O presente texto surge de experiências formadoras compartilhadas em belas
manhãs de sábado do ano de 2010. Unidas pelo projeto de pesquisa “Construindo pontes
entre a universidade e a escola básica: um estudo com professores egressos dos cursos
de licenciatura em Pedagogia pela Faculdade de Formação de Professores”, tomamos
como desafio reencontrar nossos ex-alunos/as, agora, professores/as-pedagogos/as,
espalhados pelas escolas da rede municipal de São Gonçalo e de outros municípios do
Rio de Janeiro.
1. ACOMPANHAMENTO DE PROFESSORAS/ES INICIANTES: (COM) PARTILHANDO
UMA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA COM EGRESSOS DO CURSO DE PEDAGOGIA DA
UERJ
Bragança, Inês Ferreira de Souza
inesbraganca@uol.com.br
Professora da Faculdade de Formação de Professores da UERJ e do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Estácio de Sá.
Oliveira, Mariza Soares de
iza_uerj@yahoo.com.br
Mestranda do Programa de Pós-Graduação: Processos Formativos e Desigualdades
Sociais pela FFP/UERJ
Palavras-chave: Acompanhamento – Professores/as iniciantes – Curso de Pedagogia –
Egressos – Abordagem (auto)biográfica
1- Introdução
O presente texto surge de experiências formadoras compartilhadas em belas
manhãs de sábado do ano de 2010. Unidas pelo projeto de pesquisa “Construindo pontes
entre a universidade e a escola básica: um estudo com professores egressos dos cursos
de licenciatura em Pedagogia pela Faculdade de Formação de Professores”, tomamos
como desafio reencontrar nossos ex-alunos/as, agora, professores/as-pedagogos/as,
espalhados pelas escolas da rede municipal de São Gonçalo e de outros municípios do
Rio de Janeiro.
Desde a década de 1980, registramos, na história da formação de professores/as,
no Brasil, um intenso movimento de luta pela formação superior e universitária dos
docentes da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Movimento
que caminhou em muitas idas e vindas da política educacional, incluindo a publicação da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9.394/96), diversos pareceres e, em 2006, nas
2. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia (CNE/CP Nº. 1, de
15/05/06).
Na Faculdade de Formação de Professores da UERJ (FFP/UERJ), o curso foi
fundado em 1994, com habilitação específica para o Magistério das Séries Iniciais do
Ensino Fundamental, justamente na esteira da luta pela afirmação da formação superior
dos professores/as para esse nível de ensino. A experiência viva do currículo foi
trazendo, entretanto, reflexões entre estudantes e professores, no sentido da ampliação
do campo de formação proposto pelo Curso, incluindo outros níveis de docência e a
gestão educacional. A partir de 1997, realizamos um longo, sinuoso e fértil processo de
reformulação curricular que foi aprovado pela UERJ em 2006 e ampliou o campo de
atuação do pedagogo, partindo das históricas proposições e reivindicações da
Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE).
Nesse sentido, o Projeto do Curso tomou como objetivo geral “a articulação entre
teorias e práticas na formação do professor-pesquisador para atuação na Educação
Infantil, nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio (magistério), bem
como na gestão escolar, visando produzir uma prática formativa que realize uma
permanente articulação entre as dimensões históricas, sociais, científicas, filosóficas,
culturais e epistemológicas” (DEDU, 2006, p. 21). Afirmamos, assim, a perspectiva de
uma formação ampla e articulada entre docência e gestão educacional, bem como a
compreensão da pesquisa como princípio formativo.
A proposta do projeto de pesquisa com Egressos da FFP iniciou-se em dezembro
de 2009 e conta, em média, com quarenta participantes que se encontram mensalmente
em um período de três horas, sendo hoje, em sua maioria, atuantes no/do campo
educativo.
Nesses encontros, buscamos construir um espaço de narrativas sobre as
experiências profissionais vividas pelos egressos, cujos relatos dos/as professores/as
têm dado pistas para compreensão de uma formação docente que ultrapassa os limites
do instituído e contempla os (des) limites das práticas instituintes em um processo de (re)
invenção de si e do mundo mediante construção de um chão comum entre o narrador e
seus os ouvintes.
Convidamos, ao longo do texto, algumas reflexões sobre a abordagem (auto)
biográfica e a sua contribuição no processo de formação docente, buscando construir
diálogos entre este aporte teórico-metodológico e os percursos trilhados nos encontros
de pesquisa-formação, junto às narrativas dos egressos do curso de Pedagogia da
FFP/UERJ.
2. Pesquisa-formação, abordagem (auto) biográfica e acompanhamento
3. Buscamos, nesse momento do texto, relações internas entre o teórico e o
metodológico que se desenham na experiência da pesquisa (auto)biográfica no campo
educativo e, especialmente, na formação de professores/as.
A abordagem (auto) biográfica rompe, por sua própria natureza, com a prática
simplificadora, reducionista e nomotética da investigação social, projetando a pesquisa em
educação fora do quadro lógico-formal. E é esse movimento de ruptura que, segundo Ferrarotti
(1990, p. 89 e 90), modifica as bases da pesquisa, transformando-a em pesquisa-participação.
“Da sociologia tomada como neutralidade e prática administrativa socialmente neutra, passa-se
à sociologia como participação humana significativa e meio de autodesenvolvimento”
1
. Nesse
sentido, a pesquisa-formação coloca-se como um paradigma metodológico que procura romper
com a neutralidade e objetividade das práticas de pesquisa, aproximando investigadores e
participantes da dinâmica viva do conhecimento.
A pesquisa-formação tem sua origem na pesquisa-ação, já que busca um efetivo
envolvimento dos pesquisadores na transformação individual e colectiva. Esta perspectiva
encontra fundamentação na dialética histórica, no conceito de praxis, tal como proposto por
Marx, que perspectiva uma Filosofia que não apenas interprete o mundo, mas que possa
transformá-lo, por meio de uma relação de imbricação entre prática-teoria-prática.
Além do carácter de ação dialética, de busca de transformação, Josso destaca, como
característica dessa proposta metodológica, o sentido de “experiência”: a pesquisa-ação e a
pesquisa-formação geram uma experiência que apresenta uma natureza específica. Se, no
positivismo, encontramos uma separação entre sujeito e objeto, na perspectiva que
analisamos, é no movimento intersubjetivo, no encontro e na partilha do processo de
investigação, que o conhecimento é produzido e, assim, a pesquisa-formação assenta-se sob
uma experiência existencial que produz conscientização (1991, p. 114-125).
Le changement offert dans le cadre d´une Recherche-formation est une
transformation du sujet apprenant par la prise de conscience qu´il est et a
été sujet de ses transformations; autrement dit, la Recherche-formation
est une méthodologie d´approche du sujet conscientiel, de ses
dynamiques d´être au monde, de ses apprentissages, des objectivations
et valorisations qu´il a élaborées dans les différents contextes qui
sont/ont été les siens. Telle est la perspective ouverte par la Recherche-
formation (ibid., p. 129).
O postulado da pesquisa-formação é, pois, de que a intensidade dessa experiência
pode produzir conscientização como processo que não pode ser ensinado, mas que é vivido de
maneira muito pessoal pelo sujeito: um movimento que leva à busca de transformação. Essa
perspectiva de investigação não nega o carácter científico, antes busca um saber fruto de uma
objetivação, apresentando múltiplas dimensões (ibid.).
1
Tradução livre da autora.
4. Em contexto de interação efetivamente humana, o desenvolvimento do trabalho de
investigação produz, assim, um movimento de formação, de autodesenvolvimento para o
investigador e para os que participam como sujeitos da pesquisa. A pesquisa-formação implica
uma experiência significativa de articulação de saberes, não busca a produção de um saber
dicotomizado que futuramente “poderá ser aplicado” socialmente, mas o desenvolvimento da
pesquisa pressupõe a mobilização de saberes, experiências e praxis vitais.
2
O desenvolvimento da investigação com aporte nas histórias de vida rompe a clássica
separação entre investigador e participante da pesquisa, entre o que se considera “sujeito” e
outro que é considerado como “objeto”. Na perspectiva que buscamos, entendemos que ambos
são sujeitos do processo de conhecer, sujeitos que, com papéis diferenciados, se colocam em
um movimento de pesquisa e de formação.
Esta ruptura epistemológica, aponta para a imagem do “acompanhamento”, a presença
do investigador que, como aprendente, conduz, em parceria, o processo de investigação,
acompanha as narrativas e as análises. A obra “Accompagnements et Histoire de Vie”, de
Gaston Pineau (1998), apresenta um conjunto de textos que trazem a intensidade da relação
estabelecida entre os sujeitos no processo de investigação, num trabalho com histórias de vida
– a história de vida como “viagem colectiva” e o “acompanhamento” como arte no caminho da
formação e participação conjunta. Citando Galvani, Pineau retoma a figura de Hermes, o deus
grego, orientador dos viajantes, o condutor do amor e o mensageiro de outros deuses, como
metáfora do investigador-formador, do acompanhante de histórias de vida, aquele que se
coloca como mediador (PINEAU, 1998, p. 7 e 8).
Voir la vie comme voyage commun à accomplir et comme œuvre
personnelle à produire, fait pressentir l´intérêt d´une conjugaison entre
l´histoire de vie comme art singulier formateur d´existence et
l´accompagnement l´art des mouvements solidaires (ibid.)
O acompanhamento coloca-se, assim, como arte solitária, movimento coletivo, um
caminhar com o outro em partilha e a partir de objetivos comuns. É um sistema de
comunicação entre investigador e sujeitos participantes do processo e caracteriza-se por um
sistema interacional complexo, mediado pelo contexto sócio-histórico-cultural. E, nas palavras
de Josso (1998, p. 264), o acompanhamento é a arte da convivência em histórias de vida
(ABELS, 1998, p. 40 e BOURDAGES, 1998, p. 46).
A reflexão sobre “acompanhamento” levou Josso (1998, p. 273 e 2002, p.122) ao
encontro de figuras antropológicas que nos ajudam a caracterizar esse instigante processo.
1. A primeira figura é do “amante”, o investigador que “ama” as
histórias de vida, as pessoas e a análise dos percursos da vida;
2
Pineau (PINEAU; MICHÈLE, 1983) apresenta o resultado de um trabalho que vem como
investimento no processo de pesquisa-formação por meio da história de vida, no qual Marie
Michèle, que participa como sujeito da pesquisa, narra e interpreta seu processo de formação,
de auto-desenvolvimento. Michèle relata a intensidade desse movimento que, como operação
vital, vai transformando e dando sentido a própria vida.
5. 2. A segunda é a do “ancião”, aquele que já acumulou experiências
em histórias de vida e pode colocar-se no lugar da interlocução, da
mediação;
3. A terceira figura é a do “balseiro”, o que contribui no sentido da
travessia, da caminhada e
4. A quarta a do “animador”, pois o acompanhante assume a
liderança de um processo que precisa ser dinâmico, lúdico, significativo.
As quatro figuras indicam a densidade e a sensibilidade como marcas do trabalho de
investigação, densidade pelo necessário rigor epistemológico e sensibilidade pela natureza de
toda relação significativamente humana.
3. Caminhos percorridos nos encontros de pesquisa-formação
Os encontros com os egressos do Curso de Pedagogia da FFP/UERJ pulsaram
sentidos da pesquisa-formação – partilhamos e construímos conhecimentos, nos
formamos em comunhão – e trouxeram, também, a intensidade dos movimentos do
acompanhamento de uma viagem que envolveu todos os participantes do grupo.
Como amantes ouvimos muitas histórias, contamos as nossas próprias,
choramos e rimos, exercitamos no grupo a escuta sensível. A narrativa esteve presente
como possibilidade de “parar” o curso do tempo acelerado, abrindo um caminho de volta,
de reflexão. Produzimos imagens e textos, partilhamos em pequenos grupos e na grande
roda temas que apontaram para dois grandes campos, incluindo fragmentos de nossas
autobiografias e experiências docentes vividas pelos/as professores/as no cotidiano da
escola.
Os fragmentos autobiográficos se apresentaram por meio de diferentes dinâmicas
ao longo do percurso. Após ouvirmos as narrativas de vida de Frida Kahlo, Graciliano
Ramos e Cora Coralina – a primeira por meio das belas imagens dos seus auto-retratos e
os outros dois pelos poemas – fomos instigados a refletir sobre as narrativas como
caminhos de reconstrução de si, como atribuição de sentidos que se abrem à
autoformação em partilha. Depois cada um produziu, por escrito, uma apresentação
autobiográfica que foi dando visibilidade a uma ampla tessitura de formação que articula
dimensões pessoais, profissionais e acadêmicas, como observamos no texto de Luís
Paulo:
Eu sou pessoa no mundo...
Sou professor, filho e aluno.
Sou gente, melhor dizendo, estou me tornando gente.
Sou imagem da vida e espelho da alma.
Sou um entre outros, mas também sou único.
Sou menino, rapaz, homem.
Sou madeira, lenha e fogo.
Sou cativado, cativante e cativador.
6. Eu sou a procura...
a busca e a forma
o espaço, o tempo e o lugar
o desafio e o desafiador.
É isso...
Sou eu mesmo, com idas e vindas;
voltas e retornos, sujeito circulante!
(Luís Paulo C. Borges)
Mas, os encontros favoreceram, também, importantes espaços-tempos de
tematização das práticas docentes. Entre nós o “tempo de lembrar” consiste em “tempo
de trabalho” (BOSI, 1994), a narrativa de nossas experiências aponta para o sentido
pedagogicamente emancipador das histórias de vida pela possibilidade de reflexão e
ressignificação das práticas docentes. Um caminho de reinterpretação de si e da prática
pedagógica, de encontro com as experiências significativas. Reafirmamos, assim, as
potencialidades da memória e da narração como tempo de trabalho, de reorganização do
futuro na profissão (BRAGANÇA, 2008).
Nesse sentido, várias dinâmicas procuraram favorecer a narrativa de situações
vividas no cotidiano profissional e que puderam ser partilhadas e problematizadas
coletivamente em um acompanhamento que não se afirma apenas pela presença e
contribuição das professoras dinamizadoras, mas pela participação de todo grupo que, ao
mesmo tempo, acompanha e é acompanhado.
O início de uma longa jornada
Logo que terminei o curso fui convocada no concurso para trabalhar na
rede municipal de São Gonçalo, onde me deparei com a realidade atual
das escolas públicas. Apesar de sempre ter sido aluna da rede estadual,
como professora regente, conheci uma realidade muito diferente.
Tenho enfrentado muitos desafios como professora, falta de recursos
tanto de espaço quanto de material escolar, muitas vezes não se tem o
mínimo, que é lápis para que os alunos possam escrever.
Apesar e tantos problemas me sinto muito feliz por estar trabalhando na
profissão que escolhi e tenho consciência que a graduação forneceu
uma bagagem teórica e metodológica muito maior que o curso Normal e
por isso acredito na importância de continuar estudando / pesquisando.
Pensar em propostas que beneficiem a realidade das escolas públicas
da atualidade.
Então, diante de tantos desafios tenho me perguntado: por que
mantemos a escola que temos? Na busca de possíveis respostas é que
tenho realizado o meu trabalho como professora / pesquisadora.
(Alessandra da Costa Abreu)
Assim como no relato de Alessandra, as narrativas revelam sentimentos comuns
que se apresentam no início da trajetória profissional, logo após o término da graduação
7. – os desafios, a insegurança, a busca de “sobrevivência” nos primeiros anos. Mas
também os movimentos que vão sendo construídos no sentido de favorecer a
permanência na docência e o exercício de reconstrução do dia-a-dia da escola e das
práticas educativas.
Nos diversos movimentos do grupo ao longo da travessia, as três professoras
dinamizadoras colocaram-se como anciãs; cada uma de nós, por diferentes caminhos,
tem experimentado um intenso processo de formação que se dá na reflexão
autobiográfica pessoal e, também, partilhada com nossos alunos e alunas em diversos
espaços de ensino, pesquisa e extensão. Essas experiências anteriores nos permitiram
atuar, também, como balseiras, planejando previamente os encontros, mas buscando a
sensibilidade necessária para acolher o movimento das águas e da intensidade dos
ventos, reinventando diferentes caminhos para o aflorar das narrativas e da formação.
O componente da animação foi nutrido por cada um dos participantes. No
“Batismo Mineiro” nos apresentamos com gestos e movimentos corporais, na produção e
socialização de signos e textos, nos momentos de emoção e nos espaços livres de
confraternização mantivemos uma busca permanente de transformar as experiências em
espaços-tempos lúdicos, dinâmicos e significativos.
Observamos, assim, no caminho trilhado, sentidos do movimento de acompanhamento
tal como apresentamos, anteriormente, nas figuras antropológicas indicadas por Josso
(1998). Percebemos no caminho do grupo que o lugar de quem acompanha e de que é
acompanhado é movente, ora assumimos um papel, ora outro. As professoras
dinamizadoras também participaram das elaborações narrativas o que permitiu que
fôssemos, também, acompanhadas pelo grupo em nosso processo de formação.
4- A partilha de experiências e a construção de redes de fortalecimento
docente
Nos colocamos nesse momento a refletir sobre e com as narrativas docentes
enquanto fontes inesgotáveis de (re) criação de si e do mundo. Benjamin (1994) ao
concebê-la enquanto experiência reitera o sentido artesanal da narrativa, já que para ele
esta “não está interessada em transmitir o ‘puro-em si’ da coisa narrada como uma
informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida
retirá-la dele” (p.205).
Nesse sentido, o autor nos alerta sobre as marcas impressas pelo narrador em
suas narrativas, já que estas permitem ao ouvinte contá-las novamente, (re) significando
o passado. O que nos propicia indagar: Que sentidos trazem a partilha de experiências
(auto) biográficas para o processo de formação docente?
8. Ora, ao direcionarmos esta reflexão ao projeto Egressos da FFP, percebemos que
nossos encontros têm possibilitado um intercâmbio de narrativas em pelo menos duas
dimensões: a primeira ressalta o seu caráter de (re) invenção de histórias docentes que
são ao mesmo tempo individuais e coletivas e a segunda enquanto possibilidade da
criação de elos de fortalecimento docente, termo presente em tantas conversas em meio
as outras redes que compõem nossas vidas, mas que aqui tomamos emprestado das
narrativas de alguns professores/as que participam do projeto:
Nós professores somos formados de certa forma e acabamos
reproduzindo aquilo que vivenciamos enquanto estudantes. Então,
quando você vai fazer certas coisas, lembra do fortalecimento, lembra
dessa coisa da rede, da troca e você quer pensar em fazer algo
diferente. (Ane)
3
Percebemos que embora este relato da professora Ane inicie-se na busca de uma
relação estreita entre muitas de suas experiências escolares e o seu reflexo direto na
prática docente, as dobras de sua narrativa desocultam outras reflexões que não se
limitam a uma justificativa de suas práticas atuais em um retorno ao seu passado inerte,
mas, articulam suas dificuldades a desafios que se colocam em seu percurso formativo
em construção e que se tornam, portanto, possibilidades de mudança ao serem (com)
partilhados entre seus pares.
Josso (2004) ao propor a reflexão da formação do ponto de vista do aprendente
em interação com outras subjetividades sublinha que o caminhar para si, também traz
consigo a dimensão do caminhar com o outro. Nesse sentido, ao traçar uma busca de si,
ao aprender sobre sua experiência em uma viagem que lhe é própria, o sujeito conquista
parcerias importantes ao longo de seu caminho através dos grupos de afinidades, já que
“as histórias de vida, ao longo da existência, põem em cena peregrinações para que o
autor se sinta e viva ligado a outrem” (p.95). Essa tênue relação entre a busca de si e de
nós destaca-se na narrativa de Carolina4
ao lembrar-se de outros encontros com
professores da rede de São Gonçalo:
Aquele encontro mensal era muito legal porque servia à formação, mas
também para essa coisa do fortalecimento. Para percebermos que os
problemas que nós vivemos em Itaoca, o pessoal de Santa Luzia
também vivia com seus alunos, com seus problemas, com suas
diferenças. Era muito legal porque nós nos sentíamos como rede de
São Gonçalo. Éramos os alfabetizadores de São Gonçalo. (Carolina)
5
:
3
Depoimento oral da participante em um encontro realizado no dia 29/05/2010.
4
Optamos pela inserção do nome fictício Carolina por não ter sido possível identificar durante a
transcrição a voz da professora que teceu este relato, ocorrido em um momento em que muitas
falas circulavam simultaneamente no encontro realizado no dia 29/05/2010.
9. Percebemos que ambas as professoras mencionam em suas narrativas, uma
espécie de elo de fortalecimento construído junto à partilha de experiências, na medida
em que o/a professor/a subverte um suposto isolamento em sua sala de aula e busca
entre seus pares, outras possibilidades de lidar com os desafios que os fortalecem
enquanto grupo ao se conscientizarem que os problemas não lhe são únicos, mas
vivenciados por outros pares da profissão, como reitera o diálogo com a fala da
professora Ariana:
É um trabalho de formiguinha sim, mas que pode ser feito. Os
professores já entendem que isso é necessário: esse momento de
troca, de compartilhar, de sentar junto com o outro e até mesmo de
entender o todo. Porque aí você não pensa na sua série, na sua turma
como isolada, você pensa na sua turma enquanto rede, porque o aluno
que está na sua mão hoje, no dia de amanhã estará na mão do colega e
aquele do colega virá para a sua mão. Então, você já começa a pensar
enquanto todo, enquanto escola. Hoje já conseguimos ter essa visão.
(Ariana)
6
Ao utilizar a metáfora dos nós dos marinheiros, Josso (2006) enfatiza o processo
de formação através da complexidade da ligação, já que tais nós reúnem cordas e fios
que se entrelaçam uns aos outros, bem como o próprio ser humano ligado e religado aos
seus pares, que nos conduzem nos dizeres da mesma autora a reflexão do ser de ação:
O ser de ação é, sem dúvida, a dimensão de nosso ser-no-mundo que
permite 'ver' com mais evidência as formas dos laços que ele estabelece.
A inscrição necessariamente material da ação mostra com evidência que
a ação só é pensável na interação social, quer seja por meio de outras
pessoas implicadas pela ação em si-mesma, quer seja pela mobilização
de meios técnicos, objetos e materiais diversos, quer seja nos laços
criados consigo mesmo para mobilizar os recursos internos, a energia, a
coragem, a vontade.
(JOSSO, 2006, s/p)
Isso implica considerarmos, que a narrativa da professora Ariana traz consigo não
apenas a importância da construção de elos com os/as demais professores/as, mas,
possivelmente uma conscientização de sua aprendizagem que mobiliza suas ações,
através de uma experiência formadora centrada na abordagem biográfica do adulto em
formação atribuindo-lhe papéis simultâneos de ator e investigador de sua própria história.
Nesse sentido, os relatos supracitados nos trazem ainda, algumas pistas da
fertilidade do trabalho com a biografia educativa, conceito utilizado por Dominicé (2010)
para enfatizar a subjetividade na elaboração do conhecimento através da trajetória
6
Depoimento oral da participante em um encontro realizado no dia 29/05/2010.
10. educativa dos sujeitos e que é retomado por Nóvoa (2010) ao salientar o seu duplo
sentido:
(...) a biografia educativa não pode deixar de ser entendida num duplo
sentido: por um lado, como uma forma de pôr em prática uma dinâmica
de autoformação e de compreensão retroativa (tomada de consciência)
do percurso de formação seguido por cada participante; por outro lado,
como um espaço de reflexão teórica que tem como objeto os processos
por meio dos quais os adultos se formam. (p.171)
Corroboramos com Nóvoa (2010) e Dominicé (2010) por entendermos que os
nossos encontros e os relatos sejam através de textos, ou narrativas orais tem nos
possibilitado uma maior conscientização e autocompreensão do que somos, do que
estamos sendo através de nossas biografias educativas e uma investigação/formação
das nossas memórias/histórias de escolarização e aprendizagens construídas e (re)
construídas ao longo da vida.
Diante dessa perspectiva, ao reiterar a conscientização dos impactos que sua
prática pode representar ao coletivo de professores/as, compreendemos que Ariana
atribui ainda um novo sentido não apenas a escola em seu cotidiano, mas ao grupo de
professores/as, a si mesma e ao seu trabalho que ganha relevo neste relato ao nutrir o
entendimento de um processo de formação permanente e tomada de consciência
individual que também pode contagiar, ampliar-se ao coletivo mediante as trocas de
experiências que para Benjamin (1994) se distinguem da mera vivência por serem plenas
de sentido e espírito e que, portanto, mobilizam nossas escolhas e mudança de
pensamento e atitude diante da vida.
5- Para (in) concluir...
A escrita deste trabalho trouxe algumas reflexões não apenas a partir dos
encontros com alguns/as professores/as, mas possivelmente de um (re) encontro
conosco, já que ao atribuir nossos sentidos as nossas pesquisas, através das narrativas
tecidas em nossas manhãs de sábado, pudemos apreender que o caminhar para si
(JOSSO, 2004) implica simultaneamente em caminhar para um outro que (co) existe em
nós, se configura, portanto, em nossas subjetividades e também por isso: “seja
impensável que alguém se possa dedicar a formação dos outros (...), sem antes ter
refletido seriamente sobre seu próprio processo de formação.” (NÓVOA, 2010, p.183).
Temos vivido um processo de conhecimento e partilha que vem sinalizando
movimentos da pesquisa-formação, favorecendo o retorno de nossos ex-alunos à FFP e
o diálogo permanente com a escola. Mas esse texto fica aberto a um caminho que
11. continua; ao escrever já pensamos na proposta de trabalho para o próximo encontro e
desejamos muitas outras histórias para narrar.
Destarte, para pesquisar a formação docente reunimos em nós um pouco das
narrativas que ouvimos e as experiências que constituem a nossa própria história em
uma pesquisa-formação que preza pelo movimento desafiador do trabalho com a (auto)
biografia, dada a sua complexidade em lidar com o humano, reconhecendo o confronto
com os seus limites deste trabalho, mas também as suas possibilidades na criação e
reconhecimento de novos saberes docentes.
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