2. Refletir EdInf, nº 02, março /abril/maio 2018
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Índice
Editorial
Ofélia Libório 3
Rotinas, um bem essencial!
Rita Simas Bonança 4
Há rotinas “mais importantes” na
educação de infância?
Henrique Santos (Educador de Infância), Miguel Meira
e Cruz (Especialista Europeu em Medicina do Sono),
Helga Leite (Especialista em Odontopediatria) e
Magda Roma (Nutricionista) 5
O papel das rotinas no bem-estar da
criança
Conceição Pereira 13
Dinâmicas Transferenciais e Contra-
Transferenciais
Mónica Rolo 17
Sala do Fundo
Vera Ribeiro 20
Refletir EdInf, nº 2, março/abril/maio 2018
3. Refletir EdInf, nº 02, março /abril/maio 2018
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EDITORIAL
Ofélia Libório
Ao escrever sobre “rotinas” torna-se evidente, de imediato, uma tensão que se perpetua em educação de
infância entre atividades ditas educativas e de cuidado. Uma tensão que continua a alimentar discussões,
nomeadamente sobre o conteúdo funcional da própria profissão e povoa as representações sociais de
todos os envolvidos, profissionais ou não.
Cuidado e educação são necessidades básicas do ser humano desde o nascimento. No cuidado “ensinamos”
sobre os modos de se ser humano e na educação “cuidamos” dos modos de se construir como pessoa
humana que aprende. O que cada um de nós entende por “rotina” não é uno. Para alguns diz respeito às
atividades mais ligadas ao cuidado de si, para outros trata-se da forma como se organiza o tempo e as
atividades. Por detrás destas formas de conceber estão opções curriculares, nem sempre muito explícitas,
mas sempre presentes.
A perspetiva que pensa a rotina como uma proposta de organização do tempo, tem subjacentes as
finalidades de currículos construtivistas a aposta na autonomia das crianças, por contraponto ao
seguimento de ordens e instruções do educador. A organização sequencial de atividades dará ao
aprendente a liberdade para tomar decisões, tendo essa organização como guião da sua ação. Cabe aos
educadores a explicitação do que fazem nos documentos que produzem e na planificação que fazem com as
crianças tendo em conta que oficialmente a rotina é entendida como um organizador do tempo. Cabe-lhes
também pensar a flexibilização dessas mesmas rotinas e assim garantir a individualização e a resposta a
imprevisíveis. Se a previsibilidade, implícita nas rotinas, apresenta benefícios emocionais, sociais e interfere
positivamente na aprendizagem, a sua flexibilização poderá ser garantia de respeito pelas diferenças e
resposta à escuta das crianças. Por outro lado, aprender a lidar com a mudança exige capacidade de
adaptação e reorganização rápida da ação em função de novos desafios e objetivos.
Por essa razão, e porque perspetivamos a formação de cidadãos capazes de viver num mundo em mudança
acelerada, talvez nos devêssemos debruçar sobre as formas de flexibilização das rotinas, perceber como
encontrar um equilíbrio entre interesses individuais e interesses do grupo, entre as necessidades de
organização dos adultos e o apelo do caos sentido pelas crianças.
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verdadeiramente desafiante tentar explicar por meras
palavras a importância das rotinas na vida da criança,
aquando a sua entrada na creche. Na verdade, muito
se especula sobre educação, muito se diz sobre isto e
aquilo, como se existissem receitas e procedimentos a
cumprir mal a criança nasça. Incrível, não é? Mas, o
que importa aqui refletir, e o que a literatura da especialidade
vem confirmar, é que as rotinas são um bem essencial na vida da
criança, daí o título deste artigo.
Mas, o que são rotinas?
Para Oliveira-Formosinho desenvolver uma rotina e transformar o
tempo num “tempo de experiencias educacionais ricas e
interações positivas” (1998, p.71). Zabalza refere que a rotina e a
“repetição de atividades e ritmos na organização espácio-temporal
da sala” (1998, p. 169). Enquanto Post e Hohmann acreditam
que as rotinas se criam na “sequência (...) de acontecimentos,
como (…) o tempo de escolha livre, refeicao, tempo de exterior”
(2003, p.15). Hohmann e Weikart acrescentam, ainda, que e a
“sequência de acontecimentos que elas (crianças) podem seguir e
compreender [e que] (…) oferece uma estrutura para os
acontecimentos do dia” (2003, p.224). Para Lino, (rotina refere-se
a “organização do tempo de forma a proporcionar às crianças
oportunidades de estabelecer diferentes tipos de interação” (1998,
p.112).
Serão as rotinas um bem essencial?
Sobre a importância da rotina em creche temos de convir que esta
assume uma relevância basilar no desenvolvimento das crianças.
As rotinas são o espelho do que vai acontecer e pelo qual se
antevê, o que vai suceder. Ora, é como um livro que vai ser lido,
por fases, alimentando a ideia do que vem depois, aqui utilizando
uma linguagem metafórica, de forma a caracterizar melhor o seu
peso na vida da criança. Ou seja, aos poucos a criança vai
interiorizando os acontecimentos, ações, tarefas de forma natural
e quase inata. Esta evolução assegurará maior estabilidade
emocional, confiança e segurança em si e, ainda, um
conhecimento mais alargado sobre a sucessão dos
acontecimentos. Em sentido figurativo, é o equivalente a uma
catedral que vai sendo guarnecida aos poucos, sendo os alicerces
a base de uma construção robusta e vigorosa.
Em relação às rotinas, Pereira refere que é “no ambiente
educativo” (...) que se vai “construindo comportamentos e atitudes
com um sentido gradualmente mais autónomo”, bem como “a ser,
a estar, e a fazer” (2014, p.13). Ou seja, fomenta o
desenvolvimento da socialização com os seus pares e adultos e a
nível emocional.
Neste contexto, o envolvimento com o profissional de educação
na muda da fralda, na hora do sono, durante as refeições e o
tempo que dispensa, a sua atenção, assumem particular
relevância. Na verdade, estes momentos são cruciais na
interiorização das rotinas. Por isso, a qualidade da educação
passa, também, pelo tempo que dispensámos com a rotina diária,
privilegiando ações através da proximidade com as crianças.
Aliás, estes referenciais constituem as bases essenciais do
desenvolvimento de novas aquisições.
Garantir uma rotina equilibrada relaciona-se com a capacidade
de prever o que vai acontecer a seguir, o que oferece
familiaridade, assegurando maior intimidade em tudo o que está
à sua volta, evitando o choro, a irrequietude e o desconforto.
A atuação do profissional de educação é a estratégia mais
próxima da criança, pelo que privilegiar rotinas construtivas de
qualidade torna-se elementar no desenvolvimento da criança
desde a sua entrada na creche.
Tudo começa com a reflexão sobre o nosso principal papel, que
começa com o conforto e bem-estar da criança!
Bibliografia:
Hohmann, M. & Weikart, D. P. (2003). Educar a Criança. Lisboa: Fundacao Calouste
Gulbenkian.
Lino, D. (1998). O Modelo Curricular para a Educacao de Infancia de Reggio Emilia: Uma
Apresentacao. In Oliveira-Formosinho (Org.), Modelos Curriculares para a Educacao de
Infancia. (pp. 93-136). Porto: Porto Editora.
Oliveira-Formosinho, J. (1998). A Contextualizacao do Modelo Curricular High-Scope no
Ambito do Projecto Infancia. In Oliveira-Formosinho (Org.), Modelos Curriculares para a
Educacao de Infancia. (pp. 51-92). Porto: Porto Editora.
Pereira, A. M. (2014). O contributo das rotinas diarias para o desenvolvimento da
autonomia das criancas. (Dissertacao de Mestrado, Escola Superior de Educacao de
Portalegre, Portalegre). Consultada em
http://comum.rcaap.pt/handle/123456789/6133
Zabalza, M. A. (1998). Didactica da Educacao Infantil. Rio Tinto: Edicoes Asa.
Rotinas, um bem essencial!
Rita Simas Bonança, Educadora de Infância (rita.bonanca@gmail.com)
É
,
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5
rotina
ro.ti.na
ʀuˈtinɐ
nome feminino
1. caminho já sabido ou habitualmente trilhado
2. hábito de fazer alguma coisa sempre da mesma maneira
3. prática constante
4. aversão às inovações
Atender um grupo de crianças exige competências
profissionais que se traduzem, maioritariamente, por
prestar atenção ao seu bem-estar emocional e físico e
dar resposta às suas solicitações (explícitas ou
implícitas).
Na educação de infância foi-se
convencionando que as rotinas são, como
os capítulos de um livro, a descrição diária
dos grupos que se constrói com recurso a
conteúdos e ações de carácter pedagógico,
didático ou metodológico.
Em situações muito habituais, recorrentes e
temporizadas, as crianças sabem o nome
de cada fase, sabem o que virá depois,
sabem qual é o procedimento para realizar
determinadas atividades. Dessa forma vão
compreendendo e agindo sobre a sua vida
escolar e desenvolvendo competências
sobre o que, ao mesmo tempo,
experimentam. Assim, compreendem que o
que há para fazer, e de que forma resulta,
se torna a base do seu modelo de
aprendizagem.
A “Rotina” é um procedimento repetitivo
que consiste numa prática constante, um
hábito de fazer alguma coisa sempre da
mesma maneira, à mesma hora. “Rotinas”
refere-se à existência de mais do que uma
rotina.
Na educação de infância, o tempo diário
ajusta-se e adequa-se a um tempo global
que tem ritmos próprios e cuja organização
deve, também, ser planeada e organizada
em unidades.
O tempo pedagógico tem uma distribuição
flexível, embora corresponda a momentos
que se repetem com uma certa
periodicidade. A sucessão de cada dia, as
manhãs e as tardes, têm um ritmo,
existindo, deste modo, rotinas
intencionalmente planeadas. De uma forma
geral, é conhecida pelas crianças, que
sabem o que podem fazer nos vários
momentos e prever a sua sucessão, tendo a
liberdade de propor modificações que
podem alterar o quotidiano habitual.
Esta organização permite que as crianças
se apropriem de referências temporais
seguras e contínuas que servem como
fundamento para a compreensão do seu
tempo e da sua circunstância.
Dizem as Orientações Curriculares Para a
Educação Pré-Escolar (Silva,
I. L. et al, 2016) que o
planeamento desta
organização temporal deve
permitir oportunidades de
aprendizagem diversificadas
e que deve “prever e
organizar um tempo
simultaneamente estruturado e flexível, em
que os diferentes momentos tenham sentido
para as crianças e que tenha em conta que
precisam de tempo para fazerem
experiências e explorarem, para brincarem,
para experimentarem novas ideias,
modificarem as suas realizações e para as
aperfeiçoarem.” (p.27)
Os profissionais de educação de infância
possuem conceções pedagogicamente
estruturadas sobre as rotinas, e é, através
da diversidade dessas conceções, que
constroem a sua própria identidade
profissional (que poderá - ou não - ser)
congruente com o seu próprio agir.
Contudo, a experiência profissional poderá,
eventualmente, comprometer esse “agir”,
uma vez que, ao tomarem como garantido
o que já fazem há tanto tempo, não se
apercebem de algumas falhas que, para
quem integra o contexto de novo ou o
observa de uma posição exterior, podem
constituir dificuldades para o seu trabalho.
Também uma perceção muito localizada,
que advém do “habitus”, e da alguma
incapacidade de refletir em conjunto e de
analisar as dinâmicas e educativas numa
perspetiva macro, dificulta a integração de
novas formas de fazer e pensar e/ou a
adequação de outras às necessidades
efetivas dos grupos e das crianças.
É, por isso, fundamental, que os
profissionais, as famílias, as comunidades e
toda a estrutura escolar saibam construir,
cooperativa e colaborativamente, os
“inputs” macro, as dimensões sociais e
educativas que definem “o que a escola
deve fazer”.
Cuidar e educar
Na educação de infância, cuidar e educar
estão intimamente relacionados. Atender
um grupo de crianças exige competências
profissionais que se traduzem,
maioritariamente, por prestar atenção ao
seu bem-estar emocional e físico e dar
resposta às suas solicitações (explícitas ou
implícitas).
A “integração curricular” é também uma
realidade diária que permite abordar
diversas áreas temáticas de uma forma
mais rica, competente e eficaz, sem que
Há rotinas “mais importantes” na educação
de infância?
Henrique Santos Educador de Infância, Miguel Meira e Cruz Especialista Europeu em Medicina do Sono, Helga Leite Especialista em Odontopediatria e Magda
Roma Nutricionista
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A intencionalidade que caracteriza a intervenção
profissional do docente, exige-lhe, então, que reflita
sobre as conceções e valores subjacentes às finalidades
da sua prática.
haja lugar a uma separação ou a uma
divisão de conteúdos.
A intencionalidade que caracteriza a
intervenção profissional do docente, exige-
lhe, então, que reflita sobre as conceções e
valores subjacentes às finalidades da sua
prática: papel profissional, imagem de
criança, o que valoriza no que as crianças
sabem e fazem e no modo como
aprendem.
Esta intencionalidade permite-lhe atribuir
sentido à sua ação, ter um propósito, saber
o porquê do que faz e o que pretende
alcançar. No fundo, permite-lhes saber o
que é a “verdade” educativa, num
determinado contexto e circunstância
social, cultural ou mesmo económico.
Mas é inegável que há verdades que num
determinado momento passam a ser
questionáveis e que há rotinas e práticas
que enfrentam, ocasionalmente, "tempos
escuros".
Seja por "modas" ou por vicissitudes várias
que advêm de "hábitos de sempre", é um
facto que há uma desvalorização do
conhecimento empírico, rigoroso e da
investigação em favor de observações
pontuais que, na maior parte das vezes,"
dão jeito".
De uma forma geral os profissionais
tendem a valorizar um conjunto de critérios
de desenvolvimento curricular que são
impostos por paradigmas de educação que
circulam à volta (e fora) da escola. Nesses
paradigmas, vão-se esquecendo as lógicas
de desenvolvimento humano (e sobretudo o
infantil) e as necessidades óbvias das
crianças, mormente as
que dizem respeito às
suas necessidades mais
básicas.
Por tal, torna-se
fundamental que, de
forma constante e
recorrente, os profissionais se interroguem
sobre como são incluídos na rotina diária
momentos que facilitem (e reforcem) as
transições horizontais (de casa para o
jardim de infância, do tempo letivo para o
tempo não letivo) ou as transições verticais
(do jardim de infância para a escola
básica, da “escola” para a vida…).
Porque o contacto diário e as rotinas são
momentos importantes para estabelecer
uma relação com a criança,
independentemente da sua faixa etária, a
componente pedagógica e de cuidados, no
trabalho com crianças de zero a seis anos,
deve organizar-se tendo em atenção o
respeito pela natureza humana, ou seja,
respeitando as necessidades de cada
criança e sendo construtivo a todos os
níveis de desenvolvimento: cognitivo, físico,
emocional, cultural e social.
Que (outras) rotinas?
Há um conjunto de atividades, dinâmicas e
ações que, apesar de partirem do efetivo
levantamento de necessidades das
crianças, tendem a não “entrar” nas salas
de educação de infância. De uma forma
geral, a justificação para a sua não
integração deve-se a fatores “legais”
(inexistência de legislação específica,
legislação contrária ou desadequada, etc.)
ou, mais comummente, a “questões
logísticas” (espaços desadequados,
recursos insuficientes, etc.). Todas estas são
razões válidas para a sua não introdução
como “rotina” no planeamento educativo.
Mas, com a evolução social, com as
mudanças a montante da escola, com os
novos recursos e instrumentos à sua
disposição e até, em alguns casos, à
reformulação de legislação específica, não
fará sentido refletir sobre a integração de
atividades e ações bem mais necessárias e
adequadas às idades das crianças?
Não fará sentido promover uma reflexão
sobre outros “conteúdos” para os quais a
instituição escolar pode, de facto, promover
melhor (e mais eficaz) aprendizagem?
Apresentam-se, de seguida, alguns
considerandos técnicos e científicos, de
algumas rotinas que poderiam/deveriam,
ser tidas em conta e que visam, sobretudo,
deixar aos profissionais
o debate sobre as
escolhas que
fazemos e que
podem ser feitas.
Sem “receitas”.
O sono
O sono, ao qual
consagramos, em
saúde, cerca de um
terço da nossa
existência, não se limita a ausência do
estado de ânimo que caracteriza a vigília.
O sono é, pois, um processo
neurofisiológico e comportamental
complexo, que serve para reorganizar todas
as nossas funções e garantir, entre outros
aspetos, a recuperação física e estabilidade
psíquica-emocional e, em última instância,
a sobrevivência. Nos mecanismos do sono
estão envolvidos, a renovação celular, a
produção de hormonas e anticorpos, a
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Num elevado número de crianças esta privação motiva a
ocorrência de sestas tardias, ou no trajeto até casa, com
interferência no sono noturno e alterações de comportamento
que se repercutem sobre o bem-estar da criança e da família.
síntese de proteínas e, ativação de vias
essenciais ao controlo hormonal e
cardiovascular. Nas crianças o sono é
ainda determinante para o crescimento e
desenvolvimento.
Apesar do inequívoco valor que o sono
assume no equilíbrio humano, existe uma
tendência para, cada vez mais, se
condicionar o tempo que lhe é
dedicado em prol do
rendimento e da
atividade laboral ou
social, quer no
adulto quer em
idade pediátrica.
Esta
inevitabilidade,
com repercussões
diretas e relevantes
no domínio da saúde
individual e da saúde
pública, evidencia-se, nas
crianças, numa privação de sono mantida
com consequente compromisso das funções
que dele dependem.
O ciclo vigília-sono é efetivamente um
ritmo biológico que tem um período
rondando as 24h e por este motivo se
designa, como todos os outros ritmos desta
natureza, de ritmo circadiano (cerca de um
dia, mas não exatamente as 24h do dia
social). Regulado por uma componente que
visa um equilíbrio dinâmico a cada
momento, o sono é também regulado por
uma componente circadiana. É assim que o
nosso sono ideal, na maioria das vezes, se
estrutura à noite e quando estamos
cansados. Porém, fruto da ritmicidade
impelida por um relógio sem ponteiros mas
muito assertivo que existe no cérebro, mais
propriamente no hipotálamo, e que
corresponde a um conjunto de neurónios
que medem e ditam o tempo que passa
dentro de nós, o sono é controlado por
inúmeras vias com características temporais
variáveis e que oscilam aquém e além das
24h do dia solar. Compreende-se desta
forma que, de acordo com a variação
natural que inclui o desenvolvimento
normal das crianças, a sua atividade
funcional orgânica e a variação sazonal e
as diferenças entre géneros, o sono
e a necessidade individual de o
cumprir, assim como o melhor
momento para o fazer,
também varie. Apesar de
assertivo, é inevitável que, na
ausência de pistas temporais
externas, o relógio se desvie
do ciclo que mantém as 24h
do dia social. Isto sucede
porque o nosso relógio interno
tem um período ligeiramente
superior a 24h. Se não o acertarmos
todos os dias, e se o deixarmos correr em
ritmo livre, como designamos quando
permitimos o seu curso desprovido de
interferências externas, observamos que,
por exemplo no que respeita ao sono, a
cada dia ele chegue um pouco mais tarde,
assim como
termine um pouco
mais tarde, pela
manhã. Por outro
lado, a oscilação
deste relógio
determina também
a existência de um outro período de
vulnerabilidade para o sono que não
apenas o do fim do dia. Na idade adulta,
este período pós prandial caracteriza-se por
uma sonolência entendida como fisiológica
e, por regra, aceitável dentro de certas
medidas. Na idade correspondente ao
período pré-escolar, a vulnerabilidade pós
prandial traduz-se frequentemente numa
sesta que complementa o sono noturno, em
horário e em função.
A sesta na criança em idade pré-escolar
não está contudo garantida para a maioria
das crianças. É aliás frequente que por
motivos distintos, culturais, sociais,
financeiros e até religiosos, este seja um
comportamento desencorajado por muitos
pais e educadores.
Os resultados de vários estudos e
consensos defendem que crianças em
idade pré- escolar (3 a 5/6 anos de idade)
beneficiam de 10 a 13 horas de sono/dia,
com 10 a 11 horas de sono cumpridas no
período noturno e 1 a 3 horas de sesta, a
seguir ao almoço.
Se nos isentarmos de outros motivos que
concorrem para um sono inadequado, em
tempo e em qualidade, não existem
dúvidas que o horário de início de
atividades é um dos fatores
preponderantes. É fácil compreender que,
para uma criança iniciar a escola entre as
8 e as 9h, no pressuposto de que cumpre o
percurso normal de higiene e nutrição,
necessite de cerca de 1h30 até entrar na
sala de aula.
Assim, terá que ser acordada entre as 07h
e as 07h30. Por imperativos vários, que
incluem certamente hábitos inadequados, é
pouco comum que o sono tenha inicio
antes das 21:30 ou 22h. O tempo médio
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REPERCUSSÕES DA PRIVAÇÃO DO SONO NA CRIANÇA
CONSEQUÊNCIAS A CURTO PRAZO
Distúrbios na modulação do
humor e dos afetos
Irritabilidade/birras
Maior reatividade emocional
Humor variável
Perda do controle emocional
Perturbação da função
neuro/cognitiva
Falta de atenção/distração
Incapacidade de concluir tarefas
Diminuição da flexibilidade do
pensamento
Diminuição do raciocínio abstrato
Perturbação da memória
Alteração do comportamento Sonolência diurna
Agressividade
Impulsividade/hiperatividade
Alteração motora Diminuição da destreza motora
Aumento de lesões acidentais e
quedas frequentes
CONSEQUÊNCIAS A LONGO PRAZO
Aprendizagem Mau rendimento escolar
Comportamento Hiperatividade e défice de atenção
Psicológicas Ansiedade
Depressão
Alterações orgânicas Alteração da função endócrina
Alteração da função imunológica
Alteração do metabolismo do açúcar
(glicose)
Obesidade/excesso ponderal
Hipertensão arterial
Perturbação da vida familiar Aumento do risco de depressão
materna
Aumento do risco de disfunção
familiar
Fonte: SPP - RECOMENDAÇÕES SPS-SPP: PRÁTICA DA SESTA DA CRIANÇA
de sono soma, nestas condições, 9 a 10
horas.
Mantendo de fora a reflexão sobre
constrangimentos na qualidade do sono e
atendendo ao anteriormente exposto,
aceitando que a norma consensual para
este grupo etário sobre a duração do sono
nas 24 horas é de 10 a 13 horas, fica a
noção clara de um diferencial de 2 a 4
horas de sono a desfavor da saúde.
Num elevado
número de crianças
esta privação
motiva a ocorrência
de sestas tardias, ou
no trajeto até casa,
com interferência no
sono noturno e
alterações de
comportamento que
se repercutem sobre
o bem-estar da
criança e da
família. Em muitos
casos, a ausência
da sesta constitui
por si só o motivo
da privação de
sono.
Existe alguma
evidência no sentido
de atribuir à sesta,
independentemente
do sono noturno,
um papel relevante
na consolidação de
memória e no desenvolvimento de redes
neuronais compatíveis com o sucesso da
aprendizagem. A abstração,
particularmente importante para os
lactentes em desenvolvimento, é essencial
no desenvolvimento cognitivo e da
linguagem, permitindo grande
plasticidade na aprendizagem.
Estudos efetuados em vários
grupos etários indicam que à
medida que crescem e têm uma
maior maturação neurológica, as
crianças suportam períodos de vigília cada
vez mais longos entre um período de
aprendizagem inicial e a consolidação da
memória dependente do sono.
Embora não
seja universal,
o benefício da
sesta é maior
nas crianças
que fazem a
sesta de uma
forma habitual
e é
independente
da idade. É
também
importante
salientar que,
de acordo
com os
mesmos
estudos, a
diminuição do
desempenho
quando
privadas da
sesta não é
recuperada
durante a
noite de sono
subsequente.
As manifestações da privação de sono
infantil são variadas, desde os vulgares
sinais de sonolência, como esfregar os
olhos ou deitar a cabeça sobre a mesa de
trabalho, a comportamentos
externalizantes, como
aumento da
impulsividade,
agitação motora e
agressividade, bem como
distração e incapacidade
para concluir tarefas.
Nas crianças, a privação de sono está, ao
contrário dos adultos, mais frequentemente
relacionada com sintomas de impulsividade
e pouca atenção que são frequentemente
confundidos com a perturbação de défice
de atenção e hiperatividade. Este aspeto é
particularmente relevante, não só pela
estigmatização, ainda para mais associada
a um erro diagnóstico, mas também pelo
tratamento inadequado, com recurso a
estratégias terapêuticas farmacológicas que
têm riscos e efeitos acessórios no próprio
rendimento físico e intelectual.
Além daquelas que são normalmente
referidas, a privação de sono afeta também
muitas outras funções neuro-cognitivas e
tem ainda uma relação clara estabelecida
com o aumento de lesões acidentais e
quedas frequentes, tendencialmente ao fim
da tarde. É também fundamental ter em
conta que o défice de sono durante os
primeiros anos de vida tem consequências
deletérias a médio e longo prazo na saúde
e bem-estar na adolescência e na idade
adulta.
A escovagem dos dentes
A cárie dentária representa a doença
crónica mais prevalente na infância,
atingindo bebés e crianças em idade pré-
escolar em todo o mundo. Estudos
demonstram a presença de lesões de cárie
mesmo antes da criança completar um ano
de idade. Um estudo de 2017, onde
participaram 3710 crianças de Portugal
9. Refletir EdInf, nº 02, março /abril/maio 2018
9A cárie dentária na infância pode determinar dor, perda
de sono e alterações anatómicas que prejudicam a
mastigação, a fala e a respiração.
Continental e regiões autónomas, indica
que 45% das crianças com seis anos
apresentavam lesões de cárie, percentagem
que subia para 47% nas crianças com 12
anos e afetando 67,6% dos jovens com 18
anos. Este resultado é reforçado por
estudos longitudinais que demonstram que
crianças que apresentam cárie na dentição
de leite tendem a desenvolver novas lesões
em superfícies não atingidas da dentição
de leite e apresentam risco de cárie mais
alto na dentição definitiva.
A incidência de cárie na idade pré-escolar
aproxima-se de 50% em vários países,
valor bem distante da meta estabelecida
pela Organização Mundial de Saúde para
o ano de 2010: 90% das crianças livres de
cárie nesta faixa etária.
Pertinente será abrir um parêntesis neste
ponto referindo que os dados reais da
maior parte dos estudos de prevalência de
cárie na população de crianças em idade
pré-escolar certamente revelariam
percentagens superiores, uma vez que se
reconhece que a maior parte das
avaliações epidemiológicas ignoram as
lesões iniciais de cárie, que ainda não
mostram qualquer cavitação. Estudos que
relacionam a presença de lesões de cárie
não cavitadas com lesões cavitadas,
demonstram que a diferença é
proporcionalmente maior quanto menor a
idade da criança.
A cárie dentária na infância pode
determinar dor, perda de sono e alterações
anatómicas que prejudicam a mastigação,
a fala e a respiração. A destruição de
superfícies dentárias decorrente de cárie
nas crianças pode diminuir ou inviabilizar o
consumo de alimentos fibrosos e com
consistência mais sólida, comprometendo o
processo de crescimento craniofacial e o
desenvolvimento. Alterações mais severas
interferem na estética, expressão facial,
autoestima e
comportamento da
criança.
A cárie dentária na
infância apresenta
uma dimensão
multifatorial, fato que torna a sua
erradicação um processo mais complexo e
envolvendo não só medidas
governamentais mas estratégias adequadas
para sensibilizar as famílias e as crianças. A
literatura demonstra evidência de que uma
dieta com ênfase no consumo de hidratos
de carbono refinados, é uma variável
fundamental na cárie dentária. A formação
da lesão cariosa é mediada pela presença
de micro-organismos que se podem
acumular na superfície dentária, formando
colónias de bactérias envolvidas numa
matriz extracelular, a que se dá o nome de
placa bacteriana. O livre acúmulo de placa
bacteriana na superfície dos dentes pode
levar à dissolução das estruturas
mineralizadas quando esse acúmulo ocorre
na presença de sacarose. A remoção da
placa bacteriana faz-se através da
escovagem dentária e utilização
do fio dentário.
O Programa Nacional de
Promoção da Saúde Oral
(Despacho nº 153/2005 -
2ª série) apresenta uma
estratégia de intervenção de
promoção da saúde,
prevenção e tratamento das
doenças orais a desenvolver
nos ambientes onde as crianças
e jovens vivem e estudam.
O despacho define que “as doenças orais
constituem, pela sua elevada prevalência,
um dos principais problemas de saúde da
população infantil e juvenil. No entanto, se
adequadamente prevenidas e
precocemente tratadas, a cárie e as
doenças periodontais são de uma elevada
vulnerabilidade, com custos económicos
reduzidos e ganhos em saúde relevantes”.
Como já apresentado, e contextualizando,
o dia-a-dia da realidade pré-escolar
compreende inevitavelmente rotinas que
ajudam a criança a sentir-se segura e
integrada privilegiando as atividades de
carácter flexível, mas também inúmeros
momentos que se relacionam com a saúde
e higiene das crianças.
Ao criar hábitos/bases diárias que
assimiladas desde cedo serão mais
facilmente preservadas durante a vida
consegue-se que a criança tenha
oportunidade de cuidar da sua higiene e
saúde. Torna-se óbvio que um
hábito a criar será o da
preservação de uma boa
higiene oral na medida
em que esta se
apresenta como um
ponto de referência no
combate às doenças
orais que aparecem
como um dos
principais problemas de
saúde, afetando,
sobretudo, as crianças.
10. Refletir EdInf, nº 02, março /abril/maio 2018
10
É hoje consensual que a alimentação é um fator
determinante da saúde, e que excessos, carências e
desequilíbrios influenciam a qualidade e a duração de
vida de indivíduos e populações.
Atendendo a estas
características e para
responder às metas para a
saúde oral apontadas para
2020 pela Organização
Mundial de Saúde, torna-se
importante que se construa,
coletivamente, um reforço das
ações de promoção de saúde e prevenção
das doenças orais e um maior
envolvimento dos profissionais de saúde e
de educação.
No jardim-de-infância, e sabendo nós a
proatividade dos modelos pedagógicos e
dinâmicas de formação pessoal e social no
que respeita a uma abordagem holística da
educação, é fundamental criar lógicas e
rotinas, numa perspetiva de formação ao
longo da vida, que façam prevalecer a
prática continuada de hábitos e costumes
duradouros.
Contextualizando, o dia-a-dia da realidade
na educação de infância compreende
inevitavelmente rotinas que privilegiam as
atividades de carácter essencialmente
“educativo” (entendendo-se “educativo”
numa perspetiva escolar), mas também terá
de compreender momentos que se
relacionam com a saúde e higiene das
crianças.
Ao intervir, de forma consciente e
responsável, consegue-se que a criança
tenha oportunidade de cuidar da sua
higiene e saúde criando hábitos/bases
diárias que assimiladas desde cedo serão
mais facilmente preservadas durante a vida.
No seguimento desta ideia, é óbvio que um
hábito a criar será a preservação de uma
boa higiene oral, na medida em que esta
se apresenta como um ponto de referência
no combate às doenças orais que
aparecem como um dos principais
problemas de saúde,
afetando, em grande
escala, e como
referimos, a faixa infantil,
pelo que a importância
de adquirir hábitos
corretos desde tenra idade,
contribuirão para adoção de
comportamentos adequados, conduzirão a
estilos de vida saudáveis que se refletirão
em qualidade de vida futura.
A nutrição ou o “cuidado” alimentar
A alimentação é um processo de seleção
de alimentos, fruto das preferências, das
disponibilidades e da aprendizagem de
cada indivíduo, processo esse que lhe
permite escolher e distribuir as refeições ao
longo do dia, de acordo com os seus
hábitos e condições pessoais. De facto, o
ato de comer, para além de satisfazer
necessidades biológicas e energéticas
vitais, é também fonte de prazer, de
socialização e de transmissão de cultura.
É hoje consensual que a alimentação é um
fator determinante da
saúde, e que excessos,
carências e desequilíbrios
influenciam a qualidade e
a duração de vida de
indivíduos e populações.
“Somos o que comemos”
ou “Somos em adulto um reflexo do que
fomos fazendo durante o crescimento”
como provérbio antigo traduz bem este
facto. É importante “saber comer”, ou seja,
saber escolher os alimentos de forma
correta e em quantidade adequada às
necessidades diárias, ao longo das
diferentes fases da vida.
Na era da informação há hábitos
alimentares que se creem serem
inadmissíveis, no entanto a informação é
muita mas o tempo para os cuidadores se
debruçarem nela é pouco.
Nas escolas/estabelecimentos educativos, o
lugar (e sobretudo o papel) do nutricionista
ainda não existe, havendo uma dificuldade
ao nível de um programa efetivo de
educação alimentar específica. Esse papel
tem sido ocupado por médicos pediatras,
sempre por intermediação familiar, que,
com informação e tempo limitados no
âmbito da nutrição, muitas vezes não fazem
chegar, aos cuidadores, a informação mais
pertinente e atual.
Também a responsabilidade da educação
alimentar e controlo de refeições servidas
nas escolas é, em última análise, da
responsabilidade dos docentes, que detêm
alguma capacidade de intervenção (mesmo
que não a usem), cujos conhecimentos
nesta área são tanto limitado como,
algumas vezes, errados. Esta mistura de
“razões” dificulta a adequação da
alimentação às reais necessidades
fisiológicas das crianças e leva à
“simplificação” das refeições, com a
utilização de alimentos processados (desde
bebidas a snacks) e refeições principais de
confeção rápida.
É comum encontrarmos, dentro das opções
de lanches das crianças que vêm das suas
casas, alimentos açucarados e de
panificação de baixa qualidade, bebidas
altamente açucaradas, snacks salgados
como batatas fritas e outros do género.
11. Refletir EdInf, nº 02, março /abril/maio 2018
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Na educação de infância, e como temos vindo a sublinhar,
estão reunidas as condições para promover um conjunto de
ações com vista à construção de rotinas que permitam
desenvolver uma atenção especial a uma dieta alimentar
equilibrada
Também é vulgar encontrar produtos
açucarados em máquinas de vending ou
nos bares e refeitórios das escolas (apesar
do esforço legislativo) e, na “oferta global”,
ainda se veem bolos com creme, snacks
salgados, bebidas altamente açucaradas e
outros alimentos processados entre os
“brindes” e ofertas de empresas e parceiros
educativos, na construção de atividades
“da” Escola.
Se observarmos refeições que são servidas
em cantinas escolares, uma boa
percentagem são comidas previamente
processadas em entidades de restauração
coletiva e enviadas para as entidades
escolares para serem aquecidas e servidas.
Nestas, não são colocadas quaisquer
condições mínimas por ficha técnica
apresentada, mas sim impostos valores
mínimos por refeição, o que nos deixa a
pensar se poderá ter qualidade e equilíbrio
nutricional.
Por tudo isto, e porque muitos dos nossos
hábitos alimentares são adquiridos logo
desde os primeiros anos de vida e tendem
a manter-se ao longo da mesma, é
essencial praticar uma alimentação
saudável durante a infância para permitir
um normal desenvolvimento e crescimento
e prevenir uma série de problemas de
saúde ligados à alimentação, como sejam
a anemia, o atraso de crescimento, a
malnutrição ou a obesidade, entre outros.
A alimentação tem consequências diretas
na saúde global do indivíduo e da
população. Estima-se que um excesso de
peso na ordem dos 40% seja suficiente
para duplicar o risco de morte prematura,
quando comparado com um indivíduo com
uma ponderação normal e equilibrada. No
caso do adulto, para um Índice de Massa
Corporal (IMC) superior a 30, estima-se
que haja um aumento de 50 a 100% de
risco de morte precoce. Para o
desenvolvimento de diabetes tipo II, o risco
duplica quando o aumento de peso do
indivíduo é de 24 a 40 quilos.
Consequentemente, o problema da
obesidade infantil
tem vindo,
também, a
apresentar valores
crescentes e
preocupantes em
Portugal. Há
estudos que apontam valores na ordem de
30% de crianças e jovens com excesso de
peso.
Uma alimentação saudável e equilibrada é
um fator determinante para ganhos em
saúde.
A família e a escola são prioridade para
promover hábitos alimentares corretos,
prevenir e controlar as doenças crónicas
em crianças, através de atitudes variadas.
Na educação de infância, e como temos
vindo a sublinhar, estão reunidas as
condições para promover um conjunto de
ações com vista à construção de rotinas
que permitam desenvolver uma atenção
especial a uma dieta alimentar equilibrada.
No início da sua vida como consumidor
alimentar, é preciso que a criança entenda
e aprenda o significado e a importância de
se comer bem (e não muito!), de trocar
maus hábitos por bons hábitos alimentares
(saudáveis e adequados) e de compreender
os efeitos das suas escolhas no seu
desenvolvimento futuro.
Enquanto espaço educativo e promotor de
saúde, a educação de infância pode criar
cenários valorizadores de uma alimentação
saudável, não só através dos conteúdos
curriculares, mas também através da oferta
alimentar em meio escolar, para que as
crianças sejam progressivamente
capacitadas a fazer escolhas saudáveis.
No jardim-de-infância torna-se, então,
imperioso criar atitudes positivas face aos
alimentos e à alimentação; encorajar a
aceitação da necessidade de uma
alimentação saudável e diversificada;
promover a compreensão da relação entre
a alimentação e a saúde e promover o
desenvolvimento de hábitos alimentares
saudáveis.
As recomendações da Organização
Mundial de Saúde visam a ingestão diária
de 3 peças de fruta inteiras por dia,
inclusão de vegetais e legumes no prato
das crianças ocupando 1/3 ou mais do seu
prato principal,
diminuição do
consumo de
produtos
refinados e
açucarados bem
como
processados,
aumento de
ingestão de água,
adequação das
necessidades proteicas ao
organismo da criança e a gestão de peso,
ou seja adequar o peso da criança à altura
da mesma.
A qualidade e a quantidade de géneros
alimentícios, sólidos ou líquidos, ingeridos
em meio escolar têm um impacto enorme
12. Refletir EdInf, nº 02, março /abril/maio 2018
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O sono, a nutrição, a higiene, as práticas físicas, os
espaços e ambientes escolares (especialmente os
exteriores) ou mesmo as dinâmicas formativas são
alguns dos "tabus" reflexivos que impedem de abordar,
de forma dialética e construtiva, melhores práticas e
melhores respostas educativas.
na saúde e bem-estar dos jovens, logo, é
fundamental que não haja discrepâncias
entre o currículo formal e o currículo
oculto, ou seja, é fundamental que haja
coerência entre os princípios de
alimentação racional contemplados no(s)
currículo(s), a oferta alimentar da escola e
o modelo transmitido pelos adultos de
referência (docentes e auxiliares de ação
educativa nas escolas e pais em casa).
As ofertas alimentares devem ser coerentes,
não só com o estipulado nos programas,
mas também com outros documentos de
referência, nomeadamente os defendidos
pelos profissionais de saúde.
Em conclusão
As Orientações Curriculares Para a
Educação Pré-Escolar são bastante
convincentes quando referem que a
construção da autonomia envolve uma
partilha de poder entre o/a educador/a e
as crianças, que têm a possibilidade de
fazer escolhas e tomar decisões, assumindo
progressivamente responsabilidades pela
sua segurança e bem-estar, não só no
jardim-de-infância, mas também em
diversas situações da vida, demonstrando
progressivamente consciência dos perigos
que pode correr e da importância de
hábitos de vida saudável.
A construção dessa autonomia passa pela
organização participada do grupo em que
as regras, o modelo de funcionamento, as
escolhas são elaboradas e
negociadas entre todos, e,
consequentemente, são
compreendidas pelas crianças, e
em que cada uma se compromete a
aceitá-las, autorregulando os
comportamentos e atitudes.
Ao longo de muitos anos, o
desconhecimento da(s) lei(s) e documentos
legais que organiza(m) e orienta(m) a
educação de infância, ou que lhes são
conexos, bem como algumas práticas
pouco refletidas, a sistematização e a
repetição de processos e estratégias e,
sobretudo, a pouca participação dos
profissionais no desenvolvimento social e
cultural das comunidades e das crianças,
através de um diálogo profícuo com
famílias e parceiros, permitiu grandes (e
graves) dificuldades de implementação de
processos e lógicas de efetivo “interesse
superior da criança”.
Esta falha de interação reflexiva promove o
"sempre foi assim" que
tem dificultado o
papel da Escola no
entendimento e na sua
capacidade de se
adequar a novos
desafios sociais e
humanos das
comunidades.
As "rotinas" escolares que os profissionais
escolhem como centrais são, normalmente,
fruto de uma espécie de "achismo" (de
"acho que...") que os impede de abrir
espaço à integração de novas (ou
renovadas) práticas e metodologias que
podem melhorar consideravelmente o
conjunto de fatores que fazem da Escola
uma "boa escola"
O sono, a nutrição, a
higiene, as práticas físicas,
os espaços e ambientes
escolares (especialmente os
exteriores) ou mesmo as
dinâmicas formativas são alguns dos
"tabus" reflexivos que impedem de abordar,
de forma dialética e construtiva, melhores
práticas e melhores respostas educativas.
Porque é essencial ir desconstruindo "ideias
feitas", este texto, construído
colaborativamente com profissionais de
áreas complementares, pretende, de
alguma forma, contribuir para um debate
que tem de ser feito.
Façamo-lo.
Bibliografia
SILVA, I. L. et al (2016). Orientações Curriculares Para a
Educação Pré-Escolar. Editorial do Ministério da Educação,
Lisboa.
BRANCO, H. P. L. [et al.], eds. – “Educação para a Saúde,
Cidadania e Desenvolvimento Sustentado: atas do 3º
Congresso Nacional de Educação para a Saúde e do 1º
Congresso Luso-Brasileiro de Educação para a Saúde, Covilhã
2010” [CD-ROM]. Covilhã: Universidade da Beira Interior,
2010. ISBN 978-989-96996-0-1. p. 1148-1164.
VASCONCELOS, A. et al. (2017) SPS-SPP: Prática da Sesta da
Criança nas creches e Infantários, Públicos e Privados.
documento em linha:
http://www.spp.pt/UserFiles/file/Noticias_2017/VERSAO%20P
ROFISSIONAIS%20DE%20SAUDE_RECOMENDACOES%20SP
S-SPP%20SESTA%20NA%20CRIANCA.pdf
Legislação em vigor
Programa Nacional de Promoção da Saúde Oral: Despacho
Ministerial n.º 153/2005 (2.ª série), de 5 de Janeiro
Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar:
Despacho n.º 9180/2016 - Diário da República n.º
137/2016, Série II de 2016-07-19
Alimentação em Maio Escolar: Decreto-Lei n.º 323-F/2000;
Despacho n.º 8452-A/2015 e Referencial para uma oferta
alimentar saudável
(https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Esaude/educacao_
alimentar_em_meio_escolar.pdf)
13. Refletir EdInf, nº 02, março /abril/maio 2018
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“Não se pode educar ninguém sem se proporcionar cuidados
verdadeiros e proteção durante os preciosos primeiros anos
de infância. Por outro lado, não se pode proporcionar estes
cuidados verdadeiros e proteção durante os primeiros anos
de infância ou durante outros anos quaisquer sem se educar”
(Caldwell, 1995, p.471).
É consensual que as rotinas são essenciais para o
desenvolvimento de qualquer ser humano. No entanto, há que ter
em conta que, nem todas se ajustam às suas reais necessidades.
Com as crianças não é diferente!
A reflexão em torno das rotinas e do seu impacto no bem-estar da
criança, além de pertinente, também é urgente à luz das
alterações verificadas nos diferentes contextos em que a criança se
insere. Perante o desafio colocado pela equipa da revista EdInf, vi
a oportunidade para pensar e escrever sobre um tema que tanto
me fascina e, simultaneamente, inquieta. Nesta aventura,
proponho uma breve abordagem em torno das rotinas,
revestindo-as da relevância merecida.
Importância da rotina no desenvolvimento da criança
A rotina é um aspeto central quando se fala em educação de
infância. Educar uma criança é permitir que explore o mundo,
com valores e limites que lhe permitam integrar experiências de
forma positiva. Para tal, a sequência de acontecimentos diários
que se repetem, ajuda a criança a conhecer o seu mundo,
tornando-o previsível e consequentemente mais seguro. Pelo fato
de saber o que irá acontecer, a criança sente-se tranquila e
confiante, construindo assim alicerces para o desenvolvimento da
autonomia e da independência (Hohmann & Weikart, 2004). Ao
participar nas sequências da rotina diária, a criança associa cada
uma das suas partes e compreende horários, desenvolvendo
mecanismos de autorregulação que lhe permitem diminuir o grau
de dependência do adulto. Segundo alguns autores as rotinas
surgem se forem identificadas pelo prestador de cuidados;
corresponderem ao interesse do prestador de cuidados e da
criança; mantiverem uma sequência; forem repetitivas, flexíveis e
previsíveis; promoverem interações positivas; integrarem objetivos
funcionais e significativos; ocorrerem com frequência e permitirem
a utilização de várias competências (Goldstein 2003, cit. por
Almeida e al, 2011, p.84).
Para melhor compreender a importância das rotinas no equilíbrio
global da criança, será relevante refletir sobre as suas
necessidades nos primeiros anos de vida, pois é um período de
grande dependência do adulto. São inúmeros os autores que
defendem que a autonomia na criança é um processo que se
inicia na infância precoce e que se desenrola ao longo da sua
vida. Nesta perspetiva, faz todo o sentido promovê-la
precocemente. A aquisição da marcha e o domínio da linguagem,
por sua vez, promovem o aparecimento de novas competências,
como o fazer escolhas, tomar decisões, desenvolver hábitos e
evoluir significativamente no processo de socialização (Figueiredo,
2004). Deste modo, as rotinas quando consistentes, impulsionam
o desenvolvimento de competências sociais, ou seja, ensinam
comportamentos positivos, reforçam a autoestima, a
autorregulação e promovem o desenvolvimento físico, cognitivo,
emocional e social da criança (Papalaia et all, 2001). Importa
salientar que as rotinas criam oportunidades de aprendizagem e
são promotoras do desenvolvimento da criança.
Papel da família e da escola na integração das rotinas
Nesta fase de grande permeabilidade para aprender, o papel do
adulto como orientador, modelador e mediador das ações da
criança reveste-se de grande importância. É na família que
surgem as primeiras rotinas, devendo estas ser rítmicas e
consistentes. Segundo Marques (2001, p.12), "(...) os pais são os
primeiros educadores da criança e ao longo da sua escolaridade
continuam a ser os principais responsáveis pela sua educação e
bem-estar”. Como mãe tenho especial interesse nas temáticas que
envolvem a educação parental. Desde o nascimento do primeiro
filho que tive que ajustar rotinas em casa, tendo presente a
importância desta opção. É perfeitamente normal existir alguma
dificuldade inicial, porque os pais também precisam de se adaptar
à chegada do novo membro da família e conhecer as suas
necessidades. Recordo-me que a minha maior dificuldade foi
estabelecer hábitos na rotina da alimentação, pelas características
da amamentação e por nem sempre conseguir identificar o
momento para fazê-lo. Este é, sem dúvida, um grande desafio
pessoal, associado à grande responsabilidade de ter um ser que
depende exclusivamente de nós. Ao nível das demais rotinas
principais, sono e higiene, é igualmente fundamental definir
horários e pô-los em prática. No meu caso, integrei o banho ao
O papel das rotinas na educação: Articulação teoria-
prática numa perspetiva de mãe e educadora de infância
Conceição Pereira, educadora de infância (amordeducacao@gmail.com)
Autora do blogue Amor d´3ducação (https://proeducarblog.wordpress.com/)
14. Refletir EdInf, nº 02, março /abril/maio 2018
14
fim do dia, antes da refeição, que mais tarde viria a coincidir com
a hora de jantar. De seguida e após momento de higiene da
fralda, seguia-se o momento de acalmia (música, história, luzes
de intensidade baixa, ausência de estímulos visuais excessivos)
como preparação para o sono noturno. Ainda em relação à rotina
do sono, desde o primeiro mês, que durante o dia, punha o meu
filho na alcofa dentro do berço, para se adaptar ao seu espaço
(objetos, cores e cheiros) e aos poucos apropriar-se deste mesmo
espaço. Esta prática veio a consolidar a rotina e favorecer o
processo de independência e segurança no momento de dormir.
Quando estava acordado punha-o na sala ou na cozinha ao pé
de mim. Estes pequenos hábitos revelam-se importantes à medida
que a criança cresce, fomentando a organização interna e a sua
autorregulação.
No contexto familiar é fundamental a adoção de estratégias que
favoreçam a estruturação e a integração de rotinas. Para tal, os
pais devem respeitar com algum rigor os horário referentes à
alimentação, higiene e sono, para que a criança consiga criar um
padrão equilibrado que a faça sentir conforto e segurança. Esta
não é tarefa fácil nos dias de hoje, pois se, por um lado, os pais
vivem assoberbados de compromissos e solicitações, por outro, as
crianças tendem a desvalorizar e questionar muitas das
orientações parentais. Nesta área é necessária determinação,
persistência e firmeza. Pensando um pouco sobre a forma como
me posiciono, enquanto mãe, faz-me todo o sentido partilhar um
pouco mais da minha experiência. Além de devermos zelar por
sermos bons modelos, porque a criança aprende essencialmente
por imitação, é imprescindível utilizarmos estratégia eficazes e que
respondam à necessidade dos filhos. Além de seguir uma
educação baseada essencialmente no afeto e na confiança, utilizo
uma regra chamada DCC” (Disciplina, Coerência e Consistência).
Não tenho qualquer dificuldade em aconselhar a sua
implementação pois já testei inúmeras vezes e funciona com várias
idades. Com os filhos temos que ser sinceros e explicar-lhes bem o
que esperamos deles e quais são as suas responsabilidades como
filhos. Só assim podemos ajustar as nossas expectativas às suas
reais necessidades. Existem vários momentos de um dia, em que
somos desafiados e muitas vezes deixamo-nos vencer pela
persistência da criança. Por exemplo, a regra DCC resulta muito
bem quando um filho se lembra de fazer uma birra porque quer
um chocolate no supermercado. Sabem o que faço? Se,
efetivamente não pretendo comprar nada para a minha filha de
seis anos, naquela ida ao supermercado, dou-lhe essa instrução
no caminho, explicando o motivo da minha decisão. É importante
que a criança saiba o que pode e o que não pode fazer
antecipadamente. No local, sabendo de antemão que o marketing
não facilita, pondo os produtos próximo da caixa e ao nível da
criança, antecipo o meu comportamento, caso me faça algum
pedido. E não é que pede mesmo… que coragem! As crianças
são mesmo assim e nos temos que estar sempre à frente nesta
corrida de testar limites e poderes parentais. Então, com uma voz
calma e firme respondo: filha, a mãe não te vai comprar nada, já
te tinha dito, lembras-te? E ai começa a corrida da persistência. É
neste momento que entra a regra que partilhei anteriormente. Se
decidi não comprar doces, não devo retroceder, por muito que me
custe enfrentar o olhar dos expectadores, tenho que disciplinar
com sabedoria, demonstrar coerência entre o que disse e o que
faço e consistência na atitude, mesmo que ela chore, grite,
esperneei e diga que não gosta de mim, o que normalmente
acontece.
Este é o ponto central da educação, se temos bem definidos os
nossos objetivos, nunca os devemos abandonar, nem trocar por
algo que não nos levará ao destino pretendido. Encaro a
parentalidade como um projeto de vida e portanto não posso
abrir mão de valores e princípios que estão na base da educação
dos meus filhos. Qualquer criança precisa conhecer bem os
limites que a vida lhe impõe, para aprender a viver e ser um
indivíduo completo e feliz.
Não existem dúvidas que as rotinas familiares são exigentes. Para
pais, a quem é atribuída uma missão “quase impossível” de levar
a bom porto o seu barco, são sinónimo de stress e cansaço. Em
alguns casos, revestem-se de algum tipo de culpabilidade que
gera um efeito enfraquecedor nas práticas parentais. Estas por sua
vez, passam a centrar-se num modelo permissivo que decerto
dificultará a gestão das rotinas. Nesta perspetiva definir, desde
cedo, horários adequados de alimentação, higiene e sono,
ensinam a criança a respeitar os seus ritmos biológicos e
permitem maior adaptação às atividades diárias, sendo
igualmente fortalecedoras das funções parentais. Acresce ainda a
importância de incluir a criança na rotina e em tarefas de acordo
com a sua idade.
15. Refletir EdInf, nº 02, março /abril/maio 2018
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Para enriquecer esta reflexão, afigura-se pertinente aprofundar um
pouco mais o tema. As práticas desenvolvidas no contexto
educativo desempenham um papel essencial na forma com as
crianças irão percecionar e integrar as rotinas.
Na escola, ”a sucessão de cada dia, as manhãs e as tardes têm
um determinado ritmo, existindo, deste modo, uma rotina que é
pedagógica, porque é intencionalmente planeada pelo/a
educador/a e porque é conhecida pelas crianças” (OCEPE,
2016,p.27). O modelo High/Scope, que está na base da minha
prática educativa, situa-se no quadro de uma perspetiva
desenvolvimentista para a educação de infância. Defendendo que
é através da ação e da interação com pessoas, materiais e ideias,
que as crianças constroem o seu conhecimento acerca do mundo
que as rodeia, constitui-se uma excelente opção para quem
valoriza interações positivas e impulsionadoras de aprendizagem
ativa.
Na minha sala, as crianças são agentes ativos, pois constroem o
seu próprio conhecimento acerca do mundo, à medida que
transformam as suas ideias e interações em sequências lógicas de
pensamento e ação, utilizando objetos e materiais diversificados.
Estas experiências sociais ocorrem no contexto de experiências da
vida real que as crianças planearam e iniciaram, ou com
experiências iniciadas pelo adulto, nas quais são proporcionadas
às crianças oportunidades de escolher, liderar e expressar-se
individualmente (Hohmann & Weikart, 1995). Ao longo de mais
de quinze anos de prática pedagógica, tenho defendido a
importância das rotinas, sendo estas conhecidas por pais e
crianças. Partilho da opinião que, aos pais, devemos transmitir
com segurança, as nossas opções pedagógicas, enquadrá-las e
fundamentá-las.
“A comunicação das intenções do/a educador/a e do seu
projeto curricular de grupo aos pais / famílias e uma ocasião
para os envolver no processo de planeamento e para
recolher as suas sugestões. A partilha desse plano permite,
ainda, encontrar um conjunto de possibilidades de os pais /
famílias e outros elementos da comunidade participarem no
processo educativo do jardim de infância.” (OCEPE, 2016,
p.19)
Por sua vez, as crianças devem ser intervenientes ativos e
participantes nas rotinas adotadas, devendo estas estar ajustadas
às suas reais necessidades, em termos individuais e de grupo. O
exemplo desta adequação poderá ser o flexibilizar o período de
repouso.
“A rotina High/Scope é uma sequência regular de
acontecimentos que define, de forma flexível, o uso do
espaço e a forma como os adultos e crianças interagem
durante o tempo em que estão juntos” (Hohmann & Weikart,
1995, p.226).
A implementação de uma rotina diária coerente torna-se
indispensável, na medida em que proporciona à criança uma
orientação e estruturação no tempo e no espaço. Esta rotina
diária inclui um fluir consistente de tempos que passam pelo ciclo
planear-fazer-rever que permite à criança comunicar as suas
intenções, realizá-las e refletir sobre a realização e a intenção-
realização. Este ciclo é tendencialmente iniciado pelo adulto com
cada criança, com uma pergunta como: “O que queres fazer
hoje?”. No tempo de planeamento, reunimo-nos para conversar
sobre o que cada criança quer fazer, onde e como. Durante o
tempo de trabalho as crianças colocam em prática os planos e
ações que expuseram durante o planeamento, o que permite que
a criança organize e atue sobre o que a rodeia e promove a
consciência de algumas limitações, gestão da frustração e tomada
de decisões. Durante o tempo de trabalho as crianças colocam
em prática os planos e ações que apresentaram durante o
planeamento, o que permite que a criança organize e atue sobre
o que a rodeia e promove a consciência de algumas limitações,
gestão da frustração e tomada de decisões. O tempo de rever é a
oportunidade para a criança recordar e/ou representar o que fez.
Importa acrescentar que dentro da rotina são promovidos
momentos de pequeno e de grande grupo, de acordo com as
atividades e objetivos. Os tempos de pequeno grupo encorajam a
criança a explorar e a experimentar novos materiais, selecionados
pelo adulto, e o tempo de grande grupo é determinado pela
iniciativa conjunta das crianças e dos adultos, em torno da
história, da dramatização, da música, do movimento ou de
projetos. Na rotina da minha sala, existem momentos chave,
como a canção do bom dia, o registo de presenças, o
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16
preenchimento do calendário e do mapa do tempo. Estes
materiais de apoio fazem parte integrante da organização
temporal da sala e são introdutórios à atividades seguintes. Além
desta sequência de acontecimentos diários em sala, existem
momentos de rotina destinados às refeições (almoço e lanche), à
higiene e ao momento de repouso (sesta), igualmente importantes
no processo de desenvolvimento da criança. Ainda em relação à
rotina da alimentação as crianças sabem que antes e depois das
refeições, vão lavar as mãos. Este é também um momento
privilegiado para estabelecer a ponte entre conteúdos e
experiências desenvolvidas em sala. Deste modo, compreende-se
facilmente que a rotina anterior acaba por estruturar e
fundamentar a seguinte. É indubitável, que as rotinas permitem às
crianças o controlo da sua vida escolar, melhorando a sua
performance na realização de tarefas. E desta forma, vão
constatando vivencialmente que sabem o que há para fazer e
como são divertidas essas tarefas (Zabalza,1992).
Até aqui, compreendemos a importância dos pais (no contexto
familiar) e dos educadores (no contexto educativo) na estruturação
das rotinas diárias da criança. Por sua vez, os educadores têm um
contacto privilegiado com a família, sendo esta uma excelente
oportunidade para conhecer e compreender os contextos
familiares das crianças e para melhor intervenção educativa.
Assim sendo, constituem-se agentes de mudanças e de melhoria
do ambiente familiar. Uma boa parceria com os pais e uma
comunicação autêntica, permitirá o estabelecimento de relações
de confiança, partilha de expectativas e de dúvidas e serem
esclarecidos sobre as opções tomadas pelo/a educador/a. Nesta
área também tenho tido boas experiências. Trabalho com a
consciência de que tenho um papel importante e demonstro
disponibilidade para que os pais possam colocar questões,
partilhar preocupações ou simplesmente pedir uma opinião.
Alguns demonstram que confiam em mim e confidenciam-me: “
Sabe é que a Conceição passa mais tempo com o ele…”. Para os
pais, assumir esta realidade não é tarefa fácil, mas se assim é…
só tenho que estar à altura, para que cada criança seja a melhor
versão de si própria. Os pais precisam acreditar que a escola dará
continuidade ao processo educativo iniciado na família.
Muito tenho aprendido ao longo destes anos e, como mãe e
educadora, acredito plenamente que as rotinas são vitais para a
criança e promotoras do seu bem-estar, devendo ser estruturadas
e flexibilizadas tendo em conta as necessidades da criança,
hábitos, crenças e valores familiares. Assim, é consensual que as
rotinas são um recurso essencial na dinâmica familiar e no
contexto escolar.
Através desta viagem entre a teoria e experiência, espero ter
gerado alguma reflexão sobre um tema que considero muito atual
e pertinente. Como referiu Freire (1996:39, cit in Kramer et al,
1999,p. 71), (…) “o importante e que a reflexão seja um
instrumento dinamizador entre prática e teoria. Porém não basta
pensar, refletir, o crucial e fazer com que a reflexão nos conduza a
ação transformadora, que nos comprometamos com nossos
desejos, nossa história.”
Referências bibliográficas:
ALMEIDA, I. C., CARVALHO, L., FERREIRA, V. et al. (2011). Práticas de intervenção
precoce baseadas nas rotinas: Um projeto de formação e investigação.
Análise Psicológica, XXIX (1), pp. 83-98.
BONDIOLI, A. (org.) (2004). O tempo no cotidiano infantil: perspetivas de
pesquisa e estudo de casos. São Paulo: Cortez.
CALDWELL, E. (1995) Creche – bebe, família e educação. In J. Gomes-Pedro
(coord), Bebe XXI, Criança e família na viragem do século. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian.
FIGUEIREDO, M. (2004). Um novo olhar sobre as rotinas. Lisboa: Bola de Neve.
HOHMANN, M. WEIKART, David P. (1995). A Criança em acção. Lisboa:
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MARQUES, R. (2001). Educar com os Pais. Lisboa: Editorial Presença.
SILVA, I. L. (Coord.) (2016). Orientações Curriculares para a Educação Pré-escolar.
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PAPALIA, D. E. & OLDS, S. W. (2001). O Mundo da Criança, da Infância à
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ZABALZA, M. (1992). Didática da Educação Infantil. Porto: Edições Asa.
17. Refletir EdInf, nº 02, março /abril/maio 2018
17
T
endo como fio condutor deste
número a importância das rotinas
na educação de infância, parece-
me importante refletir sobre um conceito
psicanalítico que, como forma de
estabelecer alguns fundamentos das
práticas pedagógicas, tem vindo a ser cada
vez mais utilizado na pedagogia.
Enquanto momentos privilegiados de
interação e de relação pedagógica com a
criança, as rotinas que vão
progressivamente sendo instauradas e
modificadas de acordo com as
necessidades das crianças e do grupo,
apresentam-se como base para a
realização de dinâmicas transferenciais
que passam muito mais pelo que somos e
pela forma como interagimos com os
outros, do que pelo que expressamos.
Sendo a criança o elemento principal de
toda a prática pedagógica desenvolvida, é
na relação que estabelecemos com cada
uma que assenta a importância destas
dinâmicas, as quais serão tanto mais ricas
(e enriquecedoras) quanto mais autênticas
forem as relações estabelecidas, levando a
um maior envolvimento e investimento por
parte da criança.
Mas como é que estes momentos
contribuem para o desenvolvimento e
aprendizagem das crianças?
O acolhimento, a higiene, as refeições e o
sono, fazem parte da uma rotina diária
organizada que deve valorizar o “ser”
acima do “ter” e do “fazer”, respeitando os
diferentes ritmos, hábitos e preferências de
cada criança. Não obstante, todos os
processos de formação, de aprendizagem
e de mudança, comportam sentimentos de
satisfação e de insatisfação, dando origem
a tensões ao nível da própria
aprendizagem.
O bebé passa de um estado de
dependência absoluta a uma
independência relativa (ao se aperceber
que a mãe, a família, não poderão estar
presentes em todas as situações e não
poderão responder aos seus desejos e
necessidades como desejaria) e procura
afetos noutros contextos. Este processo
“obriga-o” a ultrapassar o choque da
separação, a crescer com a separação e a
frustração.
Durante este período de aprendizagem
social e crescimento, a criança vai
experimentando um espaço de
“distanciamento” crescente, mas que é
sempre mediado por um adulto cuidador,
na maior parte das vezes, a mãe.
Logo após este primeiro processo de
desvinculação, surge, como resposta a
estes anseios, a “escola” (como espaço
formal de atendimento, diferente da
família).
A transferência desta necessidade de afeto
para outro adulto cuidador é própria e
natural do movimento infantil. Ao procurar
conquistá-lo enquanto figura de autoridade
mais próxima, o bebé inicia um processo
de sedução e tenta reparar o seu processo
narcísico.
Torna-se imprescindível para qualquer
cuidador adulto, sobretudo para os
profissionais de educação de infância, ter
consciência desta dimensão do processo
de autonomia da criança. Fundamental
para o desenvolvimento de estratégias e
dinâmicas apropriadas e de qualidade é,
também, ter presente a necessidade que a
criança tem de reconhecimento pelo outro
(correspondendo este “outro” à imagem
que construímos a partir da perceção que
temos e da leitura que fizemos dele)
enquanto fator de crescimento, como
refere Winnicott relativamente aos
primeiros anos de vida do bebé.
Enquanto transmissores de cultura, é em
nós, educadores, que as crianças
depositam as suas expetativas e
sentimentos, independentemente de existir,
sobre essa transferência, uma consciência
clara. Simbolicamente, cada um de nós,
educadores, ocupa, de alguma forma, um
“lugar de parentalidade”, um lugar de
transmissão, de educação e geração do
conhecimento, recebendo da criança, não
apenas o seu desejo de saber mas, de
igual modo, as angústias e as frustrações
que deposita em nós (e que transfere das
emoções face a quem desempenha as
funções parentais de autoridade).
Uma vez que assumimos igualmente um
papel de “mediação evolutiva” que permite
a transferência e a partilha de sentimentos
e emoções, a exclusão deste papel que
exercemos pode ser desmotivadora no
processo de aprendizagem e
desenvolvimento da criança. Ao
acompanhar as crianças, com base na
confiança e no apoio, os educadores
tornam-se exemplo a seguir, levando à
reprodução de ações, práticas e posturas
por parte das crianças.
Estas dinâmicas ocorrem com frequência
entre docentes e crianças e devem ser alvo
de reflexão e mudança na medida em que
os sentimentos que provêm do que o outro
nos transmite e com os quais lidamos
Dinâmicas Transferenciais e Contra-Transferenciais
Mónica Rolo, Educadora de Infância (monica.rolo@gmail.com)
18. Refletir EdInf, nº 02, março /abril/maio 2018
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quotidianamente devem ser geridos de
forma adequada, guiando-o no seu
percurso de transferência.
As situações de rotina constituem, como
referido anteriormente, momentos
privilegiados de interação adulto/criança,
durante as quais o adulto pode (e deve!)
conversar com a criança, criar, jogar, falar,
sorrir e acarinhar, criar laços e estabelecer
uma relação de afeto e confiança, dando
resposta às suas necessidades e
interesses, tendo por base a especificidade
de cada uma delas.
Promovendo a existência de momentos de
trocas intensas e de aprendizagens
significativas, a preparação do contexto
educativo deve assegurar este percurso de
transferência e privilegiar a construção de
elementos securizantes, definindo uma
rotina que vai sendo modificada de acordo
com as efetivas necessidades das
crianças, uma rotina organizada, de
carácter individualizado e flexível que
respeite os diferentes ritmos, hábitos e
preferências de cada criança,
proporcionando segurança e orientando a
sua ação.
Toda a criança gosta de ter a atenção do
adulto. Neste percurso de transferência, é
indispensável que a comunicação com a
criança, associando a um tom de voz
tranquilo e carinhosos, uma linguagem e
expressão facial adequadas, permita que
esta se sinta segura, envolvida e calma,
como salienta Castro (1998: 64) quando
refere que “tocamos em toda a sua pessoa,
não só com as mãos, mas também com os
gestos e as palavras que os acompanham,
com toda a tonalidade da voz e do olhar,
com as expressões faciais da emoção...”
As manifestações de “afeto e admiração ou
de agressividade e resistência” da criança
para com o educador (transferência) ou
deste para com o primeiro
(contratransferência) referem-se aos
conteúdos conscientes e inconscientes de
um para com o outro, relativamente ao que
cada um deles permite que o outro “veja”
ou deixa transparecer, o que nem sempre
corresponde à realidade de cada sujeito e
pode gerar sentimentos menos agradáveis
e pouco coerentes. O “outro” nem sempre
corresponde ao sujeito concreto, mas sim a
quem está no seu lugar, com as
características que esperamos ou
imaginamos que terá.
A este respeito, Santos (2009: 7)
complementa reafirmando que “a
transferência reedita os impulsos e
fantasias impressas nos primeiros anos de
vida, a partir das relações parentais e
fraternais que foram determinantes para o
sujeito na sua constituição. É o
estabelecimento da transferência, nessa
relação, que torna possível a
aprendizagem”.
Todo o adulto comporta uma dimensão
infantil que, muitas vezes
inconscientemente, acaba por transpor
para o outro, reagindo face ao que lhe é
transmitido. De um modo geral, as crianças
projetam no educador os sentimentos que
as assolam durante as propostas que lhes
são feitas, manifestando a relação que têm
com o “ensinante” e com o objeto de
conhecimento, como salienta Alves (2004:
34-35) referindo que:
“Quando se admira um mestre, o
coração dá ordens à inteligência para
aprender as coisas que o mestre sabe.
Saber o que ele sabe passa a ser uma
forma de estar com ele. Aprendo
porque amo, aprendo porque admiro.
Sabendo o que ele sabe eu carrego a
sua pasta”.
Este objeto - desejado quer pelo poder que
dá quer pela necessidade de
reconhecimento pelo outro – gera
diferentes formas de relacionamento de
acordo com as projeções que fazem e com
a forma individual como
percebem/recebem mais esta figura de
autoridade, depositando nela as suas
vivências do passado ou transferindo para
ela a sua luta por afeto e angustias.
Nesta fase, em que podem ser transferidos
todo o tipo de sentimentos (amor, ódio,
raiva, provocações…), é imprescindível
que esteja bem instaurado um quadro de
confiança permitindo à criança, enquanto
garante de segurança, vivenciar esta “sua
paixão” de uma forma segura. Do lado de
cá, quando somos capazes de ouvir o
nosso próprio lado emocional (despir a
“pele racional” e vestir a “pele emocional”),
sem julgar nem avaliar, conscientes destes
movimentos projetivos transferenciais e
contratransferenciais, é de extrema
importância que sejamos capazes de
compreender e reagir de forma adequada
face a emoções mais agressivas e menos
agradáveis, sem excluir nem ignorar a
criança, mantendo uma boa distância (nem
muito próximo para não dar origem a
ilusões e más interpretações, capazes de
gerar o caos, nem dificultar a transição da
criança para outros contextos… nem muito
distantes, para que a relação não se torne
fria).
19. Refletir EdInf, nº 02, março /abril/maio 2018
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Consciente do importante papel que estas
dinâmicas têm na minha prática diária,
tenho sempre presente a necessidade de
uma pré-disposição, uma abertura da
minha parte para que elas ocorram e se
desenvolvam de forma natural e
harmoniosa.
É certo que, no meio de todo o “ruído” e
azáfama que envolvem o nosso dia-a-dia,
não é fácil ouvir a criança (dificuldade esta
que se torna maior quanto mais pequena
for a criança!) nem dar-lhe o tempo
educativo a que tem direito desde os
primeiros meses – mas esta voz e este
tempo são da criança e têm que ser
ouvidos e levados em conta! É
imprescindível que, enquanto profissionais
do humano, da educação de infância,
tenhamos um olhar, um ouvir, “diferentes”
e atentos, capazes de ler nas entrelinhas
até o que as crianças nos tentam dizer… e
nem sempre dizem.
A este respeito, recordo-me
frequentemente de uma criança, uma
criança que conheci já com os 3 anos
avançados, na sua estreia fora do colo da
mãe, muito agarrada aos hábitos e rotinas
do contexto familiar e pouco disponível
para interiorizar os novos que eu e o grupo
tínhamos para “oferecer”.
Já o ano letivo decorria sem percalços e a
sua chegada foi harmoniosa. As dinâmicas
da sala, a metodologia utilizada, a forma
como o grupo o acolheu e envolveu
conquistaram-no imediatamente, já a rotina
da sesta, o descanso após o almoço, não
conseguiu a mesma aceitação. Gostava
dos preparativos, do tom de voz calmo, da
história para adormecer, do mimo ao
aconchegar. Tudo menos dormir àquela
hora!
O que fazer sem interferir com as
rotinas do resto do grupo?
A solução chegou rapidamente e sem
dificuldades quando percebi que, apesar
de pouco aberto aos hábitos dos pares que
contrariavam a sua rotina, esta criança
estava totalmente disponível para mim,
para me conhecer, para me dar o seu
tempo e a sua atenção. Mais do que
alguém para conversar, procurava quem
partilhasse interesses comuns e que
estivesse ali.
A preparação do momento de descanso
decorria dentro da normalidade a que os
pares estavam habituados, sem
sobressaltos nem desconfortos para
ninguém e, logo que se apercebia que os
outros dormiam, levantava-se e, de fininho,
vinha para junto de mim, sabendo que
estava disponível para conversar baixinho,
quase em segredo – um segredo só
nosso… Lembro-me que os Power
Rangers foram o primeiro tema que
encontrámos em comum! Por vezes trazia
uns bonequinhos escondidos na mochila,
que só partilhava comigo àquela hora. E,
pouco a pouco, o sono ia chegando e ia,
sozinho, deitar-se para descansar…
A relação foi-se intensificando e esta
criança continuou a crescer feliz, a desejar
o dia-a-dia no jardim, sem que o “bicho da
hora da sesta” interferisse com o seu
desejo de vir para a escola, o seu desejo
de aprender (que já era grande e cresceu
mais ainda com base na confiança).
A partida foi difícil para ambos, para todos
os envolvidos, mas a sensação de missão
cumprida, de ter conseguido “chegar”
àquela criança e dar resposta às efetivas
necessidades e interesses que tinha, de a
ter ouvido e de lhe ter dado o “meu” tempo,
foi muito enriquecedora!
Em jeito de conclusão, relembro que a
partilha e a reflexão conjunta na complexa
tarefa de compreender, reorganizar, educar
são insubstituíveis! E nesta, como em
muitas outras situações e histórias que
podia partilhar, foram imprescindíveis a
relação que se criou com a família (que
acompanhou e apoiou todo este processo),
mas também a reflexão com a equipa no
desabafo e na procura conjunta de
respostas e soluções. Enquanto agentes
de mudança, também neste domínio das
funções de transferência e
contratransferência, a tarefa torna-se mais
fácil quando estamos acompanhados:
sozinhos conseguimos apenas agir sobre
aquilo que conhecemos, aquilo que já
vivemos e pelo que passámos. Com o
acompanhamento do outro, com base nas
experiências partilhadas e na opinião de
quem tem “um outro olhar” sobre a mesma
realidade, a mesma situação, seremos
capazes de ir mais além, de ver mais além,
de conhecer algo novo capaz de nos
mudar e, consequentemente, de gerar
conhecimento!
Referências Bibliográficas
ALVES, R. (2004). O desejo de ensinar e a arte de
aprender. Campinas: Fundação Educar DPaschoal
CASTRO, J, (1998). Cuidados de Higiene. in Revista Pais e
Filhos, Setembro, 1998: p. 64
SANTOS, J. (2009). A transferência no processo
pedagógico: quando fenómenos subjetivos interferem na
relação de ensino-aprendizagem. Belo Horizonte:
Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de
Educação [dissertação de mestrado]
20. Refletir EdInf, nº 02, março /abril/maio 2018
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A
credito que o mundo pode
tornar-se um lugar melhor. É
com essa crença que entro na
escola todos os dias. Armada
com sorriso e com colo e munida de um
escutar que quer ser largo, com olhos de
olhar e ver e com saberes que gosto de
partilhar estimulando.
O desafio é grande!
A sala é a do fundo. Do fundo do corredor.
Descalço-me. Eles também. Entro.
Descalça, sim, para sentir tudo, como se
faz nos sítios onde nos sentimos em casa.
A sala é do profundo. Do fundo de nós. Do
que se quer mesmo fazer. É uma sala de
brincar a ser. A sério! É uma sala onde se
fala. E se canta e se encanta. Se desafia e
se é desafiado. É uma sala onde todos
temos voz. A sala do fundo é uma sala de
expressar o que somos, o que sabemos e
sentimos. Onde podemos estar contentes
e tristes e onde há toque e textura e
cheiro.
É uma sala feita de emoções. Onde
facilmente se encontra um super-herói a
pintar ou uma princesa cheia de brilhantes
a martelar. É uma sala feita toda da
imaginação experimentada. Porque é feita
de crianças, pelas crianças comigo.
Aqui tenho aprendido a ser educadora de
crianças mais crescidas. Aqui quero que
seja um jardim de infância para a terceira
infância.
Aqui descobrimos juntos que crianças e
criações são palavras que rimam na
essência. São feitas dos mesmos verbos
que se declinam: criar, imaginar,
comunicar, sentir, emocionar, emocionar-
se, e ouvir escutando, ouvir-se, contar,
contar-se…
Criações com fantasia feitas de coragem e
de medos e das coisas todas que sentimos
cá no fundo. Mostramo-nos com máscaras
e sem. O que temos dentro.
Mas não foi sempre assim. Antes era uma
sala grande e usada para nada. Guardava
uns computadores, muitas cadeiras e uma
luz incrível. Pedi o espaço para as nossas
aulas de enriquecimento curricular.
Comecei por enriquecer a sala com
materiais provocadores e as cadeiras a
mais, deram lugar a papéis, lãs, pincéis,
lápis, canetas, tintas, roupas e acessórios,
palco, tapetes, almofadas, marionetas de
mão, de dedo, máscaras, instrumentos e
os piores – livros!
Consegui-o com a ajuda da escola e das
famílias, o resto sabia que as crianças iam
conseguir fazer. E fizemos. Juntos.
Fizemos a nossa Oficina de Expressões.
Porque SOMOS no plural e no singular.
Aqui "arranjamos" cada um de nós. Vemo-
nos no olhar uns dos outros. Afinamos o
brincar e explodimos de emoção. O teatro
e a música são as nossas ferramentas
Sala do FundoVera Ribeiro, Educadora de Infância (verarib78@hotmail.com)
https://www.facebook.com/saladofundo/
21. Refletir EdInf, nº 02, março /abril/maio 2018
21
principais. Colamos com arte muitos
retalhos de vida e temos vindo a mostrar
pedaços de nós muito aplaudidos e muito
sentidos.
O planeamento é o de aproveitar o
melhor de cada um nos sessenta ou cento
e vinte minutos que estamos juntos em
cada semana. Ao minuto, mesmo.
Mostrar, crescer mostrando e recebendo
o que nos mostram. Sim porque aprender
a dar e receber é essencial, na escola
como na vida. A pensar, a refletir mesmo,
argumentando. O planeamento é dar
tempo às palavras, às vozes, as deles. Os
sumários são títulos de obras de arte. As
nossas. E a avaliação é boa, a melhor,
porque temos enriquecido, todos e cada
um.
Porque ouso dizer que sou educadora
destas infâncias tão maiores do que é
costume? Porque com cada um deles
também ouso cuidar, criar, sentir, escutar,
imaginar, brincar, errar, pensar, duvidar,
confiar, saber, descobrir, aprender... Estes
são apenas alguns dos verbos que poderia
declinar para desenhar o perfil daquilo
que acredito ser uma relação pedagógica
– essa teia de compromissos que com eles
teço num vaivém de comunicação em
linguagens múltiplas e multifacetadas,
com diferentes meios, essa relação de
afeto e compreensão, onde as visões de
educador e educando se ampliam
mutuamente e se enriquecem de
sentires…
Penso-a como um caminho que se
percorre de mãos dadas uma única vez,
numa única infância, num contexto sócio
educativo singular. E em educação não há
duas oportunidades iguais, nem sempre
1+1=2, por isso, as nossas
responsabilidades são grandes e a
necessidade de entrosamento e partilha
também.
Acredito que esta relação é uma escada, o
suporte para ir mais além e para criar a
rede de apoio ao crescer, ao ser e estar de
todos e de cada um que liberta e protege.
No fundo, é a teia de relações e sistemas
que será a pedra basilar das autonomias
que se desenvolvem e da criança que
cresce e em quem se acredita.
E é isto, ouso porque acredito, porque
estou e sou com cada um deles. Porque
me envolvo e porque nos relacionamos
pedagogicamente. Ouso porque sei que
sou educadora.
A sala é a do fundo e eu estou lá de portas
e janelas abertas a um mundo que vai
mesmo ser melhor porque eles têm
bagagem para fazer por isso.
22. Refletir EdInf, nº 02, março /abril/maio 2018
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Nº 02
março - abril - maio
2018
Coordenador: Ofélia Libório
Equipa Redatorial: Henrique Santos, Ofélia
Libório, Rosa Maria Alves., Mónica Rôlo, Vera
Ribeiro.
Colaboradores neste número: Rita Simas
Bonança, Henrique Santos, Miguel Meira e
Cruz, Helga Leite, Magda Roma, Conceição
Pereira, Vera Ribeiro e Mónica Rôlo.
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