1. VIRKLER, Henry. Hermenêutica Avançada. Tradução: Luiz Caruso, São Paulo: Editora Vida, 2007
RESPOSTAS DAS QUESTÕES PROPOSTAS
Celso do Rozário Brasil
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PC 19: Em Mateus 5:22, Jesus diz que se alguém chamar um irmão de tolo
estará sujeito ao fogo do inferno, mas em Mateus 23:17-19 ele chama os fariseus de insensatos, que
é o mesmo que tolos ou loucos. Como você explica esta aparente contradição?
Resposta
Temos nos textos de Mateus 5.22 e 23.17-19 exemplos de como a mesma palavra
assume significados diferentes quando usadas em contextos diferentes. Sabemos que tanto “tolo”
como “louco” (ou insensato) têm os mesmos significados, porém, dependo da situação, podem
indicar conceitos totalmente diferentes. Virkler afirma que: “O mais válido método para a
determinação dos significados de uma palavra é descobrir as várias denotações que ela possuía no
tempo em que o autor a empregou.1
”
Assim, precisamos, primeiramente, fazer uma análise contextual das duas passagens
aqui relacionadas para entendermos como elas estão sendo usadas (o que elas significam em cada
texto).
Primeiramente, o que Jesus está ensinando em Mateus 5.22? O que significa a palavra
“tolo” no contexto no qual foi usada por Jesus?
O vocábulo grego que ocorre aqui no texto é “moros" e significa "doido", "louco",
"insensato", "idiota". Essa palavra é usada unicamente em Mateus 5.22. Há outro vocábulo que
designa "louco”: “afron”, usado em Lucas 12.20, I Coríntios 15.36, mas tem mais o sentido de
"estúpido", "ignorante".
Segundo alguns estudiosos: “Louco”, “néscio”, “tolo”, são algumas das traduções
para este verso (Mateus 5.22). Porém, parece estranho que por causa de umas poucas palavras, um
insulto, Deus condene alguém ao inferno de fogo. Mas será que é por causa do insulto em si que as
pessoas podem ser condenadas?
A Nova Versão Internação traduz o texto da seguinte maneira:
“Mas eu lhes digo que qualquer que se irar contra seu irmão estará sujeito a
julgamento. Também, qualquer que disser a seu irmão: “Racá”, será levado ao tribunal. E
qualquer que disser: “Louco!”, corre o risco de ir para o fogo do inferno.”
A Nova Tradução na Linguagem de Hoje reza:
“Mas eu lhes digo que qualquer um que ficar com raiva do seu irmão será julgado.
Quem disser ao seu irmão: “Você não vale nada” será julgado pelo tribunal. E quem chamar o seu
irmão de idiota estará em perigo de ir para o fogo do inferno.”
Com base nas traduções acima relacionadas, percebe-se que o julgamento de Cristo
está relacionado com alguma palavra que é pronunciada contra o seu irmão: “...qualquer que disser
a seu irmão...” ou “...quem chamar o seu irmão...”
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Henry A. Virkler, Hermenêutica Avançada, p. 78
2. VIRKLER, Henry. Hermenêutica Avançada. Tradução: Luiz Caruso, São Paulo: Editora Vida, 2007
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A Versão Almeida Corrigida e Revisada Fiel diz:
“Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão,
será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio; e qualquer que
lhe disser: Louco, será réu do fogo do inferno.”
Notamos a ocorrência das palavras “sem motivo”, que explicam as circunstâncias em
que tais palavras são pronunciadas.
A Bíblia de Estudo Almeida traz a seguinte nota de rodapé: “Quem proferir um
insulto a seu irmão: Gr. quem chamar a seu irmão de néscio.”
Jesus nos adverte contra o chamar a nosso irmão de “raca” (provavelmente o
equivalente à palavra aramaica que significa "oco") ou more (a palavra grega para "tolo"). Parece
que "raca" é um insulto à inteligência da pessoa, dizendo que ela é "cabeça-oca", e os
comentaristas rivalizam-se entre si, propondo paralelos, tais como "pateta", "estúpido" "parvo"
ou "cabeça-dura". Um débil mental também é tolo, mas dificilmente a palavra seria usada neste
sentido, pois até Jesus chamou os fariseus e seus discípulos de "tolos" (Mateus 23.17; Lucas 24.25)
e os apóstolos, em determinadas ocasiões, acusaram seus leitores de estultícia (I Coríntios 15.36;
Gálatas 3.1; Tiago 2.20). Por isso, é preciso lembrar que a palavra adquiriu uma nuance religiosa e
moral, tendo sido aplicada no Velho Testamento àqueles que negavam a existência de Deus e, como
resultado, mergulhavam na prática temerária do mal (Salmo 14.1; 53.1-4) Alternativamente, como
alguns mestres sugerem, more pode transliterar uma palavra hebraica que significa "rebelde",
"apóstata" ou "renegado" (Salmo 78.8; Jeremias 5.23).
N. Champlin faz o seguinte comentário sobre a palavra “raca”:
1. A palavra seria uma interjeição dotada de um sentido negativo embora não
especifico. Era proferida com hostilidade e ódio.
2. Equivaleria ao termo grego “su”, “você”, embora dito de tal maneira que envolvia
uma atitude odiosa.
3. Equivaleria a “CUSPO”, uma palavra usada para referir-se aos hereges.
4. Em Tia. 2:20 temos o adjetivo grego kenós, “vazio” (que nossa versão portuguesa
traduz por “insensato”). Essa é a ideia mais comum que fazem os tradutores acerca desse termo;
mas, talvez esta e a outra interjeição tivessem a ideia de “réprobo”, na mente de quem a proferia. O
próprio Jesus usou a palavra ao referir-se aos escribas e fariseus, segundo se vê em Mat. 23:17,19.2
”
Neste texto, Jesus está falando, “às multidões” (Mateus 5.1 – Sermão do Monte),
muito embora Ele se dirija diretamente, a “todo aquele que se irar contra o seu irmão” revelando,
assim, a quem o texto está sendo aplicado. De igual modo, em Mateus 23 Jesus está se dirigindo à
“multidão e aos seus discípulos” (Verso 1), contudo, Ele censura diretamente os escribas e fariseus
(Versos 13-33).
Quando Jesus afirma: Eu, porém, vos digo: aquele que se irar contra seu irmão
estará sujeito ao julgamento, as palavras “vos” e “irmão” apontam para os discípulos. É para eles
2
Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, p. 540, Vol. 5.
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que vale essa palavra do Senhor, porque os discípulos formam uma irmandade. Nessa irmandade
não pode existir a ira.
Podemos dizer que Jesus não está ensinando que a ira deve punida com a morte, mas
ilustra, com essas palavras, quão sério era para ele esse pecado. A presença da ira indica a falta de
amor. O amor ao próximo foi classificado como segundo mandamento na ordem da importância.
(Ver Lucas 10:27). Portanto, dentro do espirito da lei, aquele que se ira contra outrem quebra o
espirito de um dos mais importantes mandamentos.
Que significa irar-se? Com base no texto original, a ira pode mostrar-se em duas
direções: Para dentro e para fora.
Vista para dentro, a ira equivale a estar amargurado, estar raivoso contra o irmão,
ficar exasperado, carregar rancor dentro de si, distanciar-se do irmão, manter-se separado dele,
consumir-se intimamente.
Para fora, irar-se significa estar agitado, enfurecer-se, agredir, ser duro, injusto,
externar uma mentalidade áspera, ter acessos de cólera.
Tudo isso é assassinato do irmão.
É transgressão do mandamento: “Não matarás”.
É uma palavra muito séria de Jesus, que alumia para dentro do último cantinho de
nosso coração e nos julga e purifica continuamente. Nosso constante fracasso é trazido à luz. Ter de
admitir sempre de novo esse fracasso nos preserva de toda confiança no poder próprio e destroça
integralmente toda presunção e todo orgulho. “O homem vê o exterior, porém o Senhor, o coração”
(1 Sm 16.7). Quando no coração se encontram todos os tipos citados de ira, o discípulo já se tornou
culpado do julgamento, porque tornou-se um “assassino” do irmão.
Quando a revolta interior ou a fúria exterior são seguidas do duro e amargo insulto
“raca”, isto é, “cabeça oca”, então esse assassino do irmão deve ser julgado pelo tribunal supremo
desta terra, o Sinédrio.
Quem se deixa arrastar pela ira ao ponto de agredir o irmão com uma palavra ofensiva
como “tolo”, ou seja, “vá para o inferno, desgraçado (descrente)”, esse próprio deverá ir para o
inferno.
“Raca” é uma palavra de escárnio e procede do orgulho, significando: “Você é
alguém vazio” ou “você tem a mente vazia”. “Louco” é uma palavra maliciosa e procede do ódio,
olhando para a pessoa não apenas como vil e que não merece honra, mas como alguém vil que não
merece ser amada.
Provavelmente, as leis judaicas tinham sanções contra o insulto específico de
“raca”, mas Jesus mostrou que a agressão verbal de qualquer tipo torna a pessoa sujeita à
condenação eterna. “Inferno” refere-se aqui à “Gehenna”, o Vale de Hinom, que era um depósito
de lixo fora de Jerusalém onde fogos queimavam constantemente para incinerar restos. O local
também era conhecido como o lugar de sacrifícios humanos com fogo durante os reinados de
Acaz e Manassés (II Crônicas 28.3; 33.6). Jeremias profetizou que ele será chamado o “Vale da
Matança” (Jeremias 7.31,32), como símbolo do julgamento terrível de Deus.
Vemos, assim, que Jesus não se refere à ira justa contra os ímpios e iníquos (João
2.13-17). Ele condena o ódio vingativo, que deseja, de modo injusto, a morte doutra pessoa. “Raca”
é (conforme já vimos) um termo de desprezo que provavelmente significa “tolo”, “estúpido”
Chamar alguém de “louco”, com ira e desprezo, pode indicar um tipo de atitude de coração
conducente ao perigo do “fogo do inferno”.
Sabemos que sentir raiva é uma paixão natural. Há casos em que é legítimo e
louvável. Todavia, é pecaminoso quando sentimos raiva sem causa, por causa de suposições sem
fundamento ou de afrontas triviais.
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De tudo o que foi dito resulta para os membros da comunidade de Jesus que cada um
precisa cuidar com extremo cuidado do seu relacionamento para com o irmão e examinar sempre
de novo, à luz da palavra de Deus, seus pensamentos e suas palavras e perguntar-se: Como estou
em relação a meu irmão? Como ele está comigo? Tão logo um tiver amargura no coração em relação
ao outro, ou inveja, ódio, desprezo, satisfação malévola, contrariedade, ou quando um guarda rancor
do outro, quando um, irritado, lança uma palavra dura contra o outro, isso é assassinato. Qualquer
aborrecimento que continua corroendo o coração é assassinato do irmão.
Portanto, podemos notar que no texto de Mateus 5.22, Jesus está se referindo ao
relacionamento interpessoal dos irmãos no âmbito da comunidade cristã. Todo cuidado ainda é
pouco com nossas palavras. Elas podem nos conduzir para o “fogo eterno” se forem usadas para
“ferir” ou “matar” o nosso irmão.
“O “egô legô hymin” ("Eu, porém, vos digo") de Jesus introduz uma lei divina que
é um desenvolvimento do AT. Não somente o assassinato propriamente dito submete os homens à
punição da morte. O coração que se inflamou com a atitude mental destrutiva, de onde surge a
palavra condenatória, merece o mesmo julgamento. Com tremenda nitidez, a palavra de Jesus torna
claro que o julgamento divino pronunciado sobre o pecado é radical e de longo alcance.3
”
Em Mateus 23 Jesus emite duras críticas contra os escribas e fariseus. Ele usa as
palavras: “Hipócritas” (versos 13, 14,15,23,25,27,29) e “insensatos” (verso 17).
Temos, então, nas versões bíblicas em língua portuguesa, três palavras diferentes
para o mesmo termo:
“Insensatos” (Almeida Corrigida e Revisada Fiel).
“Néscios” (Tradução Brasileira).
“Estultos” (Versão de Matos Soares)
“Hipócritas é a exata transliteração da palavra grega hypocrites (singular). Esse
termo é usado no grego clássico para designar um ator que se apresenta em um palco. Naqueles dias,
quando não havia meios eletrônicos de amplificação da voz, era difícil para os atores no palco serem
ouvidos por uma platéia composta por 25.000 ou mais pessoas acomodadas em um anfiteatro.
Portanto, eles usavam máscaras com pequenos megafones escondidos. Dessa forma, literalmente
falando, o hipócrita é aquele que usa uma máscara, ou que mostra um rosto falso para o público.”4
Para Barclay, a palavra “hipócrita” (grego: “hupokrites”) “...é a palavra que se usa
em grego para designar ator.5
” Ele continua: “Mais adiante chegou a significar ator no pior sentido
da palavra, um simulador, alguém que desempenha um papel, alguém que põe uma máscara para
esconder seus verdadeiros sentimentos, alguém que representa um determinado papel por fora
enquanto em seu interior seus pensamentos e emoções são muito diferentes. Para Jesus, os escribas
e fariseus eram homens que representavam um papel. O que queria dizer era o seguinte: Toda sua
noção da religião consistia em obediências externas, o uso de borlas e filactérios muito complicados,
a observância meticulosa das regras e normas da lei. Mas em seus corações alimentavam amargura,
inveja, orgulho e arrogância. Para Jesus estes escribas e fariseus eram homens que, sob uma máscara
de piedade muito elaborada, escondiam corações nos quais dominavam os sentimentos e emoções
3
Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 106, Lothar Coenen & Colin Brown
4
Comentário Bíblico Beacon, p. 158, Volume 6, CPAD
5
O Novo Testamento Comentado por William Barclay, p. 717,
5. VIRKLER, Henry. Hermenêutica Avançada. Tradução: Luiz Caruso, São Paulo: Editora Vida, 2007
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menos piedosos que se pudesse imaginar. E essa acusação é válida, em maior ou menor grau, para
qualquer um que vive sob o suposto de que a religião consiste em observâncias externas e obras
externas de qualquer tipo.”
A linguagem firme de Jesus nesse capítulo (“cegos insensatos”, “hipócritas”, “guias
cegos”, “filho do inferno”) não é a linguagem de irritação pessoal (como ocorre em Mateus 5.22)
em uma competição religiosa, mas uma linguagem de advertência e condenação divinas. Os que
acham
Mateus 23 inconsistente com o sermão do monte, não levam duas coisas em consideração. Primeiro,
eles não percebem as limitações inerentes ao próprio sermão: o amor que Jesus exige de seus
seguidores é mais radical e mais distintivo que a sensibilidade liberal moderna geralmente permite.
Segundo, o sermão do monte, não menos que Mateus 23, também apresenta Jesus como Juiz
escatológico que pronuncia maldição solene sobre os que ele não reconhece e que falham em
cumprir a palavra dele (7.21-23).
É fácil interpretar erroneamente a intenção e espírito de Jesus, quando ele pronunciou esses
“ais” contra os escribas e fariseus. “Al” (ouai) não é uma maldição, e não é apenas uma denúncia.
A palavra pode expressar ira ou piedade. Embora ela traga consigo um elemento de juízo, aqui ela
é um clamor ou lamentação. Jesus chorou sobre Jerusalém, e os sete ais são lamentações, bem como
condenações dos líderes religiosos, que estavam guiando erradamente as pessoas que confiavam
neles. Não deve ser passado por alto o fato de que esses ais não foram dirigidos contra os “
pequeninos”, os cobradores de impostos, ou meretrizes, mas contra os que estavam em posição de
conhecer melhor e agir melhor do que os outros. Foram dirigidos contra os privilegiados líderes:
porque fechais aos homens o reino dos céus.
A palavra grega que significa “ai” é “ouai”: fica difícil traduzi-la porque implica ira
como dor. Trata-se de uma ira justa, mas é a ira que surge do coração que ama e está destroçado
pela cegueira teimosa dos homens. Aqui não há apenas uma atmosfera de denúncia selvagem, mas
também de azeda tragédia. Foi nesse contexto que Jesus usou o termo “insensatos” para censurar os
fariseus. O mesmo termo é usado com uma conotação diferente em Mateus 5.22, conforme
mostramos acima.
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