Trabalho de Conclusão de Curso de Valdíria Santos de Souza, do Curso de Licenciatura em Teatro da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, que narra o processo colaborativo de criação do espetáculo teatral "Nós na Cidade" que conta a história do nascimento do primeiro Candomblé de Ketu da Bahia e discute aspectos educacionais do teatro na educação a partir da Lei 10.639/03.
Palavras- Chave: Teatro na Educação, Identidade Social, Identidade Racial, Negros, Vida e Costumes Sociais, Salvador, Bahia, Cidadania e Criatividade
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Nós na Cidade: Uma interação entre, Teatro, Educação e Identidade
1. UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
ESCOLA DE TEATRO
CURSO DE LICENCIATURA
VALDÍRIA SANTOS DE SOUZA
NÓS NA CIDADE:
UMA INTERAÇÃO ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E IDENTIDADE
Salvador
2008
2. VALDÍRIA SANTOS DE SOUZA
NÓS NA CIDADE:
UMA INTERAÇÃO ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E IDENTIDADE
Trabalho de Conclusão de Curso submetido ao
Curso de Licenciatura em Teatro na Escola de
Teatro da Universidade Federal da Bahia como
requisito parcial para obtenção do Grau de
Licenciado em Teatro.
Orientadora:Prof. Ms. Maria Eugênia Viveiros
Milet.
Salvador
2008
3. Sistema de Bibliotecas - UFBA
Souza, Valdíria Santos de.
Nós na cidade : uma interação entre teatro, educação e identidade / Valdíria Santos de
Souza. - 2008.
112 f. : il.
Inclui anexos.
Orientadora : Profª Ms. Maria Eugênia Viveiros Milet.
Trabalho de conclusão de curso (monografia) - Universidade Federal da Bahia, Escola de
Teatro, Salvador, 2009.
1. Teatro na educação. 2. Identidade social. 3. Identidade racial. 4. Negros - Vida e
costumes sociais - Salvador (BA). 5. Cidadania. 6. Criatividade. I. Milet, Maria Eugênia
Viveiros. II. Universidade Federal da Bahia. Escola de Teatro. III.Título.
CDD - 372.66
CDU - 792:37
4. VALDÍRIA SANTOS DE SOUZA
NÓS NA CIDADE:
UMA INTERAÇÃO ENTRE TEATRO, EDUCAÇÃO E IDENTIDADE
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para
obtenção do grau de Licenciado em Teatro, Escola de Teatro da Universidade
Federal da Bahia.
Aprovado em 18 de junho de 2008
Maria Eugênia Viveiros Milet – Orientadora____________________________________
Mestra em Teatro pela Escola de Teatro
Universidade Federal da Bahia
Antônia Pereira Bezerra______________________________________________
Pós-Doutora em Dramaturgia pela Université du Québec à Montréal UQAM
Universidade Federal da Bahia
Urânia Auxiliadora Maia- Curso de Artes
Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia na área de Teatro-Educação
Faculdade Social da Bahia
5. Ao meu pai Nelson Ribeiro de Souza (Seu
Nelson) e a minha mãe Valdenice Santos
de Souza (D. Nice), os meus primeiros
educadores e mestres na arte de viver, os
maiores responsáveis por tudo que eu
sou hoje.
6. AGRADECIMENTOS
A Deus e aos Orixás.
Aos meus pais, Nelson e D. Nice, aos meus irmãos Nilson e Nilton, as minhas
irmãs, Valdinéia, Valdirene, Valdineide, Lucineide, Marie e Maria Alice. Um
agradecimento especial a minha irmã Valquíria que colaborou com idéias para
escrita do meu TCC. Minha família que foi a minha primeira escola, que me
ensinou valores éticos e estéticos que me direcionou desde cedo ao caminho
das artes.
A Maria Eugênia, minha mestra, que não desistiu, que confiou, que me orientou,
que me deu a mão e o braço nesta jornada. Meu carinho e afeto por toda a vida.
Aos mestres com carinho, Sônia Rangel (pelos tempos de delicadeza), Luiz
Marfuz, Érico José, Iami Rebouças, Sérgio Farias, Luis Cláudio Cajaíba, Luciano
Bahia, Ana São José, Maria de Lourdes (saudosa Lurdinha), Antônia Pereira,
Urânia Maia, Ângela Reis, Héctor Briones, Fernanda Paquelet, André Rosa,
Paulo Dourado, Luciana Balbino (Escola Cid Passos), Edenice Santana de
Jesus (Centro Educacional Edgar Santos), Vanda Machado, Carlos Petrovich,
Renato da Silveira, Ordep Serra, Olímpio Serra, pela dedicação e generosidade.
Aos meus primeiros mestres na arte de representar: Équio Reis e Franklin
Costa.
Aos meus melhores amigos Tânia Soares e Rafael Morais que me ajudaram a
vir para Salvador, a permanecer e a entrar na faculdade, assim como a
permanecer nela, a lutar pelos meus sonhos e a criar meus caminhos. A eles,
minha amizade eterna.
A Carmen Paternostro, minha amiga e incentivadora.
7. Aos meus colegas e amigos que me agüentaram durante 4 anos na facul dade,
que dividiram comigo momentos tão doces e intensos, nesse processo de
educação e auto-conhecimento. Gessé, Eliana, Jandiara, Bira, Roseli, Ive,
Camila, Daiane, Wellington, Eliete, Rubenval, Diana, Emiliano e Carla, meu
agradecimento e admiração, por toda a contribuição na criação do processo e
pela amizade. Sem vocês esse trabalho não existiria.
Aos que entraram conosco, mas que por algum motivo, seguiram outro caminho,
mas que com certeza deixaram suas contribuições nas músicas e textos do
espetáculo Nós na Cidade. Mabele, Mariana, Jorge, Alexandre, Eliciana,
Roberto e Roque.
Aos meus colegas, do grupo Licenciatura 2005.1, que me receberam com
carinho e afeto. Meu agradecimento especial a Gonzalez pelas fotos e músicas
do nosso espetáculo, a Francisco pelo carinho e generosidade ao responder o
questionário que contribuiu com o TCC.
A equipe de Comunicação do CRIA, nas pessoas de Tássia Batista e S cheila
Gomes, pelos materiais cedidos e ao grupo CRIAPOESIA, pela companhia.
Ao ator e diretor Ângelo Flávio.
Ao Terreiro da Casa Branca.
A Doutora Tereza Cristina.
A todos os meus amigos e incentivadores, que estavam perto, ou mesmo os que
estavam longe, mas que torceram por mim. Meu muito obrigada!
8. Um povo sem conhecimento do seu passado
histórico, origem e cultura é como uma árvore
sem raízes.
(Bob Marley)
10. SOUZA, Valdíria Santos de. Nós na Cidade: uma interação entre teatro,
educação e identidade. 112f. 2008. Trabalho de Conclusão de Curso
(Graduação) – Curso de Licenciatura em Teatro, Escola de Teatro, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2008.
RESUMO
Estão descritos neste trabalho os processos metodológicos de construção do
espetáculo Nós na Cidade - espetáculo proveniente de um processo colaborativo
desenvolvido pela turma de Licenciatura em Teatro de 2004 – que possibilitaram minha
busca de auto-conhecimento, a formação de um grupo artístico e sua identidade como
grupo. Através da arte educação, os alunos/atores desse processo se encontraram com
a história da cidade de Salvador e com a história dos afro-brasileiros, possibilitando
assim, um pensamento crítico sobre a Educação Étnico-Racial e a Lei 10.639/2003,
através dos diálogos que realizaram com várias instâncias da cidade. O trabalho, que
inclui depoimentos dos integrantes e o texto resultante do processo criativo, apresenta
uma prática artística, política e pedagógica de teatro-educação baseado em jogos e
improvisação. Aponta para possibilidades de educação para cidadania, através do
exercício da criatividade, na dimensão cultural das cidades, valorizando as pessoas
como sujeitos históricos da sociedade a qual pertencem.
Palavras Chave: teatro, identidade, educação étnico-racial, cidadania e criatividade.
11. APRESENTAÇÃO
Este trabalho é um relato da minha experiência como artista/educadora envolvida
no processo criativo de construção do espetáculo Nós na Cidade, desenvolvido pela
turma de Licenciatura 2004 a partir componente curricular Improvisação e Jogos
Dramáticos. Esta experiência foi vivenciada por mim e minha turma nos três primeiros
semestres (referentes aos Módulos I, II e III) no curso de Licenciatura da Escola de
Teatro da Universidade Federal da Bahia.
A partir da metodologia desenvolvida no componente curricular Improvisação e
Jogos Dramáticos, orientado pela professora Maria Eugênia Milet, pesquisamos a
cidade de Salvador e nesse processo de pesquisa chegamos ao primeiro Candomblé
de Keto da Bahia e a sua primeira Mãe de Santo Iyá Nassô, o que nos levou a refletir
sobre a formação da sociedade brasileira através das matrizes estéticas culturais e
sobre a importância do teatro na educação, na formação do educando como cidadão
crítico e participante ativo da sociedade a qual ele pertence.
Neste trabalho apresentamos uma proposta de arte-educação voltada para o
exercício da criatividade e cidadania, através do conhecimento e valorização da história
e expressão do povo negro, no contexto da construção de um currículo aberto às
manifestações culturais da cidade. Sendo assim tivemos como aspiração, inspirar e
revelar processos educacionais sensíveis e libertários de transformação social,
referendando lutas e conquistas, dentre as quais, a lei 10.639/2003, que obriga o
ensino da cultura afro-brasileira nas escolas públicas e particulares de ensino
fundamental e médio.
A pesquisa sobre a cidade se deu através de um processo interdisciplinar e trans-
disciplinar proporcionado pelo novo modelo do currículo implantado na Escola de
Teatro, o que possibilitou o diálogo entre diversas áreas do conhecimento dentro e fora
da sala de aula. Foi realizada também uma pesquisa de auto-conhecimento – na
descoberta do Quem Sou Eu – e de conhecimento coletivo através do diálogo dos
alunos/atores uns com os outros e com a cidade. Uma experiência artística-política e
12. pedagógica, na qual o exercício da criatividade e de construção coletiva pôde fomentar
ricos processos de aprendizagem ligados à história do Brasil, da África, de Salvador e
dos Orixás.
Este trabalho é um estudo de caráter histórico, descritivo, analítico e poético. A
poesia é trazida nas falas dos componentes do grupo que foram entrevistados e nas
citações de Paulo Freire sobre educação e as Cidades Educativas que permearam este
estudo sobre esse processo de formação individual e coletiva, através da prática
educativa de ensino/aprendizagem com o teatro. Queremos aqui destacar o processo
criativo “experenciado” e a “cidade educativa” que foi emergindo na construção desta
cidadania, e também na construção do espetáculo que espelhava uma Salvador feita
com lutas e expressões dos povos negros, com a sua espiritualidade. Aqui,
pretendemos refazer as dobraduras pelas quais fomos desvelando os cenários e as
personagens ocultadas da cidade, inclusive Nós na Cidade, alunos, aprendizes de um
novo tempo, Sujeitos criativos de nossa história.
Este trabalho de conclusão de curso traz à tona meu processo pessoal de auto-
conhecimento, meu crescimento, minha consciência de pertencimento étnico cultural e
meu envolvimento e responsabilidade com a cidade e seus personagens. Está repleto
de gratidão e lembranças. Por exemplo, da professora Edenice Santana de Jesus
coordenadora pedagógica do Centro Educacional Edgard Santos, e também ex-aluna
da escola, - que esteve em nossa sala pedindo ajuda para sua luta diária de tentar
envolver a comunidade, os professores e os alunos na revitalização de sua Escola – no
início da sua palestra disse: “Sempre que eu vou começar qualquer atividade, peço
licença aos meus ancestrais”.
Com esta gratidão, também peço licença a todos os nossos ancestrais e aos
Orixás para começar essa saudosa narrativa.
Agô!
13. LISTA DE FIGURAS
Figura 01 – A pesquisa do figurino..................................................................................36
Figura 02 – O grupo e a professora no Pelourinho.........................................................43
Figura 03 – A Bahia Negra nos nossos traços e gestos.................................................45
Figura 04 – Francisco André em seu momento: Quem Sou Eu?....................................46
Figura 05 – Apresentação na frente de Câmara de Vereadores.....................................47
Figura 06 – Cantando Reconvexo...................................................................................49
Figura 07 – Ensaio na sala de aula.................................................................................49
Figura 08 – Arrumação da cena......................................................................................50
Figura 09 – Arrumação da cena......................................................................................51
Figura 10 – Torre de Babel..............................................................................................52
Figura 11 – Rubenval Meneses – o locutor.....................................................................54
Figura 12 – Cidade em festa em ritmo de xaxado...........................................................56
Figura 13 – Procissão de Doentes..................................................................................57
Figura 14 – Momento ônibus – processo em sala...........................................................58
Figura 15 – Vendedor e cliente – processo em sala.......................................................60
Figura 16 – Bira Azevedo – representando o padre da procissão..................................63
Figura 17 – Eliana Andrade em seu momento: Quem Sou Eu?.....................................63
Figura 18 – Apresentação em frente a Câmara de Vereadores......................................67
Figura 19 – Apresentação em frente a Câmara..............................................................69
Figura 20 – Mãe Tatá e outros membros do Terreiro assistindo ao espetáculo.............72
Figura 21 – Recebendo os aplausos do público.............................................................73
Figura 22 – O grupo na sala de aula...............................................................................75
Figura 23 – Momento de descontração...........................................................................86
14. SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................13
2 EDUCAÇÃO ATRAVÉS DA ARTE: PROCESSOS EM RESULTADOS...............16
2.1 A CHEGADA...........................................................................................................17
2.2 A DESCOBERTA DO QUEM SOU EU...................................................................18
2.3 A FORMAÇÃO DO GRUPO...................................................................................27
2.4 NOSSA PRODUÇÃO..............................................................................................32
3 RESULTADOS EM PROCESSOS.........................................................................40
3.1 NÓS NA CIDADE....................................................................................................41
3.1.1 Sobre a encenação...............................................................................................41
3.1.2 O Texto..................................................................................................................47
3.2 MOBILIZAÇÃO SOCIAL, UMA QUESTÃO DE ATITUDE......................................64
3.3 UM OUTRO OLHAR SOBRE SALVADOR.............................................................76
4 PERSPECTIVAS PARA A CIDADE.......................................................................86
4.1 EDUCAÇÃO ÉTNICO- RACIAL, A LEI 10.639/2003..............................................87
4.2 REPERCUSSÕES NA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA.............................96
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................99
REFERÊNCIAS....................................................................................................101
ANEXOS...............................................................................................................104
15. 13
1 INTRODUÇÃO
Axé é para os nagôs a idéia de forças circulantes capazes de engendrar a criação
e a expansão da vida, tornando tudo mais profundo mágico e forte. Nesta força nos
encontramos com nossa ancestralidade - com o povo africano - encontramos a energia
que nos move criativamente e fomos “desocultar” uma realidade existente, sentida e
vivida no passado, pensando criticamente o presente através do teatro, que “ainda tem
a fama de ser a casa do saber, um guardião do patrimônio artístico de várias culturas”
(FARIAS, 2002), inclusive da nossa, que estava sendo ocultada, portanto, pensando o
teatro como instrumento de educação inclusive política, sem deixar de viver o intenso
prazer estético e emocional proporcionado por ele, procuramos dá um novo sentido a
nossa educação.
Com o Axé, perpassando nossos inconscientes coletivos criamos um espetáculo
chamado Nós na Cidade – engendrando a criação e expansão da vida – e junto com
outros atores sociais, começou com uma luta da qual decidimos fazer parte. Esta luta
se travava para a mudança de nome de um centro cultural localizado na antiga Igreja
da Barroquinha, “berço dos guerreiros nagôs”, que fundaram o primeiro Candomblé de
Keto da Bahia. Neste passo a passo de investigação sobre essa história, fomos
instigados a nos conhecer melhor e mais ainda a cidade, seus lugares, suas histórias e
seus protagonistas. E logo chegamos a uma grande mulher, Iyá Nassô, personagem
importante na construção da cidade, a partir da criação do Terreiro da Casa Branca que
se desdobra em vários outros terreiros de Candomblé nagô, na nossa cidade negra de
São Salvador.
Com a construção coletiva do espetáculo Nós na Cidade, nos reconhecemos
como cidadãos críticos pertencentes a um grupo social, entendemos nossas múltiplas
identidades e nos reconhecemos como negros e brasileiros. Entendemos o processo de
formação de nossa sociedade baiana, reconhecendo as marcas deixadas pelos nossos
ancestrais - os negros trazidos do Continente Africano - nos contornos da cidade.
16. 14
Com um processo de auto-conhecimento e integração social – uma mescla entre
singularidades individuais e unidade social - vivenciamos questões sociais e poéticas,
nesta experiência artístico-política e pedagógica, na qual o exercício da criatividade
pode fomentar processos de aprendizagem ligados à história do Brasil, da África e de
Salvador.
Éramos 25 alunos muito diferentes, de outras cidades do estado da Bahia e de
outros estados do Brasil. Alguns já trabalhavam com teatro, davam aulas, eram atores,
outros, estavam apenas começando a sua jornada na educação e no teatro. A
construção daquele currículo levava em consideração cada um de nós, inclusive os
professores dos outros componentes, pois a filosofia da proposta curricular em módulo,
adotada justamente naquele ano na Escola de Teatro, era baseada na
interdisciplinaridade, que pressupõe a participação e a integração.
Das improvisações e jogos foram nascendo o texto, as imagens e as músicas.
Falamos de nós dentro desta cidade de Salvador, de seus doentes e loucos, de seus
monumentos e encantos. Tivemos aulas e fizemos apresentações do nosso processo
na Barroquinha, em praças, em escolas como no Centro Educacional Edgar Santos, na
Casa Branca, no Pelourinho, na Câmara de Vereadores e na Escola de Teatro, sempre
acompanhados do grupo CRIAPoesia um grupo de arte e educação do Centro de
Referencia Integral do Adolescente1, que tem como coordenadora nossa professora
Maria Eugênia Milet.
Com a obrigação do ensino da cultura afro-brasileira nas escolas de ensino
fundamental e médio (públicas e particulares), pela Lei 10.639/2003, o nosso estudo
pode contribuir com formas de inserir a história da África e afro-brasileira no currículo,
sem preconceito, de uma forma lúdica e séria, possibilitando ao estudante uma visão
completa e crítica da formação da sociedade brasileira e das três matrizes que a
compõem.
1
O CRIA – Centro de Referencia Integral de Adolescentes foi estruturado como ONG em fevereiro de
1994 com o projeto Educação- Um Exercício de Cidadania, que visava a implantação de educação
sexual e de outras questões ligadas a cidadania, nos currículos escolares da 5ª a 8ª séries das escolas
da rede municipal, bem como a implementação de ações voltadas para a saúde dos adolescentes a partir
dos centros de saúde e da formação de educadores e adolescentes multiplicadores. Os temas
trabalhados, ligados a formação integral do adolescente são prioritários no desenvolvimento das ações e
projetos do CRIA visando a dimensão de cidadania: educação, sexualidade e etnia.
17. 15
Acreditamos que este trabalho possa contribuir para a discussão sobre a
qualificação da escola a partir de uma compreensão mais significativa de valores étnico-
culturais dos quais todos os brasileiros fazem parte. Corroborando com os esforços de
muitos educadores em desenvolver a consciência crítica e os valores civilizatórios da
população para que os preconceitos não prevaleçam, acirrando assim, o racismo e a
violência contra o povo negro. Nossa intenção, com este trabalho, é destacar as
experiências significativas de educadores e educandos com referências palpáveis de
valorização de suas origens para ampliar sua auto-estima.
Neste sentido, afirmamos e confirmamos a importância da arte dentro da sala de
aula, como também, os conceitos sobre teatro de improvisação de Viola Spolin; a
metodologia de educação-através-da-arte com Dourado e Milet e o pensamento de
Paulo Freire, através dos livros A importância do ato de ler, Pedagogia do Oprimido
Pedagogia da Autonomia e Política e Educação.
Pensamos como Paulo Freire, em construir uma Cidade Educativa, que considere
o Axé e toda nossa ancestralidade, assim como diz o próprio autor uma “Cidade
Educativa”:
As Cidades Educativas devem ensinar aos seus filhos e aos filhos das outras
cidades que as visitam que não precisamos esconder a nossa condição de
judeus, de árabes, (...) de brasileiros, de africanos, de latino-americanos de
origem hispânica, de indígenas não importa de onde, de negros, de louros, de
homossexuais, de crentes, de ateus, de progressistas e conservadores para
gozar de respeito e de atenção (2001, p. 25).
Uma “Cidade Educativa” que nos possibilite respeitar os que existiram antes e os
que virão, pensando uma educação mais justa, que contemple a todos independente de
sua cor, classe, sexo ou religião, tornando o mundo “menos feio”, deixando nas ruas,
nas praças, “as marcas do nosso tempo”, conservando também “os selos de certas
épocas”, capazes de mostrar, quem fomos, quem somos e quem podemos ser,
pensando o passado para construir nosso futuro.
18. 16
2 EDUCAÇÃO ATRAVÉS DA ARTE: PROCESSOS EM RESULTADOS
Sou pequena
Sou menina
Desejosa de crescer
Quando grande
Menina
Vou querer voltar a ser
Para andar livre pelos sonhos
Inventando
novas
formas
de viver.
Valdíria Souza
19. 17
2.1 A CHEGADA
O curso de Licenciatura em Teatro da UFBA, no ano de 2004, começou com uma
novidade: o currículo da escola adotou o sistema de módulos que consiste em sete
módulos interdisciplinares obrigatórios, seqüenciais, com componentes curriculares
(antigas disciplinas) bem definidos e integrados com ênfase na prática. Cada módulo é
pré-requisito para o seguinte e é composto de 25 horas semanais, em um único turno.
No caso do curso de licenciatura, é desenvolvido de segunda à sexta-feira, das 13 às
18 horas.
O Componente Curricular, Improvisação e Jogos Dramáticos, carro chefe do 1º
semestre é, segundo a minha compreensão, norteador de toda filosofia do novo
sistema, pois consiste em abordar teoria e prática das diversas técnicas de
improvisação e jogos dramáticos utilizados em teatro, visando tanto a livre criação de
textos e personagens, quanto à formação de um grupo que irá participar ativamente da
construção de seu processo de ensino-aprendizagem, e, por conseguinte, no
aperfeiçoamento da proposta curricular do Curso da Licenciatura.
Este componente era coordenado pela professora Maria Eugênia Milet, que
também coordenava o módulo, e nesta função tinha a responsabilidade de articular os
componentes, provocando a integração entre os professores para a construção de uma
proposta interdisciplinar e para avaliação dos alunos.
A estruturação dos módulos do curso tem um caráter temático e progressivo
contendo definições genéricas para garantir a flexibilidade do processo. O módulo I, por
exemplo, tem o tema Eu e a Cidade, responsável pela primeira experiência criativa do
grupo de alunos calouros. No nosso caso, a experiência resultou no espetáculo Nós na
Cidade, que foi apresentado e aprimorado durante os módulos II e III. Através deste
tema as disciplinas práticas e teóricas se integravam para construção deste espetáculo.
Vinte e seis alunos tiveram a oportunidade de serem os primeiros a participarem
do novo sistema, ingressando na universidade através do vestibular, e eu fui uma das
contempladas a participar da primeira turma de licenciatura em teatro que inaugurava
20. 18
este novo currículo, que integrava os nossos saberes com os nossos contextos, uma
busca de referenciais culturais e auto-conhecimento através dos jogos, das
improvisações, dos trabalhos teóricos e das rodas de conversa.
2.2 A DESCOBERTA DO QUEM SOU EU
O procedimento Quem Sou Eu-Quem Somos Nós? foi criado pela professora
Maria Eugênia Milet e é desenvolvido no teatro do CRIA. Está relatado em sua
Dissertação de Mestrado: Uma Tribo Mais de Mil - O Teatro do Cria e foi utilizado nas
aulas do curso de licenciatura, como parte integrante do componente curricular
Improvisação e Jogos Dramáticos. Segundo a professora Maria Eugênia, este
procedimento propõe aos sujeitos do processo, a busca do auto-conhecimento, e de
exercício poético-corporal e musical para que se instaure um ambiente de
desnudamento e o jogo se estabeleça, no mergulho de cada um em sua história (e na
imaginação e espontaneidade), bem como na construção de uma composição coletiva
integrando nomes, idéias, imagens, e memórias. “Através de um percurso íntimo e
coletivo que vai delineando uma estética e uma ética – uma pedagogia gerada na
sensibilidade e no exercício da participação” (MILET, 2005 p. 73).
O sonho comum encontra-se no sentir, no pensar e no fazer de um teatro com
dança, música e poesia – arte que se cria na maneira de educar, para ampliar a
consciência do pertencimento ao País e ao mundo, a medida que enaltece a
presença das pessoas, a partir dos processos de auto-conhecimento e de
construção criativa- interativa, que se processa com o corpo todo: mente,
sensação, carne, emoção, memória e intuição (MILET, 2005, p. 74).
Além deste procedimento a metodologia integrava um processo de educação
estética, baseada em jogos infantis e teatrais, referenciava a prática em paralelo a
experimentação de um repertório diversificado de técnicas de improvisação. Esta
proposta estava ancorada, tanto no sistema de jogos teatrais concebido por Viola
Spolin, através de seu livro Improvisação para o Teatro (1992), quanto na proposta por
21. 19
Dourado e Milet, apresentada no Manual de Criatividades (1998), onde são
apresentadas considerações práticas, filosóficas, metodológicas e 257 atividades para
auxiliar professores de arte-educação.
É preciso se descobrir, se conhecer, ter consciência das formas que definem
esse alguém. Esse alguém... Quem? Sou eu? Quem Sou eu? Vim das
cavernas, vou para naves e estou nessa cidade de urbanóides.
Camila Bonifácio – integrante do grupo nas improvisações “Quem sou eu”.
A pesquisa do Quem sou eu - Quem Somos nós? Foi muito importante para a
turma. Íamos descobrindo o nosso eu poético em contato direto uns com os outros - um
constante diálogo. O eu era construído e desvelado, e uma partitura ia sendo composta
e ao mesmo tempo que nos mostrávamos nos jogos, dialogávamos com o eu do outro,
em constante criação e transformação. Trazemos então Paulo Freire para ressaltar a
importância do diálogo no processo de transformação do Eu, para a transformação
também do mundo. O autor diz:
O eu dialógico, sabe que é exatamente o tu que o constitui (...) esse tu que o
constitui, se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um tu. Desta
forma, o eu e o tu passam a ser na dialética destas relações constitutivas, dois
tu que se fazem dois eu.
(...) sujeitos que se encontram para a pronúncia do mundo para a sua
transformação (1987, p. 165-166).
O diálogo que se instaurava no jogo era mais amplo do que o que se dava
simplesmente na conversa, como troca de idéias. Apesar da metodologia também
valorizar as rodas de conversa, ao final de cada aula, era proposta uma “reflexão-ação”,
assim como propõe Paulo Freire, o diálogo “como encontro, onde há homens que em
comunhão buscam saber mais” (1987 p. 80-81), aprendendo a importância de ouvir e
confiar no outro, sem querer impor a sua palavra e entendendo aquele encontro como
importante para a busca de auto-conhecimento e amadurecimento pessoal e coletivo.
Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo se faz uma
relação horizontal em que a confiança de um pólo no outro é conseqüência
óbvia. Seria uma contradição se, amoroso, humilde e cheio de fé, o diálogo não
provocasse esse clima de confiança entre sujeitos. (1987, p. 81).
22. 20
Enquanto aprendíamos a fazer teatro, também estávamos aprendendo a dialogar.
Com muita escuta e com muita indagação, tanto com a professora, quanto para com
nós mesmos – alunos sujeitos daquele processo – desenvolvemos uma espécie de
crítica ao nosso papel de ser e estar no mundo, em nossa cidade, nos retratando,
enquanto jovens cidadãos. Com esse objetivo de trocas de nossos saberes estávamos
aprendendo novas maneiras de ensinar assim como ensina Paulo Freire:
(...) o educador já não é o que apenas educa, mas o que enquanto educa é
educado, em diálogo com o educando que ao ser educado, também educa.
Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos (...) Já
agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo:
os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo (1987, p. 68-
69).
O tema do Módulo era Eu e a Cidade, então toda esta criação recuperava
fortemente, também, a dimensão do lugar, o pertencimento a nossa cidade natal. Como
nós alunos (nesta etapa já pertencendo a um grupo!) tínhamos origens diferentes, as
cidades, lugares, eram acolhidos e integrados às cenas. E Salvador nos esperava nas
ruas e nos acolhia também, ali dentro da sala da Universidade. Ali, a cidade se
expressava em nós, cidade expandida nos vários ecos de cada um, era o que
estávamos vivendo, como podemos ver neste depoimento:
Oxente quem sou Eu? Vou carregar esta pergunta sempre comigo. Me
perguntei isto no primeiro semestre e a cada vez que me perguntava tentava
me responder. Hoje continuo me perguntando e sempre descobrindo novas
respostas, novos Biras que é resultado de todos os Biras que fui e que ainda
sou, porque o sou. A grande contribuição na minha vida neste processo da
busca de identidade é o fato de que agora eu entro na sala de aula, ou numa
reunião de educadores ou num congresso (...) e eu sei o que eu quero, meus
anseios, meus gostos, minhas escolhas. Ou pelo menos tenho pistas,
perspectivas pra não ficar parecendo que estou dizendo que sou um ser
decidido e sem conflitos internos. (...)
Tivemos a chance de nos conhecermos mais. Nunca vou esquecer que Valdíria
é de Ilhéus e que Santa Inês é a cidade de Gessé, por exemplo. (Bira Azevedo
– Integrante do grupo)
Pensar a cidade era pensar a estrutura política, geográfica, econômica e
educacional e como estávamos inseridos nela. Assim, nas rodas de conversa, a idéia
23. 21
de cada integrante era trazida, e a cena se ampliava, na dimensão de nossos gestos,
palavras e nossa cultura, um exercício de criatividade impulsionado pelas
improvisações sobre temas ligados à realidade, improvisações de músicas e poesias já
existentes ou criadas pelo grupo.
Um teatro mais amoroso e denso com meninos de Salvador – que chamariam é
claro, muitos outros para entrarem na roda de brincar de mudar o mundo: de
pensar, ser e estar na cidade, fazendo arte, e por que não Educação? (MILET,
2002, p. 24)
Cada aula era única, com começo, meio e fim, com 04 etapas seqüenciadas:
aquecimento; relaxamento-concentração; elaboração e avaliação, sempre levando em
consideração as nossas necessidades e expectativas (DOURADO & MILET, 1998, p.
31).
Inicialmente desenvolvemos vários jogos tendo como objetivo alcançar uma
fluência expressiva e minimizar as barreiras individuais e grupais. Estávamos na fase
liberação, 1ª fase do método de trabalho desenvolvido no Manual de Criatividades. A
fase liberação “contém atividades que caracterizam principalmente, por solicitar uma
grande participação física: mobilidade, agilidade, reflexos, coordenação, desinibição”
(DOURADO & MILET 1998, p. 17).
O Jogo é uma forma natural de trabalho de grupo que propicia o envolvimento e
a liberdade pessoal necessária para a experiência. Os jogos desenvolvem as
técnicas e habilidades pessoais necessárias para o jogo em si, através do
próprio ato de jogar. As habilidades são desenvolvidas no próprio momento em
que a pessoa está jogando, divertindo-se ao máximo e recebendo toda
estimulação que o jogo tem para oferecer. (SPOLIM,1992, p. 4)
Sem nenhuma preocupação com resultados estéticos cênicos pré-concebidos ou
artisticamente planejados e ensaiados a primeira finalidade a ser alcançada é
crescimento pessoal dos jogadores através do domínio e uso da linguagem teatral.
Trabalhar com improvisação pressupõe a idéia de que todas as pessoas são criativas,
podíamos exercitar nossa criatividade e contribuir com o processo que estava
nascendo, sem medo, sem vergonha.
Qualquer juízo de valor como feio/bonito, bom/mal, certo/errado, mesmo que
não seja colocado como correção avaliação, pode projetar modelos de conduta,
24. 22
aos quais o aluno vai tentar adaptar-se, fugindo assim à expressão genuína do
seu verdadeiro universo, o que constituiria justamente o oposto dos principais
objetivos da Educação através da Arte: o auto-conhecimeto e a livre expressão
do indivíduo. (DOURADO & MILET, 1998, p.19).
Os jogos e brincadeiras possibilitaram a criação individual e grupal de movimentos
e sons, contato entre os componentes do grupo buscando uma cumplicidade e
segurança de um para com o outro. O objetivo era claro, entrar em contato com outro,
podendo observar e perceber as diferenças de cada um, respeitando tempo e
presença, descobrindo que é essencial trabalhar em grupo, pois completamos o nosso
trabalho com o do colega para ter o resultado de um todo.
Buscamos uma consciência corporal capaz de superar limites físicos, com
movimentos repetitivos seguindo uma seqüência elaborada nas improvisações grupal e
individual. Nessas improvisações cada um criou um texto para dizer quem sou eu, de
onde vim e para onde vou e esse texto era dito junto com as partituras corporais. Este
foi o ponto de partida para construirmos um ritual, que só foi possível porque houve um
respeito do momento de cada um, em suas improvisações de sons e movimentos, de
sua experiência criativa. Partimos então para responder criativamente a pergunta que
não queria calar: Quem sou eu?
O gesto nasceu da loucura e do movimento repetitivo e quente
A loucura, a dança e a luta imperam
O corpo precisa de movimento. A consciência é esquecida
E corpo se movimenta loucamente
Loucura, loucura, Ilhéus, cacau, loucura, Ilhéus...
Valdíria Souza
A loucura descrita no verso acima era o espelho daquele novo momento que
estávamos vivendo. Expondo-nos uns aos outros, sem constrangimento, fazendo sons
e movimentos aparentemente desconexos. Com o texto que estava nascendo
intuitivamente, desenhávamos no espaço uma metáfora do nosso eu, revelando-o para
os outros, no texto-palavra, e no texto mostrado no corpo-físico. Estávamos livres para
jogar, e podíamos sentir essa liberdade proporcionada pelo momento. Segundo Spolin,
“a liberdade pessoal nos ajuda a ter autoconsciência (auto- identidade) e auto-
25. 23
expressão” e essa sede de auto-identidade enquanto básica para todos nós, “é também
necessária para expressão teatral”. (1992, p. 6).
O jogo é psicologicamente diferente em grau, mas não em categoria, da
atuação dramática. A capacidade de criar uma situação imaginativamente e de
fazer um papel, é uma experiência maravilhosa, é como uma espécie de
descanso do cotidiano que damos ao nosso eu, ou as férias da rotina de todo
dia. Observamos que essa liberdade psicológica cria uma condição, na qual
tensão e conflito são dissolvidos e as potencialidades são liberadas no esforço
espontâneo de satisfazer as demandas da situação. BOYD (apud
SPOLIN,1992, p. 5)
A experiência em grupo, centrada nos jogos e improvisações, enfatizava o
exercício da criatividade do ator, possibilitando que atuássemos com o nosso corpo
todo.
(...) um corpo, um coletivo disposto a se envolver em processo contínuo de
criação e educação(...)
Um corpo com propósito comum de trazer o verbo para ação de (i) ver(s)
cidade, um ato poético de ser, sendo parte integrante da multiculturalidade da
cidade e do Brasil, para promover novos olhares e assim fomentar processos de
mudanças. (MILET, 2002, p. 52)
Transformando em energia nossa vontade para o ato do jogo éramos desafiados a
estar sempre atentos a nós mesmos, e aos demais. Concentrados, e deixando o
racional de lado, nos permitíamos e, assim, as energias circulavam, preenchendo todos
os espaços, liberando em nós toda nossa espontaneidade, causando uma grande
explosão dos nossos eus.
Através da espontaneidade somos re-formamos em nós mesmos. A
espontaneidade cria uma explosão que por um momento nos liberta de quadros
de referência estáticos, da memória sufocada por velhos fatos e informações,
de teorias não digeridas e técnicas que são na realidade descobertas de outros.
A espontaneidade é um momento de liberdade pessoal quando estamos frente
a frente com a realidade e a vemos, a exploramos e agimos em conformidade
com ela. Nessa realidade as nossas mínimas partes funcionam como um todo
orgânico. É o momento de descoberta, de experiência de expressão criativa.
(SPOLIM, 1992, p. 4)
Para gerar nossa expressão criativa/coletiva, começávamos a desenhar com
nossas improvisações, relações sensíveis de contatos, quebrando as barreiras que
ainda existiam entre nós e construindo novas formas de dizer e estar no mundo e de
26. 24
construir nosso conhecimento, se apropriando da palavra do outro, observando como o
outro tomava emprestada a nossa palavra, dando nova forma, com novos movimentos,
com novas formas de arquitetar as palavras e os versos a estrutura poética que estava
nascendo.
Reconhecer-me no outro na tentativa de me auto-conhecer.
Vim de Santa Inês...Vieram da África e estão no céu dessa cidade, no chão
dessa cidade, no povo dessa cidade.
Gessé Araújo – Integrante do grupo
Começamos a segunda fase do processo, e esta correspondia à segunda fase
descrita no Manual de Criatividades - a fase de sensibilização “que tem como objetivo
desenvolver a percepção sensorial do aluno e faze-lo vivenciar diversas formas de
contato com o seu corpo, com o corpo do outro e o ambiente” (DOURADO & MILET
1998, p. 17).
Na festa intensa do jogo da criação, na busca do nosso eu poético - uma busca
coletiva de vários eus - nos encontramos na infância, nas brincadeiras e jogos que nos
possibilitavam recuperar e transmutar a nossa história de vida: com lembranças e
emoções do passado, valorizávamos o momento presente – o jogo, a cena, e
projetávamos o futuro. Estávamos nos re-descobrindo, nos re-conhecendo mutuamente
e principalmente re-descobrindo o prazer de ser criança, dispostos a jogar e aprender.
Como diz o ator Rubens Corrêa, “essa é a lei e a sabedoria dos meninos, sou útil
ainda brincando” (1994). E esse sentido da brincadeira como algo valoroso para o
nosso trabalho como ator e professor de teatro nos caminhos que estávamos
percorrendo era como uma volta à infância, um trabalho sensível de memória corporal.
Que apesar das responsabilidades da vida adulta ter chegado até nós, ainda
lembrávamos das brincadeiras no quintal da casa, das rodas de verso e das nossas
mães ou avôs cantando cantigas para dormir.
Ser criança nesse sentido era relembrar a espontaneidade e a liberdade do
brincar, a inocência e a sinceridade ao criticar a realidade, subvertendo a ordem
estabelecida, mostrando uma outra possibilidade de apreensão do mundo, através da
capacidade de sonhar e de ter esperança. Trazíamos para a cena a nossa criança
27. 25
interna, infância-memória e presença, através dos meninos e meninas que fomos e que
ainda podíamos ser, não só com os jogos e brincadeiras lúdicas, mas com a criança
que preservamos dentro de nós, que podíamos libertar no teatro através dos
personagens que nos faziam reviver nossa criança interna. Como diz a professora Lydia
Hortélio “e tenhamos as Crianças como nossas mestras, elas que são tão próximas à
Vida e artífices naturais do futuro” (1998)2.
Tanto para o trabalho do ator, como para a prática do arte-educador (que
estávamos buscando conhecer), o contato com o universo infantil, trazido pela
professora Milet, através dos jogos, brincadeiras, e através dos textos, pudemos
perceber o que diz Rubens Corrêa:
(...) A criança é uma fonte incrível de informação artística, e a criança que nós
fomos recuperada, através do nosso lado lúdico, tão atrofiado pelo correr dos
anos – pode nos servir de guia, mas um guia muito especial – que caminha
alegre e despreocupado, que sabe descobrir o mágico dentro do cotidiano,
intuitivamente. (CORRÊA, 1994)
A professora Lydia Hortélio propõe a infância como plano sobre qual a educação e
a arte devem se voltar. Nós futuros arte- educadores, estávamos recuperando a
espontaneidade e a inocência perdida através dos anos e “buscamos ler no verdadeiro
livro: a criança ela mesma, em seu movimento próprio – o brinquedo o brincar, onde ela
se mostra em sua graça e poder, em sua inteireza e espontaneidade”(1998)3.
É através da arte que podemos ser o que quisermos, deixando fluir na criação os
sentidos que os textos, poemas, músicas, danças e brincadeiras expressam em nosso
corpo, podendo ser criança, “ser humano e ser divino” assim como propõe Fernando
Pessoa no poema O Guardador de Rebanhos, por Alberto Caiero, “despindo o ser” e
“desconstruindo” as verdades pregadas pela sociedade.
“(...)
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que sou poeta sempre
E que o meu mínimo olhar me enche de sensação
E o mais pequeno som, seja do que for
Parece falar comigo.
2
Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil. Análises e Sugestões. 20 de março de 1998.
3
idem.
28. 26
A criança nova que habita onde eu vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
(...)
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
(...)
Sou um guardador de rebanhos
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
(...)
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz”.
O procedimento quem sou eu pautado nesta busca de auto-conhecimento e de
construção de conhecimentos da criação coletiva, estabeleceu uma nova forma de ver
e pensar a educação através dos seus próprios fazedores, os alunos atores que
desenvolviam uma maneira sensível de falar com o corpo, com os sentimentos, os
pensamentos e emoções. Íamos assim descobrindo novas formas de educação. Uma
Educação através da arte, que leva em consideração o conhecimento trazido pelo aluno
e não o trata como mero receptor de informação, assim como destaca Francisco um
dos integrantes do grupo, nunca ter imaginado que suas vivências iriam ser valorizadas
como conhecimento.
(...) em nenhum momento previa que as minhas vivências particulares e
peculiares iriam ser valorizadas como “conhecimento de mundo” e científico.
Essa grande e positiva surpresa ajudou bastante a desenvolver a minha visão
afetiva e poética da arte/educação. E principalmente valorizou sobre medida a
minha auto-estima de pessoa do interior, negro, pobre, egresso de um sistema
de ensino público com inúmeras deficiências. Ter valorizado a nossa identidade
nos primeiros contatos com a universidade contribuiu significativamente para a
formação de um novo perfil de professor de teatro, mais sensível ao contexto
social e valorizando a história de vida de nossos futuros alunos. (Francisco
André Souza Lima)
29. 27
A poeta Adélia Prado atribuiu uma importância essencial à arte na educação, pois
a “arte sendo pura expressão” é capaz de trabalhar sentimentos, emoções, criatividade,
essência, alma, fé, sensibilidade e poesia:
A escola, no seu conjunto padece de uma defasagem acadêmica, pior do que
isso de uma decadência nas áreas das humanidades. (...) Para onde foi a
poesia? A literatura? (...) Tudo isso tem a ver com a minha felicidade pessoal
que foi colocada em segundo plano nas escolas, por causa da mentalidade
utilitária da educação. (...) A arte na escola é que vai dá sentido. A mudança
deve partir de quem está na escola. O professor (...). (2002/2003)
A escola que vivencia a arte no seu dia a dia torna-se capaz também de construir
indivíduos mais felizes, mais humanos e com a auto-estima elevada. E essa mudança
tem que partir de quem está na sala de aula, nós professores.
2.3 A FORMAÇÃO DO GRUPO
O teatro fala por si e a educação celebra a arte do
encontro, fazendo-se na interação com as pessoas.
Maria Eugênia Milet
Todos os dias, de segunda à sexta-feira, das 13 as 18 horas, estávamos juntos na
faculdade freqüentando as aulas do módulo I. Entendíamos que como alunos, tínhamos
o compromisso de estarmos juntos. Alguns estavam se relacionando afetivamente
porque encontraram afinidades, outros estavam se relacionando intelectualmente para
realizarem trabalhos acadêmicos.
Começamos a ser sensibilizados desde o início pela proposta coletiva, baseada
no teatro improvisacional - sistema de jogos teatrais - um método de
ensino/aprendizagem que só poderia acontecer com uma interação de grupo. Essa
relação grupal surgia naturalmente, pois a metodologia exige dos participantes um
30. 28
amplo relacionamento, com total participação e contribuição pessoal, trabalhando juntos
para completar o projeto.
Assim como o jogo, o teatro é uma atividade artística que exige a participação de
muitas pessoas, e o teatro improvisacional que estávamos trabalhando requeria “um
relacionamento de grupo muito intenso, pois é a partir do acordo e da atuação em
grupo que emerge o material para cenas e peças” (SPOLIM,1992, p. 9).
Foi através desses acordos, que começamos a imprimir em nosso relacionamento
o respeito, a compreensão as diferenças, a atitude sincera ao criticar na avaliação, a
participação de algum colega que chegou atrasado na sala e não ter participado da
atividade desde o início, ou de outros que faltaram e não realizaram a cena coletiva
ensaiada anteriormente com todos os presentes.
Através do respeito entendíamos os problemas pessoais que alguns tinham e
faltavam ou chegavam tarde na aula, e nesse processo de respeito mútuo, todos foram
entendendo que apesar dos problemas, para essa ação de ensino/aprendizagem
acontecer, dependia da participação real de todos. Tanto a participação física, quanto a
intelectual. Mente aberta para jogar e responder os problemas que estavam sendo
propostos para realizar a cena.
Com a dominação de cada problema caminhamos para uma compreensão mais
ampla, pois uma vez solucionado o problema, ele se dissolve como algodão
doce. Quando já dominamos o engatinhar, nos pomos em pé, e quando nos
levantamos começamos a andar. Esse aparecimento e dissolvição infinitos de
fenômenos desenvolve uma visão (percepção) cada vez maior com cada novo
conjunto de circunstâncias. (SPOLIM, 1992, p. 10).
Os problemas pessoais eram colocados nas improvisações e as diferenças entre
cada componente eram trazidas como símbolo de respeito.
O processo de reconhecimento de grupo trabalhado nas improvisações do Quem
Sou Eu, foi gerando uma afetividade mútua, na troca de olhares, no tocar as mãos nos
círculos, nos jogos de confiança e principalmente no processo de revelar-se para o
outro, nos mostrando que apesar das diferenças podíamos acrescentar nossos saberes
para um objetivo comum e crescimento de todos. Para comprovar esse
amadurecimento de grupo, importante para nosso trabalho como arte-educadores
31. 29
trazemos os depoimentos dos integrantes do grupo que destacam a importância do
processo não só para a criação do espetáculo, mas também na construção de um novo
olhar sobre a educação, gerando na turma um reconhecimento de grupo. E a identidade
do educador que somos hoje também é pautada nesse reconhecimento.
Como artista e arte-educador a busca pela afirmação de uma identidade de
grupo e individual foi de extrema importância não apenas para minha formação
acadêmica, como também pra construção de um novo olhar sobre a educação
superior.(...) Esse processo criativo, portanto, foi importante não só para a
criação do espetáculo “Nós da cidade”, mas principalmente porque gerou na
turma o reconhecimento de uma identidade de grupo. A partir desse momento
nos tornamos solidários na busca pelo conhecimento, derrubando os limites
entre o ser professor e ser aluno. (Francisco André Sousa Lima)
(...)A minha identidade enquanto professora de teatro, logo arte-educadora, só
foi possível devido colaboração de todo o grupo. Paralelo a minha formação
acadêmica, participei de outras formações profissionais, pessoais e espirituais
que de maneira simples e bela, me ajudou a entender melhor a identidade
grupal. Hoje mais do que nunca, preservo e incentivo, a necessidade de
entendimento de grupo junto aos meus educandos.(...) Com esta metodologia
foi possível perceber claramente o quanto nós, homens e mulheres precisamos
nos educar para viver em grupo. (Camila Bonifácio)
Quando começo um trabalho com uma turma nova ou quando quero aprofundar
questões em grupos já formados, procuro criar e utilizar caminhos de criação e
fortalecimento dos vínculos entre as pessoas. Aprendi a fazer, a conduzir este
processo com o nosso grupo e a prática de Eugênia.(...)Havia respeito entre o
grupo. Sabíamos das limitações uns dos outros, tivemos brigas, mas sabíamos
nos tolerar, ficamos juntos ate o final(...). (Bira Azevedo)
As características pessoais acabaram servindo como elementos formadores da
força desse grupo. Com cada um apresentando características pessoais que sozinhas
poderiam não surtir efeito, mas unidas agregavam valores que ajudavam na coesão do
grupo, tornando-o forte, para entrar em cena.
(...) quando atua com o grupo, experienciando coisas junto, o aluno-ator se
integra e se descobre dentro da atividade. Tanto as diferenças como as
similaridades dentro do grupo são aceitas. Um grupo nunca deveria ser usado
para induzir conformidade, mas como num jogo deveria ser elemento propulsor
da ação (SPOLIM, 1992, p. 9).
O trabalho com os jogos teatrais e as brincadeiras, fortaleceu o grupo como célula
operativa de regras. Se unir para realizar a atividade proposta era importante para o
coletivo e com essa união, nos re-conhecíamos, conhecíamos nossas afinidades e
32. 30
diferenças e nos uníamos cada vez mais, traçando através da arte nossos caminhos
pessoais e profissionais, pensando a educação democrática que estávamos
vivenciando.
Não há crescimento democrático fora da tolerância que, significando,
substantivamente, a convivência entre dessemelhantes, não lhes nega contudo
o direto de brigar por seus sonhos. O importante é que a pura diferença não
seja razão de ser decisiva, para que se rompa, ou nem se quer se inicie um
diálogo através do qual pensares diversos, sonhos opostos, não possam
concorrer para o crescimento dos diferentes, para o acrescentamento de
saberes. Saberes do corpo inteiro dos dessemelhantes, saberes resultantes da
aproximação metódica (...) Saberes de suas experiências feitos, saberes
“molhados” de sentimentos, de emoção de medos, de desejos (FREIRE, 2001,
p. 17).
Assim o grupo foi formado, porque pactuavam de um intenso processo criativo-
educativo, processos psico-sócio-culturais de formação de identidade. Esse processo
foi resultado de um convívio intenso, resultado de muitos conflitos, mas principalmente
de extrema confiança, condição básica que nos permitiu criarmos juntos, um processo
de educação estética e ética, capaz de gerar um espetáculo, que falava de nós e da
nossa Cidade, como diz Paulo Freire, estávamos vivendo a autenticidade exigida pela
prática de ensinar-aprender:
Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender
participamos de uma experiência total, diretiva, política e ideológica,
gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de
mãos dadas com a decência e com a seriedade. (1996, p. 24)
A beleza apresentava-se na dimensão humana trazida em corpo e alma por nós
integrantes do grupo, através de uma relação sensível e afetuosa que estabelecemos
durante o processo criativo, como também em cena nas apresentações públicas. Daine
integrante do grupo afirma essa beleza intrínseca ao processo:
A beleza com que cada cena ia sendo tecida pessoa por pessoa e
transformando-se em único e uníssono. Além de poder construir textos, poesias
e partituras corporais mais verdadeiras e significativas (Daiane Gama).
O trabalho nos deixou próximos uns dos outros e atentos para nossa cidade.
Vivemos e compartilhamos nossa crise de identidade, nos ajudando a conhecer o
33. 31
nosso mundo e pensando profundamente o sentido: Quem Sou Eu? Gessé Araújo
destaca a visão mais politizada da educação provocada por esse processo, enquanto
Daiane Gama reflete a sua mudança, pautada na leitura do mundo antes da leitura da
palavra assim como Paulo Freire nos ensinou no livro A Importância do Ato de Ler
(1983) que nos acompanhou desde o início do nosso processo de formação.
Temos hoje, de uma maneira geral, uma visão mais ampliada de arte e do
próprio teatro que nos propomos fazer. Isso é pra mim uma coisa bastante
agregadora neste sentido de grupo. Outra coisa, temos uma visão muito mais
politizada de nossa arte, de maneira mais geral, de nossas maneiras de intervir
no mundo como educadores (Gessé Araújo).
Uma transformação no meu jeito de ver a vida e as minhas possibilidades. Tudo
se ampliou. Não só o meu campo de visão, como o meio de alcançar os meus
objetivos. Agora faço escolhas baseadas nos anseios descobertos nesse
processo. (...) Enquanto arte-educadora, utilizo com mais segurança essas
descobertas e tento contagiar os alunos para que eles não só acreditem no que
eu estou falando, como possa buscar suas próprias verdades e crenças. Assim
como Paulo Freire acreditava que “a leitura do mundo antecedia a leitura da
palavra” eu precisei ler esse mundo que estava bem a minha frente e isso só foi
possível graças a esse processo de identificação individual e grupal.
(Daiane Gama).
A professora nos guiava por caminhos muito intensos pela arte-educação, sempre
atenta, acompanhando o processo, promovendo mudança de rumos e nosso
crescimento educacional. Ela também fazia parte do grupo e exercia seu papel de
autoridade que lhe cabia, mas a todo tempo nos deixava livres para “alçar vôos”, nos
estimulando a pergunta e a reflexão crítica, sobre o nosso papel como futuro arte-
educador, autenticando o caráter formador do espaço pedagógico como confirma Paulo
Freire quando diz que esse espaço nasce do respeito mútuo entre professores e
alunos. “O clima de respeito que nasce de relações justas, sérias, humildes e
generosas, em que autoridade docente e as liberdades dos alunos se assumem
eticamente, autentica o caráter formador do espaço pedagógico” (1996, p. 92).
34. 32
2.4 A NOSSA PRODUÇÃO
A partir do momento que nos afirmamos enquanto grupo, criando coisas juntos
para serem levadas à cena, já começava a terceira fase do processo criativo, descrita
no Manual de Criatividades como Fase de Produção “que tem como objetivo propiciar
os meios para que o aluno elabore e organize a sua expressão individual e
coletivamente”. (DOURADO & MILET,1998, p. 18).
Essas fases descritas no Manual de Criatividades não são fixas. Estas demarcam
o processo, onde participamos de jogos e improvisações e atividades onde nos
expressamos artisticamente. De alguma forma, durante todo tempo estávamos
vivenciando liberação, sensibilização e produção. O Manual propõe estas divisões do
processo criativo, mas explica que cada fase “caracteriza-se pela predominância, de
uma dessas referências” (1998 p.18), determinada muitas vezes pelos exercícios e
jogos e seus objetivos, ou seja, objetivos que devem ser condizentes com a fase que
estamos trabalhando.
Nas aulas sempre repetíamos o que havíamos criado, mas chegava o momento
que os textos, poesias e músicas, ou textos que nos foram entregues durante as aulas,
fossem “costurados” de forma coerente com as nossas improvisações corporais e
textuais. Então estávamos sempre “indo e voltando”, aperfeiçoando nosso trabalho.
Incluindo nas cenas coisas novas, ou novas formas de dizer as mesmas coisas que
havíamos criado, novas alternativas de resolver o problema proposto.
A primeira apresentação aconteceu no dia 08 de julho de 2004 na sala de aula da
Escola de Teatro. Recebemos como convidados, alunos das Escolas de Dança, nossos
colegas e professores da Escola de Teatro, que falaram principalmente da idéia de
grupo artístico, possibilitada pelo novo currículo, que integrava o conhecimento prático
ao teórico, e possibilitava uma seqüência de atividades.
(...) Somente através do sequenciamento de atividades interdisciplinares,
organizadas em função da complexidade técnica e com crescentes demandas
de autonomia e produtividade criativa, pode-se desenvolver um processo de
ensino/aprendizagem na área de artes. E mais que isso pode-se coordenar a
35. 33
participação e avaliar o crescimento do aluno rumo a sua formação profissional.
(DOURADO, 1998, p. 79)
Defendemos assim o Novo Currículo como um elemento motivador para a
formação do nosso grupo e principalmente a possibilidade de continuidade das nossas
atividades criativas capazes de gerar processos criativos4 tão ricos como o Nós na
Cidade – espetáculo gerado no componente Improvisação e Jogos Dramáticos.
Nesta primeira apresentação mostramos como podíamos ser musicais, dançando
e cantando as canções que criamos nas improvisações, destacando a capacidade que
as letras tinham de falar de teatro e educação. Uma educação de esperança, liberdade
e principalmente autonomia do sujeito.
A arte de ser ator
É mais que uma paixão
É como pai: Educar
Dando asas a criação!
Conquistar a independência
É viver com liberdade
É educar!
Felicidade!
O Teatro da minha vida
É o trabalho com liberdade
Com energia pra criar meus filhos
E ser resolvido no teatro
(Criação Coletiva)
Nesta fase do processo já tínhamos vivenciado esses conceitos de educação para
a liberdade, para a autonomia e da importância do teatro na educação, ligados a nossa
prática como educadores. E os textos refletiam este nosso conhecimento, pois
nasceram dos nossos desejos e experimentação, e eram trazidos segundo nosso
constante crescimento. Já tínhamos algum conhecimento da filosofia de Paulo Freire, e
assim, tudo que dizíamos em cena ligava-se aos estudos que estávamos realizando
4
Um outro processo criativo desenvolvido pelo grupo foi o espetáculo Ciranda de Estórias, gerado no
componente curricular Teatro de Formas Animadas I, II, e III. Esteve em cartaz na Sala 5 da Escola de
Teatro e no Teatro do Liceu no Pelourinho no ano de 2007, ministrado pela professora Sônia Rangel,
com elenco formado por nós alunos, atores-educadores do curso de licenciatura em teatro 2004.1.
36. 34
sobre a Pedagogia da Autonomia, A Importância do Ato de ler e outros livros do mestre
que nos estavam sendo apresentado.
Como diz o próprio Paulo Freire, não é possível estar no mundo, sem cantar, sem
musicar, sem politizar e isso é fazer história, é deixar nossa presença no mundo.
Estar no mundo sem fazer história, sem por ele ser feito, sem fazer cultura, sem
“tratar”, sua própria presença no mundo, sem sonhar, sem cantar, sem musicar,
sem pintar, sem cuidar da terra, das águas, sem usar as mãos, sem esculpir,
sem filosofar, sem pontos de vista sobre o mundo, sem fazer ciência, ou
teologia, sem assombro em face do mistério, sem aprender, sem ensinar, sem
idéias de formação, sem politizar, não é possível. (1996, p. 58).
Cantando e dançando em nossas improvisações aos poucos fazíamos anotações
elaboração do texto dramático. As questões trazidas nas cenas eram retomadas nas
avaliações finais, e nos debates com o público após as apresentações. O diálogo
provocava a re-escrita do texto, envolvendo-nos como criadores num processo crítico
de avaliação e reconstrução que o trabalho de educação exige. Esse procedimento
acentuava a dimensão pedagógica e estética desse teatro, envolvendo no seu fazer, o
re-fazer constante com as pessoas da cidade.
Ainda no Módulo I, nos encontramos com a história da Igreja da Barroquinha da
cidade de Salvador, que iria se transformar em um centro cultural chamado Coliseu das
Artes. Fomos convidados pela professora Maria Eugênia Milet para participar de uma
aula nas escadarias em frente desta Igreja e descobrimos, através da história contada
pelo professor Renato da Silveira, que atrás daquela igreja havia sido criado a primeira
“roda” de candomblé de Keto da Bahia.
Conduzimos nossa produção textual para falar sobre o nome que as autoridades
baianas queriam colocar em um centro cultural que tinha na sua história do passado,
um símbolo religioso tão importante para a cidade negra de Salvador. Bira Azevedo,
integrante do grupo, destaca como esse envolvimento com a cidade tornou-se uma luta
política e que pessoalmente mudou sua maneira de ver o candomblé.
Nós na Cidade me fez questionar quem eu sou e o que eu vim fazer aqui neste
mundo. Juntou-se a isso uma luta política, uma mudança concreta, uma
reparação. Foi uma obra artística que contribuiu com a mudança do nome de
um espaço, de uma idéia, de um ideal. Ainda mais, mudou completamente a
minha visão em relação ao candomblé (que até então era estranho e temeroso
37. 35
para mim) e conseqüentemente me aproximou mais da cultura afro e, logo, de
Salvador, minha cidade. É impossível eu não tratar mais de questões ligadas a
esta temática agora na minha prática. Faz parte da minha busca de
transformação e contribuição para este mundo ficar mais bonito. (Bira Azevedo)
Essa inserção poética se deu primeiramente nas improvisações, depois daquela
aula na Barroquinha, aquela história, passou a fazer parte do nosso processo criativo
através das nossas impressões pessoais e curiosidades que trazíamos sobre o
processo de construção daquele terreiro de candomblé.
Fomos instigados a investigar os personagens de nossa cidade. Começamos a
olhar mais para as pessoas, para os vendedores, transeuntes, mendigos, turistas.
Observar o andar, a forma de falar e de se comportar como um todo. Passamos a criar
personagens a partir dessas observações e a partir delas fomos dando formas às
cenas, pensando elementos, construindo novas músicas, novos textos.
Já no módulo II no componente curricular Fundamentos do Teatro na Educação
ministrado pela professora Maria Eugênia Milet, continuamos o nosso processo de
investigação sobre a cidade para a construção do nosso espetáculo.
Esse foi o momento que nos assumíamos verdadeiramente como dramaturgos,
pois começamos um processo de criação do texto, saímos do campo da improvisação e
assumíamos ensaios com textos trabalhados, como por exemplo, os textos do professor
Renato da Silveira5 que nos chegou através das aulas que ele aceitou ministrar para o
grupo, sobre a história de constituição do primeiro terreiro de candomblé de Keto da
Bahia.
Para a construção do espetáculo a nossa pesquisa ficou dividida da seguinte
forma:
Pesquisa Pessoal: Quem Sou Eu;
Pesquisa da Cidade: Observação das ruas, pessoas da cidade, etc;
Pesquisa Histórica: Barroquinha – Constituição do primeiro terreiro de Candomblé
de Keto da Bahia;
5
O professor Silveira aceitou o convite do grupo para ministrar uma aula, mas acabou se encontrando
conosco 3 vezes, incluindo aulas sobre história da África e dos Orixás neste itinerário. Ele é professor da
Faculdade de Comunicação da UFBa.
38. 36
Processo de Produção: Textos do professor Renato, diálogos com outros
educadores e com as pessoas da cidade, elementos e figurino.
Figura 1 – a pesquisa do figurino. Foto: Eliana Andrade de Souza Integrante do Grupo.
Além do professor Renato da Silveira, tiveram em nossa sala educadores que
vieram contribuir com a formação do espetáculo, pois como nossa própria professora
Maria Eugênia Milet dizia que o Nós na Cidade era um espetáculo aberto que poderia
se modificar a cada apresentação e a cada contribuição6. Neste contexto, recebemos
na sala a professora Vanda Machado (historiadora envolvida com a religião do
candomblé e a história da África), o professor e diretor teatral Carlos Petrovich, o
antropólogo e Ogã da Casa Branca Olimpio Serra, o antropólogo Ordep Serra, e o Ogã
Leo prefeito do Terreiro da Casa Branca (Ereelson Conceição Chagas), além dos
próprios professores do módulo I. Contribuíram com textos, com músicas e com a
mudança de ordem dos fatos que ocorriam no espetáculo, como foi o caso do professor
Petrovich que sugeriu que invertêssemos a ordem do que estávamos falando, “para já
chegarmos com força”.
Destacamos então como estávamos envolvidos na fase de produção no processo
criativo, proposto pelo Manual de Criatividades.
É a fase em que o ato criador toma corpo. É o exercício de visão do todo, onde
o aluno vai se sentir capaz de expressar, através de símbolos, uma idéia e
solucionar o problema da escolha e seleção de recursos apropriados a essa
6
Anotações pessoais das aulas.
39. 37
expressão. O foco de atenção recai sobre a capacidade de realização e a
consciência crítica. (DOURADO & MILET, 1998, p. 18)
Nesta fase elaboramos um roteiro e uma estrutura fixa para o espetáculo.
Aprofundamos a pesquisa com as histórias trazidas por Vanda Machado sobre o povo
africano e sua relação de irmandade criada no Navio Negreiro. Sobre essa fase,
caracterizadas por muitas mudanças, Daiane Gama, integrante do grupo, destaca o
enriquecimento do processo e melhora de resultados.
Um dos maiores aprendizados que tive foi de que nada está pronto ou acabado.
Tudo é passível de mudança e essas mudanças são fundamentais para o
enriquecimento do processo e melhora do resultado. Além de respeitar a
opinião dos outros e tentar compilar vários pontos de vistas.
E o maior de todos é o meu interesse pela cidade e pela cultura africana.
(Daiane Gama)
Esse período provocou grandes debates entre nós, inclusive uma série de crises e
crítica ao processo.
A primeira crise foi provocada por nosso apego a alguma cena que havíamos
criado e que não queríamos que fosse retirada. A segunda foi porque o espetáculo
sempre estava sendo modificado, provocando em alguns participantes certa inércia,
resistência ou ausência, sem preocupação com a realização do trabalho. Essa
modificação provocada no texto e na estrutura do espetáculo foi interpretada por alguns
como se o processo fosse um “oba oba”, causando muitas vezes discussões calorosas,
em torno do processo, do papel do educador ao interferir, e em torno da
responsabilidade dos alunos/ atores com o espetáculo.
Até que ponto o grupo estava maduro, e seguro, para continuar este processo
criativo? Para ouvir, se tocar, se olhar de acordo com esse processo de livre
expressão? Para aceitar a orientação do professor?
Como propõe Roseli dos Santos, uma das integrantes do grupo, citando Viganó na
sua prática pedagógica, confrontando nossas personalidades individuais e as
interpretações que elaborávamos sobre a realidade, podíamos começar a libertar
nossas mentes, pois o jogo requer ao mesmo tempo esforço e liberdade.
40. 38
Mediante a educação pelo jogo, que requer ao mesmo tempo esforço e
liberdade, foi proposta a caminhada em direção ao amadurecimento pessoal e
coletivo dos nossos alunos. Ao mesmo tempo, por meio da experiência estética
e produção de uma linguagem artística, eles confrontaram suas personalidades
individuais e a interpretações que elaboravam sobre a realidade na qual viviam.
E assim eles começaram a libertar suas mentes, a dialogar com os outros e dar
forma a novas possibilidades de se construir o mundo VIGANÓ (apud SANTOS,
2007, p. 43).
A professora Maria Eugênia Milet dizia que para compreender a proposta era
preciso estar envolvido no processo criativo. E nos perguntávamos que envolvimento
era esse que ela falava se as nossas cenas estavam sendo retiradas a serviço do
espetáculo? Mas não é a serviço do espetáculo que estamos trabalhando? Não é o
espetáculo que nos ajuda a dizer o que queremos? Não é com o teatro que podemos
dizer quem somos de onde viemos e o que queremos para nossa educação, para
nossa cidade e porque não, para o nosso país?
A todo o momento, a professora Maria Eugênia Milet lembrava que éramos
artistas sim, que estávamos preocupados com o que criamos, mas antes de tudo
éramos futuros arte-educadores, e como tal deveríamos considerar nossa experiência
artística como um ato formador, refletindo a cada momento sobre o processo, inclusive
sobre os problemas que encontrávamos naquele ato de criar e modificar a serviço do
espetáculo. Sobre isso trazemos uma análise sobre o amadurecimento pessoal e social
relacionado ao aprendizado artístico:
Considero que o aprendizado artístico pode estar diretamente relacionado ao
amadurecimento pessoal e social. Os resultados obtidos em cada encontro
dependem, então, diretamente da qualidade do ambiente criado em cada
momento e de uma reflexão constante dos participantes sobre o processo de
trabalho e sobre sua atitude pessoal em relação a este. A conjunção desses
fatores nos permite avançar no envolvimento com o processo e na superação
dos nossos limites. O constante confronto com os nossos problemas e
limitações, em cada etapa, faz com que o processo seja sempre composto de
avanços e retrocessos. Isso não compromete, no entanto, a conquista de um
maior alargamento dos horizontes pessoais e coletivos e de um novo nível de
amadurecimento ao final do processo como um todo VIGANO (apud SANTOS,
2007, p.45).
Começamos a entender que nada estava sendo imposto, nem transplantado.
Estávamos sim atuando na criação do nosso próprio currículo, decidindo o que
41. 39
queríamos aprender e reinventando formas de dizer o aprendido, para que pudéssemos
ensinar. A receptividade do público foi muito importante para esse amadurecimento. E
nesse processo de ensino/aprendizagem nos entendemos como atores, criadores da
nossa própria história, eliminando as barreiras que encontrávamos, fortalecendo o
grupo, desenvolvendo nossa personalidade, estabelecendo um acordo de grupo e
caminhando em direção à participação coletiva que ia além do espetáculo, e que agora
chamávamos também de Nós na Cidade.
42. 40
3 RESULTADOS EM PROCESSOS
Subimos e descemos ladeiras
E entre um buraco e outro das ruas
Choramos com a cidade
Deitamos crianças desejosas de crescer
Nos levantamos heróis de um novo mundo
Acordamos guerreiros nagôs
Que a cor dão
Tiramos os nós que amarravam
nossas histórias
Reinventando a realidade
Nos desafiando a construção
De uma nova educação
Com o Nós na Cidade
Valdíria Souza
43. 41
3.1 NÓS NA CIDADE
O texto cênico ou espetacular pode ser entendido como “a relação de todos os
sistemas significantes usados na representação e cujo arranjo e interação formam a
encenação” (PAVIS, 2005 p. 409).
Nossa encenação foi resultante de uma criação coletiva orientada pela professora
Maria Eugênia Milet e apresentava um discurso ritualístico e espetacular, com intenção
de expor uma força que vinha da proximidade do grupo com a expressão e o
sentimento religioso do candomblé e com a espetacularização do cotidiano, uma
estética que mostra o espetáculo como experiência vivida, assim como diz Rita de
Cássia Silva:
A estética contemporânea demonstra com maior clareza o aspecto da arte
como experiência vivida, sendo esta, a vida, a experiência transformada em
matéria de fruição estética. É este aspecto que atribui aos espetáculos um forte
caráter ritualístico, conferindo-lhes mesmo uma certa solenidade e um poder
agregador, característicos do Ritual. (2004, p. 339)
O espetáculo tinha um caráter critico e reflexivo que mostrava em cena toda a
pesquisa sobre a cidade e o nascimento do Terreiro de Candomblé, falava sobre a
intervenção na luta pela mudança de nome do centro cultural da Barroquinha, tinha
também a intenção de envolver outras pessoas nesta causa e apesar dessa
característica didática e narrativa, não perdia a função de entretenimento.
3.1.1 Sobre a Encenação
Foi “juntando pedaços de nossos eus”, das histórias das pessoas, das histórias da
cidade, dos ensinamentos de vários mestres, inclusive Paulo Freire, que construímos o
nosso espetáculo. Criando cenas a partir de improvisações, partituras corporais,
44. 42
inventávamos a cidade e a educação que desejamos e nos mostrávamos ao público,
nos desnudando em um processo de auto-conhecimento e de busca de um
conhecimento coletivo. Os integrantes do grupo a partir dos depoimentos destacam o
que foi o espetáculo Nós na Cidade, para eles nesse processo de auto-conhecimento:
O Nós na cidade foi a materialização dessa metodologia. Claro que é um
terreno bem arriscado de educação. Mas a educação que não pretende correr
riscos não faz nada mais que entregar ao mundo uma mão de obra alienada
para deleite dos que estão no poder. Quando eu digo que é um método
arriscado de educação é porque esse tipo de metodologia propõe um
desnudamento das pessoas envolvidas. E esse desnudamento é trazido ao
palco em forma de espetacularização. O caminho percorrido por “Nós na
cidade” pretendia a busca profunda de um auto-conhecimento. “Quem sou eu?”
era a pergunta- chave. E isso se torna arriscado porque pra algumas pessoas é
muito difícil esse processo de busca de si mesmo. Mas se isso é difícil, se torna
muito gratificante quando conseguimos. (Francisco André Sousa Lima)
O Nós na Cidade foi a nossa porta de entrada na UFBA e dou o credito ao
processo de construção deste espetáculo toda a forma como se seguiu a nossa
graduação. (...) Ele nos marcou e nos acompanhará por muito tempo. Nos
marcou desta forma, acredito, por conta do trabalho do quem sou eu? Que
gerou a formação do nosso grupo. (...) É um espetáculo amplo e rico em
informações. Tem Paulo Freire, tem poesias, tem Iyá Nassô, tem cada um de
nós, tem o meu tamanho que é maior que o tamanho de minha altura, tem
muitas cidades juntas, tem reconvexo, tem, tem e tem. (Bira Azevedo)
Momentos individuais e construções coletivas foram agrupadas. Nossas
histórias, sonhos, conceitos e preconceitos, nossas diferenças. (...) Nós na
Cidade foi a prova de que uma metodologia baseada em jogos e improvisações,
se bem direcionada, traz resultados(...). (Jandiara Barreto)
Um teatro onde o cenário era desenhado por nossas palavras, construído com o
nosso corpo e imaginado por quem nos assistia. Um teatro fora dos padrões do teatro
convencional, feito em palco Italiano, mais próximo do teatro de rua e da performance,
caracterizado por uma arrumação/desarrumação do espaço da cena, provocando uma
multiplicidade e simultaneidade de forma e de olhares. Sobre essa característica do
espetáculo trazemos também as opiniões dos integrantes do grupo, que destacam o
próprio crescimento, e o crescimento do espetáculo e também o aprendizado do
público, que pode recriar o espetáculo a partir da sua visão de mundo:
45. 43
Foi prazeroso e refletia bem o que tratávamos: Diversidade. Em cada lugar um
público diferente, um olhar diferente, um jeito de fazer diferente. Se adaptar ao
local, as pessoas e a causa do momento só enriqueciam o processo. (Daiane
Gama)
A sensação de teatro itinerante mostrou-me a importância de cada lugar,
públicos distintos e energias diversas. São aprendizados para quem faz, para o
resultado cênico, consequentemente e para o público. (Jandiara Barreto)
Me trouxe ainda outras possibilidades de estética para um espetáculo teatral.
Tava acostumado com o teatrão realista de sempre. Nós na Cidade ultrapassa
isto. (...) (Bira Azevedo)
(...) uma coisa que ficou latente em mim depois do Nós na Cidade foi o
provérbio de domínio publico “o artista deve ir onde o povo está”. (...) Muitos de
nós estão presos ao palco elisabetano destituindo o valor artístico de qualquer
outra linguagem que não esteja preso a essa estrutura. Como não considerar
arte (ou atribuir uma menor valia) ao teatro feito nas feiras, nos bairros de
periferia, ou os feitos com propósitos educativos? (Francisco André Sousa
Lima)
Figura 2 – O grupo e a professora no Pelourinho. Foto: Acervo do Centro Integral da Criança e do
Adolescente - CRIA.
O espetáculo tinha um caráter didático e para a professora isso era tão importante
para nós alunos/atores como para o público que nos enxergava também como
aprendizes que éramos daquele processo. Na opinião de Camila Bonifácio integrante
do grupo, não só foi aprendizado, foram muitos aprendizados em um processo
descobridor:
(...) O espetáculo foi o ápice de um processo descobridor. Aprendizado? Foram
muitos, aprendi o que fazer e o que não fazer e isso é bom, mas deste todos
46. 44
destacarei uma frase do texto dramático que para mim até hoje é uma
provocação para a vida: “... SALVADOR com quem eu caso? Com SALVAR ou
com a DOR?”. Acredito que cabe a cada um de nós, homens e mulheres, em
nossas vidas escolher uma das duas opções. Apesar da DOR eu prefiro
SALVAR! (Camila Bonifácio).
Um espetáculo de imagens onde a moldura era dada pelos atores, autores dos
textos em que os sentidos eram expressos pelo corpo, pela palavra, por sentimentos e
sensações, assim como destaca em depoimento uma das integrantes:
“Nós na cidade” foi certeza de que a cidade é formada não só da parte física
geográfica, mas também e principalmente, de uma história que esta
impregnada nas nossas falas, no nosso corpo, nos nossos pensamentos e
sentimentos. Mas que precisa ser desvelada a muitos (Eliana Andrade).
Estávamos buscando uma espécie de cidadania crítica, onde nos retratávamos
como cidadãos, artistas e educadores e reafirmávamos a forma de ser da cidade de
Salvador, com sua capacidade de juntar coisas diferentes, segundo a professora Maria
Eugênia Milet “uma forma Barroca” (2002, p. 22) e como disse em seu depoimento
Gessé Araújo, integrante do grupo, o espetáculo era uma busca constante também de
natureza estética:
Mais do que um espetáculo feito com a linguagem da rua, uma busca por uma
estética de natureza política, como já disse. Nós na Cidade é um "jeito" de
dizer, de fazer, até mesmo no tema que abordamos, que demonstra essa busca
de natureza estética (Gessé Araújo).
O processo criativo tinha uma dinâmica própria, com sons, ritmos, palavras,
músicas, perguntas, mostrando uma complexidade que apresentava um teatro em
movimento, em constante mudança.
As formas cênicas emergidas dos nossos corpos em transformação traziam à tona
a nossa realidade de vida, para conhecendo-a, transforma-la. Com isso nos revelando
sujeitos da nossa história.
47. 45
Figura 3 – A Bahia negra nos traços e gestos dos atores em cena. Foto: Acervo do CRIA.
Uma Bahia negra e de resistência aflorava no gestual, nas falas e nas músicas,
expressando um espírito místico e satírico dos alunos/atores, como podemos perceber
na música Cidade In-festa criada como forma de crítica ao carnaval e as festas que hoje
apenas são feitas para os turistas e que deveria ser feita para o povo:
Cidade festa que infesta na lavagem,
Na lavagem cerebral, na lavagem do Bonfim.
Cidade presta na farsa do carnaval
Carnaval que é de poucos
Nem do povo nem de mim.
Trazíamos à tona temas mais freqüentes, como racismo, violência, sensualidade,
desigualdade, resistência, religiosidades, carnaval, futebol. Falávamos das crianças
(que habitava em nós), do candomblé, das ruas da cidade, das suas ladeiras, dos seus
loucos e doentes, como podemos perceber claramente no depoimento de Francisco um
dos integrantes do grupo, que ressalta também a criação do espetáculo e seu diálogo
constante com a cidade, com sua história, com a história do candomblé e de Iyá Nassô:
Com o “Nós na cidade” demonstramos a importância de um teatro feito para e
pela cidade. Um teatro que serve de espelho para uma sociedade que faz
questão de maquiar os seus problemas pra não espantar os turistas ou
prejudicar os objetivos econômicos (...)
Foi importante principalmente pelo diálogo que realizamos com a cidade (...) Foi
importante pelo contato empírico que tivemos com uma realidade que nos será
companheira por toda a vida pós-acadêmica. O espetáculo foi a intersecção
48. 46
entre ensino, pesquisa e extensão a tríade essencial que se pretende a nossa
universidade.
Mais ainda: o espetáculo se tornou importante por defender a causa de “Iyá
Nassô”, uma princesa africana escravizada no Brasil que contribuiu
decisivamente para a criação do Candomblé, expressão maior da resistência
negra no cenário inóspito que foi a escravidão colonial. (Francisco André de
Sousa Lima)
Esses signos traduziam nossas buscas poéticas, que eram potencializadas
através das aprendizagens em grupo a partir de nossas experiências com a cidade,
criando formas e sentidos, trazendo a pessoa do ator que se transformava enquanto
dava forma, através da sua presença, aproximando-se cada vez mais da realidade
humana, de personagens e situações que representava, ou seja, da própria realidade,
contando uma história nossa.
Figura 4 – Francisco André em seu momento: Quem sou Eu? Foto: Acervo CRIA
Nesse sentido nos inserimos criticamente na realidade para transformá-la,
pensamos e agimos criticamente como cidadãos e futuros professores.
49. 47
3.1.1 O Texto
Um ator e um músico entram em cena.
MÚSICO: toca no violão a entrada da música Reconvexo7
Figura 5 – Apresentação na frente da Câmara de Vereadores. Foto: Acervo CRIA
ATOR: A Cidade se faz educativa pela necessidade de educar, de aprender, de
ensinar, de conhecer, de criar de sonhar, de imaginar de que todos nós, mulheres e
homens, impregnamos seus campos, suas montanhas, seus vales, seus rios,
impregnamos suas ruas, suas praças, suas fontes, suas casas, seus edifícios, deixando
em tudo o selo de certo tempo, (...) A Cidade somos nós e nós somos a Cidade. Mas
não podemos esquecer de que o que somos guarda algo que foi e que nos chega pela
continuidade histórica de que não podemos escapar, mas sobre que podemos
trabalhar8.
Aos poucos outros atores vão entrando em cena, se colocando em determinadas
posições e falando frases sobre educação.
7
Caetano Veloso.
8
Paulo Freire.
50. 48
ATOR 1 – A leitura do mundo antecede a leitura da palavra.
ATOR 2 – A arte é a fenda na rocha da vida por onde a educação deve passar
ATOR 3 – A vida é como uma peça de teatro e não permite ensaios por isso
cante, dance, ria! Viva intensamente! Antes quê as cortinas se fechem e a peça termine
sem aplausos!
ATOR 4 – Acreditar nas massas populares, já não mais fale a elas, ou sobre elas,
mas as ouça, para poder falar com elas.
ATOR 5 – Educação é antes de tudo, respeitar a identidade do educando.
ATOR 6 – Essência é aquilo que faz com que uma coisa seja ela mesma.
ATOR 7 – E já que estamos falando de essência. Vamos falar da nossa própria essência
e da essência da nossa cidade. Lá na Barroquinha há um espaço cultural que está sendo
revitalizado, mas está sendo destruído em nossa essência. Lá os governantes entendem
que deve se chamar Coliseu das Artes. A gente não concorda com isso porque nada tem
a ver com a nossa identidade. Agente acredita que lá deve se chamar Centro Cultural...
TODOS – Iyá Nassô!
ATOR 8 – Porque eu sou do tamanho do que vejo!
TODOS – E não do tamanho da minha altura!
O músico canta a música Reconvexo acompanhado ao violão e os outros atores
acompanham com palmas e pandeiro
Eu sou a chuva que lança a areia do Saara
Sobre os automóveis de Roma
Eu sou a sereia que dança
A destemida Iara
Água e folha da Amazônia
Eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra
Você não me pega
Você nem chega a me ver
Meu som te cega, careta, quem é você?
Que não sentiu o suingue de Henri Salvador
Que não seguiu o Olodum balançando o Pelô
E que não riu com a risada de Andy Warhol
Que não, que não e nem disse que não
Eu sou um preto norte-americano forte
Com um brinco de ouro na orelha