1. Elísio Estanque*
Jornal PÚBLICO, 28.01.2014
As praxes e o poder
Não sei se é ou não verdadeira a afirmação de Vasco Pulido Valente de que a
cultura “praxista” varia “na proporção inversa da qualidade académica da instituição”
(PÚBLICO, 25/01/2014), mas, como é de regra, a imitação é sempre pior do que o
original e é talvez por isso que os casos mais graves de abusos neste domínio têm
surgido em instituições privadas e com pouca tradição académica (no verdadeiro
sentido da expressão). Sabemos bem que “o original” – no caso, a Universidade de
Coimbra – não é exceção na tendência geral de massificação dos consumos
estudantis. Mas foi sobretudo a partir do boom de institutos e universidades privadas de
ensino superior (na década de 1980) que começaram a florescer pelo país as cenas
caricatas e comportamentos humilhantes exercidos pelos mais velhos sobre os
“caloiros”, onde se confunde o ritual de passagem com a masoquista submissão ao
abuso, onde se confunde “tradição” com o despotismo pessoal mais arbitrário. Os
observadores e analistas têm sido unânimes a condenar esse processo de adulteração
e de excesso onde o mote é a violência e que tem suscitado diversos casos
lamentáveis e algumas mortes, de um modo ou de outro, relacionadas com a “praxe”
académica. Com maior ou menor gravidade, os casos sucedem-se anualmente.
Há cerca de dois anos publiquei neste jornal: “Nos últimos dias foi notícia mais um
caso, em Coimbra, envolvendo duas jovens estudantes de psicologia, que terão sido
agredidas por recusarem alinhar nos castigos da ‘praxe’ e a assinar uma declaração
anti-praxe. Na sequência da denúncia, o Conselho de Veteranos da Universidade de
Coimbra declarou a suspensão da ‘praxe académica’ por tempo indeterminado. Porém,
logo no dia seguinte assisti, junto a uma cantina, a mais um exercício humilhante em
que um estudante mais velho aplicava a praxe a duas raparigas, estendidas no chão a
fazerem flexões de braços (2/04/2012). As alarvices e abusos começam na semana de
receção ao caloiro, passam pela Festa das Latas, e vão até à Queima das Fitas, o seu
pico mais alto. Em qualquer lugar público as cenas sucedem-se: as/os ‘doutoras/es’ a
dar ordens a grupos de ‘caloiras/os’ que se perfilam como na tropa, olhando para o
chão em obediência servil; depois, colocam-se ‘de quatro’ e gritam em coro ‘sou caloira
2. e sou burra!!’ (cena em Coimbra, 1/03/2012). Em Leiria, no centro da cidade, uma fila
de caloiras deitadas no chão, rebolam-se perante os gritos militaristas das suas
superioras (cena observada a 7/03/2012). A postura machista, marialva e de
subalternização da mulher é, aliás, um traço marcante da atual cultura estudantil, para
a qual eles e elas contribuem alegremente, exaltando a hierarquia e naturalizando as
mais diversas formas de arrogância e abuso de poder” (PÚBLICO, 6/04/2012).
Mais do que condenar os “abusos” ou apelar à “proibição” dessas práticas,
importa conhecer melhor a razão da sua multiplicação para, depois, se exercer alguma
ação corretiva (pedagógica ou repressiva, ou ambas). No plano subjetivo o diagnóstico
está feito e o último artigo de José Pacheco Pereira sintetiza bem a lógica de poder
simbólico que anima a cultura praxista: “Ao institucionalizar a obediência aos mais
absurdos comandos, a humilhação dos caloiros perante os veteranos, a promessa era
a do exercício futuro do mesmo poder de vexame, mostrando como o único conteúdo
da praxe é o da ordem e do respeito pela ordem, assente na hierarquia do ano do
curso. Mas quem respeita uma hierarquia ao ponto da abjecção está a fazer o tirocínio
para respeitar todas as hierarquias. Se fores obediente e lamberes o chão, podes vir a
mandar, quando for a tua vez, e, nessa altura, podes escolher um chão ainda mais
sujo, do alto da tua colher de pau. És humilhado, mas depois vingas-te” (JPP,
PÚBLICO, 25/01/2014).
Ao fim de décadas de debate e de um constante diálogo que temos mantido com
os estudantes (praxistas e anti-praxistas) de Coimbra torna-se patente que a ação
pedagógica promovida pelas entidades do mundo estudantil (a começar pelo Conselho
de Veteranos) não tem surtido efeitos palpáveis. Muitos estudantes alegam que os
abusos nada têm a ver com a “verdadeira” praxe, que é integradora e se oferece como
oportunidade de socialização dos caloiros, sendo que muitos destes argumentam que o
ritual da praxe é onde se geram as amizades mais sólidas. Em favor dessas opiniões,
importa reconhecer que nem todas as praxes são violentas e humilhantes, e que
continuam a existir brincadeiras inteligentes, que veiculam uma irreverência juvenil
saudável que importa preservar no meio estudantil. Receia-se, porém, que esses casos
sejam hoje a exceção e que o processo de perversão seja imparável. Faz sentido uma
proibição pura e simples? Creio que não. Seria possível instituir uma receção amigável
ao caloiro? Seria, mas para isso era preciso que as universidades tivessem
disponibilidade e condições para intervir mais ativamente neste campo; e acima de
tudo era preciso que as estruturas associativas dos estudantes trabalhassem nesse
sentido e rompessem com a lógica de poder e de ambição individual que as aprisiona
(que no fundo se ligassem à realidade que representam em vez de se satisfazerem em
ser eleitas por dez ou vinte por cento dos estudantes).
Quando o debate académico é cada vez mais anulado pela “tecnoburocracia”
reinante; quando é a tutela, as universidades e as próprias associações que promovem
a passividade, a concorrência e o carreirismo; quando, enfim, as instituições e o poder
3. rejeitam a reflexão crítica, a cultura democrática e ostracizam as ciências sociais
(vocacionadas para pensar criticamente a sociedade), não podemos surpreender-nos
perante o triunfo da mediocridade moral e da vilania mais abjeta. É, pois, nos
condicionalismos estruturais associados ao poder político e ao mercado que reside a
génese de uma mentalidade que perverte a tradicional missão formativa, científica e
cultural da Universidade, e que estimula o hedonismo e a apatia cidadã da atual
geração estudantil, onde proliferam as praxes e as suas perversões.
__
* Professor da Faculdade de Economia e investigador do Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra.