O início da docência corresponde também ao ingresso em uma instituição escolar
com modelos, normas e regras que organizam a atividade docente. Nesse espaço
relacional, sujeitos com diferentes trajetórias de vida e de formação se apropriam e dão
significado aos elementos desse contexto.
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
INGRESSO PROFISSIONAL: O APRENDIZADO DA DOCÊNCIA NO ESPAÇO ESCOLAR
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INGRESSO PROFISSIONAL: O APRENDIZADO DA DOCÊNCIA NO ESPAÇO
ESCOLAR
Ambrosetti, Neusa Banhara
Almeida, Patricia Albieri
Calil, Ana Maria G. Correa
nbambrosetti@uol.com.br
patricia.aa@uol.com.br
am-calil@bol.com.br
Universidade de Taubaté – UNITAU
Fundação Carlos Chagas/Mackenzie
Universidade de Taubaté – UNITAU
Palavras-chaves: aprendizado da docência – profissionalidade - socialização - ingresso
profissional – escola
O início da docência corresponde também ao ingresso em uma instituição escolar
com modelos, normas e regras que organizam a atividade docente. Nesse espaço
relacional, sujeitos com diferentes trajetórias de vida e de formação se apropriam e dão
significado aos elementos desse contexto.
O aprendizado da docência não se inicia com o ingresso na profissão, é um
processo construído ao longo da vida, desde a escolarização inicial, quando se
constituem crenças e concepções que serão submetidas à reflexão e questionamento
nos cursos de formação profissional. No entanto, é no exercício profissional, no espaço
escolar, que essas concepções são revistas e adquirem significado nas relações com os
demais atores e no confronto com as delimitações do contexto institucional.
O presente estudo tem por objetivo investigar os desafios colocados a professoras
recém saídas de um curso de Pedagogia que ingressam em escolas públicas de Ensino
Fundamental no Brasil, bem como os saberes e recursos mobilizados por elas, no
processo de tornar-se professor.
A partir dos relatos de um grupo de professoras sobre o ingresso na profissão e o
aprendizado da docência, buscou-se apreender as tensões, conflitos e acomodações que
permeiam esse processo de entrada no espaço escolar, período fundamental na
constituição da sua profissionalidade.
2. 2
1. Tornar-se professor no espaço escolar
O conceito de profissionalidade mostra-se particularmente adequado ao estudo
das relações envolvidas entre sujeito/instituição, no processo de tornar-se professor. De
uso recente nas pesquisas educacionais, sugere uma perspectiva de análise que procura
reposicionar o professor como sujeito da atividade docente, superando as perspectivas
normativas que analisam a docência a partir de modelos teóricos produzidos
externamente ao exercício profissional, para compreendê-la em sua complexidade, como
uma construção social que envolve pessoas em interação no quadro de uma instituição
escolar.
A compreensão da docência como atividade construída na e pela ação dos atores
sociais que, agindo num espaço institucional dado, constroem nessa atividade a própria
profissão e a vida escolar, nos leva a considerar as relações entre as características
pessoais, os percursos de formação e os contextos de exercício profissional dos
docentes na construção da sua profissionalidade.
A perspectiva da profissionalidade permite a análise dessas múltiplas dimensões
envolvidas no processo de tornar-se professor. O conceito aparece nas pesquisas sobre
os professores articulado à idéia de profissionalização.
Sacristán (1991) é um dos primeiros a utilizar o conceito de profissionalidade na
análise da docência, entendido por ele como “[...] a afirmação do que é específico na
acção docente, isto é, o conjunto de comportamentos, conhecimentos, destrezas,
atitudes e valores que constituem a especificidade de ser professor” (p.65). O autor
destaca o dinamismo de um conceito em permanente elaboração, que só pode ser
entendido em função do contexto sócio-histórico em que é analisado.
Imbernón (1998) entende por profissionalidade as “características e capacidades
específicas da profissão”, e por profissionalização o “processo socializador de aquisição
dessas características” (p.14). Contreras (2000) utiliza a expressão profissionalidade,
referindo-se “[...] às qualidades da prática profissional dos professores em função do que
requer o trabalho educativo” (p.74).
Apesar de algumas diferenças de abordagens do termo profissionalidade,
observamos que esse conceito permite apreender a relação entre os dois pólos da
profissão, ou seja, a dimensão social, relacionada às condições que o trabalho requer e
às expectativas em relação ao desempenho profissional dos professores, e a dimensão
pessoal, relativa aos valores e aspirações que os professores desenvolvem a respeito da
profissão (Contreras, 2000). Esse processo envolve uma relação dialética entre, por um
lado, as condições sociais e institucionais colocadas ao trabalho docente e, por outro, as
3. 3
formas de viver e praticar a docência desenvolvida pelos professores, individual e
coletivamente, que são constituídas e constituem o contexto escolar.
O estudo da profissionalidade não pode estar dissociado da compreensão da
escola como espaço estruturante da atividade docente. Como destacam Tardif e Lessard
(2005), “[...] desde que a docência moderna existe, ela se realiza numa escola, ou seja,
num lugar organizado, espacial e socialmente separado dos outros espaços da vida
cotidiana” (p.55). A docência como atividade profissional está, assim, vinculada ao
contexto escolar no qual se desenvolve.
O conceito de instituição proposto por Lorau (1993) na perspectiva teórica da
análise institucional permite compreender melhor o significado do ingresso na instituição
escolar. Ao destacar o caráter dinâmico e polissêmico da noção de instituição o autor
afirma que: “instituição não é uma coisa observável, mas uma dinâmica contraditória
construindo-se na (e em) história, ou tempo” (p.11).
Segundo o autor, a instituição não é uma coisa concreta, que possa ser descrita,
mas um modelo teórico que permite compreender o que se passa num campo de análise,
como uma escola ou uma classe. Supõe uma rede de relações que envolve a dupla
dimensão do instituído, ou seja, a ordem estabelecida, as normas já presentes, e do
instituinte, dada pela ação de sujeitos, grupos e acontecimentos que ao mesmo tempo
negam e transformam a ordem instituída. Nesse sentido, o processo de
institucionalização é entendido como produto da luta permanente do instituinte e do
instituído em constante contradição, trazendo o movimento de auto-dissolução e
transformação, sempre presente na instituição (Lourau, 1993; 1995).
A análise da profissão docente, nessa perspectiva, implica considerar o instituído,
a dimensão estruturante que é dada pelas normas estabelecidas do sistema, mas que
contém ao mesmo tempo os elementos negadores dessa formalização, os movimentos
instituintes, dados pelas ações e interações dos sujeitos que na sua atividade cotidiana,
produzem a vida escolar.
No presente estudo busca-se apreender a dinâmica dessa constituição mútua
sujeitos/instituição, no processo de construção da profissionalidade de professoras
iniciantes. Entendemos que esse movimento no qual as formas de exercer e viver a
profissão vão sendo construídas pelas professoras, é permeado pelas condições e
situações da docência, submetidas à reflexão crítica nas relações com os pares, os
alunos e suas famílias, no confronto com as delimitações estabelecidas pelo contexto
institucional. Esse ambiente organizacional estruturado define o quadro de referência
onde se movem os atores institucionais, mas é, ele próprio, constituído nessas relações.
A compreensão desse processo, constituído e constituinte dos modos de ser, sentir e agir
4. 4
desses profissionais em seu contexto de trabalho é fundamental para compreender a
docência e o aprendizado do trabalho docente.
2. Procedimentos metodológicos
Tendo em vista o propósito de investigar os desafios colocados a professoras
recém saídas de um curso de Pedagogia que ingressam no Ensino Fundamental, optou-
se por utilizar, no âmbito das abordagens qualitativas, a técnica do grupo focal.
Para os objetivos do presente estudo, esta técnica demonstrou grande potencial
especialmente por reunir pessoas que têm vivência com o tema a ser discutido e que
partilham alguns traços em comum e, ao mesmo tempo, com variações que permitem
opiniões diferentes e experiências diversas (Gatti, 2005).
O grupo focal foi tido como uma possibilidade de captar os processos e conteúdos
de natureza cognitiva, emocional, ideológica e representacional numa dimensão mais
coletiva e menos individualizada.
No caso da pesquisa ora apresentada, o grupo focal constitui-se de cinco
professoras que lecionam nos anos iniciais do Ensino Fundamental. A composição do
grupo baseia-se em algumas características homogêneas: todas tinham concluído o
curso de Pedagogia há poucos meses e ocupam cargo efetivo nos sistemas públicos
Estadual e/ou Municipal, tendo ingressado recentemente (2005/2006) por concurso
público. Possuem pouco tempo de experiência no ensino fundamental (1 a 3 anos, com
exceção da participante 5, que tem 6 anos de experiência). Já as variações são em
relação à idade, duas participantes têm 34 e 40 anos respectivamente, o que
corresponde também a uma experiência mais longa na docência. As demais variam entre
23 a 25 anos. Quanto aos contextos de trabalho, com exceção de duas participantes que
trabalham na mesma escola estadual em um dos períodos, as demais trabalham em
escolas diversas, embora em alguns casos do mesmo sistema de ensino.
Com a intenção de criar um ambiente de confiança e descontração foi sugerida,
inicialmente, a construção de uma história coletiva com o seguinte título: “Um dia na vida
do professor”. A proposta era que uma das participantes iniciasse e as demais dessem
continuidade à história. Depois desse primeiro momento de aquecimento, a pesquisadora
apresentou uma questão problematizadora, a partir da qual as participantes falaram
livremente: gostaria que cada uma de vocês contasse como aprendeu a ser professora,
como se tornou a professora que é hoje. Foi elaborado um roteiro para orientar o
processo de discussão e o aprofundamento do tema.
5. 5
Durante a discussão do grupo uma das pesquisadoras procedeu ao registro das
interações. Essas anotações são necessárias para detectar o contexto das falas, registrar
trocas e monólogos, expressões corporais, dispersões, etc.
O conjunto dos dados resultantes desses registros foi submetido a múltiplas
leituras e audições, na busca de penetrar seus sentidos e significados. Nesse processo
de construção e reconstrução do objeto pesquisado, orientada pelos objetivos propostos
no início do trabalho, foram emergindo os itens da análise apresentada a seguir.
3. A escola como espaço de aprendizado e formação
Na análise dos depoimentos das professoras vai se mostrando o percurso que as
leva à docência, marcado pelas recordações da infância e pela memória afetiva.
Igualmente o período de formação no curso de Pedagogia mostra-se como uma fase
agradável, lembrada pelo contato com colegas e professores e pela valorização do
conhecimento adquirido. No entanto, ao relatarem o ingresso no espaço escolar
emergem as tensões e contradições que marcam esse período.
Percebe-se que os conflitos e incertezas do início da docência estão presentes de
diferentes formas nos diversos espaços institucionais do exercício profissional. Na análise
a seguir são discutidos esses aspectos que se destacam nos dados, buscando
compreender os diversos elementos que se articulam na constituição da profissionalidade
docente.
Cabe esclarecer que no texto a idéia de espaço não é entendia somente como
meio material, mas envolve as relações interpessoais, os afetos, atitudes e condutas que
são produzidas e produzem esse ambiente (Zabalza, 1998).
3.1 Os diversos espaços no aprendizado da docência
Analisando a evolução da escola moderna, Tardif e Lessard (2005) observam que,
não obstante a sua transformação numa organização mais complexa e com funções mais
amplas, a estrutura escolar ainda se apóia sobre dois aspectos fundamentais: a classe,
que continua sendo a célula básica da organização escolar, e o trabalho realizado pelos
professores na sala de aula, o qual, apesar do surgimento de novas categorias de
agentes escolares, que vão ocupar espaços crescentes na organização, continua sendo
a referência do trabalho escolar.
Nos relatos das professoras, nota-se que a sala de aula é para elas o espaço
privilegiado da docência. Ao descreverem as dúvidas e dificuldades do início profissional,
6. 6
elas se referem com freqüência aos desafios envolvidos nas atividades de ensino na sala
de aula:
Acho que é dentro da sala de aula que a gente aprende a ser professor, não adianta
falar “eu sou professor”, mas não está dentro de uma sala. (Participante 1)
Eu também concordo, acho que a gente aprende a ser professor em sala de aula, é
no dia a dia, nos conflitos que vão surgindo, né, tanto com os alunos como com pais,
diretores, coordenadores, é assim que você aprende, e o jeito que você aprende, até
isso, tem que aprender várias formas de dar aula. (Participante 2)
Os dados evidenciam que a classe é um espaço de enfrentamento das
dificuldades, mas também local de crescimento pelo aprendizado, como se nota neste
extrato:
[...] cada dia nós temos que nos renovar porque o professor tem que tá ali, né, cada
dia, porque são vários alunos, vários problemas, nós sabemos, então em cada dia
assim, você se depara com uma situação diferente [...] e nesse momento é que você
percebe que você tá aprendendo a cada dia mesmo o que é ser professor [...] como
eu cresci com essa pequena situação, né, como meu conceito, já tenho que rever os
meus conceitos, né, eu não fui bem, porque eu acho que isto acontece bastante
também. (Participante 5)
Os diferentes relatos mostram que, embora as tarefas relacionadas ao ensino e à
gestão da classe apresentem dificuldades às professoras iniciantes, estas situações não
são fontes de desestímulo, mas de descobertas e construção dos saberes profissionais.
Percebe-se que a sala de aula é ao mesmo tempo o lugar onde o professor enfrenta
desafios e dificuldades, mas também o espaço de desenvolvimento e realização
profissional, pela superação dessas dificuldades.
Na busca dos saberes para enfrentar o desafio de ensinar, as professoras
recorrem a diferentes fontes de informação. Nos depoimentos são citadas as trocas de
experiência e os conselhos dos colegas, mas destacam-se as referências aos
conhecimentos do curso de Pedagogia, agora submetidos à releitura no confronto com a
prática:
[...] acho que são as duas coisas: eu acho que é na sala de aula, você dando aula, e
pegando como exemplo outros professores, até os próprios companheiros.
(Participante 4)
[...] falei: meu Deus, onde que eu estou? O que eu sou aqui? Eu senti exatamente
isso, me senti assim, daí eu comecei a lembrar de tudo o que eu aprendi na
faculdade, que eu não me formei à toa, que eu não vinha para cá todas as noites à
toa, de tudo que eu aprendi, de tudo que eu ouvi, de tudo que eu li, né, dos
7. 7
excelentes professores que eu tive, então eu tinha que colocar isso pra fora, eu tinha
que mostrar que eu sabia fazer e bem feito, né, então eu acho que ser professora é
isso, a gente ter coragem também de enfrentar e acreditar na gente mesmo, primeiro,
de mostrar que nós somos capazes, é ter a teoria, buscar a teoria e aprender na
prática. (Participante 5)
Analisando a consolidação dos conhecimentos na fase inicial da docência, Tardif
(2002) observa que a experiência e o desenvolvimento das competências profissionais
permitem esta revisão crítica da formação obtida nos cursos de formação profissional. É
o que se observa também neste trecho do depoimento, no qual a professora faz um
desabafo em relação à forma como é tratada nos cursos de formação continuada
oferecido pelos sistemas de ensino:
[...] e outra coisa que eu não suporto é quando você vai em cursos e você ouve o
coordenador [...] falando, coloca o holofote na sua cabeça, a responsabilidade é sua;
é lógico que a responsabilidade em sala de aula é nossa, mas não é nesse sentido,
eles estão deixando toda a carga nas suas costas, e não é a carga, não é o
compromisso da sala de aula que eles estão colocando pro professor, é a culpa, a
cobrança, se não deu certo você é o culpado, e não é isso, não é isso, porque os
teóricos que falam que [...] eu já falei que eu não concordo, que se o aluno não tá
aprendendo a culpa é sua, a família não influencia a parte pedagógica? influencia sim
[...] (Participante 5)
A professora refere-se criticamente a uma postura freqüentemente encontrada em
cursos de formação, nos quais a prática é submetida ao “julgamento” da teoria,
apresentada como o conhecimento válido, em oposição à desvalorização atribuída aos
saberes da experiência.
Tardif (2002) destaca que a prática profissional não é um espaço de aplicação dos
conhecimentos universitários, mas um campo de construção dos saberes do e no
trabalho. A experiência tem um papel de filtro, por meio do qual o professor analisa os
demais saberes, apropriando-se deles em função das exigências do trabalho. Nesse
processo os saberes considerados inúteis são recusados pelos professores.
Os dados mostram que o domínio progressivo das tarefas da docência,
relacionado a um sentimento de maior segurança no espaço da sala de aula, dão às
professoras possibilidades de uma nova relação com os conhecimentos da formação.
Estes constituem uma referência importante no trabalho docente, desde que
reconhecidos e valorizados como fontes de apoio e não de negação dos saberes
experienciais, “núcleo vital do saber docente” (Tardif, 2002, p.54).
8. 8
Se o espaço da sala de aula é favorável ao aprendizado da docência, quando as
participantes se referem às relações com os demais níveis institucionais emergem as
queixas e os conflitos. As professoras ressentem-se da falta de apoio e orientação, da
falta de autonomia e das cobranças que entendem indevidas face às condições de
trabalho. Uma das participantes, que trabalha em dois sistemas de ensino, municipal e
estadual, relata essas relações:
[...] na rede municipal [...] da direção da escola tive uma certa atenção, mas, assim,
acredito que eu teria feito um trabalho melhor se tivesse mais apoio. Já no Estado
sou eu, Deus e meus alunos (risos). (Participante 5)
Tardif e Lessard (2005) observam que a classe é ao mesmo tempo um espaço de
autonomia do professor, mas também de solidão e vulnerabilidade, na medida em que
ele não pode contar com apoios institucionais ao seu trabalho. Os depoimentos das
professoras evidenciam essa condição de solidão e isolamento do trabalho docente. A
sala de aula é percebida como responsabilidade apenas do professor, que não encontra
nas equipes de gestão o apoio necessário para o enfrentamento das dúvidas e incertezas
do início da docência:
[...] como não tinha coordenadora ela não tinha nenhuma preocupação com isso,
resolvam os seus problemas na sua sala, não me trazendo problemas tá tudo bem,
quantas vezes eu falava, né, dona [...] eu chamava e ela: ai pelo amor de Deus, se for
pra falar de aluno, eu tô cheia de serviço [...] (Participante 1)
Mesmo os coordenadores, que deveriam ser os agentes responsáveis por esta
mediação, são percebidos pelas professoras como elementos de controle do sistema. No
relato de uma das professoras, a busca de ajuda é vista como falta de competência para
resolver os problemas da docência:
[...] que eu já até tive essa “feliz” experiência de ir buscar uma ajuda com ele, porque
o meu diretor não tinha como me ajudar e eu fui buscar uma ajuda com ele, e ele me
viu com os olhos de “a incompetente” não de que ah, ta, vou te ajudar porque precisa
solucionar o seu problema [...] (Participante 2)
Outro aspecto especialmente problemático, destacado nas falas das professoras
ao se referirem às relações com as equipes de gestão escolar é a falta de
reconhecimento do trabalho realizado:
E às vezes você também você se frustra porque não tem muita credibilidade, você faz
um trabalho durante o ano inteiro, um projeto, chega na hora de você fazer sua
apresentação, cadê o diretor da escola, pra ver? cadê o coordenador? [...] E depois
quando eu fui perguntar porque ela não veio ela riu, falou assim: ah, eu estava muito
ocupada, quer dizer, você se sente um nada, eu vou deixar o trabalho pra ela mas eu
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já sei que (pausa) você faz por amor que você tem, né, mas na hora que você precisa
daquele apoio, daquela credibilidade dentro da escola [...] (Participante 4)
Esta fala revela que o não reconhecimento do trabalho, ignorado pela instituição,
é motivo de sofrimento e desinvestimento profissional. Se considerarmos que o ingresso
na docência é um processo de aprendizado dos saberes inerentes à profissão, mas
também um momento fundamental na construção da identidade profissional, podemos
avaliar melhor os sentimentos desta professora, que expressa no discurso a negação da
identidade: “você se sente um nada”. Isto a leva, na sequência, a reafirmar a importância
do professor, destacando a centralidade da atividade docente na escola:
É, porque diretor, acho que eles esquecem que a escola não funciona sem o
professor, né, que a escola não é nada sem o professor, não é verdade? que os
professores se viram, se desdobram, mas ele faz acontecer, né [...]
Discutindo essa questão, Dubar (1997) explica que é na interação entre as
trajetórias individuais e os contextos sociais, culturais, institucionais, pessoais, que as
identidades são construídas, num duplo movimento que envolve a identidade atribuída
pelo outro, que me diz quem sou, e a identidade construída por mim através do olhar do
outro. Quando o professor sente que o trabalho realizado não é “visto” pelos outros
significativos na instituição, a escola não é percebida por ele como um espaço favorável à
legitimação e identificação com a docência.
As discussões das participantes revelam também a dimensão contraditória dessas
relações, quando emergem processos de negociação e resistência e a busca de novas
formas de convivência na instituição.
Até mesmo aconteceu agora nesse último bimestre, de eu questionar alguma coisa
no conselho de classe, coloquei não, não concordo, é assim, assim, assim, só que o
conselho de classe quem decide são os professores, só que na verdade quem decide
é a diretora e você assina em baixo, né, então tem diferença. Hoje ela me adora, né,
porque eu não levo problemas para ela [...] não levo aluno nenhum pra ela, então pra
ela tou ótima porque ai, domina a sala, que beleza e tal, acha uma maravilha, ela não
que ter trabalho [...] (Participante 1)
[...] eu falava: credo! Só chamamos a senhora pra tomar um café com a gente, né, até
que ela foi amolecendo e amansando um pouco, né, eu brincava com ela, bastante,
hoje até ela é mais amável com a gente (Participante 1)
A fala indica a progressiva apropriação pela professora dos padrões implícitos no
relacionamento pessoal com uma diretora autoritária e o uso das brincadeiras como
forma de estabelecer uma comunicação mais cordial com ela. Revela também que a
10. 10
crescente conquista das competências de atuação na sala de aula, possibilitando à
professora mais segurança em relação ao próprio trabalho, altera também as relações
com os demais níveis institucionais, conferindo maior autonomia no enfrentamento de
condições consideradas inadequadas. É o que se manifesta também neste extrato:
[...] então eu senti muita rejeição de quando eu cheguei ali, e ninguém acredita em
você, até a partir do momento que você mostra o seu trabalho, então eu acredito no
meu trabalho e também acho que ninguém pode desfazer do meu trabalho, porque eu
tenho certeza que eu tive uma boa formação estou com as melhores das intenções
[...] (Participante 5)
Roldão (2005) considera o domínio do saber necessário para exercer a profissão
um fundamento legitimador da ação docente, reforçador da profissionalidade. No entanto,
adverte que quando o controle dos professores sobre a própria atividade restringe-se à
sala de aula, isto se constitui num limitador da profissionalidade.
Os depoimentos das professoras mostram que a sala de aula é realmente um
espaço de reconhecimento e legitimação profissional, embora esses limites sejam muito
estreitos para o desenvolvimento pleno da profissionalidade docente. Evidenciam
também que a conquista dos saberes específicos da profissão, relacionados ao ensino e
aprendizagem dos alunos, pode ser um elemento transformador nas relações com os
demais agentes no espaço escolar, possibilitando movimentos de resistência e afirmação
profissional.
À guisa de conclusão
As discussões precedentes mostram o aprendizado da docência e a constituição
do ser professor no espaço escolar como um processo dinâmico e complexo, que
envolve diferentes relações e é permeado por contradições e conflitos. As formas como
essas tensões se manifestam são diferentes na sala de aula, percebida como espaço de
autonomia do professor, e no espaço escolar, que se mostra como um campo de
confrontos nas relações com a direção da escola e com as normas do sistema de ensino.
A escola que se mostra nos relatos das professoras não pode ser vista como um
espaço estável, regido pelas normas e regras de um sistema estabelecido, mas como um
universo dinâmico e contraditório, no qual sujeitos com diferentes posições, atribuições e
condições de poder interagem e aprendem as formas estar e agir na profissão. Nas
situações relatadas pelas professoras, a atuação das equipes de gestão e dos sistemas
de ensino não favorece o aprendizado da docência e a formação dos professores no
ambiente escolar.
11. 11
Recorrendo às referências de Lourau (1993) para compreender esse processo, o
que se observa nas relações escolares é que a dimensão instituinte, dada pela ação dos
sujeitos que negando a ordem instituída conferem à instituição o dinamismo e a energia
transformadora, não vem encontrando formas adequadas de manifestação. Sentimentos
de insatisfação e frustração podem ser resultantes dessa contradição, como tão bem
expresso pela professora: a gente passa por um turbilhão de sentimentos, né, porque tem
dia que você está feliz, tem dia que você volta se sentindo fracassada, culpada.
O desabafo da professora indica também que nesse contexto instituído há
movimentos de afirmação. Os saberes da formação profissional, a aprendizagem dos
saberes da docência no espaço da sala de aula, as relações com os pares, alunos e
famílias, são elementos de apoio e realização profissional.
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