte nesse filme en- contra precedente em A Morte Cansada (Der Müde Tod, Ale- manha, 1921), de Fritz lang. O Sétimo Selo é filme perfeito, tanto formalmente quanto na reconstituição fisica e intelectual do mundo medieval euro- peu, com sua precariedade material e absorvente preocupação com o destino humano post-mortem antes que com a vida.
  • 66. 66 MORANGOS SILVESTRES Sonhos e Reminiscências Morangos Silvestres (Smulstronstället, Suécia, 1957), constitui um dos melhores filmes de Bergman. Causa impacto e impressiona à época de seu lançamento. Realizado em três tempos ficcionais (presente, passado e o mundo onírico), o revezamento entre eles confere-lhe estrutura- ção inusual. A alternância, todavia, se dá apenas na sucessão de ima- gens, visto não ser conveniente sua concomitância, ou seja, os três níveis da trama apresentarem-se simultaneamente, embora possível tecnicamente, conforme demonstrado nas cenas inici- ais de Os Imorais (The Grifters, EE.UU., 1990), do britânico Stephen Frears. Contudo, sob o aspecto temático, os sonhos e as reminis- cências do protagonista permeiam o presente. Sucedem-se em imagens belíssimas, enquadramentos e angulações apropriadas e, em comparação com algumas outras obras mais intimistas de Bergman, com relativamente poucos primeiros planos. A estória real do presente flui cronologicamente de manei- ra brilhante. A viagem do protagonista e os incidentes domésticos ocor- ridos no seu curso compõem o eixo central da urdidura temáti- ca. Por si só, já perfazem excelente filme, conquanto só aparen- temente destituído de profundidade.
  • 67. 67 A inserção, nesse contexto, de seus estranhos e enigmáti- cos sonhos, uns conforme sua narração, outros ocorrentes no decurso do presente, e a incidência das recordações mais dolo- ridas de sua vida à medida que, no transcurso da viagem, entra em contato com os sítios de sua juventude, permite ao diretor lidar com o onírico, o passado e o presente, reconstruindo e re- velando a vida emocional e o arcabouço mental da personagem. Uns e outros confluindo para fixar-lhe o perfil e, interagindo, modificar-lhe o comportamento. Os choques do presente, a lembrança dos traumas emoci- onais do passado e os enigmas oníricos, ocasionados (ou permi- tidos) pela quebra da rotina diária, tornam-se, sob a orientação e direção de Bergman, uma das obras primas do cinema pela forma requintada, esplendor das imagens, perspicácia e sutileza dos enfoques, brilhantismo dos diálogos e abrangente significa- do. O encontro de três gerações, com diversificadas visões do mundo sutilmente defluídas das respectivas atitudes, representa outra das virtualidades do filme. A cena em que os três jovens caronistas homenageiam o protagonista com um buquê de flo- res campestres é das mais expressivas do cinema, pela beleza da imagem, eficaz angulação e implícito sentido. O filme todo, da primeira à última tomada, nas cenas mais banais e nos insólitos décors de equívocos sonhos, no relacio- namento que estabelece entre as personagens, na racionalidade (e aparente) frieza dos desencontros de um casal e da conflitiva convivência de outro, é dos mais sensíveis e sofisticados possí- veis.
  • 68. 68 A fluência das imagens e a aparente linearidade da estória podem dar a impressão de simplicidade, o que é enganoso. Sua alta complexidade é que é, mercê das qualidades apontadas, deslindada fluida e primorosamente ante os olhos e a percepção do espectador. Este, sim, poderá ser singelo, não atinando com as implicações do filme, ou, sendo inteligente e perspicaz, ab- sorver sua profundidade temática e grandeza formal.
  • 69. 69 NO LIMIAR DA VIDA As Personagens e Sua Problemática O título de No Limiar da Vida (Nära Livet, Suécia, 1958), de Ingmar Bergman, corresponde direta e inteiramente à temá- tica abordada. Em qualquer gênero ficcional, dificilmente haverá obra que capte com mais propriedade questões cruciais e aspectos re- levantes que envolvem a maternidade. Para isso e por isso, Bergman reúne três parturientes no mesmo quarto de hospital especializado, interpretadas por In- grid Thulin, Bibi Anderson e Eva Dahlbeck. Três mulheres, três problemáticas diversas por suas ori- gens, determinantes e condicionamentos. Se para duas delas (Ellius e Stina), o momento se apresen- ta igual e intensamente problematizado, seus comportamentos, reações e perspectivas são inteiramente diferentes. Se ambas são vítimas do mesmo desenlace, conquanto di- vergente o feixe de seus componentes motivadores, o vivencia- mento por elas do respectivo infortúnio, conforme criado e con- duzido pelo cineasta, traduz sua essência vital. Acima e além de qualquer questionamento e discussão so- bre o significado da existência do ser humano, os atos da con- cepção, gestação e maternidade resumem e encerram, em si e por si mesmos, seu sentido mais profundo e fundamental, que independe de fatores e considerações exteriores e alheios a eles. Daí sua importância.
  • 70. 70 Contudo, esse procedimento extrapola os limites dos atos físicos, envolvendo o relacionamento amoroso dos genitores e o entendimento que cada um tem dele e de seu significado. Se para Ellius, “a vida passou pelo meu útero e escoou como água”, não é só esse seu drama, constituindo a gravidez e o parto momentos deflagadores de conscientização do conteúdo e da natureza de seu vínculo com o esposo, questão, como todas as demais no filme, em que emoção e sentimento são submeti- dos a elevado grau de racionalização. Já para Stina ou sra. Andersson, o parto representa o ápice da união e da felicidade, sendo seu drama unicamente provoca- do pelo resultado, de todo inesperado, mas que nele e a ele se restringe. O conflito é bem outro para a terceira parturiente, a jovem Hjördis, que ali está, não ainda para dar à luz, mas, para tratar das sequelas de tentativa de aborto, já que mãe solteira com tormentosa convivência com a mãe, o que a joga num abismo de insegurança. Seu drama, pois, é, para ela, tão importante como os de- mais, a ponto de chegar a dizer que sua situação “é horrível, é como se a própria vida tivesse morrido. É como se nada nunca mais fosse nascer”. Destaca-se ainda, no filme, o desempenho profissional e humano da enfermeira Brita, símbolo da profissão. A direção e interpretação das atrizes protagonistas são ex- cepcionais, envolventes, pertinentes e condicentes com a índole de cada uma das personagens e sua problemática.
  • 71. 71 No caso, suas atribuições encerram e resumem situações típicas de gravidez e maternidade ocorrentes diária e univer- salmente, expostas em síntese concentrada em poucas horas de ação num filme que, se não é criativo e inventivo, é dos mais substanciosos da filmografia de Bergman.
  • 72. 72 O ROSTO A Realidade Desvendada A vida corre normal para o establishment, estando cada um de seus componentes no lugar ou posto próprio, exercendo seu pobre (e podre) poder, velando pelo statu quo e guardando as aparências. Aí chega o elemento perturbador, munido, por sua vez, de predicados singulares, como, no caso, a força da personalidade e a capacidade hipnótica e ilusionista. Aquilo que parecia estratificado e sólido continua assim, que não é mera presença ou atuação individual que irá abalá-lo e, muito menos, pô-lo abaixo. Contudo, seu tranquilo pavoneamento, suas certezas e, principalmente, a crosta de exterioridades e falsas atitudes que encobrem a realidade individual e o relacionamento social e fa- miliar ressentem-se da força do novo e do independente. O choque é tanto mais profundo quanto mais falsamente brilhante o verniz que oculta e disfarça a verdade nua e crua das coisas, dando-lhes enganoso esplendor e ilusório aspecto. O advento da troupe do ilusionista cria fator de inquieta- ção, que tumultua a rotina estabelecida, fazendo eclodir os pro- blemas subjacentes no relacionamento familiar e a afetada tranquilidade dos bem-pensantes. Desencadeia-se, a partir daí, processo de revelações e rebeldias, mesmo que momentâneas, mesmo que, em alguns casos, infrutíferas. O impacto provoca, de imediato, o afloramento de problemática vivencial e relacio-
  • 73. 73 nal jazida soterrada pelo costume, o comodismo, a convivência e a conveniência. Esse o tema central de O Rosto (Ansiktet, Suécia, 1958), de Ingmar Bergman, um de seus mais densos e contundentes fil- mes. O universo dos interesses e das simulações apresenta-se compacto, mas, basta qualquer agente estranho e forte para desvendá-lo e pôr a nu seus arraigados conservadorismo, con- vencionalismo e imposturas. O poder exercido constitui o guardião desse mundo, sob o qual, no entanto, pulsam as necessidades vitais do ser humano por ele abafadas e reprimidas. No filme, a força impactante e demolidora do novo trans- torna a rotina, trinca o verniz, mas, não tem, em todos os casos, a capacidade de subversão permanente das coisas, voltando, depois, muitas delas, ao curso costumeiro. Mas, algumas situa- ções resolvem-se e outras restam pelo menos conhecidas e cons- cientizadas, o que já representa importante e muitas vezes deci- sivo passo para futuras alterações e, possivelmente, soluções ou, no mínimo, revelações, melhorias e avanços. Bergman opõe, como todo grande artista, a autenticidade contra a artificialidade, a verdade contra a mentira dissimulada das coisas que se fingem e se fantasiam de modo diverso e mui- tas vezes oposto à sua natureza. Para isso realiza filme sólido em sua contextura ficcional, consistente como construção cinema- tográfica e de rara beleza como criação artística. Maneja com mestria a câmera na captação do claro-escuro da paisagem ex- terna e do décor de interiores. Explora com argúcia as reentrân-
  • 74. 74 cias, sinuosidades e entulhos do décor. Cria clima de tensiona- mento não só entre as personagens, mas, até mesmo entre al- gumas delas e os elementos e a ambiência que as cercam. A segurança diretiva e a consciência de um propósito evi- denciam-se desde a cena inicial, de estranha beleza, despida de todo enfeite e glamour e construída a partir dos objetos e seres focalizados em angulações que lhes realçam e exploram o inco- mum, o estranho e o insólito, imprimindo-lhes fantasmagórico fusionamento de seres e coisas. As personagens são as mais extravagantes possíveis na sua representação emblemática e paradigmática das ocorrências da vida. A direção e representação dos atores transmitem o conte- údo humano das personagens e toda a gama de significados de sua existência, modo de ser e atuação num dos filmes capitais do cinema.
  • 75. 75 A FONTE DA DONZELA A Lancinante Beleza Se poesia é beleza e tragédia é dor e se beleza não combina com sofrimento, e se não lhe for antípoda é pelo menos incom- patível, como se elaborar obra em que esses dois elementos tão díspares se unam simbioticamente, concorrendo de iguais modo e conformidade para sua formação? Se uma é beleza, pureza, alegria, vida e outra é sua nega- ção? É possível? É possível. É exatamente isso que Ingmar Bergman faz em A Fonte da Donzela (Jungfrukällan, Suécia, 1959), um dos mais belos e ao mesmo tempo mais trágicos filmes já realizados. Inserido nos limites da narrativa, excede-a em perfeição. Confinado na necessidade de estabelecer a sucessão de atos, ati- tudes e acontecimentos que a compõem, infunde-lhe precisão, conexão e intrínseca dinâmica, emanada da articulação de seus diversos elementos. Obrigado a organizar e distender o fio nar- rativo, o faz com vigor, segurança e determinação. Tangido a li- dar com anjo, demônios e seres humanos, os reúne no mesmo espaço e em idêntico tempo, confrontando-os. Compelido a des- tilar todo o horror desse encontro e embate, exercita-o, no en- tanto, humana e poeticamente. Assim, se se tem de um lado a inocência, a pureza, a bele- za, a poesia enfim encarnada, e, de outro, a impulsividade e a
  • 76. 76 bestialidade em seu mais alto grau, logra-se, como resultado desse heterogêneo amálgama, filme em que a dignidade huma- na é contemplada tanto quanto sua face oposta nos exatos ter- mos em que se manifestam, constituindo monumento desse compósito extravagante. Toda essa confluência, que se transforma em conjunto trá- gico, violento e mortal, expõe-se em ambientes construídos em consonância com a vinculação do tempo e do espaço em minu- dências físicas e gestos pessoais compatíveis e exatos. Se neles e nisso ressumbra a realidade, nos exteriores explode e vigora a poesia da imagem na paisagem vista (e sentida) em sua harmô- nica beleza, onde se cruzam a mocidade que a tonifica e os cér- beros abjetos que a poluem e conspurcam. Nessa dimensão neutra, mas, generosa e propiciatória, a maldade impõe-se à bondade, destruindo-a dupla e sucessiva- mente, antes, ao conspurcá-la, depois, ao eliminá-la, em se- quência de beleza imagética, que mais ainda exacerba a inaudita brutalidade com que se manifesta e se materializa.
  • 78. 78 O Rosto A Fonte da Donzela
  • 79. 79 O OLHO DO DIABO Comédia Crítica A existência de comédias na filmografia de Ingmar Berg- man chega a ser surpreendente. O cineasta prima justamente pela seriedade, causticidade e dramaticidade no enfoque de questões vitais do ser humano, não só existenciais como de rela- cionamentos interpessoais. Contudo, Bergman realizou algumas comédias, entre elas O Olho do Diabo (Djävulens Öga, Suécia, 1960). Porém, nela, à semelhança de Hitchcock em O Terceiro Tiro (The Trouble With Harry, EE.UU., 1955), que a faz em torno de um cadáver, o cineasta sueco não deixa por menos, leva a efeito uma delas logo com o Diabo. E não se despe nem se desfaz do olhar cáustico e crítico. Já o olho do Diabo é o órgão físico mesmo, que está nada mais nada menos do que com prosaico e humano terçol. Mas, é a partir daí (e disso) que é deflagrada a ação, com o envio à terra de emissário para desencaminhar donzela que ain- da teima em persistir virgem, circunstância que seria a causa do incômodo de Satanás. O tema, por si só, já é surrealista e hilariante, tal a extra- vagância da propositura. Mas, isso é apenas a origem e razão de ser da trama. No desenvolvimento desta é que se manifesta a visão analítica e crí- tica do cineasta. As personagens humanas é que possuem con- sistência e sua problemática é que emerge ao contato da ação dos agentes satânicos. O Diabo e seus sequazes não têm impor-
  • 80. 80 tância. São criações artificiais da imaginação, agindo tão- somente como instrumentos provocadores e desencadeadores das atitudes e paixões humanas. Essas, sim, constituem a ques- tão fílmica. A vida corre aparentemente normal e suave em sua simpli- cidade e rotina cotidiana para um pastor protestante. No que se refere a ele e sua filha até que sim. Vivem (ou estão) plenamente satisfeitos e realizados. Por isso, são refratários aos cantos e en- cantos dos enviados demoníacos, nada lhes abalando preten- sões, propósitos e procedimentos. A não ser, de leve, o surpre- endente beijo da filha noiva no encarregado de transviá-la. Beijo que em si não tem importância, só assumindo gravidade a pos- terior mentira em negá-lo. A figura do pai e pastor (não patrão, como no conhecido filme dos Irmãos Taviani), encarna a bondade, a sinceridade, mas, também, certa ingenuidade. Normalmente, esses elementos andam juntos nas obras de ficção. Mas, será que para se ser bom é necessário ser-se ingê- nuo e vice-versa? Ou não passa essa ocorrência de generalização estereotipada? Ou, ainda, de particularidade da natureza huma- na ou da organização social que não permite ou propicia a con- comitante incidência de bondade e argúcia? No caso, como é personagem bergmaniana, o que, entre tantas outras coisas, significa complexidade e autenticidade, o pastor contraria seu viés ingênuo e revela atributos de bondade e compreensão humana até o limite, à primeira vista, de escassa probabilidade. Essa impressão persiste enquanto não se obser- var suas atitudes e preocupações com a esposa, pressupondo
  • 81. 81 tormentos maiores do que simples insatisfação sentimental e sexual. A sutileza e a requintada construção ficcional de Bergman embasam e perpassam o episódio, como, aliás, todo o filme, desde seu arcabouço aos mínimos detalhes, gestos, posturas e circunstâncias. O Olho do Diabo só é “comédia”, como o Terceiro Tiro também o é, para permitirem a Bergman e Hitchcock, princi- palmente ao primeiro, liberdade imaginativa, desenvoltura nar- rativa, quebra e superação dos limites da realidade, que não te- riam nos parâmetros da normalidade da vida e na sujeição à sua impositiva lógica. O certo é que Bergman realiza filme perspicaz (mais um), onde acima de suas múltiplas virtualidades, que atingem todos os aspectos e elementos, ressalta-se a inteligência dos diálogos, dificilmente encontrável, nas proporções nele ocorrentes, em qualquer outro filme. É, porém, incompreensível (e injustificável) que obra artís- tica desse nível e de cineasta dessa importância, realizada no já distante ano de 1960, só no final da década de 90 tenha chegado ao Brasil. Registre-se que o tema da presença demoníaca a introdu- zir a cizânia entre os seres humanos e a espalhar a maldade no mundo encontra notável precedente no cinema, conquanto dramático e trágico, no filme Páginas do Livro de Satã (Blade af Satans Bog, Dinamarca, 1919), de Carl T. Dreyer.
  • 82. 82 ATRAVÉS DE UM ESPELHO Os Mundos Pessoais Em Através de Um Espelho (Säsom i en Spegel, Suécia, 1961), Ingmar Bergman filma a desestruturação de uma família, centrada e culminada num verão em casa de praia: Davi (Gun- nar Bjönstrand), escritor e pai de Karin (Harriet Andersson) e Minus e sogro de Martin (Max von Sydow), médico. A alegria e efusão iniciais de todos saindo do mar e atin- gindo o cais e a esportiva designação de tarefas a cada um são enganosas. Na realidade, cada personagem é problemática e, com ex- ceção de Martin, que é pessoa simples, as demais são comple- xas, enredadas e manietadas por laços emocionais e psicológicos que a cordialidade forçada não consegue disfarçar e, conquanto os atenue, não impede sua manifestação. Excetuando Karin, justamente por representar nesse quar- teto a exceção, as demais vivem e convivem com seu inferno particular. Karin, tomada por insanidade, desliga-se dessa “normali- dade,” que é o comum da espécie, para adentrar num mundo especial de impressões específicas e próprias de estado mental degradado, que mais ainda a vitima na duplicidade de alternân- cias de lucidez e visionarismo. Em diálogo com o irmão, revela suas visões e reconhece essa dualidade:
  • 83. 83 “– Karin, isso não é real para mim. – É sim. Uma entidade desce da montanha. Ele anda pela mata escura. Há bestas selvagens na escuridão silenciosa. De- ve ser real. Eu não estarei sonhando, estou dizendo a verdade. Às vezes estou neste mundo às vezes no outro. Não consigo evi- tar.” Depois, com o pai: “– Não quero mais tratamentos. [...] Não posso viver em dois mundos. Tenho que escolher. Não posso ficar perambulando entre os dois.” Com seu problematizado relacionamento com o pai, a quem acusa de falta de compreensão e de diálogo, e torturado por fragilidade emocional, que explode no início do filme em rompante característico, dele se esperando a qualquer momento atitude intempestiva, Minus, o irmão, demonstra, em diálogo com Karin, percepção coerciva da realidade: “– Imagino se estão todos enjaulados. Você na sua jaula, eu na minha. Cada um em sua prisão.” Martin, que se considera não ser “muito complexo. Meu mundo é bem simples, claro e humano”, é desnudado (e revela- do) pela indagação de Davi se “desejou que a Karin morresse”, que é devolvida com negação acumulada de acusação: “de jeito nenhum. Apenas você pensaria tal coisa”. Já Davi, iguala-se a Minus em fragilidade e perplexidade, não obstante sua forte intelectualidade. A acusação de Martin de que “há uma coisa sobre a qual você não entende nada. A
  • 84. 84 vida” é mais explicada e exposta em outra oportunidade, quan- do confessa à filha: “– Sabe, Karin, traçamos um círculo imaginário ao nosso redor para afastar aquilo que não faz parte do nosso jogo se- creto. Cada vez que a vida rompe esse círculo os jogos se tor- nam insignificantes e ridículos. E então construímos um novo círculo e novas defesas. – Pobre papai. – Sim, pobre papai, forçado a viver na realidade.” Assertiva que resume, expõe e denuncia o drama universal e recorrente de todo (ou de boa parte) dos grandes artistas cria- dores, “forçados a viver na realidade”, quando, como diz Fer- nando Pessoa, para o artista “a vida não basta”, sendo a arte a confissão disso. O artista e o cientista querem viver em seus mundos cria- tivos, mas a realidade muitas vezes ou quase sempre os forçam a viver na realidade ou, pelo menos, os jogam nela, envolvendo-os irremediavelmente. Esse o grande drama geral e universal trabalhado por Bergman nesse filme, de linguagem convencional, mas, reve- lando competência no manejo da câmera e nas angulações das imagens, além da poética visualização de aspectos da natureza e pormenores dos décors. Por fim, constitui filme expositivamente simples – e até explicativo conforme os diálogos e afirmações citadas demons- tram – enfocando personagens, notadamente Davi, e tirante Ka- rin por sua doença mental, complexas, porém desnudadas de sua carapaça e analisadas e expostas tão clara e eficazmente
  • 85. 85 como raramente se vê, aliás, como vistas “através de um espe- lho”. Ecoam, e ecoarão sempre, os gritos finais de Karin (“Eu vi Deus”) e de Minus (“Papai falou comigo!”), que resumem, cada um a seu modo, o importante ou o significativo em seus respec- tivos mundos. * Notáveis, antológicas, sobre tudo, a cena tensa do diálogo de sogro e genro no barco e a cena, patética e tão ou mais autên- tica e espontânea que se ocorrente na realidade, de Martin e Davi socorrendo Karin na escada durante uma de suas crises.
  • 86. 86 LUZ DE INVERNO Dúvida e Franqueza Luz de Inverno (Nattvardsgästerna, Suécia, 1962), de In- gmar Bergman, é tão explícito quanto seu antecessor Através de Um Espelho (Säsom i en Spegel, Suécia, 1961). Explícito, porém, não simples, já que põe, expõe e trata de maneira equilibrada a questão da dúvida religiosa de pastor da igreja, provavelmente anglicana, com adequado nível de auten- ticidade e propriedade. Com tal perícia e dosagem dos elemen- tos do quadro mental e emocional da personagem, que proble- mática tão íntima e pessoal torna-se de interesse. O fio narrativo é composto e tecido de três dimensões vis- cerais e vivenciais do protagonista (Gunnar Björnstrand), impo- sitivas e concomitantemente emergentes e dominantes: à dúvi- da religiosa que o assalta acresce seu vivo amor pela esposa fale- cida e o assédio de solteirona problemática por ele apaixonada (Ingrid Thulin). A isso ajunta-se o drama do paroquiano Jonas Persson (Max von Sydow), que revela, antes de tudo, incompreensão e inabilidade por parte do pastor, que ao invés de ouvi-lo, orientá- lo e aliviá-lo, transmite-lhe seus problemas, assoberbando-o e agravando sua perturbação. A questão central, porém, no momento da transcorrência do filme, é a agudização da crise religiosa do pastor, exposta cla- ramente na exposição, mais que diálogo, a Jonas Persson:
  • 87. 87 “– Se Deus não existe isso realmente faria alguma dife- rença? A vida se tornaria compreensível. Seria um alívio. E a morte seria a extinção da vida. O fim do corpo e do espírito. Crueldade, solidão e medo... todas estas coisas seriam claras e transparentes. O sofrimento é incompreensível, portanto não exige explicação. Não existe um criador. Nenhum provedor da vida. Nenhum desígnio.” Crente de sua descrença, pretensamente reconciliado con- sigo, afirma para sua apaixonada: “Agora estou livre. Finalmen- te livre. Tive esperança de que tudo não seria ilusões, sonhos e mentiras”. Contudo, a questão não é tão fácil de ser resolvida, como, de maneira hábil, é demonstrado posteriormente pela manifes- tação do sacristão. Já na dimensão amorosa presente, nenhuma indecisão o perturba, conforme externada com franqueza à sofrida namora- da, quando esta lhe indaga da falecida esposa: “– Eu a amava. Ouviu? Eu a amava. E eu não amo você, porque amo a minha esposa. Quando ela morreu, eu também morri. Não me importo com o que aconteça comigo. Estou sendo claro? Eu a amava, e ela era tudo que você jamais pode- ria ser e insiste em querer ser.” * A ambientação, com seus décors de interiores e locações externas, é focalizada de modo a ressaltar poética e funcional- mente os aspectos e os espaços internos e externos que a com- põem, formando quadro expressivo, no qual as personagens plenamente se integram sob angulações e precisos movimentos
  • 88. 88 da câmera, com primeiríssimos planos das fisionomias das per- sonagens expondo e refletindo angústia, perplexidade e sofri- mento sem os arrebatamentos e os exteriorizações ruidosas ca- racterísticas de certos povos latinos. A sobriedade comportamental é plasmada sobre e sob fundo ambiental sereno e indiferente ao drama humano, com- pondo todo único e artístico.
  • 89. 89 O SILÊNCIO Fantasmas e Lembranças Dos três filmes sucessivos de Ingmar Bergman, Através de Um Espelho (1961), Luz de Inverno (1962) e O Silêncio (Tystna- den, Suécia, 1963), o mais consistente, não só por ser o mais concentrado, é o último, que dimensiona a convivência de duas irmãs, Ester (Ingrid Thulin) e Ana (Gunnel Lindblom) e do pe- queno (e esperto) João, filho desta. É o mais concentrado porque se circunscreve a tecer o po- sicionamento de uma irmã em relação à outra, desde o deta- lhamento de atos cotidianos comezinhos aos abismos, no caso, sondáveis, que se interpõem entre elas. Mesmo quando surge terceira personagem relacionada com Ana, ela não só não tem poder de afastar uma da outra, como, ao contrário, as aproxima mais. Todavia, não no sentido amigável desse ato, mas, como estopim ou revelação de sua condição de interdependência. Se da parte da Ester, a mais velha e intelectualmente mais cultivada e desenvolvida, esse estado emocional é de conteúdo emocional e mesmo sensual, da parte de Ana é de teor intelectu- al. A tensão entre essas situações díspares só aumenta com a compulsória aproximação e convivência entre as duas por esta- rem em viagem, ora no vagão de locomotiva, ora em quarto de hotel, até explodir conflito aberto, com Ana repudiando a irmã, tentando se libertar de sua dependência intelectual, a ponto de