Este documento apresenta excertos do romance Memorial do Convento de José Saramago. Nele, o autor reflete sobre a autobiografia presente em toda a obra e fala sobre como o 25 de Novembro o levou a se dedicar à escrita. Também comenta sobre o processo de escrita do Memorial do Convento e sua repercussão.
1. MEMORIAL DO CONVENTO
José Saramago
Tudo é autobiografia
«Um dia escrevi que tudo é autobiografia, que a vida de cada um
de nós a estamos contando em tudo quanto fazemos e dizemos,
nos gestos, na maneira como nos sentamos, como andamos e
olhamos, como viramos a cabeça ou apanhamos um objecto do
chão.» Ontem como hoje, «pergunto-me se o que move o leitor
à leitura não será a secreta esperança ou a simples possibilidade
de vir a descobrir, dentro do livro, mais do que a história
contada, a pessoa invisível, mas omnipresente, que é o autor».
In Diário de Notícias, 1998-10-09
1
2. MEMORIAL DO CONVENTO
«Como escritor, sou um produto do 25 de Novembro. Com o 25 de
Novembro, fiquei sem trabalho e com pouca esperança de conseguir um
sítio onde o encontrar. Eu estava muito marcado. Decidi, aos 53 anos, que
seria "agora ou nunca". Se as circunstâncias me retiraram a possibilidade
de trabalhar, iria escrever. Não foi fácil. Durante uns anos vivi de traduções.
Eu já não estava no circuito, ninguém pensou mais em mim e ainda bem.
Fechei-me em casa a traduzir para ganhar a vida e para escrever. Publico,
em 1977, o Manual de Pintura e Caligrafia; em 1978, o Objecto Quase.
Ainda nesse ano vou para o Alentejo e daí saiu o Levantado do Chão. O
Memorial do Convento, em 1982, e acho que também O Ano da Morte de
Ricardo Reis confirmaram que estava ali um escritor. A partir daí não tinha
nada que provar a não ser a mim mesmo, até onde poderia chegar. Cheguei
às Intermitências da Morte, aos 83 anos, e espero que haja mais.»
In Diário de Notícias, 2005-11-09
José Saramago
2
3. MEMORIAL DO CONVENTO
"Memorial do Convento", de 1982, é o romance
que o vai tornar célebre. É um texto multifacetado
e plurissignificativo que tem, ao mesmo tempo,
uma perspectiva histórica, social e individual. A
inteligência e a riqueza de imaginação aqui
expressas caracterizam, de uma maneira geral, a
obra saramaguiana.
A ópera "Blimunda", do compositor italiano Corghi, baseia-se neste romance.
José Saramago
3
4. MEMORIAL DO CONVENTO
José Saramago
As epígrafes do romance
Padre Manuel Velho
Concepção determinista da História – existem forças e leis sociais que
ultrapassam a vontade individual de cada homem.
Marguerite Yourcenar
Concepção contingente da História – aceita a existência de uma
realidade social não passível de ser epistemologicamente conhecida
com rigor e exactidão.
[Poderia existir uma terceira extraída do poema de Bretch “Perguntas de
um Operário Letrado” que começa pelos versos: “Quem construiu Tebas, a
das sete portas / Nos livros vem o nome dor reis. / Mas foram os reis que
transportaram as pedras?”]
4
Entrevista
5. MEMORIAL DO CONVENTO
Era uma vez um rei que fez a promessa de
levantar convento em Mafra…
«Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanos
na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste dia
em que estamos…»
Cap. I, p. 14
José Saramago
5
6. MEMORIAL DO CONVENTO
Era uma vez a gente que construiu esse
convento…
«Em que posso então eu trabalhar, irmão, isto perguntou Baltasar a Álvaro Diogo,
seu cunhado […] Há aqui mais quem esteja dormindo […] só tem doze anos […]
este é o filho que ficou, chega à noite morto de dar serventia, andaime acima,
andaime abaixo, acaba de cear e adormece logo, Querendo, há trabalho para toda
a gente, disse Álvaro Diogo, podes ir de servente ou fazer carretos com os carros de
mão, o teu gancho é quanto basta para amparares o varal»
Cap. XVII, pp. 212
José Saramago
6
7. MEMORIAL DO CONVENTO
Era uma vez um soldado maneta e uma
mulher que tinha poderes…
«Este que por desafrontada aparência, sacudir da espada e desparelhadas
vestes, ainda que descalço, parece soldado, é Baltasar Mateus, o Sete-Sóis. Foi
mandado embora do exército por já não ter serventia nele, depois de lhe
cortarem a mão esquerda pelo nó do pulso, estraçalhada por uma bala em
frente de Jerez de los Caballeros»
Cap. IV, p. 35
«Lembras-te da primeira vez que dormiste comigo, teres dito que te olhei por dentro, Lembro-me,
Não sabias o que estavas a dizer, nem soubeste o que estavas a ouvir quando eu te disse que nunca te
olharia por dentro. […] Eu posso olhar por dentro das pessoas.
[…] mas só vejo quando estou em jejum, perco o dom quando muda o quarto da lua, mas volta logo a
seguir, quem me dera que o não tivesse»
Cap. VIII, pp. 79/80
José Saramago
7
8. MEMORIAL DO CONVENTO
Era uma vez um padre que queria voar e
morreu doido…
Aquele que ali vem é o padre Bartolomeu Lourenço, a quem
chamam o Voador»
Cap. VI, p. 61
«Tenho sido a risada da corte e dos poetas, um deles, Tomás Pinto Brandão, chamou ao meu
invento coisa de vento que se há-de acabar cedo, se não fosse a protecção de el-rei não sei o
que seria de mim, mas el-rei acreditou na minha máquina»
Cap. VI, p. 64
«És um homem natural, nem cascos de mula nem asas de passarola, É assim que se chama a
sua máquina, perguntou Baltasar, e o padre respondeu, Assim lhe têm chamado por
desprezo.»
Cap. VI, pp. 65/66
José Saramago
8
9. MEMORIAL DO CONVENTO
Tipologia da narrativa
O romance histórico é um tipo de narrativa ficcional em que, de maneira
evidente, se manifestam as chamadas modalidades mistas de existência
(…) o que significa que personalidades, eventos e espaços que conhecemos
ou podemos conhecer como históricas (…) coexistem com personagens,
eventos e espaços ficcionais.
Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, in Dicionário de Narratologia, Coimbra, Almedina
Memorial do Convento integra-se nesta tipologia de romance que concilia História e ficção?
Análise dos elementos da História e ficcionais (personalidades, eventos,
José Saramago
espaços)
9
O que diz o narrador? E o
autor?
Consultar
10. MEMORIAL DO CONVENTO
Tipologia da narrativa
José Saramago
10
Personagens reais Personagens fictícias
D. João V Sebastiana Maria de Jesus, feiticeira e mãe de
Blimunda
D. Maria Ana Josefa Blimunda, com poderes visionários
D. Francisco e D. Miguel (irmãos do rei) Baltasar, soldado, maneta, operário
Maria Bárbara, Pedro e José (os infantes) João Francisco e Marta Maria, pais de Baltasar
Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão Inês Antónia, irmã de Baltasar
Domenico Scarlatti Álvaro Diogo, cunhado de Baltasar
Arquitecto alemão Ludwig João Elvas, amigo de Baltasar e antigo soldado
Outras figuras da época (Madre Paula de Odivelas,
Bispo inquisidor D. Nuno da Cunha, Frei Boaventura
de S. Gião, censor do Paço)
Trabalhadores do convento: Manuel Milho, Francisco
Marques, José Pequeno, Joaquim Rocha, João Anes,
Julião Mau-Tempo
11. MEMORIAL DO CONVENTO
Tipologia da narrativa
José Saramago
11
Factos históricos
Casamento real - 1709 Epidemias de cólera e febre-amarela, em Lisboa - 1723
A construção da passarola pelo padre Bartolomeu
de Gusmão e voo da máquina voadora, na Casa da
Índia (1709)
A presença em Portugal do músico Domenico Scarlatti,
como professor de D. Maria Bárbara
Três anos após o casamento de D. João V com
Maria Ana de Áustria, auto-de-fé (1711)
Abalo sísmico - 1723
O voto do rei Cortejos nupciais - 1729
Construção do convento de Mafra – 1717 a 1730 Cerimónia de sagração da Basílica de Mafra (22 de
Outubro de 1730) e todo o esforço que a antecedeu
(recrutamento de homens em todo o país,
movimentação das pedras desde Pêro Pinheiro, morte
de operários)
A Inquisição
Touradas
Procissões religiosas – ex: Corpo de Deus, 8 de
Junho de 1719
Auto-de-fé em que morre António José da Silva, o Judeu
- 1739
12. MEMORIAL DO CONVENTO
Tipologia da narrativa
José Saramago
12
Situações ficcionais
A amizade entre Bartolomeu de Gusmão, Baltasar e
Blimunda e seu envolvimento na construção da
passarola;
A cumplicidade de Scarlatti nesta construção.
A recolha de vontades A participação da música de Scarlatti na cura de
Blimunda
O voo tripulado da passarola A peregrinação de Blimunda durante nove anos
13. MEMORIAL DO CONVENTO
Tipologia da narrativa
José Saramago
13
Espaços reais Espaços fictícios
Lisboa e arredores: Palácio Real, Ribeira,
Terreiro do Paço, Rossio, Palácio dos
Estais, Rua Nova, Quinta do Duque de
Aveiro em S. Sebastião da Pedreira,
Odivelas, Azeitão Arrábida
Abegoaria
Casa de Blimunda
Mafra e arredores: Alto da Vela, Pêro
Pinheiro, Serra do Barregudo, Serra de
Montejunto
Casa dos pais de Baltasar
Alentejo: Aldegalega, Palácio de Vendas
Novas, Montemor, Évora, Vila Viçosa,
Fronteira do Caia, Elvas
Outros espaços
ligação
14. MEMORIAL DO CONVENTO
Tipologia da narrativa
“… passando tempo, sempre se encontrará alguém para imaginar que estas
coisas poderiam ter sido ditas, ou fingi-las, e, fingindo, passam então as histórias
a ser mais verdadeiras que os casos verdadeiros que elas contam… “ (p. 139)
José Saramago
A voz do narrador…
…e a voz do autor
“Não há nada fora da história, a ficção acaba por reflectir sempre a história, a
história está nela mesmo que seja na última franja do que se narra.”
“A minha arte consiste em tentar mostrar que não existe diferença entre o
imaginário e o vivido. O vivido pode ser imaginário, e vice-versa.”
“Se não ligasse o meu trabalho à História não faria qualquer trabalho (…) o
que eu quero escrever liga-se aos factos e aos homens passados, mas não em
termos de arqueologia. O que eu quero é desenterrar os homens vivos.”
14
voltar
16. MEMORIAL DO CONVENTO
Tipologia da narrativa
O romance histórico teve o seu apogeu no romantismo,
passando para segundo plano nas últimas décadas do século
XIX com o romance realista, centrado na pintura da sociedade
da época ; a partir dos anos oitenta do século XX, assiste-se a
um renascer do romance histórico, introduzindo temáticas de
ordem acentuadamente social.
Memorial do Convento enquadra-se nesta tipologia : romance
histórico, mas também social e de intervenção, pois para além
da crónica de costumes, apresenta-nos a história repressiva
portuguesa.
José Saramago
16
17. MEMORIAL DO CONVENTO
Categorias do texto narrativo
José Saramago
1. A estrutura (Cf. Apresentação do romance 4-7)
17
18. MEMORIAL DO CONVENTO
Categorias do texto narrativo
José Saramago
2. O tempo – contrastes de uma época
Relação de D. João V e de D. Maria Ana
18
Josefa
Relação de Baltasar Sete-Sóis e de Blimunda
Sete-Luas
• Relação contratual: cumprimento do
dever conjugal – “duas vezes por semana
cumpre vigorosamente o seu dever real e
conjugal” (p. 11).
• Ausência de amor
• Ausência de contrato matrimonial.
• Relação de amor; partilha de sonhos e de
desejos – “Para dentro da barraca o levou
Blimunda, não era a primeira vez que ali
entravam a horas nocturnas, ora por
vontade de um, ora por vontade do outro,
faziam-no quando a necessidade da carne
se anunciava mais expansiva…” (p. 333).
19. MEMORIAL DO CONVENTO
Categorias do texto narrativo 2. O tempo – contrastes de uma época
Vida luxuosa da nobreza e do clero Vida miserável do povo
A alimentação – “há quem morra por muito
ter comido durante a vida toda” (p. 27);
“El-rei, com os infantes seus manos e suas manas
infantas, jantará na Inquisição depois de
terminado o acto de fé, e estando já aliviado do
seu incómodo honrará a mesa do inquisidor-mor,
José Saramago
soberbíssima de tigelas de caldo de galinha,
de perdigões, de peitos de vitela, de pastelões,
de pastéis de carneiro com açúcar e canela, de
cozido à castelhana com tudo quanto lhe
compete, e açafroado, de manjar-branco, e
enfim doces fritos e frutas do tempo.” (p. 51).
19
A alimentação – “Mas não falta […] quem
morra por ter comido pouco durante toda a vida,
ou que dela resistiu a um triste passadio de
sardinha e arroz.” (p. 27);
“Comeu duas sardinhas fritas sobre um pedaço
de pão, usando a ponta e o fio da navalha com a
arte de quem abre miniaturas em marfim,
quando terminou limpou a lâmina às ervas, a
mão ao calção, e dirigiu-se à máquina.”(p. 336)
20. MEMORIAL DO CONVENTO
Categorias do texto narrativo 2. O tempo – contrastes de uma época
Vida luxuosa da nobreza e do clero Vida miserável do povo
José Saramago
Os espaços habitacionais
“Já se deitaram. Esta é a cama que veio da
Holanda quando a rainha veio da Áustria
[…]. A um desprevenido olhar nem se sabe
se é de madeira o magnífico móvel, coberto
como está pela armação preciosa, tecida e
bordada de florões e relevos de ouro, isto
não falando do dossel que poderia servir
para cobrir o papa.” (p. 16).
20
Os espaços habitacionais
“O padre Bartolomeu Lourenço esperou
que Blimunda acabasse de comer da panela
as sopas que sobejavam, deitou-lhe a
bênção, com ela cobrindo a pessoa, a
comida e a colher, o regaço, o lume na
lareira, a esteira no chão…” (p. 56).
21. MEMORIAL DO CONVENTO
Categorias do texto narrativo
• Início da narrativa – 1711 – deduzida a partir das seguintes afirmações:
“um homem que ainda não fez vinte e dois anos” (D. João V, nascido em 1689);
“S. Francisco andava pelo mundo precisamente há quinhentos anos, em mil duzentos e onze”.
• 1717: A data da bênção da primeira pedra do convento de Mafra conhece-se pela expressão
“se não foi dito já, sempre são seis anos de casos decorridos” . A indicação 17 de Novembro de
1717 surge como dado cronológico.
• “oito de Junho de mil setecentos e dezanove”: procissão de Corpo de Deus.
• 1728 “dezasseis anos passaram desde que a (Blimunda) vimos pela primeira vez” (no auto-de-
fé em que sua mãe fora condenada). Pode ainda deduzir-se pelas referências aos príncipes
D. José, 14 anos, e Maria Bárbara, de 17 anos… A ordem para que se acabe o convento no
espaço de 2 anos….
• 22 de Outubro de 1730, dia do 41º aniversário de D. João V:
“Então D. João V disse A sagração da basílica de Mafra será feita no dia vinte e dois de Outubro de
mil setecentos e trinta, tanto faz que o tempo sobre como falte”. (pp. 291, 352)
• 1739: “Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar”: Auto-de-fé (condenação e morte
de Baltasar);
José Saramago
2. O Tempo da história – 28 anos
21
22. MEMORIAL DO CONVENTO
Categorias do texto narrativo
José Saramago
2. O Tempo da história – 28 anos
Baltasar
Sete-Sóis
22
Passagem do tempo sobre as personagens Blimunda
Sete-Luas
26 anos Conhecem-se (auto-de-fé em que a mãe de Blimunda é condenada) 19 anos
40 anos Diz aos companheiros de trabalho que esteve perto do sol 33 anos
45 anos Baltasar desaparece no dia 21 de Outubro de 1730 38 anos
54 anos Blimunda procura Baltasar durante nove anos. Encontra-o na hora da
sua morte.
47 anos
23. MEMORIAL DO CONVENTO
Categorias do texto narrativo
A situação do narrador fora do tempo cronológico explica
as sucessivas analepses e prolepses e a elipse que
encontramos no texto. Assim, o tempo da história dura 28
anos e o tempo do discurso abre brechas nesse período
cronológico para o integrar num tempo uno, em que
passado, presente e futuro se misturam.
José Saramago
2. O Tempo da história – 28 anos
23
Anacronias do Tempo do Discurso
24. MEMORIAL DO CONVENTO
2.1 Anacronias do tempo do discurso Categorias do texto narrativo
José Saramago
Analepse
- Referência a 1624:
“Tanto mais que o Convento de
Mafra o anda a querer a ordem de
S. Francisco desde mil seiscentos e
vinte e quatro, ainda estava rei de
Portugal um Filipe espanhol”.
- Referência a 1709:
“dois anos depois de se queimarem
pessoas em Lisboa”.
-O narrador relembra a
primeira vez que Baltasar e
Blimunda entraram na quinta
do duque de Aveiro:
-“nada havia que pudesse lembrar a
brava selva de há dez anos, quando
pela primeira vez Baltasar e
Blimunda aqui entraram”.
24
Prolepse
- Prenúncio da morte da filha do Visconde
de Mafra para daí a dez anos:
“não vai haver muita música na vida desta
criança (…) daqui a dez anos morrerá e será
sepultada na igreja de santo André”.
- Antecipação da morte de Álvaro Diogo:
“em breve cairá duma parede onde não tinha de
subir (…) quase de trinta metros de altura será a
queda e dela morrerá”.
- Antecipação do número de bastardos de
D. João V:
“por isso se diverte tanto com as freiras (…) que
quando acabar a sua história se hão-de contar
por dezenas os filhos assim arranjados”.
- Antecipação da revolução de 25 de Abril
de 1974:
“ai o destino das flores, um dia as meterão nos
canos das espingardas”.
Elipse
- Baltasar desaparece
no dia anterior à
Sagração do Convento
(21 de Outubro de
1730) e Blimunda
percorre o país, numa
busca constante do seu
companheiro, durante
nove anos. Acerca do
que se passou durante
este período temporal
nada sabemos a não
ser que “Durante nove
anos, Blimunda
procurou Baltasar. (…)
Milhares de léguas
andou”.
25. MEMORIAL DO CONVENTO
Categorias do texto narrativo
José Saramago
3. O espaço
3.1 espaço físico
ESPAÇOS PRIVILEGIADOS:
Lisboa: Terreiro do Paço, Ribeira, Rossio (Casa da Índia e Palácio do Corte Real),
S. Sebastião da Pedreira (a abegoaria), na quinta do Duque de Aveiro
Mafra: Alto da Vela, Ilha da Madeira, Monte Junto, Pêro Pinheiro, Torres Vedras.
Outros espaços:
Jerez de los Caballeros, Montemor, Évora, Elvas, Coimbra, Holanda, Áustria.
Lisboa - cidade que contém em si ricos e pobres
Alentejo - permite conhecer a miséria do povo
Mafra - deu trabalho a muita gente, mas, socialmente, destruiu famílias e criou
marginalização.
25
26. MEMORIAL DO CONVENTO
3. O espaço Categorias do texto narrativo
3.2 O espaço social (ambientes / atmosferas sociais)
A vida social no século XVIII – feitiçaria, escravatura, Inquisição, epidemias,
rituais da corte e da igreja, alquimia, festividades – grandes quadros da
sociedade cortesã e popular.
LISBOA
• Procissão da Quaresma
• Autos-de-fé
• A tourada
• Procissão do Corpo de Deus,
José Saramago
8/06/1719
MAFRA
• Recrutamento dos trabalhadores
para a construção do convento
• Início da construção
• Condições de vida e alojamento
• Condições laborais
• Momentos de lazer
• A sagração da basílica
A visão oficial da História exalta os poderosos, Saramago eleva o povo e os seus
mártires ao estatuto de verdadeiros fazedores da História.
26
27. MEMORIAL DO CONVENTO
José Saramago
3. O espaço
Categorias do texto narrativo
3.3 espaço psicológico
27
Vivências, experiências, filtradas pelas emoções,
reflexões, meditações.
• Blimunda procura Baltasar: errância caracterizada por profunda
angústia e amor
• Meditações do rei, espécie de monólogos interiores
• Sonhos da rainha com D. Francisco
28. MEMORIAL DO CONVENTO
José Saramago
4. As personagens (principais)
Categorias do texto narrativo
1. O grupo do poder
• D. Maria Ana Josefa
• D. João V
2. O grupo do contra-poder
• Padre Bartolomeu Lourenço de
Gusmão
• Domenico Scarlatti
• Baltasar Sete-Sóis
• Blimunda Sete-Luas
O povo: todos os anónimos que
construíram a História são representados
através daqueles a
quem o autor dá nome: Alcino, Brás,
Nicanor, etc.
28
29. MEMORIAL DO CONVENTO
Categorias do texto narrativo
José Saramago
5. O narrador (as suas vozes/funções discursivas)
• sentencia, segue ou inventa provérbios
• dialoga com o narrador
• manipula as personagens
• apaga-se face às personagens
• ironiza / assume-se /compromete-se
• domina e autolimita-se face ao conhecimento da história
• profetiza
• descreve paisagens, situações, factos acontecidos (e a
acontecer)
Este narrador ultrapassa o habitual estatuto de narrador
omnisciente, próprio do romance histórico, ele conduz a narrativa a
seu bel-prazer, interessado , acima de tudo, em denunciar.
29
30. MEMORIAL DO CONVENTO
Categorias do texto narrativo
José Saramago
5. O narrador – (as suas vozes/funções discursivas)
5.1 Intertextualidade com outras obras e outros autores, ultrapassando as barreiras
do tempo (referências ao Padre Ant.º Vieira e sua oratória, Pessoa e Mensagem,
Camões e Os Lusíadas .
5.2 Mudança de focalização do narrador para a de uma personagem
• para Sebastiana Maria de Jesus, no auto-de-fé;
• para o patriarca e para o rei, na procissão do Corpo de Deus;
• para Ludwig aquando do desejo do rei de construir uma igreja na corte, como a
de S. Pedro de Roma.
30
31. MEMORIAL DO CONVENTO
Categorias do texto narrativo
5. O narrador – (as suas vozes/funções discursivas)
5.3 Mudança repentina do convencional discurso de terceira pessoa para o de
primeira pessoa, indiciando uma proximidade do narrador, por vezes afectiva, com
as personagens e acontecimentos, embora não seja personagem da diegese. (pp. 35,
273)
5.4 Permanente ansiedade do narrador pela contemporaneidade que conduz a
uma constante reflexão sobre a vida humana.
5.5 O conhecimento de histórias da tradição e do imaginário popular – o vulto do
homem na lua. (p. 253)
5.6 Os juízos pessoais, amargamente irónicos, mas também simpáticos. (pp. 88, 222)
José Saramago
31
32. MEMORIAL DO CONVENTO
5. O narrador – (as suas vozes/funções discursivas)
Categorias do texto narrativo
5.7 Apartes que revelam cumplicidade com o leitor. (pp. 266, 289)
5.8 A partilha de referentes comuns ao narrador e ao leitor do século XX,
profundamente irónica:
• o nome de Saramago (p.97)
• a moda do bronzeado (p. 153)
• flores de Abril (156)
• o cinema como forma de lazer (p. 221)
• o parto sem dor (p. 234)
5.9 A actualização de conceitos, uma vez que o narrador tem consciência de
que o leitor não domina o universo do século XVIII. (p. 81)
5.10 A conversão de pesos e medidas aquando da apresentação da pedra da
varanda do convento. (p. 247)
32 José Saramago
33. MEMORIAL DO CONVENTO
A dimensão simbólica do romance
Ao longo do romance há vários elementos simbólicos que se conjugam com o universo
verídico e histórico.
1. A máquina voadora - constitui um símbolo da liberdade, mas igualmente de luz,
de guia.
2. Sete-Sóis – “baptismo” de Baltasar porque só pode ver à luz.
3. Sete-Luas – “baptismo de Blimunda, porque só vê no escuro, evidenciando os dotes
da clarividência.
4. Algarismo sete – totalidade completa e perfeita – é referenciado várias vezes ao
longo da obra.
5. Algarismo nove – “o nove parece ser a medida das gestações, das buscas
frutíferas e simboliza o coroamento dos esforços, o concluir de uma criação.”
33 José Saramago
34. MEMORIAL DO CONVENTO
A dimensão simbólica do romance
6. O convento – “o esforço mortífero”.
7. A figura feminina – no mundo dos pobres ela possui as virtudes de uma heroína
anónima, embora sem ser reconhecida.
8. O sonho – muitas personagens têm o seu espaço onírico, mas o sonho de voar
domina o romance.
9. A vontade - simboliza o querer humano sem o qual nada é possível concretizar.
10. A trindade – Bartolomeu, Baltasar e Blimunda é uma tríade indissociável,
harmoniosa e perfeita.
Para além deste elementos simbólicos, também as personagens assumem um valor
simbólico, mesmo as que pertencem à realidade histórica, o que atesta, sem dúvida, que o
Memorial do Convento é muito mais do que um simples romance histórico, permanecendo,
ao longo de todo a obra uma conjugação entre o real e o simbólico.
34 José Saramago
35. MEMORIAL DO CONVENTO
A dimensão simbólica do romance
O paralelismo simbólico dos episódios iniciais e finais
Auto-de-fé de Sebastiana
Maria de Jesus, mãe de
Blimunda
Primeiro encontro entre
Blimunda e Baltasar
- "Que nome é o seu, e o homem
disse, naturalmente, assim
reconhecendo o direito de esta
mulher lhe fazer perguntas".
Espaço – Rossio
- "O Rossio está cheio de
povo“
As últimas
páginas…
Blimunda "repetia um
itinerário de há vinte e
oito anos".
-O rio como imagem da
precariedade da vida.
- Blimunda está em
Lisboa pela sétima vez:
encerramento de um
ciclo de vida.
Auto-de-fé de Baltasar
Sete-Sóis
Último encontro de
Blimunda e Baltasar
- "Naquele extremo arde um
homem a quem falta a mão
Esquerda".
Espaço - Rossio
- "Meteu-se pela Rua Nova dos
Ferros, virou para a direita na
igreja de Nossa
Senhora de Oliveira, em Direcção
ao Rossio“
35 José Saramago
36. MEMORIAL DO CONVENTO
Ambiente soturno:
-"sobre o Rossio caem as
grandes sombras do convento
do Carmo;
- "e as pessoas voltarão às
suas casas, refeitas na fé,
levando agarrada à sola dos
sapatos alguma fuligem,
pegajosa poeiras de carnes
negras, sangue acaso ainda
viscoso se nas brasas não se
evaporou.“
A dimensão simbólica do romance
Ambiente soturno:
-"caminhava no meio de
fantasmas, de neblinas que
eram gente";
- "Entre os mil cheiros fétidos
da cidade, a aragem nocturna
trouxe-lhe o da carne
queimada".
36 José Saramago
37. MEMORIAL DO CONVENTO
A multidão reúne-se
- "O Rossio está cheio de
povo".
As condenações da
Inquisição:
- condenação da mãe de
Blimunda (ao degredo).
Ritual de morte
Blimunda comunica
enigmaticamente com a
Mãe
- "não fales, Blimunda, olha só
com esses olhos que tudo são
capazes de ver;
- "adeus Blimunda que não te
verei mais".
A dimensão simbólica do romance
Blimunda que, no primeiro
encontro com Baltasar,
prometera que nunca o veria
por dentro, usa os seus dons
nos momentos finais da vida
de Baltasar e vê uma nuvem
fechada que está no centro do
seu corpo - RECOLHE A SUA
VONTADE.
A multidão reúne-se
-"havia multidão em S.
Domingos“
As condenações da
Inquisição:
- condenação de António José
da Silva, "autor de comédias de
bonifrates";
-condenação de Baltasar Sete-
Sóis.
Blimunda comunica
enigmaticamente com
Baltasar
- "Então Blimunda disse, Vem.
Desprendeu-se a vontade de
Baltasar Sete-Sóis".
37 José Saramago
38. MEMORIAL DO CONVENTO
A dimensão simbólica do romance
Lisboa é o último (grande) espaço a ganhar
importância e a fechar o círculo iniciado no capítulo V,
verdadeiro incipit do romance (funcionando os
primeiros capítulos como amostras das peças de
encaixe do romance como construção). É num dia de
auto-de-fé que Blimunda (re)encontra Baltasar, agora
no lugar de condenado, a arder na fogueira, e acolhe a
sua vontade comungada com ela. Esta vontade
acolhida em si transforma o momento em espaço de
encontro e de partilha.
38 José Saramago
39. MEMORIAL DO CONVENTO
A visão crítica
1. Desde o início que Memorial do Convento se apresenta como uma crítica cheia de
ironia e sarcasmo à opulência do rei e de alguns nobres por oposição à extrema
pobreza do povo. “Esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga de sobejo
para um lado e de escasso para o outro”; A tropa andava descalça e rota, roubava os
lavradores.
2. O adultério e a corrupção dos costumes são factores de sátira ao longo da obra.
Critica a mulher porque, entre duas igrejas, foi encontrar-se com um homem; critica
uns tantos maridos cucos e não perdoa aos frades que içam as mulheres para
dentro das celas e com elas se gozam; não escapam os nobres e o próprio rei, até
porque este considera que as freiras o recebem nas suas camas, nomeadamente a
madre Paula de Odivelas.
39 José Saramago
40. MEMORIAL DO CONVENTO
A visão crítica
3. Há uma constante denúncia da Inquisição e dos seus métodos e uma crítica às
pessoas que dançam em volta das fogueiras onde se queimaram os condenados.
4. A sátira estende-se a Mafra e à situação dos trabalhadores; à atitude do rei
em obrigar todo o homem válido a trabalhar no convento;
5. Não deixa de fora os príncipes, como D. Francisco, que se entretém a
espingardear os marinheiros ou quer seduzir a rainhas, sua cunhada, e tomar o
trono.
40 José Saramago
41. MEMORIAL DO CONVENTO
A linguagem e estilo
A escrita de Saramago caracteriza-se pela qualidade e pelo inédito, nomeadamente no
que diz respeito às alterações das normas relativas à expressão gráfica e pontuação.
Entre as características principais, podemos salientar:
1. no discurso directo, verifica-se a abolição do uso do travessão e dos dois pontos, a
substituição do ponto de interrogação e de outros sinais de pontuação pela vírgula, o
simples uso da maiúscula inicial das palavras marca a mudança de interlocutor;
2. a vírgula apresenta-se como o mais recorrente e importante sinal de pontuação :
separa as várias falas das personagens (dando-lhes um certo ritmo e marca
momentos de enumeração);
3. a coexistência de várias modalidades discursivas sem marcação gráfica (narração,
descrição, discurso directo, discurso indirecto, discurso indirecto livre, monólogo
interior e apartes) , tornando as frases longas e próximas da oralidade;
41 José Saramago
42. MEMORIAL DO CONVENTO
A linguagem e estilo
4. as invectivas e as interpelações directas ao leitor (narratário), criando um estilo
próximo da oratória barroca e uma maior cumplicidade entre narrador/narratário;
5. o uso predominante do presente do indicativo, apoiando a perspectiva
tridimensional do tempo (narrador movimenta-se entre o passado, o presente e o
futuro);
6. o uso do polissíndeto;
7. o uso da enumeração de cariz popular – “ele é os ourives…, ele é os fundidores… ,
ele é os escultores…”;
8. o aproveitamento de aforismos e provérbios;
9. o uso do trocadilho;
10. o uso da ironia;
42 José Saramago
43. MEMORIAL DO CONVENTO
A linguagem e estilo
11. o uso da metáfora sugestiva (o transporte da pedra é visto como um jogo de
lançar papagaios);
12. o jogo de expressões antinómicas;
13. o uso de uma linguagem barroca, caracterizada pelo detalhe excessivo
(apresentação do noivado da infanta Maria Bárbara e do noivado do infante José;
referências à estrutura do sermão…);
14. a apropriação / interpretação subjectiva do discurso evangélico (“Pater noster que
non estis in coelis”…);
15. a criação de neologismos;
16. o uso de termos anacrónicos;
17. a intertextualidade frequente, sobretudo com Os Lusíadas de Luís de Camões.
…
43 José Saramago
44. MEMORIAL DO CONVENTO
Subversão (transgressão) no romance
Memorial do Convento pode ser considerado um romance transgressor quer na
construção da própria narrativa (relações entre personagens, estatuto do narrador),
quer no domínio da escrita.
Os elementos que podemos apontar como transgressores são:
1. especificidade do amor de Blimunda e Baltasar, vivido à margem das regras
socialmente aceites: não são casados, uniram-se pelo ritual do sangue e da colher,
vivem uma relação de igualdade, num estado de perfeição que não é deste mundo;
2. Padre Bartolomeu desafia o poder da Igreja, seguindo o seu sonho e acreditando
na ciência;
3. Passarola que voa, que ousa sair do domínio dos homens e entrar no domínio de
Deus, subvertendo as leis do universo;
4.Conjugação inusitada de saberes: o saber científico associado ao trabalho artesanal
e à magia;
44 José Saramago
45. MEMORIAL DO CONVENTO
Subversão (transgressão) no romance
5. O estatuto do narrador: acompanha a acção, comentando e criticando,
estabelecendo uma interacção permanente entre passado, presente e futuro
(presença do anacronismo);
6. Concepção das personagens: as tradicionais figuras históricas, como o rei D.
João V e a rainha, assumem uma feição caricatural; as personagens Baltasar e
Blimunda assumem, contra as expectativas iniciais, o estatuto de protagonistas da
narrativa;
7. A escrita literária: supressão das marcas gráficas do discurso directo (diálogos),
multiplicação das vírgulas que substituem os pontos finais, criando uma leitura
contínua; o uso das maiúsculas no meio da frase para introduzir as falas das
personagens.
…
45 José Saramago
46. MEMORIAL DO CONVENTO
Subversão (transgressão) no romance
Para finalizar…
A subversão conhece o seu grau mais elevado no tratamento das grandes
figuras históricas. Ao contrário do que acontece no romance histórico de
Scott e Tolstoi onde Maria Stuart, Luís XI ou Kutusov são figuras
inesquecíveis de recorte pessoal epocal, pessoal e humano, em
Saramago as figuras históricas perdem a sua grandeza histórica e são
pintadas com as cores da caricatura. São exemplos máximos o rei e a
rainha, meros instrumentos da necessidade nacional em produzir um
herdeiro.
Luís Francisco Rebelo, Memorial do Convento, José Saramago,
25 anos da 1ª edição: a recepção da crítica na época, Lisboa, Caminho
46 José Saramago