O documento discute a relação entre psicanálise e cultura. Apresenta como a cultura é formadora do homem e produto dessa formação, mas também causa sofrimento. Discorre sobre como a psicanálise surgiu para investigar o inconsciente e tratar neuroses decorrentes da cultura, sem pretender curá-las. Conclui que não há psicanálise sem cultura, nem cultura sem o sofrimento que origina as criações humanas.
2. INTRODUÇÃO
O mal-estar do mundo moderno nos confronta com um conjunto
de turbulências que afetam as funções do intermediário no
campo da vida social e da cultura.
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3. Eu evocaria a mutação das estruturas familiares e a fratura dos
vínculos intergeracionais; a notável mudança (advinda em
apenas duas décadas) nas relações entre os sexos (notadamente
no estatuto da mulher); a transformação dos laços de
sociabilidade, de estruturas de autoridade e de poder; e a
confrontação violenta resultante do choque entre as culturas.
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4. Todas estas transformações põem em xeque as crenças e os
mitos que asseguram a base narcísica de nosso pertencimento a
um conjunto social. Elas comprometem os fundamentos da
identidade.
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5. O LEGADO DA PSICANÁLISE À CULTURA DE NOSSOS DIAS
Assim como Freud, que se exilou na Inglaterra antes de sua
morte, o centro do mundo psicanalítico foi também transferido
para Londres, onde se desenvolveram as escolas antagônicas de
Anna Freud e Melanie Klein e pouco depois o pensamento de
Donald Winnicott.
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6. Após a experiência adaptacionista dos anos 50 nos Estados
Unidos, a psicanálise teve um sopro de renovação, a partir dos
anos 60, com a releitura da obra freudiana por Jacques Lacan,
que a situou bem no âmago da pós-modernidade.
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7. Ele desenvolveu questões fundamentais em sua teorização,
como o conceito de gozo, absolutamente pertinente à cultura de
fruição extremada de nossos dias, seja através das adições e de
sintomas como anorexia, bulimia, seja através de
comportamentos radicais em atividades que envolvam o corpo
em perigo mortal como a prática de certos esportes, ou a
variação intensa de parceiros sexuais, com a exposição a doenças
letais como a Aids, ou a outras de menor risco, mas igualmente
lesivas.
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8. A psicanálise está tão intrincada na cultura atual que já não
podemos imaginar o mundo sem seus conceitos básicos e seu
jargão peculiar.
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9. A influência claramente assumida dos seus conceitos por
movimentos artísticos como o surrealismo nas artes plásticas e
no cinema, com nomes como Salvador Dalí, André Breton, Luís
Buñuel entre outros, com seu arrojo criativo e desconstrução das
convenções, desconcertou o próprio Freud, ele mesmo um
burguês comportado, herdeiro da época vitoriana em sua vida
pessoal.
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10. A psicanálise veio trazer uma grande ênfase à subjetividade.
Dessa forma, todo o empenho que foi dado nos últimos anos à
pedagogia e à educação das crianças, assim como o movimento
de liberação das mulheres e a busca de maior paridade entre os
sexos são tributários da teoria psicanalítica.
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11. Aliás, o acatamento às diversidades sexuais e a luta pela
aceitação das minorias étnicas também estão no caudal do
legado psicanalítico à cultura. Mesmo os avanços das
neurociências foram, de algum modo, pensados por Freud como
uma questão em aberto.
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12. Se a subjetividade da época freudiana emanava de uma
sociedade repressora que gerava o recalque e a culpa, formando
neuróticos, hoje ela se ancora nos excessos sociais que trazem a
recusa e o gozo, fazendo aparecer os perversos.
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13. A clínica sofre as consequências destas mudanças e o
psicanalista, assim como o fez Freud, tem de estar ligado ao seu
tempo. A psicanálise é chamada a dar conta de algo que ela
mesma ajudou a trazer à luz.
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14. Como ela sempre tem de incidir no sem sentido e no
insuportável do mal-estar, seu legado de instrumental crítico à
própria cultura não pode nunca ser desconsiderado. Se as
histéricas do século XIX denunciaram, com sua doença, as
dissimulações da sociedade, nossos clientes atuais, com seus
sintomas, nos guiarão aos caminhos que a psicanálise terá de
tomar.
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15. PSICANÁLISE E CULTURA
A cultura é tanto formadora do homem quanto produto dessa
formação e se manifesta no modo de viver e pensar de cada um
de nós e de todos nós. Nesse sentido, podemos tomar a cultura
como a capacidade de construção que o homem pode fazer de si
mesmo.
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16. O homem como aquele responsável por sua própria
humanização, a partir da vida com outros homens. Essa relação
entre dois fez surgir um terceiro elemento, a linguagem. Com a
linguagem a relação entre os indivíduos passou a ser sempre
uma relação de ao menos três elementos, 2+1, sendo este
terceiro, fundador da cultura.
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17. Podemos perceber a relação do homem com a cultura e os
problemas advindos desta relação em invenções do homem em
sociedade como a religião, a filosofia, a arte e a política.
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18. A psicanálise surge, por sua vez, como um novo modo de pensar
a cultura e a condição do homem na cultura. A invenção da
cultura é uma tentativa fracassada de evitar o sofrimento.
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19. Com a cultura inventamos modos de sofrer menos dos males do
meio, como frio ou calor, e de males do corpo como o câncer,
mas criamos uma terceira e ainda mais cruel fonte de
sofrimento: a relação com o outro.
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20. Não existe felicidade que não tenha fim pois todo prazer precisa
do desprazer para existir, tal como o som precisa do silêncio.
“Onde está o fundo? Será a ausência?
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21. A ruptura, a ferida, o traço da abertura faz surgir a ausência –
como o grito não se perfila sobre o fundo de silêncio, mas, ao
contrário, o faz surgir como silêncio” (Lacan, 1964/1998, p. 31).
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22. Como consequência desse prazer, sempre insuficiente e fugidio,
advém o sofrimento, muito mais certo e constante. A cultura
deveria, por meio de suas instituições, como o Estado e a
Família, amortecer ou até mesmo remediar o sofrimento. Afinal,
o homem vive em comunidade para se proteger das duas
primeiras ameaças e termina, de modo ainda mais penoso,
recebendo esse acréscimo gratuito de sofrimento.
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23. O estado e a família são insuficientes frente a tamanho
sofrimento e, ao mesmo tempo, estas produzem ainda mais
sofrimento, o que nos leva a procurar outros métodos como o
isolamento, o álcool e as drogas (chamados por Freud de
“amortecedores de preocupações”), a sublimação (satisfação
retirada do trabalho psíquico e intelectual, como o do artista e o
do cientista), o delírio de massa (através das religiões), as
psicoses, as neuroses, dentre outros.
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24. Falar de Psicanálise e Cultura é, no mínimo, uma provocação,
pois, embora a psicanálise tenha se originado do tratamento das
neuroses, um dos produtos da cultura frente ao sofrimento que
advém desta mesma cultura, a psicanálise não pode curar o
homem da neurose.
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25. A neurose é um ônus da cultura e propor sua cura é como
propor cura, também, para a arte, a política e a religião. Seria
como curar o homem de sua humanidade, curar o homem da
cultura.
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26. Em relação a neurose, a psicanálise se propõe a tratá-la, a partir
da investigação do inconsciente, possibilitando a melhora de
seus sintomas. Não se trata da modificação da estrutura, mas da
posição ética do sujeito frente a sua estrutura.
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27. O encontro entre psicanálise e cultura é um encontro manco,
pois se configura num encontro-desencontro destes dois
universos que se criam mutuamente.
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28. É manco a medida em que é o reencontro da psicanálise com
aquilo que lhe deu origem, e o encontro da cultura com aquela
que lhe vem colocar em questão.
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29. CONSTRUINDO CULTURA
"a lógica das crianças não poderia se desenvolver sem a
interação social porque é nas situações interpessoais que a
criança se sente obrigada a ser coerente." Constance Kamii
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30. Sabe-se que o conceito de cultura pode vir a representar tanto
desenvolvimento intelectual ou hábitos, atividades, interesses,
costumes e valores de uma determinada povoação, etnia ou
nação quanto o compósito de manifestações sociais, políticas,
econômicas e culturais - aqui no sentido já citado - que é a força
motriz de toda uma sociedade.
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31. Vê-se, portanto, que este último contém o primeiro.
Desde a divulgação da teoria de Darwin, o mundo conhece a
possibilidade evolucionista a que estamos ligados.
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32. O Australupithecus transforma-se em Homo habilis, que
transforma-se em Homo erectus que transformam-se em Homo
sapiens que se desenvolve e passa a ocupar plenamente a África
e a Ásia, surge o Homo Neandertalensis, que se extingue e o
Homo sapiens (Cro-Magnon) que começa a evoluir e permanece
a única espécie humana sobrevivente.
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33. A mente do chamado Homo sapiens opera manipulando
símbolos que representam certas características do mundo: sua
representação mental. Sua atividade é composta por redes
neurais que lhe atribui uma de suas maiores características, a
plasticidade cerebral, visto que pode sofrer lesões sem que isso
comprometa todo seu funcionamento.
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34. O ser humano, em contínua atividade mental, vai construindo a
cultura e sendo construído por ela. Cria uma rede de
representações que se eternizará, fazendo aparecer as tradições,
os modos de viver, as regras, a moral, a ética, enfim, a civilização.
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35. De uma maneira muito especial, o homem vai compondo a rede
de sua história cultural, que é o compósito de suas histórias:
social, biológica e psíquica que, por sua vez, podem se desdobrar
em grupal, familial, neural, motora, psicológica, individual e
coletiva.
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36. O ser cultural é multiplamente determinado e determinante,
com intra e interconexões infinitesimais. Ao mesmo tempo,
paradoxalmente, cada homem cria e vai construindo seu
caminho individual, único, uno.
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37. A prática simbolizadora do homem é a exteriorização de sua
subjetividade e consciência de si, do outro e do mundo. Na
representação de todos os aspectos da realidade, criando
cadeias de signos e símbolos, é que o homem constitui a cultura,
materializando essas práticas subjetivas e coletivas em
resultados, bens ou produtos culturais.
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38. Essa subjetivação teve origem num longo processo pelo qual a
espécie teve de passar, intencionalizando sua prática, ou seja,
projetando sua ação, traduzindo-a em: linguagem, arte, religião
e ciência.
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39. A linguagem permite ir além da realidade vivida, surgiu da
necessidade de agilizar a comunicação e aperfeiçoar outros
sistemas comunicativos, anteriormente pautados em objetos
concretos.
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40. A arte permite que os homens expressem suas experiências,
oriundas de seus sentimentos e imaginação. A religião
representa a infantilização da humanidade na crença de um ente
superior que a libertará, é o apelo ao sobrenatural, o que não
raras vezes é importante para algumas pessoas.
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41. Já a ciência é a capacidade da humanidade para explicar a
gênese e o funcionamento dos produtos culturais sem apelar
para o sobrenatural, assim, a ciência liberta o homem para a
reflexão e para a imaginação.
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42. CONCLUSÃO
Não há psicanálise sem cultura, mas nem por isso a psicanálise
deixará de evidenciar todo o sofrimento que advém da
existência da cultura. Por outro lado, se não houvesse tal
sofrimento, não haveria também as criações que surgem como
modo de remediá-lo, e tal (des)encontro seria, por sua vez,
impossível.
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