O documento descreve o atendimento inicial de pacientes com queimaduras, incluindo manter a permeabilidade das vias aéreas, avaliar e tratar lesões que coloquem a vida em risco, estabelecer acesso venoso e iniciar reposição volêmica com 2-4 ml de Ringer-lactato por kg por porcentagem da superfície corporal queimada nas primeiras 24 horas. Também discute exames iniciais como hemograma, gasometria e radiografia de tórax, além do uso cauteloso de analgésicos e se
1. Serviço de Cirurgia Plástica e Queimados da Santa Casa de Misericórdia de São José do Rio Preto
Regente : Valdemar Mano Sanches
Queimaduras
Dr. Brunno Rosique
Histórico
O primeiro relato importante (em língua inglesa) sobre queimaduras foi feito por John Kentish em 1797,
em sua monografia defendia a terapia com exposição da área queimada nos primeiros estágios do tratamento.
Posteriormente passou a usar o método com curativo fechado.
Earle em 1779 publicou um artigo discutindo vários aspectos do tratamento das queimaduras, incluindo o
uso de gelo no tratamento inicial da dor em queimaduras.
Poucas mudanças ocorreram no tratamento das queimaduras durante o século XIX. Exceto pelo uso de
banhos contínuos (Vienna).
A primeira publicação moderna sobre queimaduras foi de Sneve (1905) em um artigo cujo titulo “O
tratamento de Queimaduras e Enxertos de Pele”.
Barthe em 1914 introduziu o uso de parafina.
Em 1941 foi introduzido o uso de Sulfonamida. No ano seguinte Allen e Koch defenderam o uso de
curativos compressivos.
Blocker (1950) e Pulaski (1950) reintroduziram a técnica aberta.
Após 1950 surgiram muitos trabalhos sobre queimaduras, com melhor compreensão dos distúrbios
hidroeletrolíticos, e melhora nos métodos de combate ao choque.
Classificação
As queimaduras são classificadas principalmente pela extensão da superfície corporal atingida, e pela
profundidade das lesões.
Diversos esquemas foram propostos para determinação da área queimada (Berkow, Lund, Browder e
outros), o mais prático é a “Regra dos Nove”.
2. Tabela de Lund Browder
Área 1 ano 1 a 4 5 a 9 10 a 16 Adulto 2°. grau 3°. grau Total
Cabeça 19 17 13 11 7
Pescoço 2
Tronco anterior 13
Tronco posterior 13
Nádega direita 2,5
Nádega esquerda 2,5
Genitália 1
Braço direito 4
Braço esquerdo 4
Antebraço dir. 3
Antebraço esq. 3
Mão direita 2,5
Mão esquerda 2,5
Coxa direita 5,5 6,5 8 8,5 9,5
Coxa esquerda 5,5 6,5 8 8,5 9,5
Perna direita 5 5 5,5 6 7
Perna esquerda 5 5 5,5 6 7
Pé direito 3,5
Pé esquerdo 3,5
Total
3. Quanto a profundidade é dividida em:
1°. grau – Envolve apenas a epiderme, é caracterizada pelo eritema (queimadura solar);
2°. grau – Destrói a epiderme e uma porção variável da derme. A pele pode apresentar vesículas. Na
ausência de infecção cicatrizam espontaneamente em 2 a 4 semanas.
3°. grau – Atinge toda a derme. A pele apresenta-se branca e sem brilho. Exceto nas lesões pequenas as
queimaduras de terceiro grau geralmente necessitam de enxerto de pele.
“4°. grau” – Atinge tecidos profundos.
Fisiopatologia
A lesão térmica provoca necrose por coagulação na pele e nos tecidos subjacentes em profundidade variada.
Embora aparentemente as queimaduras sejam na maioria das vezes lesões restritas a pele, elas exercem
efeitos deletérios sobre todos os outros sistemas orgânicos. Nos pacientes com queimaduras extensas são
observadas alterações bifásicas na função orgânica: hipofunção inicial e hiperfunção posterior, exceto para o
sistema nervoso central e imunológico nos quais a seqüência é inversa.
Alterações Hemodinâmicas: Imediatamente após a queimadura ocorre alteração da permeabilidade
capilar, água, sódio, cloro e proteínas escapam do espaço intravascular para o interstício na área queimada.
Como resultado da perda excessiva de líquidos, eletrólitos e proteínas ocorre hipovolemia e
hemoconcentração. O extravasamento de fluídos persiste por 24 a 48h. Porém a perda mais acentuada
ocorre nas primeiras 18 horas. A magnitude desses deslocamentos de volume é proporcional a extensão da
queimadura e se evidencia, clinicamente, por meio do edema que acontece nas áreas de lesão térmica e que
também pode desenvolver-se em tecidos não lesados à medida que a ressuscitação prossegue nos pacientes
com queimaduras extensas.
Minutos após a queimadura o débito cardíaco (DC) diminui proporcionalmente ao tamanho da queimadura
em associação com um aumento da resistência vascular periférica. Posteriormente (porém ainda na fase
inicial), a depressão do DC é mantida e até mesmo exacerbada pelo efeito combinado de volume sanguíneo
decrescente e viscosidade sanguínea crescente.
O produto celular mais freqüentemente envolvido nas alterações hemodinâmicas é a histamina, cuja
concentração plasmática aumenta em proporção ao tamanho da queimadura dentro de um minuto após a
lesão térmica. Além disso o tromboxano A2, leucotrienos, a substância P, o produto D (produto da
degradação da fibrina), as proteases ativadas e o fator de ativação das plaquetas (PAF) foram reportados
como elevadores da permeabilidade vascular.
O volume sanguíneo e o débito cardíaco diminuídos causam redução pós-queimadura no fluxo sanguíneo
renal e na taxa de filtração glomerular. A resultante oligúria, quando não tratada, pode progredir para IRA.
Após a reposição volêmica, o fluxo sanguíneo renal e a taxa de filtração glomerular aumentam até níveis
supranormais, juntamente com o aumento do débito cardíaco devido ao hipercatabolismo pós-queimadura. A
circulação renal hiperdinâmica freqüentemente necessita de ajuste da dosagem de antibióticos e de outras
substâncias que têm excreção renal.
Alterações Pulmonares:
- Distúrbio ventilatório restritivo por lesões circunferênciais no tórax;
- Lesões térmicas por inalação em ambiente fechado;
- Intoxicação por monóxido de carbono;
- Hipertensão pulmonar → aumento da resistência vascular pré-capilar;
- Hipermetabolismo pós-trauma → Hiperventilação → alcalose respiratória;
Alterações Hematológicas: Além da perda de plasma a partir da circulação no período pós-queimadura
inicial, há destruição imediata de eritrócitos em proporção direta com a extensão da queimadura,
principalmente na queimadura de terceiro grau.
4. Também observa-se uma alteração bifásica no sistema de coagulação, inicialmente com diminuição dos
níveis de plaquetas e fibrinogênio e posteriormente aumento dos fatores V e VIII. Também foi identificada
acentuada depressão de antitrombina III.
Alterações Gastrointestinais: O íleo paralítico é quase universal em pacientes com queimaduras de mais
de 25% da superfície corporal. Após a ressucitação a motilidade gastrointestinal retorna em torno do terceiro
ao quinto dia pós-queimadura.
A lesão da mucosa gástrica e duodenal, secundária a isquemia focal, pode ser observada
precocemente (3 a 5 horas pós-queimadura). Quando a mucosa não está protegida, as erosões iniciais podem
progredir para ulceração franca.(Ulcera de Curling)
Alterações Endócrinas: No período inicial pós-queimadura, desenvolve-se um padrão endócrino
catabólico caracterizado por níveis elevados de glucagon, cortisol e catecolaminas e por níveis diminuídos de
insulina e triiodotironina. Essas modificações estão associadas a aumento na taxa metabólica, fluxo de
glicose e equilíbrio nitrogenado negativo relacionados ao tamanho da queimadura.
Atendimento Inicial
A – Via aérea: História de confinamento em ambiente fechado durante o incêndio e sinais sugestivos de
lesão precoce da via aérea, tornam obrigatória a avaliação da via aérea e o atendimento definitivo deve ser
instituído. Lesões térmicas da faringe podem produzir edema acentuado da via aérea superior e é importante
que a permeabilidade da via aérea seja garantida precocemente. As manifestações clínicas da lesão por
inalação podem sutis e freqüentemente não aparecem nas primeiras 24 horas.
B – Respiração: O tratamento das lesões é programado de acordo com os sinais e sintomas apresentados
pelo doente que , por sua vez, resultam nos seguintes possíveis mecanismos:
1 – Lesão térmica direta, produzindo edema e/ou obstrução da via aérea superior;
2 – Inalação de produtos de combustão incompleta (partículas de carbono) e fumaça tóxica,
levando a traqueobronquites químicas, edema e pneumonia;
3 – Intoxicação por monóxido de carbono;
Sempre considerar a possível ocorrência de exposição ao CO em doentes queimados em ambientes
fechados. Doentes com níveis de CO inferiores a 20% não costumam a apresentar sinais e sintomas. Níveis
mais elevados podem resultar em: cefaléia e náusea (20 a 30%); confusão (30 a 40%); coma (40 a 60%); e
morte (>60%). Portanto, os doentes com suspeita de exposição ao CO devem receber, desde o início,
oxigênio a 100% em alto fluxo, através de máscara unidirecional, sem recirculação.
C – Volume Sanguíneo Circulante: Qualquer doente com queimaduras que acometem mais de 20% da
superfície corpórea necessita de reposição volêmica. Após estabelecer a permeabilidade da via aérea e
identificar e tratar as lesões que implicam em risco iminente de vida, deve ser providenciado um acesso
venoso, com cateter de grande calibre (no mínimo # 16G), introduzido em uma veia periférica. Se a extensão
da queimadura não permitir a introdução do cateter através da pele íntegra, a punção pode ser realizada
através da pele queimada.
Em doentes gravemente queimados, a avaliação do volume sanguíneo circulante costuma ser difícil. A
medida da pressão arterial costuma ser difícil e pode não ser confiável. A monitoração horária do débito
urinário é uma forma confiável de avaliação do volume circulante. Uma regra simples é infundir volume em
velocidade suficiente para manter a diurese horária de 1,0 ml por kg para crianças de 30 kg ou menos, e de 30
a 50 ml para adultos.
O doente queimado necessita de 2 a 4 ml de Ringer-lactato por Kg de peso por porcentagem de superfície
corpórea com queimaduras de segundo e terceiro graus, nas primeiras 24 horas. O volume estimado é então
oferecido da seguinte maneira: metade nas primeiras 8 horas e o restante nas 16 horas seguintes. Para
5. manter um débito urinário médio de 1ml/kg/h em crianças que pesam menos de 30 kg, pode ser necessário
acrescentar, a este volume, soluções de manutenção contendo glicose.
D – Exame Físico:
1 – Determinar a extensão e a profundidade das queimaduras;
2 – Avaliar se existem lesões associadas;
3 – Pesar o doente.
E – Folha de Registro: Logo após a admissão do doente no departamento de emergência, deve ser
iniciado o preenchimento de uma folha de registro, descrevendo o tratamento que lhe foi ministrado. Esta
folha deve acompanhar o doente quando este for transferido para uma unidade de queimados.
F – Exames Básicos: 1. sangue – deve-se obter amostras para hemograma, tipagem e provas
cruzadas, carboxihemoglobina, glicemia, eletrólitos e para teste de gravidez em todas as mulheres em idade
fértil. Uma amostra de sangue arterial deve ser retirada para determinação de gasometria.
2 – Radiografia de tórax.
G – Narcóticos, Analgésicos e Sedativos: O doente portador de queimaduras extensas pode estar
ansioso e agitado devido à hipoxemia ou à hipovolemia e não somente pela dor. Conseqüentemente,
responde melhor ao oxigênio ou à administração de líquidos, do que ao uso de analgésicos, narcóticos e
sedativos que podem mascarar os sinais de hipoxemia ou hipovolemia. Essas drogas devem ser
administradas em pequenas doses por via intravenosa.
Antibióticos profiláticos não estão indicados na fase inicial logo após queimaduras. Os antibióticos
devem ser reservados para o tratamento de infecções.