O autor argumenta que o Partido Socialista perdeu seu foco ideológico no socialismo e precisa redefinir seu projeto de sociedade. Ele aponta que a crise econômica e o crescimento de forças extremistas exigem que a esquerda ofereça alternativas ao capitalismo predatório. Defende que o PS realize um congresso para debater sua liderança, estratégia para o país e alianças.
1. PÚBLICO,SEG2JUN2014 | 47
PEDRO ELIAS
Onde pára o socialismo,
e para onde vai o PS?
“P
ortugal é uma república
soberana, baseada na
dignidade da pessoa humana
e na vontade popular e
empenhada na construção
de uma sociedade livre, justa
e solidária”, diz o artigo 1.º
da Constituição da República
Portuguesa. Seria irónico, se
não fosse dramático. Tal é o
desajuste entre este desígnio e a realidade
atual do nosso país, onde a situação de
“exceção” que temos vivido tem ameaçado
ou suprimido cada um destes princípios.
E, sendo assim, que sentido tem falar de
socialismo? O PS entrou em ebulição,
mas para que o debate não se esgote na
“contagem de espingardas” e na sucessão
de manobras em curso nos últimos dias,
por que não recolocar o “socialismo” no
horizonte, quando, como toda a gente
percebe, os sinais de irritação popular
com o statu quo estão a chegar ao limite?
Há um amplo “bloco social” a exigir uma
“nova agenda” que o PS tem de saber atrair,
declarou António Costa. As oportunidades
de reflexão e debate ideológico são tão
escassas que importa aproveitar este
momento de instabilidade (de “PREC do
PS”, como alguém disse no Facebook)
para colocar algumas interrogações,
independentemente da atual ou futura
liderança do partido (no qual ainda estou
filiado).
O atual Partido Socialista, como outros
dos seus pares europeus, perdeu a noção
do significado da palavra que ostenta no
seu próprio nome e por isso vale a pena
lembrar que, por detrás da sigla, está um
conceito a requerer uma nova atualização
e um novo projeto de sociedade. Hoje,
infelizmente, a simbologia e os acrónimos
apenas escondem o enorme vazio deixado
pela ausência de ideologia. O resto fica
por conta dos rituais e encenações que
tanto encantam o carreirismo burocrático
dos aparelhos partidários, em que o PS é
exemplar. O combate ideológico perdeu
sentido? O socialismo e o marxismo foram
enterrados nos escombros do Muro de
Berlim? E, já agora, onde para a social-
democracia?
Reconheça-se que, com a nossa soberania
hoje tão mitigada e bloqueados que estamos
(quer no plano interno, quer europeu),
este tipo de debates pode parecer inócuo.
Porém, seja na escala nacional, seja na
UE ou a nível global — ou simplesmente
em nome dos princípios programáticos
—, creio que um partido que ostenta o
nome de socialista não pode deixar de se
interrogar: das duas, uma: ou concordamos
que o capitalismo que temos é fantástico
e não existem alternativas ao poder dos
mercados, ou
admitimos que este
sistema nos está a
empurrar para uma
nova barbárie em
que a desregulação
e o neoliberalismo
já excederam todos
os limites. E nesse
caso talvez valha a
pena tentar agarrar
naquela velha
palavra escondida
atrás do “s”, outrora
demonizada e
hoje esquecida, e
levantá-la do chão.
Após o triste
espetáculo da
reunião do Vimeiro,
devemos perguntar
não só onde para
o socialismo mas
onde para a ousadia
e a irreverência da
esquerda? Onde
está a prioridade
dos interesses do
país acima dos do
partido? O aparelho
cega e, como dizia
o José Pacheco
Pereira, “eles sabem, mas não aprendem”!
Como é óbvio, nenhum dos parceiros
que assinou o programa de resgate
pode, de repente, lavar daí as suas mãos,
porque o “pós-troika” inclui uma “carta
As
oportunidades
dereflexão
edebate
ideológicosão
tãoescassas
queimporta
aproveitareste
momentode
instabilidade
paracolocar
algumas
interrogações
de intenções” e um “tratado orçamental
europeu” que o PS subscreveu. Ninguém
ignora que as exigências da governação,
as condicionantes internacionais e
os compromissos com os credores
comprometeram profundamente o PS.
Entendo, no entanto, que, da parte de
um partido socialista e de uma família
social-democrata europeia que já
fizeram tantas cedências, que abraçaram
as terceiras vias, o pragmatismo e o
neoliberalismo económico cujos resultados
foram desastrosos para os cidadãos (e
subverteram a matriz socialista), depois de
tanto falhanço, de tanto esforço inglório
e de consequências dramáticas para
milhões de desempregados, emigrantes
e excluídos, não será pedir de mais
solicitar-lhes que condimentem o seu
“realismo pragmático” com um pouco
mais de utopia. Parece-me urgente, até
para fazer jus a todo o legado humanista
e republicano que desde o século XIX
espalharam sonhos pelas camadas sociais
mais humildes e exploradas, resgatar a
ideia de socialismo e posicioná-la no século
XXI. Repensá-la no coração de uma Europa
que foi berço de todos esses sonhos,
mas que hoje se encontra desorientada
e perdida de si própria. Sem dúvida que
o socialismo do futuro não terá o mesmo
significado da “sociedade sem classes”
invocada no 1.º artigo da Constituição
de 1976, mas um partido que se queira
“socialista” precisa de evitar que a Real
Politik e a urgência da governação atirem
para o lixo o que deve ser um desígnio
DebateLiderançasocialista
ElísioEstanque
estratégico de longo prazo: um conceito
de sociedade alternativa. Com a economia
global e a crise europeia a incendiarem
descontentamentos e radicalismos nas
mais diversas latitudes, qualquer projeto
dirigido para a mudança e o progresso
tem de saber construir alternativas a este
capitalismo predador, se quer chamar a si
os descontentes.
A história já nos ensinou que, quando
as instituições são incapazes de realizar
as reformas necessárias, os níveis de
crispação sobem de tom e as ruturas
podem ser dramáticas. Os 57 por cento de
europeus (e 66 por cento de portugueses)
que se abstiveram estão zangados com a
democracia, mas mais crispadas estão as
forças extremistas em crescimento, em
especial os nacionalismos que apostam
na destruição da UE e do Estado social.
Contudo, hoje já não é tanto em nome do
futuro que as pessoas se mobilizam, mas
sim pela recusa de um passado humilhante
ou de um presente desprezível. E é
importante que a esquerda dita “socialista”,
que esteve no poder em diversos países
europeus e abriu as portas à globalização —
em aliança com o neoliberalismo —, assuma
as suas responsabilidades perante a atual
desilusão do eleitorado.
Ora, a mesma lógica que nos revela essa
tensão entre as instituições e a sociedade
pode também aplicar-se à estrutura dos
partidos, e ao PS em concreto. Ou seja,
quando as bases deixam de se rever
nas opções dos dirigentes, criam-se
condições e legitimidade (política) para
manifestarem a sua indignação e, se
necessário, se rebelarem contra o statu
quo da “partidite”. Após a última reunião
da comissão nacional ter confirmado a
primazia do aparelhismo e da burocracia
sobre a efetiva abertura e renovação, o
dilema que resta é este: ou se entra num
processo de lenta agonia e subalternização
do PS, para satisfação da direita e da
extrema-esquerda; ou as bases do partido
optam pela “desobediência civil” e obrigam
a direção — e as estruturas federativas — a
convocar um congresso que clarifique a
questão da liderança, do projeto para o
país e das alianças. O debate em torno do
socialismo, em torno da compatibilidade/
contradição entre capitalismo-democracia,
assim como a busca de respostas a uma
crise económica que é, cada vez mais,
estrutural, terão de prosseguir. Estamos
num momento em que, como assinalou
Slavoj Zizek, “só a mudança global radical
pode resolver os problemas particulares”.
Resta saber se o atual PS tem condições de
ser um protagonista central nessa reflexão,
ou se o debate terá de ocorrer fora (e sob
os despojos) de um PS agonizante e em
fragmentação.
Sociólogo, militante do PS n.º 27.275/
Federação de Coimbra