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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
ORGANIZADORA:
Profa. Georgina Faneco Maniakas
São Carlos
De Freud
a
Jung:
uma breve introdução
2
SUMÁRIO
Introdução...................................................................................................................................03
FREUD
1. O início da investigação psicanalítica.....................................................................................05
2. Do Projeto à Interpretação dos Sonhos. A primeira tópica...................................................19
3. A Construção da sexualidade, a primeira teoria pulsional e o conceito de narcisismo........41
4. A segunda teoria pulsional, além do princípio do prazer e a segunda tópica...................... 58
5. Cultura, ética e subjetividade.................................................................................................73
Referênciasbibliográficas............................................................................................................83
JUNG
6. Jung: os anos de formação, o trabalho com Freud e as divergências conceituais...............84
7. Estrutura da Psiqué................................................................................................................91
8. O Processo de Individuação .................................................................................................93
9. Os sonhos..............................................................................................................................97
10.Apêndice................................................................................................................................99
3
INTRODUÇÃO
Na busca de um sentido para as doenças que não apresentavam lesão e que também
não eram mera simulação (histeria) é que Freud, como neurologista, começaria uma minuciosa
pesquisa que o levaria à constituição de um novo campo do conhecimento no qual o sintoma
adquiriria um sentido bastante diferenciado da doença, intrinsecamente ligado às funções de
um construto teórico que ele chamaria de aparelho psíquico.
Com a descoberta de processos inconscientes que agem sobre o sujeito sem que este o
saiba e limitam a sua liberdade, a psicanálise encontra-se em perpétua investigação, e o seu
campo de estudo vê os seus limites se ampliarem cada vez mais, ultrapassando a fronteira das
desordens da saúde mental, da conduta e da saúde somática, para inserir-se em um campo de
diálogo interdisciplinar. O mesmo questionamento que inaugurou a obra freudiana está
presente no projeto psicanalítico, marcado pelo desejo de identificar a origem do sofrimento
humano, e de renovar, incessantemente, a tentativa de dizer o indizível.
À Freud devemos a dissolução, teórica e prática, das fronteiras entre o normal e o
patológico. Obras como A Interpretação dos Sonhos e Psicopatologia da Vida Cotidiana
continuam marcando gerações de pensadores.
Foi por meio da Interpretação dos Sonhos que Jung aproximou-se das idéias de Freud.
Jung havia citado A Interpretação dos Sonhos em sua tese (publicada em 1902), e a questão
com a qual se defrontava era: a psicanálise poderia ser utilizada com o mesmo êxito com os
pacientes psicóticos que atendia ?
Jung trabalhava desde dezembro de 1900 como Médico Assistente de Eugen Bleuer no
Burghölzli, Hospital Psiquiátrico de Zurique (também era a clínica de pesquisa da
universidade). Depois de dois anos em seu primeiro cargo, Jung começa suas experiência com
“testes de associações de palavras” (1902-06). Solicita aos pacientes que façam uma
“associação“ imediata a uma palavra estímulo. Em 1902-03 vai a Paris para estudar
psicopatologia em Salpêtrière, com Pierre Janet.
Em 1903, tanto Jung como Bleuer começam a interessar-se muito seriamente pelas
idéias de Freud. Em 17 de agosto de 1904, Sabina Spielrein (1885-1941), uma jovem russa, é
internada no Burghölzli: é a primeira paciente de Jung, histérica, tratada pelo método
psicanalítico. Em 1906, Jung começa a corresponder-se com Freud, e o visita em Viena no
início de 1907. Rapidamente eles desenvolvem uma íntima amizade profissional. No ano
seguinte acontece o Primeiro Congresso Internacional de Psicanálise, em Salzburg.
Em 1909 Jung acompanha Freud a Massachussets, Estados Unidos, para uma série de
conferências na Clark University. Lá, ambos recebem seus Doutorados Honorários.
4
Em 1910 ocorre o Segundo Congresso Internacional de Psicanálise em Nuremberg.
Jung é nomeado presidente. No verão deste ano, Jung dá o primeiro curso de palestras sobre
“Introdução à Psicanálise” na Universidade de Zurique.
Em 1912 Jung funda a Sociedade de Trabalhos Psicanalíticos; em 1913 rompe com
Freud. Freud fica abalado com a cisão, Jung arrasado. O estresse decorrente contribui para um
esgotamento nervoso que ameaçava Jung deste 1912, quando havia começado a ter sonhos
catastróficos e vívidos e visões durante a vigília. Demite-se da Universidade de Zurique e se
fixa em sua clínica particular.
Na verdade, as tensões no relacionamento entre Jung e Freud são evidentes desde o
início, embora Freud valorizasse Jung como a nenhum outro integrante do movimento
psicanalítico.
Quando Jung uniu-se à Psicanálise em 1907, Freud havia inaugurado uma psicologia
radical, formada por uma hermenêutica poderosa, uma teoria revolucionária e parcialmente
empírica sobre o desenvolvimento da personalidade, uma nova metodologia terapêutica e uma
teoria nascente da psicologia cultural. O trabalho de Freud sobre sonhos, etiologia das
neuroses e desenvolvimento infantil estava-se tornando conhecido fora de Viena, e o
movimento psicanalítico internacional estava começando a se firmar. Quando o relacionamento
profissional entre ambos desmoronou por causa de discussões em torno do conceito de libido e
suas transformações, ambos os autores eram atores em um palco mundial, e Jung estava a
meio caminho de iniciar um movimento próprio.
Estudos recentes da Universidade de Cambridge (Douglas, 2002) afirmam que se Freud
e Jung tivessem sustentado seu relacionamento por mais alguns anos, a história psicanalítica
teria sido muito diferente, e hoje poderíamos contar com uma teoria muito mais abrangente e
completa da psique humana.
Para iniciarmos qualquer reflexão a respeito das conseqüências que a divergência
conceitual entre Freud e Jung trouxe para o desenvolvimento da psicanálise, é necessário,
antes de mais nada, conhecerrmos os principais conceitos propostos pelos autores,
compreendendo-os a partir do contexto histórico, filosófico e social onde surgiram.
5
1. O INÍCIO DA INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA
“Desses fantasmas tanto se enche o ar,
Que ninguém sabe como os evitar”
(Fausto, parte II, ato V, cena 5)
1. 1 Sigmund Freud
Sigmund Freud nasceu a 6 de maio de 1856 em Freiberg, um pequeno povoado
morávio, que, na época, fazia parte do Império Austro-húngaro.
Quando Freud estava com três anos, a família mudou-se para Viena. Um ano antes do
habitual, o pequeno Sigmund ingressou no Sperl Gymnasium. Os documentos ainda
conservados do instituto mostram que Freud foi um estudante brilhante: durante seis anos, foi o
primeiro aluno da classe e aos dezessete terminou o curso recebendo uma distinção
honorífica. Interessante notar que em seu exame para o acesso à Universidade, teve que
traduzir do grego para o alemão uma passagem do Édipo, de Sófocles.
A capacidade de expressão escrita de Freud haveria de conceder-lhe o mais importante
prêmio da língua alemã: o prêmio Goethe de literatura.
Possuía uma notável aptidão para línguas: além do latim e do grego, falava inglês,
francês, hebraico, e aprendeu por conta o italiano e o espanhol, esta última para ler Don
Quijote no original.
Freud iniciou seus estudos de medicina na Universidade de Viena, em 1873 e os
terminou em 1881, oito anos ao invés dos cinco habituais, porque cursou seminários não
obrigatórios de física, zoologia e filosofia: durante três anos assiste às aulas de Franz
Brentano.
Em seu quarto ano de faculdade começa a trabalhar no Laboratório de Fisiologia de
Ernst Brücke, um dos orientadores que mais haveriam de influenciar sua formação ao
transmitir-lhe os ideais do rigor científico e sua fé nos valores éticos. Brücke fazia parte da
escola de Helmholtz, que tencionava explicar todo o funcionamento do organismo em termos
de forças físicas e químicas; em última análise, as forças de atração e repulsão inerentes à
matéria.
Freud permaneceu seis anos (1876-1882) no Instituto de Brücke, no qual realizou
brilhantes pesquisas sobre a histologia do sistema nervoso, chegando a publicar uns vinte
trabalhos. Um deles pode ser considerados precursor da teoria dos neurônios, assim
denominado por Waldeyer em 1891.
6
Em outubro de 1882 ingressa como médico residente no Hospital Geral de Viena, onde
permaneceria por três anos, boa parte deles no departamento de Neurologia. Suas
publicações histológicas e clínicas lhe valem a nomeação como Privatdozent em
Neuropatologia (1885). Este título, importante na Alemanha e na Áustria, não tem equivalente
nas escolas de medicina de outros países. O Privatdozent pode dar aulas sobre temas
desejados, mesmo à margem do programa.
Em junho de 1885 solicitou uma bolsa de estudos para assistir as aulas de Jean Martin
Charcot, considerado o neurologista mais importante da época, no hospital de La Salpetrière,
em Paris. Charcot estava no centro dos estudos realizados nessa época sobre a histeria: foi o
primeiro a conceber essa neurose como uma enfermidade psíquica. Também foi ele quem
formou, na Salpetriére, um grupo de pesquisa sobre a histeria, ao qual pertenciam Binet e
Pierre Janet. Juntos, eles formavam a “escola de Salpetrière”.
Paralelamente em Nancy, outros pesquisadores médicos davam prosseguimento a
experiências com a histeria. Entre os achados destacam-se as conclusões de Bernheim.
Charcot conclui pela origem psíquica da histeria (cujos sintomas incluem: distúrbios
motores, amnésias, anestesias, paralisias, contraturas, convulsões, etc) pois, além de não
terem uma causa orgânica, podiam ser provocados e interrompidos por sugestão hipnótica; por
isso Charcot atribuía a histeria à auto-sugestão, e seu ponto de vista seria retomado por
Bernheim, Babinsky e Janet.
O encontro com Charcot foi extremamente significativo na vida de Freud, despertando
definitivamente seu interesse pela psicopatologia, iniciado alguns anos antes (1880-82).
quando acompanhou, junto ao Dr. Joseph Breuer, um caso de histeria em que a reminiscência
de certas lembranças (em estado de hipnose), havia modificado a situação patológica.
Trata-se do caso Anna O. (Bertha Pappenheim), uma jovem de 21 anos que
apresentava uma ampla gama de sintomas, originados durante o período em que assistiu seu
pai, enfermo, até o seu falecimento. Alguns dos sintomas apresentados por Anna O. eram
paralisia das extremidades, perturbações da visão, da fala e da alimentação, tosse nervosa,
confusão mental.
Durante as visitas de Breuer, Anna. relatava, em estado de hipnose, suas experiências
penosas e suas fantasias. Em certa ocasião, ao relatar detalhes do surgimento do primeiro
sintoma, este desapareceu por completo. Breuer, então, apercebeu-se que era possível libertar
Anna de seus transtornos desde que a paciente pudesse exprimir verbalmente o qua sentia.
Anna O. denominou esse procedimento de “cura pela fala” ou “limpeza de chaminé”, ao que
Breuer e Freud chamariam de catarse (termo de origem grega que significa purificação ou
purgação). A partir dessa experiência, acompanhada de perto por Freud, e, na realidade,
encerrada por ele (Breuer, por razões particulares, abandona o caso Anna O.), Freud concluiu
7
que os sintomas neuróticos estavam em relação com eventos aparentemente esquecidos do
passado, e o simples fato de relembrar esses eventos fazia desaparecer os sintomas. Existia,
portanto, um vínculo entre a ignorância de certas lembranças e a existência de sintomas.
No caso de Anna O., as lembranças recordadas remontavam a eventos que tinham a
impressionado na época em que cuidava do pai enfermo. Durante a extenuante vigília ao lado
do pai, Anna havia sido obrigada a reprimir (expulsar da consciência) um pensamento ou
impulso que logo havia sido substituído e representado por um sintoma.
Ao provocar e suprimir sintomas de histeria mediante a hipnose, Charcot demonstrou
que, independentemente de um suposta base neurológica, a doença tinha uma origem
psíquica, em geral de caráter traumático. Mas, enquanto Charcot se interessava
fundamentalmente pela anatomia, Freud adotou uma perspectiva psicológica. Em seu estudo
comparativo entre as paralisias histéricas e orgânicas, o autor demonstrou que as paralisias e
anestesias histéricas das diversas partes do corpo não seguem as vias nervosas que o estudo
anatômico revela, mas se configuram conforme a representação vulgar que o leigo tem do
funcionamento do corpo humano.
Ao voltar à Viena, expôs os resultados de suas observações, bem como suas
conclusões e publicações sobre a histeria a seus colegas da Sociedade Médica de Viena, que
o trataram com extrema frieza, o que o fez afastar-se da dita Sociedade.
Em 1886 abriu seu consultório privado e casou-se com Martha Bernays, com quem teria
6 filhos (3 meninos e 3 meninas).
Em seu trabalho com distúrbios nervosos, apesar do rechaço da Sociedade Médica,
substituiu os tratamentos correntes em neurologia na época (hidroterapia e eletroterapia) pela
sugestão hipnótica, obtendo resultados favoráveis, porém limitados. Concluiu que não era
possível hipnotizar todos os enfermos, nem estava ao alcance do médico obter, todas as
vezes, uma hipnose suficientemente profunda. Em razão dessas limitações, em 1889 viaja a
Nancy, para aperfeiçoar sua técnica hipnótica com Liébault e Bernheim.
As experiências que observou lhe revelaram a existência de processos mentais
poderosos, que, sem dúvida, permanecem ocultos à consciência; no entanto, Freud não se
contentaria nem com o método hipnótico de Charcot e nem com a sugestão pós-hipnótica de
Bernheim, pelas limitações que ambas apresentavam. Se, durante a hipnose, como resultado
da influência do médico, o paciente podia ampliar o campo de sua consciência e recuperar
lembranças esquecidas, o processo esbarrava em dificuldades intransponíveis, a saber: além
de não poder ser aplicável a todos os sujeitos, seus efeitos demonstravam-se instáveis, pois as
recidivas eram comuns, obrigando o paciente a ter que recorrer ao médico, de tempos em
tempos, para o alívio de novos sintomas que eram produzidos.
8
Freud, então, concluiu que deveriam existir poderosas forças inconscientes que
mantinham os sintomas – as quais deu o nome de resistências -, e que, durante a hipnose,
eram apenas “suspensas”, já que o enfermo de nada se lembrava ao final do processo, não
tendo, em última análise, nenhuma responsabilidade para com o que relatava.. Apenas o
médico era testemunha dos relatos, o que se tornava preocupante, pois dependendo da
personalidade e formação ética do médico, ele poderia ser levado a sustentar uma relação
autoritária e de dependência do paciente para com ele, contra a qual Freud terminantemente
se opunha.
Nosso autor concluiu que deveria haver uma outra maneira de trazer essas lembranças
encobertas à consciência com a participação do enfermo. Freud conclui que tanto a hipnose
quanto a sugestão contribuem para mascarar os fenômenos da resistência e da transferência ,
este último, fenômeno que Freud começa a perceber quando os sintomas histéricos,
suprimidos pela hipnose, reapareciam quando se interrompia o contato com o médico.
Em seu artigo de 1903-4, Freud diria:
“A hipnose (...) oculta a resistência, e assim impede ao médico penetrar no jogo das
forças psíquicas. Mas não liquida as resistências; somente as ilude, razão pela qual não
proporciona senão dados incompletos e resultados efêmeros”.1
Freud entende o fenômeno da transferência como a reprodução, na situação
terapêutica, de experiência vividas, principalmente na infância. Tudo aquilo que o sujeito não
recorda, exatamente por estar reprimido, excluído da consciência, retorna sob a forma de atos,
representações e sentimentos que se vinculam à pessoa do terapeuta, desconectada de sua
origem no passado distante.
Enfrentando diversas dificuldades, entre 1892 e 1896, Freud desenvolve um novo
método que permitiria ao paciente, em estado consciente, recuperar as recordações que
permaneciam esquecidas: o método da associação livre.
1.2 A especificidade de um método de pesquisa
Com o abandono da hipnose, Freud estruturou um método de tratamento cujo objetivo
era o acesso ao inconsciente do paciente, por meio da associação livre, método que consiste
na expressão indiscriminada de todos os pensamentos que ocorrem ao paciente. Um paciente
que procura um psicoterapeuta em busca de alívio para o seu sofrimento é convidado a falar
sobre isso, ou sobre qualquer outra coisa que prefira. Poderá falar sobre ele mesmo, a esposa,
os filhos, o vizinho. Poderá falar sobre o passado o presente, o futuro. De fato, ele deve dizer
qualquer coisa que lhe venha à mente. Esse processo de livre associação – invenção e base
1
FREUD, S. O método psicanalítico de Freud. (1904 [1903]). In: Obras Completas de S. Freud. Buenos Aires:
Amorrortu Editores, p. 240.
9
da psicanálise -, no sentido da verbalização do próprio pensamento “aleatório”, é um
fenômeno que produz resultados extraordinários e que possui uma longa história. A julgar pela
amostra registrada na comédia de Aristófanes, As Nuvens, algo semelhante já era usado na
antiga Grécia.
A história conta que Estrepsíades, um lavrador estúpido, desonesto e mal casado vai a
Atenas consultar Sócrates sobre como poderia fraudar, com êxito, os seus credores. Sócrates
ordena-lhe que se deite [em um divã!] e expresse verbalmente suas livres associações, o que
ele tenta fazer, apesar dos percevejos no sofá e outras interrupções, enquanto Sócrates vai
apontando incoerências de seu discurso.
Freud reconheceu que, embora difícil, o método da associação livre mostrou-se o único
realmente eficaz.
O método da associação livre visa, em primeiro lugar, eliminar a seleção voluntária dos
pensamentos. Nesse sentido, mesmo os silêncios durante o discurso do paciente são
significativos. O objetivo é o de trazer à consciência, por meio da suspensão da seleção
intencional de pensamentos, um “outro discurso” determinado pelo inconsciente.
A inestimável vantagem desse procedimento em relação à hipnose é o fato de que,
através da associação livre, é possível elucidar progressivamente as resistências.
Embora seja a doença e a demanda de cura que levam o paciente ao tratamento, o
paciente não tem idéia do quanto trabalha contra o seu próprio restabelecimento e a favor de
sua doença. A força psíquica que atua para que essa situação se mantenha é a resistência e é
contra ela que trabalha continuamente o psicanalista.
Mas, de onde provêm as resistências ? Freud formula, então, a hipótese de que a
resistência é um efeito – manifesto no momento do trabalho clínico – de uma operação
inconsciente a qual denomina repressão. A repressão define-se como uma operação defensiva
mediante a qual o sujeito tenta expulsar da consciência ou manter em estado inconsciente as
representações (pensamentos, imagens, recordações) vinculada a desejos cuja satisfação, em
si mesma, pode provocar desprazer ou angústia em função de outras exigências psíquicas, por
exemplo, as aspirações morais ou ideais do eu.
O motivo da repressão é, então, o conflito psíquico que se estabelece quando se
opõem, no sujeito, exigências internas contrárias.
A repressão se refere, portanto, a um processo psíquico que se encontra na origem da
constituição do inconsciente, em todos os sujeitos2
.
2
No princípio, Freud faria coincidir repressão e inconsciente, mas esta equivalência não haveria de se
manter. Sem dúvida, a instância repressiva e as operações defensivas são, em sua maior parte
inconscientes, mas, com a formulação da segunda tópica, Freud ampliará o conceito de inconsciente,
aproximando-o do sentido a ele atribuído por outro médico alemão, Georg Groddeck (1886-1934), que,
por sua vez, havia inspirado-se em Nietzsche. O indivíduo passará a ser pensado como um Isso (Es –
10
Em Cinco Conferências sobre Psicanálise (1910[1909]), realizadas por Freud na
Clark University de Massachusetts (Estados Unidos), encontramos alusões bastante didáticas
desse processo.
Diz o autor:
“Talvez possa ilustrar o processo de repressão e a necessária relação deste com a
resistência, mediante uma comparação grosseira, tirada de nossa própria situação neste
recinto. Imaginem que nesta sala e neste auditório, cujo silêncio e cuja atenção eu não saberia
louvar suficientemente, se acha no entanto um indivíduo comportando-se de modo
inconveniente, perturbando-nos com risos, conversas e batidas de pé, desviando-me a atenção
de minha incumbência. Declaro não poder continuar assim a exposição; diante disso alguns
homens vigorosos dentre os presentes se levantam, e após ligeira luta põem o indivíduo fora
da porta. Ele está agora reprimido e posso continuar minha exposição. Para que, porém, se
não repita o incômodo se o elemento perturbador tentar penetrar novamente na sala, os
cavalheiros que me satisfizeram a vontade levam as respectivas cadeiras para perto da porta
e, consumada a repressão, se postam como resistências. Se traduzirmos agora os dois
lugares, sala e vestíbulo, para a psique, como consciente e inconsciente, os senhores terão
uma imagem mais ou menos perfeita do processo de repressão. (...)
Suponhamos que, com a expulsão do perturbador e com a guarda à porta, não
terminou o incidente. Pode muito bem ser que o sujeito, irritado e sem nenhuma consideração,
continue a nos dar que fazer. Ele já não está aqui conosco; ficamos livres de sua presença, dos
motejos, dos apartes, mas a expulsão foi por assim dizer inútil, pois lá de fora ele dá um
espetáculo insuportável, e com berros e murros na porta nos perturba a conferência mais do
que antes. Em tais conjunturas poderíamos felicitar-nos se o nosso honrado presidente, Dr.
Stanley Hall, quisesse assumir o papel de medianeiro e pacificador. Iria parlamentar com o
nosso intratável companheiro e voltaria pedindo-nos que o recebêssemos de novo, garantindo-
nos um comportamento conveniente daqui por diante. Graças à autoridade do Dr. Hall,
condescendemos em desfazer a repressão, voltando a paz e ao sossego. Eis uma
representação muito apropriada da tarefa que cabe ao médico na terapêutica psicanalítica das
neuroses.
Agora, para dizê-lo sem rodeios: chegamos à convicção, pelo exame dos doentes
histéricos e outros neuróticos, de que a repressão das idéias, a que o desejo insuportável está
apenso (anexado), malogrou. Expeliram-nas da consciência e da lembrança; com isso os
pacientes se livraram aparentemente de grande soma de dissabores. Mas o impulso desejoso,
que continua a existir no inconsciente à espreita de oportunidade para se revelar, concebe a
pronome alemão neutro da terceira pessoa do singular) desconhecido e inconsciente, sobre cuja
superfície aparece o eu.
11
formação de um substituto do reprimido, disfarçado e irreconhecível, para lançar à
consciência, substituto ao qual logo se liga a mesmas sensação de desprazer que se julgava
evitada pela repressão. Esta substituição da idéia reprimida — o sintoma — é protegida contra
as forças defensivas do ego e em lugar do breve conflito, começa então um sofrimento
interminável. No sintoma, junto aos indícios de desfiguração, cabe reconhecer traços de
semelhança com a idéia originariamente reprimida. Pelo tratamento psicanalítico desvenda-se
o trajeto ao longo do qual se realizou a substituição, e para a recuperação é necessário que o
sintoma seja reconduzido, novamente, pelos mesmos caminhos, até a idéia reprimida.”
A experiência mostrou que ao fazer o paciente ou qualquer indivíduo rastrear suas
representações mnêmicas para alcançar estratos mais profundos de sua memória, por meio da
associação livre, um mesmo fenômeno ou ato psíquico passava por diferentes fases ou
diferentes estados, entre os quais se intercalava uma espécie de prova (censura) que, se não
fosse vencida, não permitiria que o conteúdo a ser recordado alcançasse a consciência.
No caso de mecanismo da histeria, Freud o resume no Projeto (1895) da seguinte
forma: seja A uma representação hiperintensa que todas as vezes que surge na consciência
leva o sujeito ao choro, sem que haja na própria representação motivos para isso. Após
análise, descobre-se a existência de uma certa representação B, que fornece motivos
suficientes para o choro, mas que até então não era consciente. Supõe Freud, então, que a
vivência original compunha-se de B + A, onde B exercia apropriadamente o efeito e A
constituía uma circunstância acessória. No entanto, na reprodução do acontecimento na
memória, A tomou o lugar de B como vivência principal, tornando-se a única consciente. A
tornou-se símbolo de B, e, embora formações de símbolos ocorram normalmente no cotidiano,
no caso associativo da compulsão histérica acima descrita, o sujeito que chora por A não sabe
que o faz devido à sua associação com B, que lhe é indiferente.
Freud resume tal vivência atribuindo a B a característica de estar recalcado da
consciência.3
No caso do deslocamento operado na situação, mudou-se a distribuição
quantitativa, já que o acréscimo quantitativo de A se deveu à uma subtração quantitativa de B.
“Uma vez restituído à atividade anímica consciente aquilo que fora reprimido — e isso
pressupõe a superação de consideráveis resistências- o conflito psíquico desse modo gerado e
que o enfermo quis evitar, encontra, orientado pelo médico, uma solução melhor do que lhe
oferecia a repressão. Há várias dessas soluções para rematar satisfatoriamente conflito e
neurose, as quais, em determinados casos, podem combinar-se entre si. Ou a personalidade
3
Segundo o Vocabulário de Psicanálise, de Laplanche e Pontalis, recalque significa uma operação
pela qual o indivíduo procura repelir ou manter no inconsciente representações (pensamentos, imagens,
recordações) ligadas a uma pulsão. O recalcamento produz-se nos casos em que a satisfação de uma
pulsão – suscetível, por si mesma, de proporcionar prazer – ameaçaria provocar desprazer
relativamente a outras exigências psíquicas.
12
do enfermo se convence de que repelira sem razão o desejo e consente em aceitá-lo total ou
parcialmente, ou este mesmo desejo é dirigido para um alvo irrepreensível e mais elevado (o
que se chama sublimação do desejo), ou, finalmente, reconhece como justa a repulsa. Nesta
última hipótese o mecanismo da repressão, automático, e por isso mesmo insuficiente, é
substituído por um julgamento de condenação com a ajuda das mais altas funções mentais do
homem — assim se obtém o controle consciente do desejo”.
Posteriormente, Freud continua suas explicações em relação à técnica e ao método
psicanalítico:
“A elaboração das idéias que se oferecem ao paciente quando se submete à regra
psicanalítica fundamental não é o único recurso técnico para atingir o inconsciente. Ao mesmo
fim servem dois outros processos: a interpretação de sonhos e o estudo dos atos falhos e
casuais.
(...). A interpretação de sonhos é na realidade a estrada real para o conhecimento do
inconsciente, a base mais segura da psicanálise. É campo onde cada trabalhador pode por si
mesmo chegar a adquirir convicção própria, como atingir maiores aperfeiçoamentos. Quando
me perguntam como pode uma pessoa fazer-se psicanalista, respondo que é pelo estudo dos
próprios sonhos. Os adversários da psicanálise, com muita habilidade, têm até agora evitado
estudar de perto A Interpretação de Sonhos, ou têm oposto ao de longe objeções
superficialíssimas. Se não repugna aos presentes, ao contrário, aceitar as soluções dos
problemas da vida onírica, já não apresentam aos ouvintes dificuldade alguma as novidades
trazidas pela psicanálise. (...)
Examinando os sonhos de criancinhas, desde um ano e meio de idade, verificarão que
eles são extremamente simples e de fácil explicação. A criancinha sonha sempre com a
realização de desejos que o dia anterior lhe trouxe e que ela não satisfez. Não há necessidade
de arte divinatória para encontrar solução tão simples; basta saber o que se passou com a
criança na véspera (“dia do sonho”). Estaria certamente resolvido, e de modo satisfatório, o
enigma do sonho, se o do adulto não fosse nada mais que o da criancinha: realização de
desejos trazidos pelo dia do sonho. E o é de fato. As dificuldades que esta solução apresenta
removem-se uma a uma, mediante a análise minuciosa dos sonhos.
A primeira e mais importante objeção é a de que os sonhos dos adultos via de regra
têm um conteúdo ininteligível, sem nenhuma semelhança com a satisfação de desejos. Mas a
resposta é: estes sonhos estão distorcidos, o processo psíquico correspondente teria
originariamente uma expressão verbal muito diversa. O conteúdo manifesto do sonho,
recordado vagamente de manhã e que, não obstante a espontaneidade aparente, se exprime
em palavras com esforço, deve ser diferenciado dos pensamentos oníricos latentes, que
supomos existir no inconsciente. Esta deformação possui mecanismo idêntico ao que
13
identificamos ao investigar a gênese dos sintomas histéricos; e é uma prova da participação
da mesma interação de forças mentais tanto na formação dos sonhos como na dos sintomas.
O conteúdo manifesto do sonho é o substituto distorcido dos pensamentos oníricos
inconscientes, e esta deformação é obra das forças defensivas do eu, isto é, das resistências
que na vigília impedem aos desejos reprimidos do inconsciente todo o acesso à consciência; e
que, mesmo enfraquecidas durante o sono, ainda conservam força suficiente para obrigar (o
sonho) a adotar um disfarce encobridor. Quem sonha, portanto, reconhece tão mal o sentido de
seus sonhos, como o histérico as correlações e a significação de seus sintomas.
De que há pensamentos latentes do sonho e que entre eles e o conteúdo manifesto
existe de fato o nexo aludido, os presentes se convencerão pela análise de sonhos, cuja
técnica se confunde com a da psicanálise. Pondo de lado a aparente conexão dos elementos
do sonho manifesto, procurarão os senhores evocar idéias por livre associação, que para cada
elemento onírico singular se obtém na associação livre, seguindo a regra do trabalho
psicanalítico. A partir deste material chegarão aos pensamentos oníricos latentes do mesmo
modo como conseguiram alcançar, a partir das idéias evocadas pelas associações livres em
relação aos sintomas e lembranças dos pacientes, o complexo oculto. (...)
Posso agora tratar do terceiro grupo de fenômenos psíquicos cujo estudo se tornou
recurso técnico da psicanálise.
Os fenômenos em questão são as pequenas falhas comuns aos indivíduos normais e
aos neuróticos, fatos aos quais não costumamos dar importância — o esquecimento de coisas
que deviam saber e que às vezes sabem realmente (por exemplo a fuga temporária dos nomes
próprios), os lapsos de linguagem, tão freqüentes até mesmo conosco, na escrita ou na leitura
em voz alta; atrapalhações no executar qualquer coisa, perda ou quebra de objetos etc.,
bagatelas de cujo determinismo psicológico de ordinário não se cuida, que passam sem reparo
como casualidades, como resultado de distrações, desatenções e outras condições
semelhantes. Juntam-se ainda os atos e gestos que as pessoas executam sem perceber e,
sobretudo, sem lhes atribuir importância mental, como sejam trautear melodias, brincar com
objetos, com partes da roupa ou do próprio corpo etc. Essas coisinhas, os atos falhos, como
atos sintomáticos e fortuitos, não são assim tão destituídos de valor como, por uma espécie de
acordo tácito, é hábito admitir. São extraordinariamente significativos e (...) exprimem impulsos
e intenções que devem ficar ocultos à própria consciência, ou emanam justamente dos desejos
reprimidos e dos complexos que, como já sabemos, são criadores dos sintomas e formadores
dos sonhos.(...) Por eles o homem trai, em regra, os mais íntimos segredos.”
14
•Freud e Sherlock Holmes ?
A perspicácia de Freud para encontrar nos pequenos atos – em geral, desprezíveis- a
pista que o levaria ao “pondo nodal” da trama em questão levaria vários observadores a
comparar o método psicanalítico a um processo de investigação criminal.
O próprio Freud, em suas Conferências Introdutórias (1915-16) afirma:
“E se fosse um detetive empenhado em localizar um assassino, esperaria achar que o
assassino deixou para trás sua fotografia, no local do crime, com seu endereço assinalado? Ou
não teria, necessariamente, de ficar satisfeito com vestígios fracos e obscuros da pessoa que
estivesse procurando? Assim sendo, não subestimemos os pequenos indícios; com sua ajuda
podemos obter êxito ao seguirmos a pista de algo maior”.
Essa característica metodológica da psicanálise não passaria desapercebida do escritor
Nicholas Meyer, que escreveria um conto que se tornou best-seller em vários idiomas, e foi
adaptado para o cinema, no qual o escritor aproxima o famoso detetive Sherlock Holmes do
psicanalista vienense.
Assim como Freud, as soluções de Holmes, personagem de Conan Doyle, baseavam-se
na capacidade que tinha de dar atenção aos pequenos fatos incomuns, encontrando a solução
de um problema complicado através da observação de um pequeno lapso ou característica
menor. Eis um pequeno exemplo:
Dr. Watson acaba de chegar inesperadamente à Baker Street, 221 B, esperando
persuadir o grande detetive a acompanhá-lo em suas férias. Antes que comece a falar, Holmes
diz, claramente, qual o objetivo daquela visita:
(Nas palavras de Holmes):
"Conhecendo bem você como conheço, é absurdamente simples. Seus horários de
cirurgia são das cinco às sete; contudo, às seis horas você entra sorrindo em meus aposentos.
Portanto, você deve ter um substituto. Você parece bem, mas cansado; então, a razão óbvia é
que você está tendo ou está para ter férias. O termômetro clínico aparecendo em seu bolso
declara que você esteve de ronda hoje; portanto, é bastante evidente que suas férias
verdadeiras começam amanhã. Quando, sob estas circunstâncias, você vem apressado aos
meus aposentos - os quais, a propósito, Watson, você não visita há três meses - , com um
Bradshaw novo e uma tabela de horários de excursões inchando o bolso do seu casaco, então
é mais do que provável que você tenha vindo com a idéia de sugerir alguma expedição
conjunta".
Mas segundo os historiadores, algo mais do que simples coincidências aproximaram
historicamente o criador de Sherlock Holmes, Conan Doyle e o método psicanalítico.
Conan Doyle nunca fez segredo de seu débito à Joseph Bell, um cirurgião de Edinburgh,
para a criação do personagem Sherlock Holmes. Bell, que podia diagnosticar pessoas assim
15
que elas entravam em seu consultório, antes mesmo que pudessem pronunciar a primeira
palavra, definia a habilidade de reconhecer e apreciar as pequenas diferenças ou detalhes
como o fator verdadeiramente essencial em todo diagnóstico médico bem sucedido.
Além disso, Conan Doyle teve um tio que fora diretor da Galeria de Arte de Dublin e
franco admirador do trabalho do médico italiano Giovanni Morelli (1816-1891), o qual era capaz
de determinar, na pintura, os atributos específicos que habilitam um crítico de arte a distinguir
entre a obra de um mestre e de um simples imitador. A solução de Morelli aponta para os
detalhes triviais, que caracterizam o estilo de cada artista. Segundo Morelli: “(...) para identificar
as formas características de um artista, precisamos nos remeter àquelas partes da pintura
sobre as quais existam menos pressões convencionais (...) Por isso, precisamos levar a sério a
representação da mão, as cortinas, a paisagem, a parte arredondada do polegar ou o lóbulo da
orelha” 4
.
Embora não se pudesse esperar que muitos médicos conhecessem o trabalho de Morelli
ou que se interessassem pela história da arte, Freud escreve em seu artigo sobre o Moisés de
Michelângelo (1914):
“Muito antes que pudesse dar-me conta da descoberta da psicanálise, soube que um
conhecedor de arte russo, Ivan Lermolieff, provocara uma revolução nas galerias de arte da
Europa revisando a autoria de muitos quadros, ensinando a distinguir com segurança as cópias
dos originais, e desmascarando novos artistas, cuja suposta autoria das obras demonstrou ser
falsa. Conseguiu tudo isso insistindo em que a atenção deveria ser desviada da impressão
geral e das características principais de um quadro, dando-se ênfase às características dos
detalhes de menor importância, como o formato das unhas, dos lóbulos das orelhas, as
auréolas dos santos e outras trivialidades cuja imitação o copista omitia5
e que, sem dúvida,
cada artista executa de uma maneira característica. (...) sob esse pseudônimo russo ocultava-
se um médico italiano chamado Morelli, falecido em 1891 (...). Parece-me que seu método de
investigação tem estreita relação com a técnica da psicanálise. Também esta está habituada a
deduzir, a partir de traços pouco percebidos ou aspectos menosprezados, coisas secretas ou
encobertas (...)6
Em Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901), Freud nos fornece um exemplo
bastante ilustrativo da utilização de seu método em relação a um lapso de fala, narrando uma
experiência do cotidiano:
“No verão passado — também durante uma viagem de férias —. renovei meu contato
com um jovem de formação acadêmica, que logo constatei estar familiarizado com algumas de
minhas publicações psicológicas. Nossa conversa recaiu — já não me lembro como — sobre a
4
WOLLHEIM, apud SHEPHERD, p. 20.
5
No sentido de que descuidava, não observava.
6
AE, vol. 13, p. 227.
16
situação social da raça a que ambos pertencemos, e ele, impelido pela ambição, passou a
lamentar-se por sua geração estar condenada à atrofia (segundo sua expressão), não podendo
desenvolver seus talentos ou satisfazer suas necessidades. Concluiu seu discurso, de tom
apaixonado, com o célebre verso de Virgílio em que ainfeliz Dido confia à posteridade sua
vingança de Enéias: “Exoriare…” Melhor dizendo, ele quis concluí-lo desse modo, pois não
conseguiu fazer a citação e tentou esconder uma evidente lacuna em sua lembrança trocando
a ordem das palavras: “Exoriar(e) ex nostris ossibus ultor.’’ Por fim, disse, irritado: “Por favor,
não me faça essa cara tão zombeteira, como se se estivesse comprazendo com meu
embaraço, mas antes me ajude! Falta alguma coisa no verso. Como é mesmo que diz,
completo?”
“Ajudarei com prazer”, respondi, e dei-lhe a citação correta: “Exoriar(e) ALIQUIS nostris
ex ossibus ultor.”
“Que tolice, esquecer essa palavra! Por falar nisso, o senhor diz que nunca se esquece
nada sem uma razão. Gostaria muito de saber como foi que esqueci esse pronome indefinido,
‘aliquis‘.”
Aceitei o desafio prontamente, na esperança de conseguir uma contribuição para minha
coleção. Disse-lhe, pois:
—Isso não nos deve tomar muito tempo. Só tenho que lhe pedir que me diga,
sinceramente e sem nenhuma crítica, tudo o que lhe ocorre enquanto estiver dirigindo, sem
nenhuma intenção definida, sua atenção para a palavra esquecida.
—“Certo; então me ocorre a idéia ridícula de dividir a palavra assim: a e liquis.”
—O que quer dizer isso?
—“Não sei.” — E o que mais lhe ocorre? — “Isso continua assim: Reliquien [relíquias],
liquefazer, fluidez, fluido. O senhor já descobriu alguma coisa?”
—Não, ainda não. Mas continue.
—“Estou pensando” — prosseguiu ele com um sorriso irônico — “em Simão de Trento,
cujas relíquias vi há dois anos numa igreja de Trento. Estou pensando na acusação de
sacrifícios de sangue que agora está sendo lançada de novo contra os judeus, e no livro de
Kleinpaul [1892], que vê em todas essas supostas vítimas reencarnações, reedições, por assim
dizer, do Salvador.”
—Essa idéia não está inteiramente desligada do tema de nossa conversa antes que lhe
escapasse da memória a palavra latina.
—“Exato. Estou pensando ainda num artigo que li recentemente num jornal italiano.
Acho que o título era ‘O que diz Santo Agostinho sobre as mulheres’. Que entende o senhor
com isso?”
—Estou esperando.
17
—“Pois agora vem algo que por certo não tem nenhuma ligação com o nosso tema.”
—Por favor, peço-lhe que se abstenha de qualquer crítica e…
—“Sim, já sei. Lembro-me de um magnífico senhor idoso que encontrei numa de minhas
viagens na semana passada. Ele era realmente original. Parecia uma enorme ave de rapina.
Chamava-se Benedito, se isso lhe interessa.”
—Bem, pelo menos temos uma seqüência de santos e padres da Igreja: São Simão,
Santo Agostinho, São Benedito. Acho que havia um padre da Igreja chamado Orígenes. Além
disso, três desses nomes são também prenomes, como Paul [Paulo] em Kleinpaul.
—“Agora o que me ocorre é São Januário e o milagre de seu sangue — parece que
meus pensamentos avançam mecanicamente.”
—Deixe estar; São Januário e Santo Agostinho têm a ver, ambos, com o calendário.
Mas que tal me ajudar a lembrar do milagre do sangue?
—“O senhor com certeza já ouviu falar nisso! O sangue de São Januário fica guardado
num pequeno frasco, numa igreja de Nápoles, e num determinado dia santo ele se liquefaz
milagrosamente. O povo dá muita importância a esse milagre e fica muito agitado quando há
algum atraso, como aconteceu, certa vez, na época em que os franceses ocupavam a cidade.
Então, o general comandante — ou será que estou enganado? será que foi Garibaldi? —
chamou o padre de lado e, com um gesto inequívoco na direção dos soldados a postos do lado
de fora, deu-lhe a entender que esperava que o milagre acontecesse bem depressa. E, de fato,
o milagre ocorreu…”
—Bem, continue. Por que está hesitando?
—“É que agora realmente me ocorreu uma coisa… mas é íntima demais para ser
comunicada… Além disso, não vejo nenhuma ligação nem qualquer necessidade de contá-lo”.
—Pode deixar a ligação por minha conta. É claro que não posso forçá-lo a falar sobre
uma coisa que lhe seja desagradável; mas então não queira saber de mim como foi que se
esqueceu da palavra aliquis.
—“Realmente? O senhor acha? Pois bem, é que de repente pensei numa dama de
quem eu poderia receber uma notícia que seria bastante desagradável para nós dois.”
—Que as regras dela não vieram?
—“Como conseguiu adivinhar isso?”
—Já não é difícil. Você preparou bem o terreno. Pense nos santos do calendário, no
sangue que começa a fluir num dia determinado, na perturbação quando esse acontecimento
não se dá, na clara ameaça de que o milagre tem que se realizar, se não… Na verdade, você
usou o milagre de São Januário para criar uma esplêndida alusão às regras das mulheres.
18
—“Sem me dar conta disso. E o senhor realmente acha que foi essa expectativa
angustiada que me deixou impossibilitado de reproduzir uma palavra tão insignificante como
aliquis?”
—Parece-me inegável. Basta lembrar sua divisão em a-liquis, e suas associações:
relíquias, liquefazer, fluido. São Simão foi sacrificado quando criança; devo continuar, e mostrar
como ele entra nesse contexto? O senhor pensou nele partindo do tema das relíquias.
—‘’Não, prefiro que não faça isso. Espero que o senhor não leve muito a sério esses
meus pensamentos, se é que realmente os tive. Em troca, quero confessar que a dama é
italiana e que estive em Nápoles com ela. Mas será que tudo isso não é apenas obra do
acaso?”
—Tenho que deixar a seu critério decidir se todas essas relações podem ser explicadas
pela suposição de que são obra do acaso. Posso dizer-lhe, no entanto, que qualquer caso
semelhante que você queira analisar irá levá-lo a “acasos” igualmente notáveis.
Tenho diversas razões para dar valor a essa pequena análise e sou grato a meu ex-
companheiro de viagem por ter-me presenteado. Em primeiro lugar, porque, nesse caso, pude
recorrer a uma fonte que habitualmente me é negada. Para os exemplos aqui reunidos de
perturbações de uma função psíquica na vida cotidiana, tenho de recorrer principalmente à
auto-observação. Empenho-me em evitar o material muito mais rico fornecido por meus
pacientes neuróticos, já que, de outro modo, poder-se-ia objetar que os fenômenos em questão
são meras conseqüências e manifestações da neurose. Por isso, é particularmente valioso
para meus objetivos que uma outra pessoa que não sofra de doença nervosa se ofereça como
objeto de tal investigação. (...).A situação dever ser interpretada da seguinte maneira: o falante
vinha deplorando o fato de a geração atual de seu povo estar privada de seus plenos direitos;
uma nova geração — profetizou ele, como Dido — haveria de vingar-se dos opressores. Nisso
ele expressara seu desejo de ter descendentes. Nesse momento intrometeu-se um
pensamento contraditório: “Você realmente deseja descendentes com tanta intensidade? Isso
não é verdade. Quanto não lhe seria embaraçoso receber agora a notícia de que espera
descendentes do lugar que você sabe? Não: nada de descendentes… por mais que
precisemos deles para a vingança.”
19
2. DO PROJETO À INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS.
A PRIMEIRA TÓPICA
2.1 O Projeto de Psicologia
É na tentativa de formular uma psicologia isenta de contradições que Freud apresenta,
em seu Projeto de Psicologia (1895), os processos psíquicos como "estados
quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis". 7
Tais partículas
seriam os neurônios.
Duas seriam as classes de neurônios: 1.a células de recordação, ou neurônios ψ -
neurônios que operariam com barreiras de contato, deixando que o fluxo de quantidade passe
com dificuldade ou só parcialmente, apresentando, após a passagem de cada excitação, um
estado diverso do anterior, permitindo com isso uma possível constituição da memória; 2.a
células de percepção, ou neurônios φ, - neurônios que operariam como se não possuíssem
nenhuma barreira de contato.
As resistências (situadas nos contatos entre os neurônios, como barreiras) explicariam o
armazenamento de quantidade no interior dos sistemas.
A memória, portanto, é vista como uma propriedade do tecido nervoso, como uma
disponibilidade do mesmo para ser alterado por um processo singular em contraposição a outro
tipo de tecido, que permite a passagem de um movimento de onda sem receber qualquer
vestígio posterior de sua passagem.
Além dos neurônios de memória e percepção, Freud postularia a existência de uma
terceira classe de neurônios, os neurônios ω, responsáveis por explicar a consciência.
É no Projeto que Freud postula o princípio da constância, segundo o qual o sistema
tende a manter constante ou o mais baixa possível a quantidade, ao mesmo tempo em que se
defende de qualquer acréscimo.
Freud supõe a constituição primitiva do aparelho como determinada pela marca da
experiência fundamental de um organismo que, embora tendo como meta a sobrevivência, não
tem inicialmente condições de assegurá-la, por não possuir meios de agir sobre o mundo
exterior a fim de modificá-lo.
O organismo humano, desamparado ao nascimento, depende de um outro para realizar
uma ação, chamada de específica, que, além de assegurar-lhe a vida, possibilita-lhe suprimir o
excesso de estimulação endógena provocado pela não satisfação da necessidade. À
realização da ação específica segue-se um estado de bem-estar, sendo que ao conjunto dessa
experiência Freud denomina vivência de satisfação.
7
AE, vol. 1, p. 339
20
Como conseqüência dessa vivência inicial de satisfação, a cada novo estado de
pressão, ou de desejo, a imagem mnêmica do objeto de satisfação será reativada no aparelho,
provocando um efeito essencialmente alucinatório. A partir de então o desejo pode ser
pensado como um movimento de natureza psíquica, uma vez que a experiência da
presentificação de um objeto, independente de sua presença real, escapa à ordem da qual o
desejo primordialmente emergiu.
Vemos, portanto, que a noção de desejo no Projeto já nasce intrinsecamente
relacionada à noção de alucinação, ambas vinculadas à vivência de satisfação.
O que passa a ocorrer, então, é que a cada novo investimento 8
dos neurônios ψ (do
núcleo) pelos estímulos endógenos, tanto a imagem mnêmica do objeto de desejo quanto a da
ação reflexa são reativadas, resultando com isso num alucinar da vivência de satisfação. O
desengano só poderá ser resolvido na medida em que, pela ausência da ação específica, o
organismo se der conta de que a fonte de estimulação endógena não foi cancelada.
Tal solução, no entanto, não se aplica ao sonho, onde não há critério que torne possível
a diferenciação entre percepção do objeto real e reanimação da imagem mnêmica desse
mesmo objeto. Não há, portanto, nenhuma maneira de impedir o alucinar daquele que se
encontra em estado de sono. No sonho não há um critério que possibilite a distinção entre
representação e percepção. E esse critério é necessário tanto para que o estado de desejo não
invista o objeto de recordação sem a presença do objeto real - do qual depende a satisfação -,
quanto para evitar o reinvestimento de uma possível imagem mnêmica hostil, impedindo que se
siga a liberação de desprazer.
A um investimento quantitativo exacerbado do objeto de desejo, segue-se uma
reanimação alucinatória da representação desse objeto, que faz com que ω tome a recordação
como percepção e decrete a descarga, fracassando, dessa forma, como critério demarcatório
de realidade objetiva.
O critério que irá operar tal distinção é atribuído por Freud à inibição pelo eu,
corroborada pela advertência da experiência biológica de não iniciar a descarga antes do
surgimento do sinal de realidade objetiva, para que o limite no investimento das recordações de
desejo não ultrapasse certo limiar.
A partir de então é que Freud distingue processos psíquicos primários e processos
psíquicos secundários, atribuindo aos primeiros o investimento do desejo até a alucinação,
8
Investimento: palavra que deve ser traduzida levando-se em conta a significação do termo original em
alemão. Besetzung, palavra composta pelo prefixo be e pelo verbo setzen, remete à ação de colocar
em um espaço um objeto que vem de outro lugar, ocupando este lugar. Em relação ao verbo setzen, há
uma plasticidade imagética e uma mobilidade inerente ao verbo (que pressupõe a ação de colocar e
retirar, novamente). Em geral, a conotação de Bezetzung liga-se à idéia de fluidez, algo pertinente ao
modelo freudiano de circulação energética, onde há vias, locais, entradas, saídas, bloqueios, etc.
21
bem como a irrupção do desprazer, e, aos segundos, a modificação dos primeiros através da
inibição do eu, o que possibilita a valorização correta dos signos de realidade objetiva e o
discernimento ou o ato de julgar, provocado pela dessemelhança entre o investimento de
desejo de uma recordação e um investimento perceptivo semelhante à ela. A coincidência dos
investimentos coloca fim ao ato de pensar, permitindo a descarga; a discordância impulsiona o
trabalho do pensamento na busca de nova identidade.
O sono, que se caracteriza por uma paralisia motora do sujeito, inicia-se por um
fechamento dos órgãos dos sentidos. Com o caminho da descarga motora barrado, a excitação
proveniente de fonte endógena encontra-se livre para operar o processo que Freud
denominava no Projeto (1895) de compulsão a associar. Ψ fecha-se às impressões de φ,
enquanto φ não está investido. É o sono, portanto, a condição para a ocorrência de sonhos ou,
mais especificamente, de processos primários em Ψ. Diferentemente dos processos
secundários, que visam uma identidade de pensamento, os processos primários visam uma
identidade de percepção,
Como o sono é o único estado, comum a todos os homens, em que cada sujeito vivencia
cotidianamente o processo alucinatório, independente de ter ou não qualquer
comprometimento psíquico, sem que isso acarrete os danos que uma irrupção do mesmo
processo acarretaria na vigília, é à sua elucidação como caráter próprio do sonho que Freud
dirige seus esforços no capítulo VII da obra que considera o seu trabalho mais importante: A
Interpretação dos Sonhos(1900).
2.2 A interpretação dos sonhos
Sem abandonar suas idéias fundamentais, em A Interpretação dos Sonhos Freud
passa a especificar o sentido dos conteúdo inconscientes, ou seja, o sentido daquilo que se
alucina cotidianamente, por meio do que chamamos sonho. As conseqüências de tal
descoberta marcariam definitivamente o rompimento do autor com a dicotomia normalidade X
anormalidade, ou sanidade X loucura, uma vez que os mesmos mecanismos, presentes nas
neuroses e, mais tarde, como veremos, também nas psicoses, fazem parte de nosso cotidiano
e da história do desenvolvimento de cada indivíduo.
2.2.1.O caráter alucinatório dos sonhos e a regressão
Da conjectura de Fechner de que "o cenário dos sonhos é outro que o da vida de
representações da vigília"9
Freud introduz a idéia de localidade psíquica, frisando
principalmente o caráter psicológico e não anatômico dessa localidade. Utilizando, como
analogia, a representação auxiliar de um aparelho ótico, o autor encontra a correspondência da
22
localidade psíquica em um lugar no interior desse aparelho de lentes onde se "produzem um
dos estágios prévios da imagem"10
, exatamente num lugar onde nenhum componente do
aparelho é apreensível.
Assim sendo, Freud constrói a hipótese de um aparelho psíquico 11
com base no
modelo ótico, supondo que tudo o que pode ser objeto de nossa percepção interior é virtual,
tal e qual as imagens que surgem entre as lentes do telescópio quando da propagação de luz.
Freud supõe o aparelho psíquico como um instrumento no qual os elementos,
chamados sistemas ψ, dispõem-se sucessivamente numa sequência fixa, distribuídos como as
lentes de um telescópio, possuindo um extremo sensorial, por onde recebe as percepções, e
um extremo motor, pelo qual o fluxo dos estímulos sensoriais encontra saída por meio da
motilidade. O processo psíquico distribui-se, nesse aparelho, de forma reflexa, obedecendo a
direção que vai do extremo da percepção à motilidade.
Quando da passagem das percepções o aparelho retém um registro que Freud chamou
de registro mnêmico, alterando com ele o sistema que o conserva.
O que Freud propõe para responder pelo caráter alucinatório dos sonhos é uma
inversão no caminho do fluxo excitatório, que, ao invés de tomar a direção progressiva da
vigília, que vai do extremo sensorial ao extremo motor do aparelho, propaga-se exatamente na
direção inversa, tomando uma direção regressiva.
Essa direção regressiva, ou regressão, é considerada por Freud como uma das
características psicológicas do processo onírico, essencial para explicar seu caráter
alucinatório, embora, como esse último, não pertença exclusivamente aos sonhos, ocorrendo
na vigília em processos que envolvam um retrocesso mnêmico, como é o caso das psicoses.
9
AE, vol. 5, p. 530; GW, vol. II/III, p. 541
10
AE, vol. 5, p. 530; GW, vol. II/III, p. 541
11
Aparelho psíquico: expressão utilizada para designar características próprias do psiquismo: a sua
capacidade de transmitir e de transformar uma energia determinada e sua diferenciação em sistemas
ou instâncias. Freud explica o seu funcionamento tomando como referência a concepção
neurofisiológica do arco-reflexo. O sistema nervoso tem um extremo sensorial (terminações nervosas
dos órgãos dos sentidos) por onde recebe as excitações ou quantidades de energia oriundas dos
estímulos, e um extremo motor, por onde se descarrega a energia recebida mediante uma resposta
motora. Entre ambos situam-se os centros nervosos da medula espinhal ou do cérebro, encarregados
de receber a energia e transformá-la em ação, com o conseqüente efeito de reduzir a tensão gerada
pelo estímulo.
O aparelho psíquico, em sua origem, funciona como um aparelho reflexo: toda a nossa atividade
psíquica parte de estímulos, sejam externos ou internos, e termina em enervações motoras. Freud
supõe, portanto, um aparelho que possui um extremo sensorial, que recebe as percepções, e um
extremo motor, que controla a passagem para a ação. Entre ambos os extremos do aparelho se
interpõem os registros mnêmicos, ou seja, as marcas deixadas pelas experiências vividas pela criança
desde o seu nascimento. As marcas dessas percepções deixadas no psiquismo tornam possível a
memória. Além de assegurar a permanência do conteúdo das percepções, estas encontram-se
enlaçadas entre si na memória, configurando redes associativas. A conseqüência é que a excitação
tenderá a seguir os caminhos traçados por essas redes.
23
O processo ocorre, então, na direção contrária -regressiva- uma vez que faz com
que os pensamentos convertam-se na imagem sensorial que os teria originado.
Ao vincular a regressão com o aparelho psíquico anteriormente suposto, Freud encontra
explicação para o fato empírico de que, a partir do trabalho do sonho, desaparecem ou ficam
quase impossibilitadas de expressão as relações lógicas entre os pensamentos oníricos.
Em relação a essas regressões, facilmente observadas nas alucinações da histeria, da
paranóia e nas visões de pessoas normais, o processo regressivo traduz-se igualmente na
mudança de pensamentos em imagens, restringindo essa mudança a pensamentos que estão
intimamente conectados às recordações sufocadas ou que mantêm-se inconscientes.
Segundo Freud: "O sonho, então, pensa de maneira predominante, ainda que não
exclusiva, por imagens visuais." Ainda continua: " Não obstante, a única característica do
sonho são esses elementos do conteúdo que se comportam como imagens, vale dizer, se
assemelham mais a percepções que a representações mnêmicas. Deixando de lado as
discussões acerca da natureza da alucinação, bem conhecidas de todos os psiquiatras,
podemos enunciar, seguindo a todos os autores versados na matéria, que o sonho alucina,
substitui pensamentos por alucinações." 28
No sentido de comprender a origem desse caráter peculiar dos sonhos Freud retoma o
esquema da vivência de satisfação formulado no Projeto, na seção C do capítulo VII de A
Interpretação dos Sonhos, em que uma parte essencial desta vivência é a associação da
imagem mnêmica de uma determinada percepção (a amamentação, por exemplo) ao traço
deixado na memória pela excitação produzida pela necessidade.
Com o reaparecimento da necessidade, uma moção psíquica será suscitada por
associação e tentará investir novamente a imagem mnêmica daquela percepção, a fim de
reproduzir a mesma percepção, restabelecendo a situação de satisfação primitiva. A essa
moção psíquica Freud chama de desejo. A reaparição da percepção ligada à satisfação da
necessidade é a realização de desejo, sendo o caminho mais curto para esta realização
aquele que vai da excitação eliciada pela necessidade ao total investimento da percepção. Aqui
se reproduziria, portanto, um estado primitivo do aparelho psíquico, onde o estado de desejo
termina num alucinar da satisfação.
No sentido de comprender a origem desse caráter peculiar dos sonhos Freud
retoma o esquema da vivência de satisfação formulado no Projeto, na seção C do capítulo VII
de A Interpretação dos Sonhos, em que uma parte essencial desta vivência é a associação
da imagem mnêmica de uma determinada percepção (a amamentação, por exemplo) ao traço
deixado na memória pela excitação produzida pela necessidade.
28 AE, vol. 4, p. 73; GW, vol. II/III, p. 52
24
Com o reaparecimento da necessidade, uma moção psíquica será suscitada por
associação e tentará investir novamente a imagem mnêmica daquela percepção, a fim de
reproduzir a mesma percepção, restabelecendo a situação de satisfação primitiva. A essa
moção psíquica Freud chama de desejo. A reaparição da percepção ligada à satisfação da
necessidade é a realização de desejo, sendo o caminho mais curto para esta realização
aquele que vai da excitação eliciada pela necessidade ao total investimento da percepção. Aqui
se reproduziria, portanto, um estado primitivo do aparelho psíquico, onde o estado de desejo
termina num alucinar da satisfação.
Tanto a inibição da regressão quanto o desvio da excitação passam ao sistema
responsável pela motilidade voluntária.
Freud deduz, a partir daí, que toda atividade de pensamento requerida para estabelecer
a identidade perceptiva com o mundo exterior, nada mais é do que um rodeio para a realização
de desejo, imposto como necessário pela experiência.
O pensar é, desse modo, um substituto do desejo alucinatório, o que evidencia ser o
sonho uma realização de desejo, uma vez que só um desejo pode levar ao trabalho o aparelho
psíquico. O sonho conserva, portanto, o modo primário de trabalho do aparelho.
O processo primário está ligado à tendência original do aparelho psíquico de
descarregar a soma de excitação, percebida de modo subjetivo como desprazerosa ou
desagradável. A excitação segue uma via progressiva, que vai do extremo sensorial-perceptivo
até o extremo motor.
No entanto, a excitação pode tomar o caminho regressivo, se propagando para o
sistema perceptivo. Ë o que ocorre nos sonhos: a representação transforma-se na imagem
sensorial da qual havia originado. No entanto, esse processo não é exclusivo dos sonhos. Ele
ocorre na vigília, seja por meio da memória voluntária, da reflexão, ou de outros modos de
pensamento que pressupõem um retrocesso dentro do aparelho. Nesses casos, a regressão
não avança além das imagens mnêmicas e não chega a reanimar as imagens perceptivas,
convertendo-as em alucinações, como ocorre no sonho e nas psicoses.
" (...) O sonhar em seu conjunto é uma regressão à condição mais prematura do
sonhante, uma reanimação de sua infância, das moções pulsionais que o governaram então e
dos modos de expressão de que dispunha. Por trás dessa infância individual, há a promessa
de alcançar uma perspectiva sobre a infância filogenética, sobre o desenvolvimento do gênero
humano, do qual o indivíduo é de fato uma repetição abreviada, influenciada pelas
circunstâncias contingentes de sua vida."12
Citando a afirmação de Nietzsche, para quem no
sonho "segue atuando um antiquíssimo veio do humano que já não pode alcançar-se por um
12
AE, vol. 5, p. 542; GW, vol. II/III, p. 541
25
caminho direto"13
, e movido por ela, Freud espera, mediante a análise dos sonhos, ser
possível alcançar o conhecimento sobre o que há de inato no psiquismo individual bem como
sobre a herança arcaica da espécie.
Afim de sustentar a hipótese de que a ilogicidade e incoerência dos sonhos é apenas
aparente, Freud refuta a possibilidade de que as associações psíquicas possam estar
conectadas ao acaso e postula a existência de um determinismo dentro do psíquico, através
do qual fundamenta a prática clínica da associação livre.
Assim, o fato de emergirem representações involuntárias, durante a interpretação de um
sonho, não significa que o sujeito esteja entregue a um decurso de representações sem meta.
Para Freud, ao cessarem as representações-meta conhecidas surgem representações-
meta ignoradas governando o curso das representações involuntárias.
Através da hipótese do determinismo psíquico, também são refutadas as freqüentes
objeções em relação à uma reprodução falseada do sonho, marcada pela infidelidade de nossa
memória e pelo acréscimo de material que preencheria as lacunas pré-existentes ou criadas
pela memória quando o sujeito tenta reproduzir o sonho. Para Freud, mesmo estas
modificações mantêm associação com o conteúdo que substituem, servindo como pistas que
indicam o caminho desse conteúdo, que pode ainda ser substituto de um outro.
Como consequência desse raciocínio e da relação de identidade entre sonho e sintoma,
é feita a distinção básica entre conteúdo manifesto do sonho e pensamentos oníricos
latentes. Tal distinção remete-se à idéia de que, como os sintomas, os sonhos apresentam-se
deformados em relação ao seu conteúdo original. Freud postula, então, a existência de
mecanismos de deformação, explicados pela existência de um trabalho do sonho.
2.2.2 Elementos de formação do sonho
A conduta do sonho de ocultar do sonhante que é um desejo seu que está sendo
cumprido Freud chama de desfiguração onírica, atribuindo sua origem a uma tendência à
defesa contra a realização desse desejo, identificando-a após a análise de sonhos de conteúdo
penoso e de um sonho pessoal, onde a desfiguração aparece claramente como meio de
dissimulação .
Utilizando-se de um equivalente da vida social, no qual um crítico político, para dizer
verdades que desagradarão aos poderosos, utiliza-se do artifício da dissimulação para não ver
suprimidas suas manifestações, Freud exemplifica a relação que supõe presente na
composição onírica. Assim como o crítico político tem que temer a censura para poder
continuar a expressar suas opiniões, que só podem ser exteriorizadas de forma moderada e
13
AE, vol. 5, p. 542; GW, vol. II/III, p. 541
26
desfigurada, também no sonho, composto por dois poderes (instâncias ou sistemas), a
censura exercida por um deles desfigura a exteriorização do desejo formado e expresso pelo
outro.
Como somente o conteúdo desfigurado é recordado como consciente, deixando com
que os pensamentos latentes formadores do sonho tenham que ser descobertos ou inferidos
mediante análise posterior, conclui Freud que o privilégio da instância que exerce a censura é o
da admissão à consciência. Do primeiro sistema ou instância nada pode chegar à
consciência sem passar por essa segunda instância, e essa segunda instância, por sua vez,
nada deixa passar sem impor as modificações que considera necessárias para que se dê o
acesso do material à consciência. O sonho, portanto, inicia-se na primeira instância, uma vez
que à segunda cabe um papel defensivo, censurador e não criativo.
A questão dos sonhos de conteúdos penosos e de caráter desprazeiroso fica resolvida,
então, mediante a ação da desfiguração onírica: o conteúdo penoso, nesse momento, não é
mais do que um meio através do qual o cumprimento de desejo disfarça seu conteúdo.
A partir daí Freud resume a essência do sonho na seguinte fórmula:
"O sonho é uma realização (disfarçada) de um desejo (sufocado, recalcado)." 14
Também à desfiguração onírica Freud atribui a responsabilidade de sonharmos com
uma impressão onírica indiferente, quando é outra a impressão que ocasionou o sonho. O
processo psicológico pelo qual a vivência indiferente ocupa o lugar da que possui valor
psíquico é como uma transposição do acento psíquico pela via de elos intermediários, até que
as representações, no começo carregadas com intensidade débil, tomam a carga das
representações mais intensamente investidas, alcançando com isso a força necessária para
ascender à consciência.
Por outro lado, o sonho pode apresentar impressões que não se encontram dispostas na
memória de vigília, como as impressões da primeira infância, ou ainda ser excitado pelo
desejo que brota da vida infantil, fazendo-nos encontrar, no sonho, "a criança que segue
vivendo com seus impulsos."15
Ao analisar um sonho em que cavalgava quando na realidade sentia dores que o
impossibilitariam exatamente de realizar um exercício como este, conclui Freud que o sonho
não só negou o sofrimento da vigília, como utilizou-se de uma imagem para figurar o que
estava psiquicamente presente de maneira atual, também servindo ao propósito da
comodidade, ao garantir o seu sono através da repressão das dores que poderiam fazê-lo
despertar. Atribui, então, ao sonho o papel de guardião do sono, e computa o desejo de
dormir como motivo para formação de sonhos.
14
AE, vol. 4, p. 177; GW, vol. II/III, p. 166
15
AE, vol. 4, p. 206; GW, vol. II/III, p. 197
27
Tal papel atribuído ao desejo de dormir já se encontra explícito desde a carta de
04.03.1895 (carta 22) da correspondência Freud-Fliess, na qual Freud relata um sonho que
chama de sonho de comodidade, onde a formação alucinatória do sonho é criada com a
finalidade de garantir ao sonhante a continuidade do sono. Nele, um sobrinho de Breuer,
Rudi Kaufmann, após ser chamado pela manhã, como de costume, não acordou, substituindo o
despertar pela alucinação onírica de um letreiro de hospital que continha o seu nome, o que o
autorizou a continuar dormindo, já que podia dizer a si mesmo: se Rudolf Kaufmann já está no
hospital, então não há necessidade de ir até lá. 16
Neste sonho, retomado em A Interpretação dos Sonhos, já se pode vislumbrar o
estreito vínculo entre o processo alucinatório do sonho e a realização do desejo: é o desejo
que se encontra na base de formação do processo alucinatório do sonho.
Ao pensar o recalque como mecanismo básico para a formação do sonho, Freud torna
possível o desmembramento entre o conteúdo manifesto e conteúdo latente do sonho, já
apontado pela diferença entre o conteúdo onírico e os resultados obtidos através de sua
análise.
Freud centra, então, suas investigações sobre as relações entre o conteúdo manifesto e
os pensamentos oníricos latentes, pesquisando, a partir daí, os processos através dos quais o
sonho converte os últimos nos primeiros. Com isso, inaugura um capítulo fundamental para a
compreensão das leis psíquicas que regem tanto a vida onírica quanto a vida psíquica em
geral.
2.2.3 O trabalho do sonho
O sonho não é um conteúdo psíquico acabado. É resultado de um trabalho que, não
podendo ser apreendido pela introspecção, deve ser inferido a partir da desproporção entre o
conteúdo manifesto do sonho e toda a gama de pensamentos oníricos latentes descobertos
pelo trabalho de análise e interpretação dos mesmos.
Freud considera essa uma tarefa eminentemente teórica, proporcionalmente inversa ao
trabalho de interpretação. Se através da interpretação do conteúdo manifesto chega-se ao
latente, descortinar os modos de trabalho do sonho significa caminhar em sentido oposto.
A primeira inferência a que chega Freud a partir da comparação entre o compacto
conteúdo manifesto do sonho e a riqueza e extensão dos pensamentos oníricos latentes é a de
16
Ainda em A Intepretação dos Sonhos Freud se refere a uma certa quantidade de sonhos que, em
oposição a liberdade do sujeito de dar ao sonho um cunho pessoal, são sonhados por todas as pessoas
do mesmo modo, o que o leva a supor que expressam o mesmo significado. A eles dedica a seção
chamada Sonhos típicos, classificando a maioria deles em sonhos: de nudez, de morte de pessoas
queridas -a que Freud remete à competição entre irmãos, ao complexo de Édipo e a um possível
relacionamento com os sonhos de angústia-, de queda, de vôo -os quais remete às impressões
deixadas pelos jogos de movimento da infância-, de exames escolares, etc.
28
que ocorreu um amplo trabalho de condensação do material psíquico. A condensação,
descrita pela primeira vez em A Interpretação dos Sonhos, opera com quantidades de
energia que, de modo geral, ao se deslocarem ao longo de cadeias associativas, convergem
para a representação que melhor responda às exigências de formação de sonho (como por
exemplo, da censura, da consideração pela figurabilidade). A condensação também exprime
intensidades de investimento: quanto mais fortemente investidos os produtos da condensação,
maior vivacidade sensorial adquirirão no sonho manifesto.Nem mesmo os pensamentos
oníricos revelados mediante análise constituem o material completo implicado na formação de
um determinado sonho; prosseguindo o trabalho analítico podem-se descobrir ainda outros
sonhos, ocultos sob o sonho em questão.
Não existe, portanto, segurança de que um sonho possa ser interpretado à exaustão e
mesmo diante de uma resolução satisfatória do trabalho interpretativo fica a possibilidade de
que através de um mesmo sonho insinue-se ainda um outro sentido. Não é possível, portanto,
determinar a cota de condensação do trabalho do sonho.
As conexões associativas de pensamento estabelecidas durante a análise do material
onírico, mesmo que não tenham estado diretamente presentes no processo de formação do
sonho, ainda assim estão a ele ligadas como contatos laterais. Observa Freud que quando se
reelabora uma das cadeias da imensa massa de pensamentos descobertos pela análise, que
parece situar-se fora da trama do sonho, imediatamente surge um pensamento que tem seu
substituto no conteúdo do sonho.
Trata-se de um pensar inconsciente, muito diverso do processo reflexivo consciente.
Dele, somente uns poucos elementos alcançam o conteúdo do sonho, não sendo o sonho um
reflexo projetivo exato dos pensamentos oníricos, senão um reflexo incompleto e bastante
disforme dos mesmos.
Dirigindo sua atenção para as condições que comandam a eleição do material que, ao
atingir a consciência, proporciona o resultado citado, observa que: (a) através da via
associativa, um elemento do sonho leva a vários pensamentos oníricos e um pensamento
onírico, a vários elementos do sonho; (b) ocorre uma certa elaboração do total da massa de
pensamentos oníricos, após o quê elementos com melhor apoio são selecionados para o
ingresso no conteúdo onírico; (c) qualquer sonho submetido à desarticulação analítica tem
seus elementos configurados a partir da massa de pensamentos oníricos, mas aparecem, cada
um deles, determinado de maneira múltipla por referência aos primeiros.
Em relação às formações léxicas desprovidas de sentido, que surgem nos sonhos,
Freud também as atribui ao resultado da condensação do trabalho onírico, através da qual as
palavras são manejadas como se fossem coisas, experimentando as mesmas construções
29
que experimentam as representações. Nesse sentido as "deformações léxicas do sonho se
assemelham muito às que conhecemos na paranóia, mas que tampouco faltam na histeria e
nas idéias obsessivas." 17
E apontando para uma origem comum, conclui Freud: "Tanto para o
sonho quanto para as psiconeuroses a fonte comum são os artifícios verbais das crianças, que
em certos períodos tratam de fato as palavras como se fossem objetos e inventam linguagens
novas e formações sintáticas artificiais".18
Observa Freud que elementos que se impõem como essenciais no sonho jamais
desempenham o mesmo papel nos pensamentos oníricos, sendo verdadeira também a
proposição inversa: o que constitui conteúdo essencial nos pensamentos oníricos pode nem
aparecer no sonho, ou, se aparecer, ser tratado como um elemento de valor ínfimo. O sonho
está, por assim dizer, diversamente centrado em relação aos pensamentos oníricos. O
processo responsável por tal ocorrência, entendido por Freud como o processo essencial do
trabalho onírico, é chamado de deslocamento. O deslocamento, entendido basicamente
como o movimento, inerente a um investimento, de abandonar representações e deslizar
através dos elos de cadeias associativas, como mecanismo mais antigo precede, na teoria,
historicamente os outros três. pois já havia surgido como noção em As neuropsicoses de
defesa, 1894, e no Projeto, 1895. 19
Em A Interpretação dos Sonhos, o deslocamento vem acompanhado da perspectiva
de uma subversão dos valores psíquicos presentes nos pensamentos oníricos; além de um
deslizar de investimentos, implica num deslocamento de intensidades, fundamentando
teoricamente a observação clínica de que conteúdos ínfimos e aparentemente indiferentes do
conteúdo manifesto podem levar à elucidação do sonho.
À ação do deslocamento Freud atribui a modificação experimentada pelo conteúdo do
sonho em relação ao núcleo dos pensamentos oníricos. É ele um dos principais meios para o
conteúdo do sonho alcançar a desfiguração onírica, ocorrendo por influência da censura que
uma instância exerce sobre a outra.
Para Freud o deslocamento e a condensação são "os mestres artesãos a cuja
atividade podemos atribuir principalmente a configuração do sonho". 20
17
AE, vol. 4, p. 309; GW, vol. II/III, p. 309
18
AE, vol. 4, p. 309; GW, vol. II/III, p. 309
19
Neste último, o deslocamento representa o movimento de Q. (quantidade) entre as facilitações
constituídas pelos neurônios, podendo ser definido como o modo de funcionamento específico dos
processos psíquicos primários. Ele também participa da formação do sonho, que se caracteriza por
deslocamentos rápidos de Q. e pela substituição de uma representação quantitativamente
desprivilegiada por outra, quantitativamente superior. Como conceito, vemos o deslocamento surgir no
ensaio As neuropsicoses de defesa, em uma passagem na qual Freud distingue nos processos
psíquicos algo que, além de aumentar, diminui, descarrega-se, desloca-se, comparando-o à passagem
de uma corrente elétrica pela superfície de um corpo.
20
AE, vol. 4, p. 313; GW, vol.II/III, p. 313
30
No sonho ocorre uma subversão de todos os valores psíquicos. Um conflito da
vontade pode ser expresso, por exemplo, pela sensação de inibição do movimento. Já o caso
do sonho que se sonha dentro de outro sonho, verifica Freud tratar-se de uma forma com que o
trabalho do sonho utilizou o próprio sonhar para dissuadir o sonhante da realidade do sonho
sonhado dentro do outro sonho.
Da indagação pela figuração das relações lógicas no sonho Freud adentra um tema
mais vasto, relacionado à alteração experimentada pelo material onírico com vistas à formação
do sonho. O material, desarticulado de suas relações em sua maior parte, é comprimido
simultaneamente à subversão dos valores psíquicos que ocorre entre seus elementos, por
meio do deslocamento de intensidade. Outro tipo de deslocamento proposto, além do que tem
por função a substituição de uma representação pela que está mais próxima dela na cadeia
associativa, é percebido por uma permutação da expressão linguística dos pensamentos que a
originaram. Ambos os deslocamentos ocorrem ao largo de uma cadeia associativa; não
divergem, portanto, no processo, mas ocorrem em diferentes esferas psíquicas, dando como
resultado a substituição de um elemento por outro em um dos casos, e a permuta de palavras
que expressam um elemento pelas que expressam o outro, no outro caso.
O deslocamento se consuma quando, nas palavras de Freud, "uma expressão incolor e
abstrata do pensamento onírico é trocada por outra, figurativa e concreta". 21
O figurativo tem a vantagem, em relação à expressão abstrata, de inserir-se facilmente
numa situação.
"Se o pensamento onírico, inutilizável em sua expressão abstrata, é remodelado em uma
linguagem figurativa, entre essa nova expressão e o resto do material onírico podem
estabelecer-se com maior facilidade que antes os contatos e identidades que o trabalho do
sonho requer e que ele cria toda vez que não os encontra dados; com efeito, em qualquer
linguagem, em virtude de sua evolução, os termos concretos são mais ricos em ligações do
que os conceituais. Cabe imaginar, então, que, na formação do sonho, boa parte do trabalho
intermédio, que procura reduzir os pensamentos isolados à expressão mais unitária e concisa
possível, se produz desta maneira, a saber, mediante a apropriada remodelação linguística de
cada um deles" 22
Freud remete o sonho, então, à linguagem, verificando que nele ocorrem expressões de
uma ordem linguística primitiva, observando que também as neuroses tiram proveito das
vantagens que a palavra oferece à condensação e ao disfarce. Se a desfiguração onírica
facilmente induz ao engano, quando substitui duas palavras unívocas por uma multívoca,
quanto mais se uma expressão figurativa substitui as usuais.
21
AE, vol. 5, p. 345; GW, vol. II/III, p. 345
22
Idem, ibid.
31
Mais uma vez, compara Freud o sonho à linguagem ao observar que a figuração
característica do sonho oferece a seu tradutor o mesmo grau de dificuldades que oferece a
seus leitores a escrita hieroglífica antiga. Em suas palavras:
"Pensamentos do sonho e conteúdo do sonho se nos apresentam como duas figurações
do mesmo conteúdo em duas linguagens diferentes; melhor dizendo, o conteúdo do sonho se
nos aparece como uma transferência dos pensamentos do sonho a outro modo de expressão,
cujos signos e leis de articulação devemos aprender a discernir pela via da comparação entre o
original e sua tradução. Os pensamentos do sonho nos resultam compreensíveis tão logo
cheguemos a conhecê-lo. O conteúdo do sonho nos é dado, por assim dizer, em uma
pictografia, cada um de cujos signos tem de transferir-se à linguagem dos pensamentos do
sonho." 23
Entre as várias ligações colaterais dos pensamentos oníricos, Freud nota uma
preferência do trabalho do sonho pelas que irão permitir uma figuração visual; a partir daí,
Freud deduz um terceiro fator, que se segue ao deslocamento e condensação na mudança dos
pensamentos oníricos no conteúdo do sonho, ao que denomina consideração pela
figurabilidade. Supõe, ainda, que, com vistas a possibilitar essa figuração, o trabalho do
sonho pode primeiro encontrar uma outra forma linguística para expressar os pensamentos
abstratos, ainda mais insólita. Essa outra forma, por sua vez, pode pôr-se à serviço da
condensação, criando vínculos com outro pensamento já alterado em sua expressão original.
A consideração pela figurabilidade exprime uma exigência do modo de expressão do
sonho, que expressa até pensamentos abstratos por imagens, e exterioriza-se na eleição e
transformação dos pensamentos oníricos com esse fim. A eleição implica na seleção, entre as
diversas conexões de pensamentos, daquela que melhor possa expressar-se de forma
figurativa; e a transformação pressupõe a orientação do deslocamento para a representação
que substitua figurativamente os pensamentos em questão.
O último mecanismo a incidir sobre a formação do sonho manifesto é a elaboração
secundária. Tal elaboração, no intuito de figurar algo semelhante a um sonho diurno com o
material que se lhe oferece, tem o poder de apropriar-se de uma fantasia diurna formada
dentro da trama dos pensamentos oníricos e utilizá-la no conteúdo do sonho, de forma a repeti-
la intacta ou quase intacta, a superpô-la a outras, a comprimi-la, a condensá-la, a utilizar
apenas um de seus elementos ou uma alusão à eles, etc.
A elaboração secundária incide somente sobre os produtos dos outros mecanismos;
sua meta é imprimir ao conteúdo trabalhado o aspecto de coerência que o aproximaria da
inteligibilidade. Essa meta pode alcançar-se também por meio de uma ação seletiva, levando o
trabalho do sonho a utilizar-se de fantasias diurnas para esse fim.
23
AE, vol. 4, p. 285; GW, vol. II/III, pp. 283-84
32
O decisivo para a inclusão de fantasias no conteúdo do sonho são, obviamente, as
vantagens que podem oferecer à censura e ao mecanismo de condensação; durante o sono,
uma parte da atenção ativa durante a vigília permanece voltada ao sonho, controlando-o,
criticando-o, interrompendo-lhe, o que sugere a Freud reconhecê-la como o censor, que tantas
restrições impõe durante a elaboração onírica.
Mas, além de atuar no processo de formação do sonho, a elaboração secundária é
responsável pela desfiguração do sonho durante sua reprodução verbal. Como a elaboração
secundária não é mais do que conseqüência da censura a que estão submetidos os
pensamentos oníricos, a modificação do sonho, na recordação que dele temos e em seu relato
verbal, não é arbitrária. Na realidade, tal modificação mantém-se associativamente conectada
com o conteúdo que substitui, servindo para indicar o caminho até esse conteúdo, que por sua
vez ainda pode estar no lugar de um outro.
A elaboração secundária seria, portanto, o próprio pensamento normal que, exigindo do
conteúdo onírico inteligibilidade, submete-o a uma interpretação prévia. Em vista disso, Freud
coloca sob suspeição a coerência aparente do sonho, não estabelecendo diferença entre um
conteúdo claro ou um conteúdo obscuro quando se trata de rastrear os pensamentos oníricos.
O que, no entanto, surpreende Freud é o fato de o sonho se formar contra uma
resistência tão atuante em sua formação, a ponto de, a serviço dela, a vida de vigília
demonstrar o claro propósito de esquecer o sonho que se formou durante a noite.
Em relação ao trabalho do sonho, numa nota de rodapé, agregada em l925,
encontramos a seguinte observação de Freud: "(...) o sonho não é mais do que uma forma
particular de nosso pensamento, possibilitada pelas condições do estado de dormir. É o
trabalho do sonho o que produz essa forma, e somente ele é a essência do sonho, a
explicação de sua especificidade".24
Possibilitado pelo sono, o trabalho do sonho é algo que
qualitativamente difere do pensamento de vigília, como atesta uma passagem do capítulo VI
de A Interpretação dos Sonhos relacionada à especificidade do trabalho do sonho: "Não
pensa, nem calcula, nem em geral julga, senão que se limita a remodelar pensamentos,
cálculos e juízos".25
Quanto ao conteúdo afetivo do sonho, Freud sustenta que é principalmente por ele que
o sonho pode reivindicar um lugar junto às vivências reais do sujeito. A análise ensinou a
Freud, que embora o conteúdo da representação surja de forma alterada no sonho, em
consequência de deslocamentos, substituições e desfiguração onírica, o afeto sentido não
experimenta mudanças. É o afeto, em todo o complexo psíquico, a parte mais resistente em
24
AE, vol. 5, p. 502; GW, vol. II/III, pp. 510-11
24
AE, vol. 5, p. 502; GW, vol. II/III, p. 511
24
AE, vol. 5, p. 502; GW, vol. II/III, pp. 510-11
33
relação à ação da censura. Ele pode manter uma certa conexão com o conteúdo substituto
da representação que lhe correspondia, ou, então, pode dissociar-se da representação
correspondente, inserindo-se em um contexto a que não pertence.
Através da reconstrução dos pensamentos oníricos, via análise, Freud percebe que as
moções de afeto presentes nesses são muito mais intensas que aquelas presentes no
conteúdo do sonho, por isso atribui ao trabalho do sonho uma sufocação de afetos.Tal
sufocação adviria de uma inibição provocada pelos poderes psíquicos em conflito durante a
formação do sonho. A inibição do afeto resultaria, então, da ação da censura onírica, na
verdade seu segundo resultado, após o da desfiguração onírica. Além de surgirem no conteúdo
do sonho fora de contexto ou consideravelmente reduzidos, os afetos podem também ser
transformados em seu contrário.
Segundo Freud pôde concluir, na formação do sonho o trabalho psíquico " (...)
decompõe-se em duas operações: a produção de pensamentos oníricos e sua transmutação
no conteúdo do sonho. Os pensamentos oníricos formam-se de modo inteiramente correto e
com todo o gasto psíquico de que são capazes; pertencem a nosso pensar não tornado
consciente, do qual, por uma certa transposição surgem os pensamentos conscientes.(...) Por
outro lado, o outro trabalho, o que muda os pensamentos inconscientes no conteúdo do sonho,
é próprio da vida onírica e característico dela.”26
Sobre esse trabalho, responsável pela realização do desejo sob forma alucinatória, não
se pode exercer nenhuma influência, conforme Freud expressaria no capítulo VII de
Observações sobre a teoria e a prática da interpretação dos sonhos, de 1922:
"Sobre o mecanismo de formação do sonho como tal, sobre o trabalho do sonho
propriamente dito, nunca se exerce influência; é lícito ter isto por seguro" 27
O trabalho do sonho é, portanto, através do conjunto de mecanismos que representa,
uma operação básica na constituição do aparelho psíquico. No entanto, fica-nos a questão:
qual é o fator que requer a suposição de uma operação tão básica e tão independente de
influências como é a do trabalho do sonho ?
Do mesmo modo que, no Projeto, em A Interpretação dos Sonhos, embora sob outra
perspectiva, o objeto primeiro sobre o qual o trabalho do sonho opera são as quantidades de
investimento. O trabalho do sonho opera, portanto, com uma grandeza que foi concebida
como tendo todas as propriedades de uma quantidade e que, praticamente, fundamenta
todo o funcionamento do aparelho psíquico.
25
AE, vol. 5, p. 502; GW, vol. II/III, p. 511
26
AE, vol. 5, p. 502; GW, vol. II/III, pp. 510-11
27
AE, vol. 19, p.116
34
2.3 A PRIMEIRA TÓPICA
A palavra tópica, que deriva do grego topoi, significa teoria dos lugares, e foi utilizada
pela Filosofia desde a Antigüidade. Para Aristóteles, por exemplo, os lugares (topoi) eram a
base a partir da qual derivavam as premissas de uma argumentação. Já para Kant, a tópica
transcendental é a determinação do lugar que convém a cada conceito.
Para Freud, o aparelho psíquico é um construto teórico, um modelo que tem como
objetivo representar o nosso funcionamento psíquico. Em psicanálise, a palavra tópica supõe
que esse aparelho ou modelo é composto de diferentes sistemas de funcionamento, dotados
de determinadas características. Trata-se de uma representação espacial que considera esses
sistemas, metaforicamente, como lugares psíquicos (Tubert, 2000).
De acordo com o ponto de vista tópico, os sistemas inconsciente, pré-consciente e
consciente são sistemas mnêmicos constituídos por grupos de representações regidos por
diversas leis de associação. Por analogia com um aparelho ótico, Freud supõe que a localidade
psíquica corresponde a um lugar situado no interior desse aparelho, em que a imagem gerada
por meio da passagem da luz entre as lentes não corresponde a nenhum elemento concreto do
instrumento, ou seja, não coincide com as próprias lentes.
Freud supõe um ordenamento espacial dos sistemas: o sistema pré-consciente
encontra-se situado entre o inconsciente e a consciência; está separado do primeiro por meio
de uma rígida censura que impede que as representações inconscientes passam ao sistema
pré-consciente e à consciência. Por isso o inconsciente, em si, é inacessível. Somente
podemos conhecê-lo por meio de seus efeitos, que irrompem em nossas palavras ou atos, por
exemplo, de modo alheio a intenção de nosso eu. Entre o sistema pré-consciente e a
consciência, o autor supõe existir outra censura, de caráter mais brando, que controla o acesso
à consciência e à motricidade voluntária.
Para o autor, todo e qualquer ato psíquico é inconsciente em sua origem, e poderá
permanecer nesse estado ou não, dependendo da intensidade de censura que sofrer. A partir
dessa premissa podemos compreender a diferenciação entre pensamentos pré-conscientes,
suscetíveis de se tornarem conscientes a qualquer momento, e pensamentos inconscientes,
que, se alcançam a consciência, o fazem mediante deformações, impostas pela censura.
A explicação para a oposição entre os sistemas pré-consciente e inconsciente reside em
um ponto de vista dinâmico, para o qual a oposição entre os dois sistemas é o resultado de um
conflito de forças psíquicas que lutam ativamente entre si, de modo que nosso psiquismo não é
homogêneo, senão que se encontra marcado por contradições que o dividem.
35
Inconsciente e Pré-Consciente podem ser compreendidos como redes de registros
mnêmicos que se diferenciam, do ponto de vista topográfico, por sua posição em relação à
consciência, e do ponto de vista dinâmico e econômico, segundo os modos de funcionamento
que Freud chama de processos primário e secundário (Tubert, 2000).
Como vimos, as formações do inconsciente (atos falhos, sonhos, sintomas) são o
resultado de duas forças opostas: o conteúdo reprimido retorna, mas de uma maneira
disfarçada (o esquecimento da palavra ALIQUIS, no exemplo do capítulo anterior), o que faz o
autor supor que uma força repressora esteja atuando constantemente para que isso ocorra.
No entanto, tal repressão não ocorre contra representações extáticas. É preciso
considerar as cargas de energia que circulam no aparelho psíquico, o que nos leva ao ponto de
vista econômico da psicanálise.
Toda a representação é investida por um impulso (TRIEB = pulsão), e procura
continuamente ter acesso à consciência. A passagem de um ato psíquico de um sistema para
outro efetua-se por meio de um desinvestimento por parte do primeiro e um reinvestimento pelo
segundo.
No entanto, a dinâmica e a economia dos sistemas demonstram que cada qual possui
características singulares, os quais exporemos a seguir.
2.3.1 O sistema Inconsciente
Freud postulou que determinados processos ocorrem dentro do sistema Inconsciente,
modulando o seu funcionamento.
A característica essencial do sistema inconsciente é que nele só existem conteúdos
mais ou menos investidos. Ele é caracterizado por uma extrema mobilidade das intensidades
de investimento, o que Freud chamou de processo psíquico primário, e que representaria
sua marca fundamental. O processo psíquico primário é regido pela extrema mobilidade dos
investimentos. Isso significa que a energia psíquica que investe os registros mnêmicos escoa-
se livremente, movendo-se sem barreiras de uma representação para outra segundo os
mecanismos de deslocamento e condensação, sendo sua tendência o reinvestimento pleno
das representações ligadas às vivências de satisfação constitutivas do desejo (alucinação
primitiva).
Desde o Projeto (1895) Freud verificou que uma representação podia transmitir seu
quantum de investimento a outra representação. O processo de deslocamento pode-se definir
pelo fato da energia investida em uma representação ser suscetível de retirar-se dela para unir-
se a outras representações de intensidade antes fraca, mas ligadas à primeira por uma série
de associações. Para exemplificar, lembremos do papel do deslocamento em relação ao
sonho: ele tanto pode substituir um elemento importante da trama do sonho por uma
36
representação bastante afastada na cadeia associativa, trazendo à consciência nada mais do
que uma alegoria em relação ao conteúdo principal, como pode transferir o acento psíquico de
um elemento importante para outro, pouco importante, deslocando o centro do sonho, o que o
faz parecer absurdamente estranho.
Já a condensação faz de uma só representação o representante de numerosas séries
de associações, tomando para si a energia que antes investia uma série de representações.
Nesse caso, é igualmente por meio do sonho que podemos exemplificar esse processo mais
facilmente: a descrição de certos elementos do sonho manifesto apresenta uma grande
disparidade quando comparada aos achados, proporcionados pela via associativa, dos
pensamentos oníricos latentes. Por exemplo, vários elementos diferentes podem se
apresentar, no sonho manifesto, reunidos em uma unidade composta, seja por meio de um
tema ou de um personagem.
• Características do sistema Inconsciente (Ics):
Regido pelo processo primário (mobilidade dos investimentos, energia livre), o Inconsciente
freudiano, como sistema, possui as seguintes características específicas:
a. Atemporalidade: como o próprio Freud ressaltou, os processos no Inconsciente não são
ordenados cronologicamente, não são alterados pela passagem do tempo, não tem qualquer
relação com o tempo, como nós racionalmente o concebemos. (Podemos notar que o conceito
de tempo desenvolve-se na criança somente após determinados estágios de seu
desenvolvimento cognitivo).
b. Indiferença perante a realidade: a tendência do inconsciente é seguir o princípio do
prazer, que pressiona no sentido da busca da realização dos desejos mais primitivos,
independentemente da realidade, que ele desconhece.
c. Realidade psíquica: memórias de acontecimentos reais e de experiências imaginárias
não se distinguem nessa instância psíquica. Símbolos abstratos não são reconhecidos como
abstratos, mas são tratados como se eles representassem a realidade concreta.
d. Ausência de contradição: independentemente do pensamento racional e julgamento
formal, elementos contraditórios (situações contraditórias) são totalmente compatíveis no
inconsciente, e coexistem lado a lado.
e. Ausência de negação: diferentemente do que o não representa no processo formal de
pensamento, adquirido durante o desenvolvimento, a negação não existe para o inconsciente.
A negação está presente nos outros sistemas psíquicos, mas não no inconsciente. Um dos
exemplos mais claros, que pode ser comprovado em diversas situações, é que, por não
conhecer a negação, o inconsciente não conhece a morte (como negação, oposição, ou fim da
vida).
Freud e Jung: introdução à psicanálise
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Freud e Jung: introdução à psicanálise

  • 1. UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA ORGANIZADORA: Profa. Georgina Faneco Maniakas São Carlos De Freud a Jung: uma breve introdução
  • 2. 2 SUMÁRIO Introdução...................................................................................................................................03 FREUD 1. O início da investigação psicanalítica.....................................................................................05 2. Do Projeto à Interpretação dos Sonhos. A primeira tópica...................................................19 3. A Construção da sexualidade, a primeira teoria pulsional e o conceito de narcisismo........41 4. A segunda teoria pulsional, além do princípio do prazer e a segunda tópica...................... 58 5. Cultura, ética e subjetividade.................................................................................................73 Referênciasbibliográficas............................................................................................................83 JUNG 6. Jung: os anos de formação, o trabalho com Freud e as divergências conceituais...............84 7. Estrutura da Psiqué................................................................................................................91 8. O Processo de Individuação .................................................................................................93 9. Os sonhos..............................................................................................................................97 10.Apêndice................................................................................................................................99
  • 3. 3 INTRODUÇÃO Na busca de um sentido para as doenças que não apresentavam lesão e que também não eram mera simulação (histeria) é que Freud, como neurologista, começaria uma minuciosa pesquisa que o levaria à constituição de um novo campo do conhecimento no qual o sintoma adquiriria um sentido bastante diferenciado da doença, intrinsecamente ligado às funções de um construto teórico que ele chamaria de aparelho psíquico. Com a descoberta de processos inconscientes que agem sobre o sujeito sem que este o saiba e limitam a sua liberdade, a psicanálise encontra-se em perpétua investigação, e o seu campo de estudo vê os seus limites se ampliarem cada vez mais, ultrapassando a fronteira das desordens da saúde mental, da conduta e da saúde somática, para inserir-se em um campo de diálogo interdisciplinar. O mesmo questionamento que inaugurou a obra freudiana está presente no projeto psicanalítico, marcado pelo desejo de identificar a origem do sofrimento humano, e de renovar, incessantemente, a tentativa de dizer o indizível. À Freud devemos a dissolução, teórica e prática, das fronteiras entre o normal e o patológico. Obras como A Interpretação dos Sonhos e Psicopatologia da Vida Cotidiana continuam marcando gerações de pensadores. Foi por meio da Interpretação dos Sonhos que Jung aproximou-se das idéias de Freud. Jung havia citado A Interpretação dos Sonhos em sua tese (publicada em 1902), e a questão com a qual se defrontava era: a psicanálise poderia ser utilizada com o mesmo êxito com os pacientes psicóticos que atendia ? Jung trabalhava desde dezembro de 1900 como Médico Assistente de Eugen Bleuer no Burghölzli, Hospital Psiquiátrico de Zurique (também era a clínica de pesquisa da universidade). Depois de dois anos em seu primeiro cargo, Jung começa suas experiência com “testes de associações de palavras” (1902-06). Solicita aos pacientes que façam uma “associação“ imediata a uma palavra estímulo. Em 1902-03 vai a Paris para estudar psicopatologia em Salpêtrière, com Pierre Janet. Em 1903, tanto Jung como Bleuer começam a interessar-se muito seriamente pelas idéias de Freud. Em 17 de agosto de 1904, Sabina Spielrein (1885-1941), uma jovem russa, é internada no Burghölzli: é a primeira paciente de Jung, histérica, tratada pelo método psicanalítico. Em 1906, Jung começa a corresponder-se com Freud, e o visita em Viena no início de 1907. Rapidamente eles desenvolvem uma íntima amizade profissional. No ano seguinte acontece o Primeiro Congresso Internacional de Psicanálise, em Salzburg. Em 1909 Jung acompanha Freud a Massachussets, Estados Unidos, para uma série de conferências na Clark University. Lá, ambos recebem seus Doutorados Honorários.
  • 4. 4 Em 1910 ocorre o Segundo Congresso Internacional de Psicanálise em Nuremberg. Jung é nomeado presidente. No verão deste ano, Jung dá o primeiro curso de palestras sobre “Introdução à Psicanálise” na Universidade de Zurique. Em 1912 Jung funda a Sociedade de Trabalhos Psicanalíticos; em 1913 rompe com Freud. Freud fica abalado com a cisão, Jung arrasado. O estresse decorrente contribui para um esgotamento nervoso que ameaçava Jung deste 1912, quando havia começado a ter sonhos catastróficos e vívidos e visões durante a vigília. Demite-se da Universidade de Zurique e se fixa em sua clínica particular. Na verdade, as tensões no relacionamento entre Jung e Freud são evidentes desde o início, embora Freud valorizasse Jung como a nenhum outro integrante do movimento psicanalítico. Quando Jung uniu-se à Psicanálise em 1907, Freud havia inaugurado uma psicologia radical, formada por uma hermenêutica poderosa, uma teoria revolucionária e parcialmente empírica sobre o desenvolvimento da personalidade, uma nova metodologia terapêutica e uma teoria nascente da psicologia cultural. O trabalho de Freud sobre sonhos, etiologia das neuroses e desenvolvimento infantil estava-se tornando conhecido fora de Viena, e o movimento psicanalítico internacional estava começando a se firmar. Quando o relacionamento profissional entre ambos desmoronou por causa de discussões em torno do conceito de libido e suas transformações, ambos os autores eram atores em um palco mundial, e Jung estava a meio caminho de iniciar um movimento próprio. Estudos recentes da Universidade de Cambridge (Douglas, 2002) afirmam que se Freud e Jung tivessem sustentado seu relacionamento por mais alguns anos, a história psicanalítica teria sido muito diferente, e hoje poderíamos contar com uma teoria muito mais abrangente e completa da psique humana. Para iniciarmos qualquer reflexão a respeito das conseqüências que a divergência conceitual entre Freud e Jung trouxe para o desenvolvimento da psicanálise, é necessário, antes de mais nada, conhecerrmos os principais conceitos propostos pelos autores, compreendendo-os a partir do contexto histórico, filosófico e social onde surgiram.
  • 5. 5 1. O INÍCIO DA INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA “Desses fantasmas tanto se enche o ar, Que ninguém sabe como os evitar” (Fausto, parte II, ato V, cena 5) 1. 1 Sigmund Freud Sigmund Freud nasceu a 6 de maio de 1856 em Freiberg, um pequeno povoado morávio, que, na época, fazia parte do Império Austro-húngaro. Quando Freud estava com três anos, a família mudou-se para Viena. Um ano antes do habitual, o pequeno Sigmund ingressou no Sperl Gymnasium. Os documentos ainda conservados do instituto mostram que Freud foi um estudante brilhante: durante seis anos, foi o primeiro aluno da classe e aos dezessete terminou o curso recebendo uma distinção honorífica. Interessante notar que em seu exame para o acesso à Universidade, teve que traduzir do grego para o alemão uma passagem do Édipo, de Sófocles. A capacidade de expressão escrita de Freud haveria de conceder-lhe o mais importante prêmio da língua alemã: o prêmio Goethe de literatura. Possuía uma notável aptidão para línguas: além do latim e do grego, falava inglês, francês, hebraico, e aprendeu por conta o italiano e o espanhol, esta última para ler Don Quijote no original. Freud iniciou seus estudos de medicina na Universidade de Viena, em 1873 e os terminou em 1881, oito anos ao invés dos cinco habituais, porque cursou seminários não obrigatórios de física, zoologia e filosofia: durante três anos assiste às aulas de Franz Brentano. Em seu quarto ano de faculdade começa a trabalhar no Laboratório de Fisiologia de Ernst Brücke, um dos orientadores que mais haveriam de influenciar sua formação ao transmitir-lhe os ideais do rigor científico e sua fé nos valores éticos. Brücke fazia parte da escola de Helmholtz, que tencionava explicar todo o funcionamento do organismo em termos de forças físicas e químicas; em última análise, as forças de atração e repulsão inerentes à matéria. Freud permaneceu seis anos (1876-1882) no Instituto de Brücke, no qual realizou brilhantes pesquisas sobre a histologia do sistema nervoso, chegando a publicar uns vinte trabalhos. Um deles pode ser considerados precursor da teoria dos neurônios, assim denominado por Waldeyer em 1891.
  • 6. 6 Em outubro de 1882 ingressa como médico residente no Hospital Geral de Viena, onde permaneceria por três anos, boa parte deles no departamento de Neurologia. Suas publicações histológicas e clínicas lhe valem a nomeação como Privatdozent em Neuropatologia (1885). Este título, importante na Alemanha e na Áustria, não tem equivalente nas escolas de medicina de outros países. O Privatdozent pode dar aulas sobre temas desejados, mesmo à margem do programa. Em junho de 1885 solicitou uma bolsa de estudos para assistir as aulas de Jean Martin Charcot, considerado o neurologista mais importante da época, no hospital de La Salpetrière, em Paris. Charcot estava no centro dos estudos realizados nessa época sobre a histeria: foi o primeiro a conceber essa neurose como uma enfermidade psíquica. Também foi ele quem formou, na Salpetriére, um grupo de pesquisa sobre a histeria, ao qual pertenciam Binet e Pierre Janet. Juntos, eles formavam a “escola de Salpetrière”. Paralelamente em Nancy, outros pesquisadores médicos davam prosseguimento a experiências com a histeria. Entre os achados destacam-se as conclusões de Bernheim. Charcot conclui pela origem psíquica da histeria (cujos sintomas incluem: distúrbios motores, amnésias, anestesias, paralisias, contraturas, convulsões, etc) pois, além de não terem uma causa orgânica, podiam ser provocados e interrompidos por sugestão hipnótica; por isso Charcot atribuía a histeria à auto-sugestão, e seu ponto de vista seria retomado por Bernheim, Babinsky e Janet. O encontro com Charcot foi extremamente significativo na vida de Freud, despertando definitivamente seu interesse pela psicopatologia, iniciado alguns anos antes (1880-82). quando acompanhou, junto ao Dr. Joseph Breuer, um caso de histeria em que a reminiscência de certas lembranças (em estado de hipnose), havia modificado a situação patológica. Trata-se do caso Anna O. (Bertha Pappenheim), uma jovem de 21 anos que apresentava uma ampla gama de sintomas, originados durante o período em que assistiu seu pai, enfermo, até o seu falecimento. Alguns dos sintomas apresentados por Anna O. eram paralisia das extremidades, perturbações da visão, da fala e da alimentação, tosse nervosa, confusão mental. Durante as visitas de Breuer, Anna. relatava, em estado de hipnose, suas experiências penosas e suas fantasias. Em certa ocasião, ao relatar detalhes do surgimento do primeiro sintoma, este desapareceu por completo. Breuer, então, apercebeu-se que era possível libertar Anna de seus transtornos desde que a paciente pudesse exprimir verbalmente o qua sentia. Anna O. denominou esse procedimento de “cura pela fala” ou “limpeza de chaminé”, ao que Breuer e Freud chamariam de catarse (termo de origem grega que significa purificação ou purgação). A partir dessa experiência, acompanhada de perto por Freud, e, na realidade, encerrada por ele (Breuer, por razões particulares, abandona o caso Anna O.), Freud concluiu
  • 7. 7 que os sintomas neuróticos estavam em relação com eventos aparentemente esquecidos do passado, e o simples fato de relembrar esses eventos fazia desaparecer os sintomas. Existia, portanto, um vínculo entre a ignorância de certas lembranças e a existência de sintomas. No caso de Anna O., as lembranças recordadas remontavam a eventos que tinham a impressionado na época em que cuidava do pai enfermo. Durante a extenuante vigília ao lado do pai, Anna havia sido obrigada a reprimir (expulsar da consciência) um pensamento ou impulso que logo havia sido substituído e representado por um sintoma. Ao provocar e suprimir sintomas de histeria mediante a hipnose, Charcot demonstrou que, independentemente de um suposta base neurológica, a doença tinha uma origem psíquica, em geral de caráter traumático. Mas, enquanto Charcot se interessava fundamentalmente pela anatomia, Freud adotou uma perspectiva psicológica. Em seu estudo comparativo entre as paralisias histéricas e orgânicas, o autor demonstrou que as paralisias e anestesias histéricas das diversas partes do corpo não seguem as vias nervosas que o estudo anatômico revela, mas se configuram conforme a representação vulgar que o leigo tem do funcionamento do corpo humano. Ao voltar à Viena, expôs os resultados de suas observações, bem como suas conclusões e publicações sobre a histeria a seus colegas da Sociedade Médica de Viena, que o trataram com extrema frieza, o que o fez afastar-se da dita Sociedade. Em 1886 abriu seu consultório privado e casou-se com Martha Bernays, com quem teria 6 filhos (3 meninos e 3 meninas). Em seu trabalho com distúrbios nervosos, apesar do rechaço da Sociedade Médica, substituiu os tratamentos correntes em neurologia na época (hidroterapia e eletroterapia) pela sugestão hipnótica, obtendo resultados favoráveis, porém limitados. Concluiu que não era possível hipnotizar todos os enfermos, nem estava ao alcance do médico obter, todas as vezes, uma hipnose suficientemente profunda. Em razão dessas limitações, em 1889 viaja a Nancy, para aperfeiçoar sua técnica hipnótica com Liébault e Bernheim. As experiências que observou lhe revelaram a existência de processos mentais poderosos, que, sem dúvida, permanecem ocultos à consciência; no entanto, Freud não se contentaria nem com o método hipnótico de Charcot e nem com a sugestão pós-hipnótica de Bernheim, pelas limitações que ambas apresentavam. Se, durante a hipnose, como resultado da influência do médico, o paciente podia ampliar o campo de sua consciência e recuperar lembranças esquecidas, o processo esbarrava em dificuldades intransponíveis, a saber: além de não poder ser aplicável a todos os sujeitos, seus efeitos demonstravam-se instáveis, pois as recidivas eram comuns, obrigando o paciente a ter que recorrer ao médico, de tempos em tempos, para o alívio de novos sintomas que eram produzidos.
  • 8. 8 Freud, então, concluiu que deveriam existir poderosas forças inconscientes que mantinham os sintomas – as quais deu o nome de resistências -, e que, durante a hipnose, eram apenas “suspensas”, já que o enfermo de nada se lembrava ao final do processo, não tendo, em última análise, nenhuma responsabilidade para com o que relatava.. Apenas o médico era testemunha dos relatos, o que se tornava preocupante, pois dependendo da personalidade e formação ética do médico, ele poderia ser levado a sustentar uma relação autoritária e de dependência do paciente para com ele, contra a qual Freud terminantemente se opunha. Nosso autor concluiu que deveria haver uma outra maneira de trazer essas lembranças encobertas à consciência com a participação do enfermo. Freud conclui que tanto a hipnose quanto a sugestão contribuem para mascarar os fenômenos da resistência e da transferência , este último, fenômeno que Freud começa a perceber quando os sintomas histéricos, suprimidos pela hipnose, reapareciam quando se interrompia o contato com o médico. Em seu artigo de 1903-4, Freud diria: “A hipnose (...) oculta a resistência, e assim impede ao médico penetrar no jogo das forças psíquicas. Mas não liquida as resistências; somente as ilude, razão pela qual não proporciona senão dados incompletos e resultados efêmeros”.1 Freud entende o fenômeno da transferência como a reprodução, na situação terapêutica, de experiência vividas, principalmente na infância. Tudo aquilo que o sujeito não recorda, exatamente por estar reprimido, excluído da consciência, retorna sob a forma de atos, representações e sentimentos que se vinculam à pessoa do terapeuta, desconectada de sua origem no passado distante. Enfrentando diversas dificuldades, entre 1892 e 1896, Freud desenvolve um novo método que permitiria ao paciente, em estado consciente, recuperar as recordações que permaneciam esquecidas: o método da associação livre. 1.2 A especificidade de um método de pesquisa Com o abandono da hipnose, Freud estruturou um método de tratamento cujo objetivo era o acesso ao inconsciente do paciente, por meio da associação livre, método que consiste na expressão indiscriminada de todos os pensamentos que ocorrem ao paciente. Um paciente que procura um psicoterapeuta em busca de alívio para o seu sofrimento é convidado a falar sobre isso, ou sobre qualquer outra coisa que prefira. Poderá falar sobre ele mesmo, a esposa, os filhos, o vizinho. Poderá falar sobre o passado o presente, o futuro. De fato, ele deve dizer qualquer coisa que lhe venha à mente. Esse processo de livre associação – invenção e base 1 FREUD, S. O método psicanalítico de Freud. (1904 [1903]). In: Obras Completas de S. Freud. Buenos Aires: Amorrortu Editores, p. 240.
  • 9. 9 da psicanálise -, no sentido da verbalização do próprio pensamento “aleatório”, é um fenômeno que produz resultados extraordinários e que possui uma longa história. A julgar pela amostra registrada na comédia de Aristófanes, As Nuvens, algo semelhante já era usado na antiga Grécia. A história conta que Estrepsíades, um lavrador estúpido, desonesto e mal casado vai a Atenas consultar Sócrates sobre como poderia fraudar, com êxito, os seus credores. Sócrates ordena-lhe que se deite [em um divã!] e expresse verbalmente suas livres associações, o que ele tenta fazer, apesar dos percevejos no sofá e outras interrupções, enquanto Sócrates vai apontando incoerências de seu discurso. Freud reconheceu que, embora difícil, o método da associação livre mostrou-se o único realmente eficaz. O método da associação livre visa, em primeiro lugar, eliminar a seleção voluntária dos pensamentos. Nesse sentido, mesmo os silêncios durante o discurso do paciente são significativos. O objetivo é o de trazer à consciência, por meio da suspensão da seleção intencional de pensamentos, um “outro discurso” determinado pelo inconsciente. A inestimável vantagem desse procedimento em relação à hipnose é o fato de que, através da associação livre, é possível elucidar progressivamente as resistências. Embora seja a doença e a demanda de cura que levam o paciente ao tratamento, o paciente não tem idéia do quanto trabalha contra o seu próprio restabelecimento e a favor de sua doença. A força psíquica que atua para que essa situação se mantenha é a resistência e é contra ela que trabalha continuamente o psicanalista. Mas, de onde provêm as resistências ? Freud formula, então, a hipótese de que a resistência é um efeito – manifesto no momento do trabalho clínico – de uma operação inconsciente a qual denomina repressão. A repressão define-se como uma operação defensiva mediante a qual o sujeito tenta expulsar da consciência ou manter em estado inconsciente as representações (pensamentos, imagens, recordações) vinculada a desejos cuja satisfação, em si mesma, pode provocar desprazer ou angústia em função de outras exigências psíquicas, por exemplo, as aspirações morais ou ideais do eu. O motivo da repressão é, então, o conflito psíquico que se estabelece quando se opõem, no sujeito, exigências internas contrárias. A repressão se refere, portanto, a um processo psíquico que se encontra na origem da constituição do inconsciente, em todos os sujeitos2 . 2 No princípio, Freud faria coincidir repressão e inconsciente, mas esta equivalência não haveria de se manter. Sem dúvida, a instância repressiva e as operações defensivas são, em sua maior parte inconscientes, mas, com a formulação da segunda tópica, Freud ampliará o conceito de inconsciente, aproximando-o do sentido a ele atribuído por outro médico alemão, Georg Groddeck (1886-1934), que, por sua vez, havia inspirado-se em Nietzsche. O indivíduo passará a ser pensado como um Isso (Es –
  • 10. 10 Em Cinco Conferências sobre Psicanálise (1910[1909]), realizadas por Freud na Clark University de Massachusetts (Estados Unidos), encontramos alusões bastante didáticas desse processo. Diz o autor: “Talvez possa ilustrar o processo de repressão e a necessária relação deste com a resistência, mediante uma comparação grosseira, tirada de nossa própria situação neste recinto. Imaginem que nesta sala e neste auditório, cujo silêncio e cuja atenção eu não saberia louvar suficientemente, se acha no entanto um indivíduo comportando-se de modo inconveniente, perturbando-nos com risos, conversas e batidas de pé, desviando-me a atenção de minha incumbência. Declaro não poder continuar assim a exposição; diante disso alguns homens vigorosos dentre os presentes se levantam, e após ligeira luta põem o indivíduo fora da porta. Ele está agora reprimido e posso continuar minha exposição. Para que, porém, se não repita o incômodo se o elemento perturbador tentar penetrar novamente na sala, os cavalheiros que me satisfizeram a vontade levam as respectivas cadeiras para perto da porta e, consumada a repressão, se postam como resistências. Se traduzirmos agora os dois lugares, sala e vestíbulo, para a psique, como consciente e inconsciente, os senhores terão uma imagem mais ou menos perfeita do processo de repressão. (...) Suponhamos que, com a expulsão do perturbador e com a guarda à porta, não terminou o incidente. Pode muito bem ser que o sujeito, irritado e sem nenhuma consideração, continue a nos dar que fazer. Ele já não está aqui conosco; ficamos livres de sua presença, dos motejos, dos apartes, mas a expulsão foi por assim dizer inútil, pois lá de fora ele dá um espetáculo insuportável, e com berros e murros na porta nos perturba a conferência mais do que antes. Em tais conjunturas poderíamos felicitar-nos se o nosso honrado presidente, Dr. Stanley Hall, quisesse assumir o papel de medianeiro e pacificador. Iria parlamentar com o nosso intratável companheiro e voltaria pedindo-nos que o recebêssemos de novo, garantindo- nos um comportamento conveniente daqui por diante. Graças à autoridade do Dr. Hall, condescendemos em desfazer a repressão, voltando a paz e ao sossego. Eis uma representação muito apropriada da tarefa que cabe ao médico na terapêutica psicanalítica das neuroses. Agora, para dizê-lo sem rodeios: chegamos à convicção, pelo exame dos doentes histéricos e outros neuróticos, de que a repressão das idéias, a que o desejo insuportável está apenso (anexado), malogrou. Expeliram-nas da consciência e da lembrança; com isso os pacientes se livraram aparentemente de grande soma de dissabores. Mas o impulso desejoso, que continua a existir no inconsciente à espreita de oportunidade para se revelar, concebe a pronome alemão neutro da terceira pessoa do singular) desconhecido e inconsciente, sobre cuja superfície aparece o eu.
  • 11. 11 formação de um substituto do reprimido, disfarçado e irreconhecível, para lançar à consciência, substituto ao qual logo se liga a mesmas sensação de desprazer que se julgava evitada pela repressão. Esta substituição da idéia reprimida — o sintoma — é protegida contra as forças defensivas do ego e em lugar do breve conflito, começa então um sofrimento interminável. No sintoma, junto aos indícios de desfiguração, cabe reconhecer traços de semelhança com a idéia originariamente reprimida. Pelo tratamento psicanalítico desvenda-se o trajeto ao longo do qual se realizou a substituição, e para a recuperação é necessário que o sintoma seja reconduzido, novamente, pelos mesmos caminhos, até a idéia reprimida.” A experiência mostrou que ao fazer o paciente ou qualquer indivíduo rastrear suas representações mnêmicas para alcançar estratos mais profundos de sua memória, por meio da associação livre, um mesmo fenômeno ou ato psíquico passava por diferentes fases ou diferentes estados, entre os quais se intercalava uma espécie de prova (censura) que, se não fosse vencida, não permitiria que o conteúdo a ser recordado alcançasse a consciência. No caso de mecanismo da histeria, Freud o resume no Projeto (1895) da seguinte forma: seja A uma representação hiperintensa que todas as vezes que surge na consciência leva o sujeito ao choro, sem que haja na própria representação motivos para isso. Após análise, descobre-se a existência de uma certa representação B, que fornece motivos suficientes para o choro, mas que até então não era consciente. Supõe Freud, então, que a vivência original compunha-se de B + A, onde B exercia apropriadamente o efeito e A constituía uma circunstância acessória. No entanto, na reprodução do acontecimento na memória, A tomou o lugar de B como vivência principal, tornando-se a única consciente. A tornou-se símbolo de B, e, embora formações de símbolos ocorram normalmente no cotidiano, no caso associativo da compulsão histérica acima descrita, o sujeito que chora por A não sabe que o faz devido à sua associação com B, que lhe é indiferente. Freud resume tal vivência atribuindo a B a característica de estar recalcado da consciência.3 No caso do deslocamento operado na situação, mudou-se a distribuição quantitativa, já que o acréscimo quantitativo de A se deveu à uma subtração quantitativa de B. “Uma vez restituído à atividade anímica consciente aquilo que fora reprimido — e isso pressupõe a superação de consideráveis resistências- o conflito psíquico desse modo gerado e que o enfermo quis evitar, encontra, orientado pelo médico, uma solução melhor do que lhe oferecia a repressão. Há várias dessas soluções para rematar satisfatoriamente conflito e neurose, as quais, em determinados casos, podem combinar-se entre si. Ou a personalidade 3 Segundo o Vocabulário de Psicanálise, de Laplanche e Pontalis, recalque significa uma operação pela qual o indivíduo procura repelir ou manter no inconsciente representações (pensamentos, imagens, recordações) ligadas a uma pulsão. O recalcamento produz-se nos casos em que a satisfação de uma pulsão – suscetível, por si mesma, de proporcionar prazer – ameaçaria provocar desprazer relativamente a outras exigências psíquicas.
  • 12. 12 do enfermo se convence de que repelira sem razão o desejo e consente em aceitá-lo total ou parcialmente, ou este mesmo desejo é dirigido para um alvo irrepreensível e mais elevado (o que se chama sublimação do desejo), ou, finalmente, reconhece como justa a repulsa. Nesta última hipótese o mecanismo da repressão, automático, e por isso mesmo insuficiente, é substituído por um julgamento de condenação com a ajuda das mais altas funções mentais do homem — assim se obtém o controle consciente do desejo”. Posteriormente, Freud continua suas explicações em relação à técnica e ao método psicanalítico: “A elaboração das idéias que se oferecem ao paciente quando se submete à regra psicanalítica fundamental não é o único recurso técnico para atingir o inconsciente. Ao mesmo fim servem dois outros processos: a interpretação de sonhos e o estudo dos atos falhos e casuais. (...). A interpretação de sonhos é na realidade a estrada real para o conhecimento do inconsciente, a base mais segura da psicanálise. É campo onde cada trabalhador pode por si mesmo chegar a adquirir convicção própria, como atingir maiores aperfeiçoamentos. Quando me perguntam como pode uma pessoa fazer-se psicanalista, respondo que é pelo estudo dos próprios sonhos. Os adversários da psicanálise, com muita habilidade, têm até agora evitado estudar de perto A Interpretação de Sonhos, ou têm oposto ao de longe objeções superficialíssimas. Se não repugna aos presentes, ao contrário, aceitar as soluções dos problemas da vida onírica, já não apresentam aos ouvintes dificuldade alguma as novidades trazidas pela psicanálise. (...) Examinando os sonhos de criancinhas, desde um ano e meio de idade, verificarão que eles são extremamente simples e de fácil explicação. A criancinha sonha sempre com a realização de desejos que o dia anterior lhe trouxe e que ela não satisfez. Não há necessidade de arte divinatória para encontrar solução tão simples; basta saber o que se passou com a criança na véspera (“dia do sonho”). Estaria certamente resolvido, e de modo satisfatório, o enigma do sonho, se o do adulto não fosse nada mais que o da criancinha: realização de desejos trazidos pelo dia do sonho. E o é de fato. As dificuldades que esta solução apresenta removem-se uma a uma, mediante a análise minuciosa dos sonhos. A primeira e mais importante objeção é a de que os sonhos dos adultos via de regra têm um conteúdo ininteligível, sem nenhuma semelhança com a satisfação de desejos. Mas a resposta é: estes sonhos estão distorcidos, o processo psíquico correspondente teria originariamente uma expressão verbal muito diversa. O conteúdo manifesto do sonho, recordado vagamente de manhã e que, não obstante a espontaneidade aparente, se exprime em palavras com esforço, deve ser diferenciado dos pensamentos oníricos latentes, que supomos existir no inconsciente. Esta deformação possui mecanismo idêntico ao que
  • 13. 13 identificamos ao investigar a gênese dos sintomas histéricos; e é uma prova da participação da mesma interação de forças mentais tanto na formação dos sonhos como na dos sintomas. O conteúdo manifesto do sonho é o substituto distorcido dos pensamentos oníricos inconscientes, e esta deformação é obra das forças defensivas do eu, isto é, das resistências que na vigília impedem aos desejos reprimidos do inconsciente todo o acesso à consciência; e que, mesmo enfraquecidas durante o sono, ainda conservam força suficiente para obrigar (o sonho) a adotar um disfarce encobridor. Quem sonha, portanto, reconhece tão mal o sentido de seus sonhos, como o histérico as correlações e a significação de seus sintomas. De que há pensamentos latentes do sonho e que entre eles e o conteúdo manifesto existe de fato o nexo aludido, os presentes se convencerão pela análise de sonhos, cuja técnica se confunde com a da psicanálise. Pondo de lado a aparente conexão dos elementos do sonho manifesto, procurarão os senhores evocar idéias por livre associação, que para cada elemento onírico singular se obtém na associação livre, seguindo a regra do trabalho psicanalítico. A partir deste material chegarão aos pensamentos oníricos latentes do mesmo modo como conseguiram alcançar, a partir das idéias evocadas pelas associações livres em relação aos sintomas e lembranças dos pacientes, o complexo oculto. (...) Posso agora tratar do terceiro grupo de fenômenos psíquicos cujo estudo se tornou recurso técnico da psicanálise. Os fenômenos em questão são as pequenas falhas comuns aos indivíduos normais e aos neuróticos, fatos aos quais não costumamos dar importância — o esquecimento de coisas que deviam saber e que às vezes sabem realmente (por exemplo a fuga temporária dos nomes próprios), os lapsos de linguagem, tão freqüentes até mesmo conosco, na escrita ou na leitura em voz alta; atrapalhações no executar qualquer coisa, perda ou quebra de objetos etc., bagatelas de cujo determinismo psicológico de ordinário não se cuida, que passam sem reparo como casualidades, como resultado de distrações, desatenções e outras condições semelhantes. Juntam-se ainda os atos e gestos que as pessoas executam sem perceber e, sobretudo, sem lhes atribuir importância mental, como sejam trautear melodias, brincar com objetos, com partes da roupa ou do próprio corpo etc. Essas coisinhas, os atos falhos, como atos sintomáticos e fortuitos, não são assim tão destituídos de valor como, por uma espécie de acordo tácito, é hábito admitir. São extraordinariamente significativos e (...) exprimem impulsos e intenções que devem ficar ocultos à própria consciência, ou emanam justamente dos desejos reprimidos e dos complexos que, como já sabemos, são criadores dos sintomas e formadores dos sonhos.(...) Por eles o homem trai, em regra, os mais íntimos segredos.”
  • 14. 14 •Freud e Sherlock Holmes ? A perspicácia de Freud para encontrar nos pequenos atos – em geral, desprezíveis- a pista que o levaria ao “pondo nodal” da trama em questão levaria vários observadores a comparar o método psicanalítico a um processo de investigação criminal. O próprio Freud, em suas Conferências Introdutórias (1915-16) afirma: “E se fosse um detetive empenhado em localizar um assassino, esperaria achar que o assassino deixou para trás sua fotografia, no local do crime, com seu endereço assinalado? Ou não teria, necessariamente, de ficar satisfeito com vestígios fracos e obscuros da pessoa que estivesse procurando? Assim sendo, não subestimemos os pequenos indícios; com sua ajuda podemos obter êxito ao seguirmos a pista de algo maior”. Essa característica metodológica da psicanálise não passaria desapercebida do escritor Nicholas Meyer, que escreveria um conto que se tornou best-seller em vários idiomas, e foi adaptado para o cinema, no qual o escritor aproxima o famoso detetive Sherlock Holmes do psicanalista vienense. Assim como Freud, as soluções de Holmes, personagem de Conan Doyle, baseavam-se na capacidade que tinha de dar atenção aos pequenos fatos incomuns, encontrando a solução de um problema complicado através da observação de um pequeno lapso ou característica menor. Eis um pequeno exemplo: Dr. Watson acaba de chegar inesperadamente à Baker Street, 221 B, esperando persuadir o grande detetive a acompanhá-lo em suas férias. Antes que comece a falar, Holmes diz, claramente, qual o objetivo daquela visita: (Nas palavras de Holmes): "Conhecendo bem você como conheço, é absurdamente simples. Seus horários de cirurgia são das cinco às sete; contudo, às seis horas você entra sorrindo em meus aposentos. Portanto, você deve ter um substituto. Você parece bem, mas cansado; então, a razão óbvia é que você está tendo ou está para ter férias. O termômetro clínico aparecendo em seu bolso declara que você esteve de ronda hoje; portanto, é bastante evidente que suas férias verdadeiras começam amanhã. Quando, sob estas circunstâncias, você vem apressado aos meus aposentos - os quais, a propósito, Watson, você não visita há três meses - , com um Bradshaw novo e uma tabela de horários de excursões inchando o bolso do seu casaco, então é mais do que provável que você tenha vindo com a idéia de sugerir alguma expedição conjunta". Mas segundo os historiadores, algo mais do que simples coincidências aproximaram historicamente o criador de Sherlock Holmes, Conan Doyle e o método psicanalítico. Conan Doyle nunca fez segredo de seu débito à Joseph Bell, um cirurgião de Edinburgh, para a criação do personagem Sherlock Holmes. Bell, que podia diagnosticar pessoas assim
  • 15. 15 que elas entravam em seu consultório, antes mesmo que pudessem pronunciar a primeira palavra, definia a habilidade de reconhecer e apreciar as pequenas diferenças ou detalhes como o fator verdadeiramente essencial em todo diagnóstico médico bem sucedido. Além disso, Conan Doyle teve um tio que fora diretor da Galeria de Arte de Dublin e franco admirador do trabalho do médico italiano Giovanni Morelli (1816-1891), o qual era capaz de determinar, na pintura, os atributos específicos que habilitam um crítico de arte a distinguir entre a obra de um mestre e de um simples imitador. A solução de Morelli aponta para os detalhes triviais, que caracterizam o estilo de cada artista. Segundo Morelli: “(...) para identificar as formas características de um artista, precisamos nos remeter àquelas partes da pintura sobre as quais existam menos pressões convencionais (...) Por isso, precisamos levar a sério a representação da mão, as cortinas, a paisagem, a parte arredondada do polegar ou o lóbulo da orelha” 4 . Embora não se pudesse esperar que muitos médicos conhecessem o trabalho de Morelli ou que se interessassem pela história da arte, Freud escreve em seu artigo sobre o Moisés de Michelângelo (1914): “Muito antes que pudesse dar-me conta da descoberta da psicanálise, soube que um conhecedor de arte russo, Ivan Lermolieff, provocara uma revolução nas galerias de arte da Europa revisando a autoria de muitos quadros, ensinando a distinguir com segurança as cópias dos originais, e desmascarando novos artistas, cuja suposta autoria das obras demonstrou ser falsa. Conseguiu tudo isso insistindo em que a atenção deveria ser desviada da impressão geral e das características principais de um quadro, dando-se ênfase às características dos detalhes de menor importância, como o formato das unhas, dos lóbulos das orelhas, as auréolas dos santos e outras trivialidades cuja imitação o copista omitia5 e que, sem dúvida, cada artista executa de uma maneira característica. (...) sob esse pseudônimo russo ocultava- se um médico italiano chamado Morelli, falecido em 1891 (...). Parece-me que seu método de investigação tem estreita relação com a técnica da psicanálise. Também esta está habituada a deduzir, a partir de traços pouco percebidos ou aspectos menosprezados, coisas secretas ou encobertas (...)6 Em Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901), Freud nos fornece um exemplo bastante ilustrativo da utilização de seu método em relação a um lapso de fala, narrando uma experiência do cotidiano: “No verão passado — também durante uma viagem de férias —. renovei meu contato com um jovem de formação acadêmica, que logo constatei estar familiarizado com algumas de minhas publicações psicológicas. Nossa conversa recaiu — já não me lembro como — sobre a 4 WOLLHEIM, apud SHEPHERD, p. 20. 5 No sentido de que descuidava, não observava. 6 AE, vol. 13, p. 227.
  • 16. 16 situação social da raça a que ambos pertencemos, e ele, impelido pela ambição, passou a lamentar-se por sua geração estar condenada à atrofia (segundo sua expressão), não podendo desenvolver seus talentos ou satisfazer suas necessidades. Concluiu seu discurso, de tom apaixonado, com o célebre verso de Virgílio em que ainfeliz Dido confia à posteridade sua vingança de Enéias: “Exoriare…” Melhor dizendo, ele quis concluí-lo desse modo, pois não conseguiu fazer a citação e tentou esconder uma evidente lacuna em sua lembrança trocando a ordem das palavras: “Exoriar(e) ex nostris ossibus ultor.’’ Por fim, disse, irritado: “Por favor, não me faça essa cara tão zombeteira, como se se estivesse comprazendo com meu embaraço, mas antes me ajude! Falta alguma coisa no verso. Como é mesmo que diz, completo?” “Ajudarei com prazer”, respondi, e dei-lhe a citação correta: “Exoriar(e) ALIQUIS nostris ex ossibus ultor.” “Que tolice, esquecer essa palavra! Por falar nisso, o senhor diz que nunca se esquece nada sem uma razão. Gostaria muito de saber como foi que esqueci esse pronome indefinido, ‘aliquis‘.” Aceitei o desafio prontamente, na esperança de conseguir uma contribuição para minha coleção. Disse-lhe, pois: —Isso não nos deve tomar muito tempo. Só tenho que lhe pedir que me diga, sinceramente e sem nenhuma crítica, tudo o que lhe ocorre enquanto estiver dirigindo, sem nenhuma intenção definida, sua atenção para a palavra esquecida. —“Certo; então me ocorre a idéia ridícula de dividir a palavra assim: a e liquis.” —O que quer dizer isso? —“Não sei.” — E o que mais lhe ocorre? — “Isso continua assim: Reliquien [relíquias], liquefazer, fluidez, fluido. O senhor já descobriu alguma coisa?” —Não, ainda não. Mas continue. —“Estou pensando” — prosseguiu ele com um sorriso irônico — “em Simão de Trento, cujas relíquias vi há dois anos numa igreja de Trento. Estou pensando na acusação de sacrifícios de sangue que agora está sendo lançada de novo contra os judeus, e no livro de Kleinpaul [1892], que vê em todas essas supostas vítimas reencarnações, reedições, por assim dizer, do Salvador.” —Essa idéia não está inteiramente desligada do tema de nossa conversa antes que lhe escapasse da memória a palavra latina. —“Exato. Estou pensando ainda num artigo que li recentemente num jornal italiano. Acho que o título era ‘O que diz Santo Agostinho sobre as mulheres’. Que entende o senhor com isso?” —Estou esperando.
  • 17. 17 —“Pois agora vem algo que por certo não tem nenhuma ligação com o nosso tema.” —Por favor, peço-lhe que se abstenha de qualquer crítica e… —“Sim, já sei. Lembro-me de um magnífico senhor idoso que encontrei numa de minhas viagens na semana passada. Ele era realmente original. Parecia uma enorme ave de rapina. Chamava-se Benedito, se isso lhe interessa.” —Bem, pelo menos temos uma seqüência de santos e padres da Igreja: São Simão, Santo Agostinho, São Benedito. Acho que havia um padre da Igreja chamado Orígenes. Além disso, três desses nomes são também prenomes, como Paul [Paulo] em Kleinpaul. —“Agora o que me ocorre é São Januário e o milagre de seu sangue — parece que meus pensamentos avançam mecanicamente.” —Deixe estar; São Januário e Santo Agostinho têm a ver, ambos, com o calendário. Mas que tal me ajudar a lembrar do milagre do sangue? —“O senhor com certeza já ouviu falar nisso! O sangue de São Januário fica guardado num pequeno frasco, numa igreja de Nápoles, e num determinado dia santo ele se liquefaz milagrosamente. O povo dá muita importância a esse milagre e fica muito agitado quando há algum atraso, como aconteceu, certa vez, na época em que os franceses ocupavam a cidade. Então, o general comandante — ou será que estou enganado? será que foi Garibaldi? — chamou o padre de lado e, com um gesto inequívoco na direção dos soldados a postos do lado de fora, deu-lhe a entender que esperava que o milagre acontecesse bem depressa. E, de fato, o milagre ocorreu…” —Bem, continue. Por que está hesitando? —“É que agora realmente me ocorreu uma coisa… mas é íntima demais para ser comunicada… Além disso, não vejo nenhuma ligação nem qualquer necessidade de contá-lo”. —Pode deixar a ligação por minha conta. É claro que não posso forçá-lo a falar sobre uma coisa que lhe seja desagradável; mas então não queira saber de mim como foi que se esqueceu da palavra aliquis. —“Realmente? O senhor acha? Pois bem, é que de repente pensei numa dama de quem eu poderia receber uma notícia que seria bastante desagradável para nós dois.” —Que as regras dela não vieram? —“Como conseguiu adivinhar isso?” —Já não é difícil. Você preparou bem o terreno. Pense nos santos do calendário, no sangue que começa a fluir num dia determinado, na perturbação quando esse acontecimento não se dá, na clara ameaça de que o milagre tem que se realizar, se não… Na verdade, você usou o milagre de São Januário para criar uma esplêndida alusão às regras das mulheres.
  • 18. 18 —“Sem me dar conta disso. E o senhor realmente acha que foi essa expectativa angustiada que me deixou impossibilitado de reproduzir uma palavra tão insignificante como aliquis?” —Parece-me inegável. Basta lembrar sua divisão em a-liquis, e suas associações: relíquias, liquefazer, fluido. São Simão foi sacrificado quando criança; devo continuar, e mostrar como ele entra nesse contexto? O senhor pensou nele partindo do tema das relíquias. —‘’Não, prefiro que não faça isso. Espero que o senhor não leve muito a sério esses meus pensamentos, se é que realmente os tive. Em troca, quero confessar que a dama é italiana e que estive em Nápoles com ela. Mas será que tudo isso não é apenas obra do acaso?” —Tenho que deixar a seu critério decidir se todas essas relações podem ser explicadas pela suposição de que são obra do acaso. Posso dizer-lhe, no entanto, que qualquer caso semelhante que você queira analisar irá levá-lo a “acasos” igualmente notáveis. Tenho diversas razões para dar valor a essa pequena análise e sou grato a meu ex- companheiro de viagem por ter-me presenteado. Em primeiro lugar, porque, nesse caso, pude recorrer a uma fonte que habitualmente me é negada. Para os exemplos aqui reunidos de perturbações de uma função psíquica na vida cotidiana, tenho de recorrer principalmente à auto-observação. Empenho-me em evitar o material muito mais rico fornecido por meus pacientes neuróticos, já que, de outro modo, poder-se-ia objetar que os fenômenos em questão são meras conseqüências e manifestações da neurose. Por isso, é particularmente valioso para meus objetivos que uma outra pessoa que não sofra de doença nervosa se ofereça como objeto de tal investigação. (...).A situação dever ser interpretada da seguinte maneira: o falante vinha deplorando o fato de a geração atual de seu povo estar privada de seus plenos direitos; uma nova geração — profetizou ele, como Dido — haveria de vingar-se dos opressores. Nisso ele expressara seu desejo de ter descendentes. Nesse momento intrometeu-se um pensamento contraditório: “Você realmente deseja descendentes com tanta intensidade? Isso não é verdade. Quanto não lhe seria embaraçoso receber agora a notícia de que espera descendentes do lugar que você sabe? Não: nada de descendentes… por mais que precisemos deles para a vingança.”
  • 19. 19 2. DO PROJETO À INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS. A PRIMEIRA TÓPICA 2.1 O Projeto de Psicologia É na tentativa de formular uma psicologia isenta de contradições que Freud apresenta, em seu Projeto de Psicologia (1895), os processos psíquicos como "estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis". 7 Tais partículas seriam os neurônios. Duas seriam as classes de neurônios: 1.a células de recordação, ou neurônios ψ - neurônios que operariam com barreiras de contato, deixando que o fluxo de quantidade passe com dificuldade ou só parcialmente, apresentando, após a passagem de cada excitação, um estado diverso do anterior, permitindo com isso uma possível constituição da memória; 2.a células de percepção, ou neurônios φ, - neurônios que operariam como se não possuíssem nenhuma barreira de contato. As resistências (situadas nos contatos entre os neurônios, como barreiras) explicariam o armazenamento de quantidade no interior dos sistemas. A memória, portanto, é vista como uma propriedade do tecido nervoso, como uma disponibilidade do mesmo para ser alterado por um processo singular em contraposição a outro tipo de tecido, que permite a passagem de um movimento de onda sem receber qualquer vestígio posterior de sua passagem. Além dos neurônios de memória e percepção, Freud postularia a existência de uma terceira classe de neurônios, os neurônios ω, responsáveis por explicar a consciência. É no Projeto que Freud postula o princípio da constância, segundo o qual o sistema tende a manter constante ou o mais baixa possível a quantidade, ao mesmo tempo em que se defende de qualquer acréscimo. Freud supõe a constituição primitiva do aparelho como determinada pela marca da experiência fundamental de um organismo que, embora tendo como meta a sobrevivência, não tem inicialmente condições de assegurá-la, por não possuir meios de agir sobre o mundo exterior a fim de modificá-lo. O organismo humano, desamparado ao nascimento, depende de um outro para realizar uma ação, chamada de específica, que, além de assegurar-lhe a vida, possibilita-lhe suprimir o excesso de estimulação endógena provocado pela não satisfação da necessidade. À realização da ação específica segue-se um estado de bem-estar, sendo que ao conjunto dessa experiência Freud denomina vivência de satisfação. 7 AE, vol. 1, p. 339
  • 20. 20 Como conseqüência dessa vivência inicial de satisfação, a cada novo estado de pressão, ou de desejo, a imagem mnêmica do objeto de satisfação será reativada no aparelho, provocando um efeito essencialmente alucinatório. A partir de então o desejo pode ser pensado como um movimento de natureza psíquica, uma vez que a experiência da presentificação de um objeto, independente de sua presença real, escapa à ordem da qual o desejo primordialmente emergiu. Vemos, portanto, que a noção de desejo no Projeto já nasce intrinsecamente relacionada à noção de alucinação, ambas vinculadas à vivência de satisfação. O que passa a ocorrer, então, é que a cada novo investimento 8 dos neurônios ψ (do núcleo) pelos estímulos endógenos, tanto a imagem mnêmica do objeto de desejo quanto a da ação reflexa são reativadas, resultando com isso num alucinar da vivência de satisfação. O desengano só poderá ser resolvido na medida em que, pela ausência da ação específica, o organismo se der conta de que a fonte de estimulação endógena não foi cancelada. Tal solução, no entanto, não se aplica ao sonho, onde não há critério que torne possível a diferenciação entre percepção do objeto real e reanimação da imagem mnêmica desse mesmo objeto. Não há, portanto, nenhuma maneira de impedir o alucinar daquele que se encontra em estado de sono. No sonho não há um critério que possibilite a distinção entre representação e percepção. E esse critério é necessário tanto para que o estado de desejo não invista o objeto de recordação sem a presença do objeto real - do qual depende a satisfação -, quanto para evitar o reinvestimento de uma possível imagem mnêmica hostil, impedindo que se siga a liberação de desprazer. A um investimento quantitativo exacerbado do objeto de desejo, segue-se uma reanimação alucinatória da representação desse objeto, que faz com que ω tome a recordação como percepção e decrete a descarga, fracassando, dessa forma, como critério demarcatório de realidade objetiva. O critério que irá operar tal distinção é atribuído por Freud à inibição pelo eu, corroborada pela advertência da experiência biológica de não iniciar a descarga antes do surgimento do sinal de realidade objetiva, para que o limite no investimento das recordações de desejo não ultrapasse certo limiar. A partir de então é que Freud distingue processos psíquicos primários e processos psíquicos secundários, atribuindo aos primeiros o investimento do desejo até a alucinação, 8 Investimento: palavra que deve ser traduzida levando-se em conta a significação do termo original em alemão. Besetzung, palavra composta pelo prefixo be e pelo verbo setzen, remete à ação de colocar em um espaço um objeto que vem de outro lugar, ocupando este lugar. Em relação ao verbo setzen, há uma plasticidade imagética e uma mobilidade inerente ao verbo (que pressupõe a ação de colocar e retirar, novamente). Em geral, a conotação de Bezetzung liga-se à idéia de fluidez, algo pertinente ao modelo freudiano de circulação energética, onde há vias, locais, entradas, saídas, bloqueios, etc.
  • 21. 21 bem como a irrupção do desprazer, e, aos segundos, a modificação dos primeiros através da inibição do eu, o que possibilita a valorização correta dos signos de realidade objetiva e o discernimento ou o ato de julgar, provocado pela dessemelhança entre o investimento de desejo de uma recordação e um investimento perceptivo semelhante à ela. A coincidência dos investimentos coloca fim ao ato de pensar, permitindo a descarga; a discordância impulsiona o trabalho do pensamento na busca de nova identidade. O sono, que se caracteriza por uma paralisia motora do sujeito, inicia-se por um fechamento dos órgãos dos sentidos. Com o caminho da descarga motora barrado, a excitação proveniente de fonte endógena encontra-se livre para operar o processo que Freud denominava no Projeto (1895) de compulsão a associar. Ψ fecha-se às impressões de φ, enquanto φ não está investido. É o sono, portanto, a condição para a ocorrência de sonhos ou, mais especificamente, de processos primários em Ψ. Diferentemente dos processos secundários, que visam uma identidade de pensamento, os processos primários visam uma identidade de percepção, Como o sono é o único estado, comum a todos os homens, em que cada sujeito vivencia cotidianamente o processo alucinatório, independente de ter ou não qualquer comprometimento psíquico, sem que isso acarrete os danos que uma irrupção do mesmo processo acarretaria na vigília, é à sua elucidação como caráter próprio do sonho que Freud dirige seus esforços no capítulo VII da obra que considera o seu trabalho mais importante: A Interpretação dos Sonhos(1900). 2.2 A interpretação dos sonhos Sem abandonar suas idéias fundamentais, em A Interpretação dos Sonhos Freud passa a especificar o sentido dos conteúdo inconscientes, ou seja, o sentido daquilo que se alucina cotidianamente, por meio do que chamamos sonho. As conseqüências de tal descoberta marcariam definitivamente o rompimento do autor com a dicotomia normalidade X anormalidade, ou sanidade X loucura, uma vez que os mesmos mecanismos, presentes nas neuroses e, mais tarde, como veremos, também nas psicoses, fazem parte de nosso cotidiano e da história do desenvolvimento de cada indivíduo. 2.2.1.O caráter alucinatório dos sonhos e a regressão Da conjectura de Fechner de que "o cenário dos sonhos é outro que o da vida de representações da vigília"9 Freud introduz a idéia de localidade psíquica, frisando principalmente o caráter psicológico e não anatômico dessa localidade. Utilizando, como analogia, a representação auxiliar de um aparelho ótico, o autor encontra a correspondência da
  • 22. 22 localidade psíquica em um lugar no interior desse aparelho de lentes onde se "produzem um dos estágios prévios da imagem"10 , exatamente num lugar onde nenhum componente do aparelho é apreensível. Assim sendo, Freud constrói a hipótese de um aparelho psíquico 11 com base no modelo ótico, supondo que tudo o que pode ser objeto de nossa percepção interior é virtual, tal e qual as imagens que surgem entre as lentes do telescópio quando da propagação de luz. Freud supõe o aparelho psíquico como um instrumento no qual os elementos, chamados sistemas ψ, dispõem-se sucessivamente numa sequência fixa, distribuídos como as lentes de um telescópio, possuindo um extremo sensorial, por onde recebe as percepções, e um extremo motor, pelo qual o fluxo dos estímulos sensoriais encontra saída por meio da motilidade. O processo psíquico distribui-se, nesse aparelho, de forma reflexa, obedecendo a direção que vai do extremo da percepção à motilidade. Quando da passagem das percepções o aparelho retém um registro que Freud chamou de registro mnêmico, alterando com ele o sistema que o conserva. O que Freud propõe para responder pelo caráter alucinatório dos sonhos é uma inversão no caminho do fluxo excitatório, que, ao invés de tomar a direção progressiva da vigília, que vai do extremo sensorial ao extremo motor do aparelho, propaga-se exatamente na direção inversa, tomando uma direção regressiva. Essa direção regressiva, ou regressão, é considerada por Freud como uma das características psicológicas do processo onírico, essencial para explicar seu caráter alucinatório, embora, como esse último, não pertença exclusivamente aos sonhos, ocorrendo na vigília em processos que envolvam um retrocesso mnêmico, como é o caso das psicoses. 9 AE, vol. 5, p. 530; GW, vol. II/III, p. 541 10 AE, vol. 5, p. 530; GW, vol. II/III, p. 541 11 Aparelho psíquico: expressão utilizada para designar características próprias do psiquismo: a sua capacidade de transmitir e de transformar uma energia determinada e sua diferenciação em sistemas ou instâncias. Freud explica o seu funcionamento tomando como referência a concepção neurofisiológica do arco-reflexo. O sistema nervoso tem um extremo sensorial (terminações nervosas dos órgãos dos sentidos) por onde recebe as excitações ou quantidades de energia oriundas dos estímulos, e um extremo motor, por onde se descarrega a energia recebida mediante uma resposta motora. Entre ambos situam-se os centros nervosos da medula espinhal ou do cérebro, encarregados de receber a energia e transformá-la em ação, com o conseqüente efeito de reduzir a tensão gerada pelo estímulo. O aparelho psíquico, em sua origem, funciona como um aparelho reflexo: toda a nossa atividade psíquica parte de estímulos, sejam externos ou internos, e termina em enervações motoras. Freud supõe, portanto, um aparelho que possui um extremo sensorial, que recebe as percepções, e um extremo motor, que controla a passagem para a ação. Entre ambos os extremos do aparelho se interpõem os registros mnêmicos, ou seja, as marcas deixadas pelas experiências vividas pela criança desde o seu nascimento. As marcas dessas percepções deixadas no psiquismo tornam possível a memória. Além de assegurar a permanência do conteúdo das percepções, estas encontram-se enlaçadas entre si na memória, configurando redes associativas. A conseqüência é que a excitação tenderá a seguir os caminhos traçados por essas redes.
  • 23. 23 O processo ocorre, então, na direção contrária -regressiva- uma vez que faz com que os pensamentos convertam-se na imagem sensorial que os teria originado. Ao vincular a regressão com o aparelho psíquico anteriormente suposto, Freud encontra explicação para o fato empírico de que, a partir do trabalho do sonho, desaparecem ou ficam quase impossibilitadas de expressão as relações lógicas entre os pensamentos oníricos. Em relação a essas regressões, facilmente observadas nas alucinações da histeria, da paranóia e nas visões de pessoas normais, o processo regressivo traduz-se igualmente na mudança de pensamentos em imagens, restringindo essa mudança a pensamentos que estão intimamente conectados às recordações sufocadas ou que mantêm-se inconscientes. Segundo Freud: "O sonho, então, pensa de maneira predominante, ainda que não exclusiva, por imagens visuais." Ainda continua: " Não obstante, a única característica do sonho são esses elementos do conteúdo que se comportam como imagens, vale dizer, se assemelham mais a percepções que a representações mnêmicas. Deixando de lado as discussões acerca da natureza da alucinação, bem conhecidas de todos os psiquiatras, podemos enunciar, seguindo a todos os autores versados na matéria, que o sonho alucina, substitui pensamentos por alucinações." 28 No sentido de comprender a origem desse caráter peculiar dos sonhos Freud retoma o esquema da vivência de satisfação formulado no Projeto, na seção C do capítulo VII de A Interpretação dos Sonhos, em que uma parte essencial desta vivência é a associação da imagem mnêmica de uma determinada percepção (a amamentação, por exemplo) ao traço deixado na memória pela excitação produzida pela necessidade. Com o reaparecimento da necessidade, uma moção psíquica será suscitada por associação e tentará investir novamente a imagem mnêmica daquela percepção, a fim de reproduzir a mesma percepção, restabelecendo a situação de satisfação primitiva. A essa moção psíquica Freud chama de desejo. A reaparição da percepção ligada à satisfação da necessidade é a realização de desejo, sendo o caminho mais curto para esta realização aquele que vai da excitação eliciada pela necessidade ao total investimento da percepção. Aqui se reproduziria, portanto, um estado primitivo do aparelho psíquico, onde o estado de desejo termina num alucinar da satisfação. No sentido de comprender a origem desse caráter peculiar dos sonhos Freud retoma o esquema da vivência de satisfação formulado no Projeto, na seção C do capítulo VII de A Interpretação dos Sonhos, em que uma parte essencial desta vivência é a associação da imagem mnêmica de uma determinada percepção (a amamentação, por exemplo) ao traço deixado na memória pela excitação produzida pela necessidade. 28 AE, vol. 4, p. 73; GW, vol. II/III, p. 52
  • 24. 24 Com o reaparecimento da necessidade, uma moção psíquica será suscitada por associação e tentará investir novamente a imagem mnêmica daquela percepção, a fim de reproduzir a mesma percepção, restabelecendo a situação de satisfação primitiva. A essa moção psíquica Freud chama de desejo. A reaparição da percepção ligada à satisfação da necessidade é a realização de desejo, sendo o caminho mais curto para esta realização aquele que vai da excitação eliciada pela necessidade ao total investimento da percepção. Aqui se reproduziria, portanto, um estado primitivo do aparelho psíquico, onde o estado de desejo termina num alucinar da satisfação. Tanto a inibição da regressão quanto o desvio da excitação passam ao sistema responsável pela motilidade voluntária. Freud deduz, a partir daí, que toda atividade de pensamento requerida para estabelecer a identidade perceptiva com o mundo exterior, nada mais é do que um rodeio para a realização de desejo, imposto como necessário pela experiência. O pensar é, desse modo, um substituto do desejo alucinatório, o que evidencia ser o sonho uma realização de desejo, uma vez que só um desejo pode levar ao trabalho o aparelho psíquico. O sonho conserva, portanto, o modo primário de trabalho do aparelho. O processo primário está ligado à tendência original do aparelho psíquico de descarregar a soma de excitação, percebida de modo subjetivo como desprazerosa ou desagradável. A excitação segue uma via progressiva, que vai do extremo sensorial-perceptivo até o extremo motor. No entanto, a excitação pode tomar o caminho regressivo, se propagando para o sistema perceptivo. Ë o que ocorre nos sonhos: a representação transforma-se na imagem sensorial da qual havia originado. No entanto, esse processo não é exclusivo dos sonhos. Ele ocorre na vigília, seja por meio da memória voluntária, da reflexão, ou de outros modos de pensamento que pressupõem um retrocesso dentro do aparelho. Nesses casos, a regressão não avança além das imagens mnêmicas e não chega a reanimar as imagens perceptivas, convertendo-as em alucinações, como ocorre no sonho e nas psicoses. " (...) O sonhar em seu conjunto é uma regressão à condição mais prematura do sonhante, uma reanimação de sua infância, das moções pulsionais que o governaram então e dos modos de expressão de que dispunha. Por trás dessa infância individual, há a promessa de alcançar uma perspectiva sobre a infância filogenética, sobre o desenvolvimento do gênero humano, do qual o indivíduo é de fato uma repetição abreviada, influenciada pelas circunstâncias contingentes de sua vida."12 Citando a afirmação de Nietzsche, para quem no sonho "segue atuando um antiquíssimo veio do humano que já não pode alcançar-se por um 12 AE, vol. 5, p. 542; GW, vol. II/III, p. 541
  • 25. 25 caminho direto"13 , e movido por ela, Freud espera, mediante a análise dos sonhos, ser possível alcançar o conhecimento sobre o que há de inato no psiquismo individual bem como sobre a herança arcaica da espécie. Afim de sustentar a hipótese de que a ilogicidade e incoerência dos sonhos é apenas aparente, Freud refuta a possibilidade de que as associações psíquicas possam estar conectadas ao acaso e postula a existência de um determinismo dentro do psíquico, através do qual fundamenta a prática clínica da associação livre. Assim, o fato de emergirem representações involuntárias, durante a interpretação de um sonho, não significa que o sujeito esteja entregue a um decurso de representações sem meta. Para Freud, ao cessarem as representações-meta conhecidas surgem representações- meta ignoradas governando o curso das representações involuntárias. Através da hipótese do determinismo psíquico, também são refutadas as freqüentes objeções em relação à uma reprodução falseada do sonho, marcada pela infidelidade de nossa memória e pelo acréscimo de material que preencheria as lacunas pré-existentes ou criadas pela memória quando o sujeito tenta reproduzir o sonho. Para Freud, mesmo estas modificações mantêm associação com o conteúdo que substituem, servindo como pistas que indicam o caminho desse conteúdo, que pode ainda ser substituto de um outro. Como consequência desse raciocínio e da relação de identidade entre sonho e sintoma, é feita a distinção básica entre conteúdo manifesto do sonho e pensamentos oníricos latentes. Tal distinção remete-se à idéia de que, como os sintomas, os sonhos apresentam-se deformados em relação ao seu conteúdo original. Freud postula, então, a existência de mecanismos de deformação, explicados pela existência de um trabalho do sonho. 2.2.2 Elementos de formação do sonho A conduta do sonho de ocultar do sonhante que é um desejo seu que está sendo cumprido Freud chama de desfiguração onírica, atribuindo sua origem a uma tendência à defesa contra a realização desse desejo, identificando-a após a análise de sonhos de conteúdo penoso e de um sonho pessoal, onde a desfiguração aparece claramente como meio de dissimulação . Utilizando-se de um equivalente da vida social, no qual um crítico político, para dizer verdades que desagradarão aos poderosos, utiliza-se do artifício da dissimulação para não ver suprimidas suas manifestações, Freud exemplifica a relação que supõe presente na composição onírica. Assim como o crítico político tem que temer a censura para poder continuar a expressar suas opiniões, que só podem ser exteriorizadas de forma moderada e 13 AE, vol. 5, p. 542; GW, vol. II/III, p. 541
  • 26. 26 desfigurada, também no sonho, composto por dois poderes (instâncias ou sistemas), a censura exercida por um deles desfigura a exteriorização do desejo formado e expresso pelo outro. Como somente o conteúdo desfigurado é recordado como consciente, deixando com que os pensamentos latentes formadores do sonho tenham que ser descobertos ou inferidos mediante análise posterior, conclui Freud que o privilégio da instância que exerce a censura é o da admissão à consciência. Do primeiro sistema ou instância nada pode chegar à consciência sem passar por essa segunda instância, e essa segunda instância, por sua vez, nada deixa passar sem impor as modificações que considera necessárias para que se dê o acesso do material à consciência. O sonho, portanto, inicia-se na primeira instância, uma vez que à segunda cabe um papel defensivo, censurador e não criativo. A questão dos sonhos de conteúdos penosos e de caráter desprazeiroso fica resolvida, então, mediante a ação da desfiguração onírica: o conteúdo penoso, nesse momento, não é mais do que um meio através do qual o cumprimento de desejo disfarça seu conteúdo. A partir daí Freud resume a essência do sonho na seguinte fórmula: "O sonho é uma realização (disfarçada) de um desejo (sufocado, recalcado)." 14 Também à desfiguração onírica Freud atribui a responsabilidade de sonharmos com uma impressão onírica indiferente, quando é outra a impressão que ocasionou o sonho. O processo psicológico pelo qual a vivência indiferente ocupa o lugar da que possui valor psíquico é como uma transposição do acento psíquico pela via de elos intermediários, até que as representações, no começo carregadas com intensidade débil, tomam a carga das representações mais intensamente investidas, alcançando com isso a força necessária para ascender à consciência. Por outro lado, o sonho pode apresentar impressões que não se encontram dispostas na memória de vigília, como as impressões da primeira infância, ou ainda ser excitado pelo desejo que brota da vida infantil, fazendo-nos encontrar, no sonho, "a criança que segue vivendo com seus impulsos."15 Ao analisar um sonho em que cavalgava quando na realidade sentia dores que o impossibilitariam exatamente de realizar um exercício como este, conclui Freud que o sonho não só negou o sofrimento da vigília, como utilizou-se de uma imagem para figurar o que estava psiquicamente presente de maneira atual, também servindo ao propósito da comodidade, ao garantir o seu sono através da repressão das dores que poderiam fazê-lo despertar. Atribui, então, ao sonho o papel de guardião do sono, e computa o desejo de dormir como motivo para formação de sonhos. 14 AE, vol. 4, p. 177; GW, vol. II/III, p. 166 15 AE, vol. 4, p. 206; GW, vol. II/III, p. 197
  • 27. 27 Tal papel atribuído ao desejo de dormir já se encontra explícito desde a carta de 04.03.1895 (carta 22) da correspondência Freud-Fliess, na qual Freud relata um sonho que chama de sonho de comodidade, onde a formação alucinatória do sonho é criada com a finalidade de garantir ao sonhante a continuidade do sono. Nele, um sobrinho de Breuer, Rudi Kaufmann, após ser chamado pela manhã, como de costume, não acordou, substituindo o despertar pela alucinação onírica de um letreiro de hospital que continha o seu nome, o que o autorizou a continuar dormindo, já que podia dizer a si mesmo: se Rudolf Kaufmann já está no hospital, então não há necessidade de ir até lá. 16 Neste sonho, retomado em A Interpretação dos Sonhos, já se pode vislumbrar o estreito vínculo entre o processo alucinatório do sonho e a realização do desejo: é o desejo que se encontra na base de formação do processo alucinatório do sonho. Ao pensar o recalque como mecanismo básico para a formação do sonho, Freud torna possível o desmembramento entre o conteúdo manifesto e conteúdo latente do sonho, já apontado pela diferença entre o conteúdo onírico e os resultados obtidos através de sua análise. Freud centra, então, suas investigações sobre as relações entre o conteúdo manifesto e os pensamentos oníricos latentes, pesquisando, a partir daí, os processos através dos quais o sonho converte os últimos nos primeiros. Com isso, inaugura um capítulo fundamental para a compreensão das leis psíquicas que regem tanto a vida onírica quanto a vida psíquica em geral. 2.2.3 O trabalho do sonho O sonho não é um conteúdo psíquico acabado. É resultado de um trabalho que, não podendo ser apreendido pela introspecção, deve ser inferido a partir da desproporção entre o conteúdo manifesto do sonho e toda a gama de pensamentos oníricos latentes descobertos pelo trabalho de análise e interpretação dos mesmos. Freud considera essa uma tarefa eminentemente teórica, proporcionalmente inversa ao trabalho de interpretação. Se através da interpretação do conteúdo manifesto chega-se ao latente, descortinar os modos de trabalho do sonho significa caminhar em sentido oposto. A primeira inferência a que chega Freud a partir da comparação entre o compacto conteúdo manifesto do sonho e a riqueza e extensão dos pensamentos oníricos latentes é a de 16 Ainda em A Intepretação dos Sonhos Freud se refere a uma certa quantidade de sonhos que, em oposição a liberdade do sujeito de dar ao sonho um cunho pessoal, são sonhados por todas as pessoas do mesmo modo, o que o leva a supor que expressam o mesmo significado. A eles dedica a seção chamada Sonhos típicos, classificando a maioria deles em sonhos: de nudez, de morte de pessoas queridas -a que Freud remete à competição entre irmãos, ao complexo de Édipo e a um possível relacionamento com os sonhos de angústia-, de queda, de vôo -os quais remete às impressões deixadas pelos jogos de movimento da infância-, de exames escolares, etc.
  • 28. 28 que ocorreu um amplo trabalho de condensação do material psíquico. A condensação, descrita pela primeira vez em A Interpretação dos Sonhos, opera com quantidades de energia que, de modo geral, ao se deslocarem ao longo de cadeias associativas, convergem para a representação que melhor responda às exigências de formação de sonho (como por exemplo, da censura, da consideração pela figurabilidade). A condensação também exprime intensidades de investimento: quanto mais fortemente investidos os produtos da condensação, maior vivacidade sensorial adquirirão no sonho manifesto.Nem mesmo os pensamentos oníricos revelados mediante análise constituem o material completo implicado na formação de um determinado sonho; prosseguindo o trabalho analítico podem-se descobrir ainda outros sonhos, ocultos sob o sonho em questão. Não existe, portanto, segurança de que um sonho possa ser interpretado à exaustão e mesmo diante de uma resolução satisfatória do trabalho interpretativo fica a possibilidade de que através de um mesmo sonho insinue-se ainda um outro sentido. Não é possível, portanto, determinar a cota de condensação do trabalho do sonho. As conexões associativas de pensamento estabelecidas durante a análise do material onírico, mesmo que não tenham estado diretamente presentes no processo de formação do sonho, ainda assim estão a ele ligadas como contatos laterais. Observa Freud que quando se reelabora uma das cadeias da imensa massa de pensamentos descobertos pela análise, que parece situar-se fora da trama do sonho, imediatamente surge um pensamento que tem seu substituto no conteúdo do sonho. Trata-se de um pensar inconsciente, muito diverso do processo reflexivo consciente. Dele, somente uns poucos elementos alcançam o conteúdo do sonho, não sendo o sonho um reflexo projetivo exato dos pensamentos oníricos, senão um reflexo incompleto e bastante disforme dos mesmos. Dirigindo sua atenção para as condições que comandam a eleição do material que, ao atingir a consciência, proporciona o resultado citado, observa que: (a) através da via associativa, um elemento do sonho leva a vários pensamentos oníricos e um pensamento onírico, a vários elementos do sonho; (b) ocorre uma certa elaboração do total da massa de pensamentos oníricos, após o quê elementos com melhor apoio são selecionados para o ingresso no conteúdo onírico; (c) qualquer sonho submetido à desarticulação analítica tem seus elementos configurados a partir da massa de pensamentos oníricos, mas aparecem, cada um deles, determinado de maneira múltipla por referência aos primeiros. Em relação às formações léxicas desprovidas de sentido, que surgem nos sonhos, Freud também as atribui ao resultado da condensação do trabalho onírico, através da qual as palavras são manejadas como se fossem coisas, experimentando as mesmas construções
  • 29. 29 que experimentam as representações. Nesse sentido as "deformações léxicas do sonho se assemelham muito às que conhecemos na paranóia, mas que tampouco faltam na histeria e nas idéias obsessivas." 17 E apontando para uma origem comum, conclui Freud: "Tanto para o sonho quanto para as psiconeuroses a fonte comum são os artifícios verbais das crianças, que em certos períodos tratam de fato as palavras como se fossem objetos e inventam linguagens novas e formações sintáticas artificiais".18 Observa Freud que elementos que se impõem como essenciais no sonho jamais desempenham o mesmo papel nos pensamentos oníricos, sendo verdadeira também a proposição inversa: o que constitui conteúdo essencial nos pensamentos oníricos pode nem aparecer no sonho, ou, se aparecer, ser tratado como um elemento de valor ínfimo. O sonho está, por assim dizer, diversamente centrado em relação aos pensamentos oníricos. O processo responsável por tal ocorrência, entendido por Freud como o processo essencial do trabalho onírico, é chamado de deslocamento. O deslocamento, entendido basicamente como o movimento, inerente a um investimento, de abandonar representações e deslizar através dos elos de cadeias associativas, como mecanismo mais antigo precede, na teoria, historicamente os outros três. pois já havia surgido como noção em As neuropsicoses de defesa, 1894, e no Projeto, 1895. 19 Em A Interpretação dos Sonhos, o deslocamento vem acompanhado da perspectiva de uma subversão dos valores psíquicos presentes nos pensamentos oníricos; além de um deslizar de investimentos, implica num deslocamento de intensidades, fundamentando teoricamente a observação clínica de que conteúdos ínfimos e aparentemente indiferentes do conteúdo manifesto podem levar à elucidação do sonho. À ação do deslocamento Freud atribui a modificação experimentada pelo conteúdo do sonho em relação ao núcleo dos pensamentos oníricos. É ele um dos principais meios para o conteúdo do sonho alcançar a desfiguração onírica, ocorrendo por influência da censura que uma instância exerce sobre a outra. Para Freud o deslocamento e a condensação são "os mestres artesãos a cuja atividade podemos atribuir principalmente a configuração do sonho". 20 17 AE, vol. 4, p. 309; GW, vol. II/III, p. 309 18 AE, vol. 4, p. 309; GW, vol. II/III, p. 309 19 Neste último, o deslocamento representa o movimento de Q. (quantidade) entre as facilitações constituídas pelos neurônios, podendo ser definido como o modo de funcionamento específico dos processos psíquicos primários. Ele também participa da formação do sonho, que se caracteriza por deslocamentos rápidos de Q. e pela substituição de uma representação quantitativamente desprivilegiada por outra, quantitativamente superior. Como conceito, vemos o deslocamento surgir no ensaio As neuropsicoses de defesa, em uma passagem na qual Freud distingue nos processos psíquicos algo que, além de aumentar, diminui, descarrega-se, desloca-se, comparando-o à passagem de uma corrente elétrica pela superfície de um corpo. 20 AE, vol. 4, p. 313; GW, vol.II/III, p. 313
  • 30. 30 No sonho ocorre uma subversão de todos os valores psíquicos. Um conflito da vontade pode ser expresso, por exemplo, pela sensação de inibição do movimento. Já o caso do sonho que se sonha dentro de outro sonho, verifica Freud tratar-se de uma forma com que o trabalho do sonho utilizou o próprio sonhar para dissuadir o sonhante da realidade do sonho sonhado dentro do outro sonho. Da indagação pela figuração das relações lógicas no sonho Freud adentra um tema mais vasto, relacionado à alteração experimentada pelo material onírico com vistas à formação do sonho. O material, desarticulado de suas relações em sua maior parte, é comprimido simultaneamente à subversão dos valores psíquicos que ocorre entre seus elementos, por meio do deslocamento de intensidade. Outro tipo de deslocamento proposto, além do que tem por função a substituição de uma representação pela que está mais próxima dela na cadeia associativa, é percebido por uma permutação da expressão linguística dos pensamentos que a originaram. Ambos os deslocamentos ocorrem ao largo de uma cadeia associativa; não divergem, portanto, no processo, mas ocorrem em diferentes esferas psíquicas, dando como resultado a substituição de um elemento por outro em um dos casos, e a permuta de palavras que expressam um elemento pelas que expressam o outro, no outro caso. O deslocamento se consuma quando, nas palavras de Freud, "uma expressão incolor e abstrata do pensamento onírico é trocada por outra, figurativa e concreta". 21 O figurativo tem a vantagem, em relação à expressão abstrata, de inserir-se facilmente numa situação. "Se o pensamento onírico, inutilizável em sua expressão abstrata, é remodelado em uma linguagem figurativa, entre essa nova expressão e o resto do material onírico podem estabelecer-se com maior facilidade que antes os contatos e identidades que o trabalho do sonho requer e que ele cria toda vez que não os encontra dados; com efeito, em qualquer linguagem, em virtude de sua evolução, os termos concretos são mais ricos em ligações do que os conceituais. Cabe imaginar, então, que, na formação do sonho, boa parte do trabalho intermédio, que procura reduzir os pensamentos isolados à expressão mais unitária e concisa possível, se produz desta maneira, a saber, mediante a apropriada remodelação linguística de cada um deles" 22 Freud remete o sonho, então, à linguagem, verificando que nele ocorrem expressões de uma ordem linguística primitiva, observando que também as neuroses tiram proveito das vantagens que a palavra oferece à condensação e ao disfarce. Se a desfiguração onírica facilmente induz ao engano, quando substitui duas palavras unívocas por uma multívoca, quanto mais se uma expressão figurativa substitui as usuais. 21 AE, vol. 5, p. 345; GW, vol. II/III, p. 345 22 Idem, ibid.
  • 31. 31 Mais uma vez, compara Freud o sonho à linguagem ao observar que a figuração característica do sonho oferece a seu tradutor o mesmo grau de dificuldades que oferece a seus leitores a escrita hieroglífica antiga. Em suas palavras: "Pensamentos do sonho e conteúdo do sonho se nos apresentam como duas figurações do mesmo conteúdo em duas linguagens diferentes; melhor dizendo, o conteúdo do sonho se nos aparece como uma transferência dos pensamentos do sonho a outro modo de expressão, cujos signos e leis de articulação devemos aprender a discernir pela via da comparação entre o original e sua tradução. Os pensamentos do sonho nos resultam compreensíveis tão logo cheguemos a conhecê-lo. O conteúdo do sonho nos é dado, por assim dizer, em uma pictografia, cada um de cujos signos tem de transferir-se à linguagem dos pensamentos do sonho." 23 Entre as várias ligações colaterais dos pensamentos oníricos, Freud nota uma preferência do trabalho do sonho pelas que irão permitir uma figuração visual; a partir daí, Freud deduz um terceiro fator, que se segue ao deslocamento e condensação na mudança dos pensamentos oníricos no conteúdo do sonho, ao que denomina consideração pela figurabilidade. Supõe, ainda, que, com vistas a possibilitar essa figuração, o trabalho do sonho pode primeiro encontrar uma outra forma linguística para expressar os pensamentos abstratos, ainda mais insólita. Essa outra forma, por sua vez, pode pôr-se à serviço da condensação, criando vínculos com outro pensamento já alterado em sua expressão original. A consideração pela figurabilidade exprime uma exigência do modo de expressão do sonho, que expressa até pensamentos abstratos por imagens, e exterioriza-se na eleição e transformação dos pensamentos oníricos com esse fim. A eleição implica na seleção, entre as diversas conexões de pensamentos, daquela que melhor possa expressar-se de forma figurativa; e a transformação pressupõe a orientação do deslocamento para a representação que substitua figurativamente os pensamentos em questão. O último mecanismo a incidir sobre a formação do sonho manifesto é a elaboração secundária. Tal elaboração, no intuito de figurar algo semelhante a um sonho diurno com o material que se lhe oferece, tem o poder de apropriar-se de uma fantasia diurna formada dentro da trama dos pensamentos oníricos e utilizá-la no conteúdo do sonho, de forma a repeti- la intacta ou quase intacta, a superpô-la a outras, a comprimi-la, a condensá-la, a utilizar apenas um de seus elementos ou uma alusão à eles, etc. A elaboração secundária incide somente sobre os produtos dos outros mecanismos; sua meta é imprimir ao conteúdo trabalhado o aspecto de coerência que o aproximaria da inteligibilidade. Essa meta pode alcançar-se também por meio de uma ação seletiva, levando o trabalho do sonho a utilizar-se de fantasias diurnas para esse fim. 23 AE, vol. 4, p. 285; GW, vol. II/III, pp. 283-84
  • 32. 32 O decisivo para a inclusão de fantasias no conteúdo do sonho são, obviamente, as vantagens que podem oferecer à censura e ao mecanismo de condensação; durante o sono, uma parte da atenção ativa durante a vigília permanece voltada ao sonho, controlando-o, criticando-o, interrompendo-lhe, o que sugere a Freud reconhecê-la como o censor, que tantas restrições impõe durante a elaboração onírica. Mas, além de atuar no processo de formação do sonho, a elaboração secundária é responsável pela desfiguração do sonho durante sua reprodução verbal. Como a elaboração secundária não é mais do que conseqüência da censura a que estão submetidos os pensamentos oníricos, a modificação do sonho, na recordação que dele temos e em seu relato verbal, não é arbitrária. Na realidade, tal modificação mantém-se associativamente conectada com o conteúdo que substitui, servindo para indicar o caminho até esse conteúdo, que por sua vez ainda pode estar no lugar de um outro. A elaboração secundária seria, portanto, o próprio pensamento normal que, exigindo do conteúdo onírico inteligibilidade, submete-o a uma interpretação prévia. Em vista disso, Freud coloca sob suspeição a coerência aparente do sonho, não estabelecendo diferença entre um conteúdo claro ou um conteúdo obscuro quando se trata de rastrear os pensamentos oníricos. O que, no entanto, surpreende Freud é o fato de o sonho se formar contra uma resistência tão atuante em sua formação, a ponto de, a serviço dela, a vida de vigília demonstrar o claro propósito de esquecer o sonho que se formou durante a noite. Em relação ao trabalho do sonho, numa nota de rodapé, agregada em l925, encontramos a seguinte observação de Freud: "(...) o sonho não é mais do que uma forma particular de nosso pensamento, possibilitada pelas condições do estado de dormir. É o trabalho do sonho o que produz essa forma, e somente ele é a essência do sonho, a explicação de sua especificidade".24 Possibilitado pelo sono, o trabalho do sonho é algo que qualitativamente difere do pensamento de vigília, como atesta uma passagem do capítulo VI de A Interpretação dos Sonhos relacionada à especificidade do trabalho do sonho: "Não pensa, nem calcula, nem em geral julga, senão que se limita a remodelar pensamentos, cálculos e juízos".25 Quanto ao conteúdo afetivo do sonho, Freud sustenta que é principalmente por ele que o sonho pode reivindicar um lugar junto às vivências reais do sujeito. A análise ensinou a Freud, que embora o conteúdo da representação surja de forma alterada no sonho, em consequência de deslocamentos, substituições e desfiguração onírica, o afeto sentido não experimenta mudanças. É o afeto, em todo o complexo psíquico, a parte mais resistente em 24 AE, vol. 5, p. 502; GW, vol. II/III, pp. 510-11 24 AE, vol. 5, p. 502; GW, vol. II/III, p. 511 24 AE, vol. 5, p. 502; GW, vol. II/III, pp. 510-11
  • 33. 33 relação à ação da censura. Ele pode manter uma certa conexão com o conteúdo substituto da representação que lhe correspondia, ou, então, pode dissociar-se da representação correspondente, inserindo-se em um contexto a que não pertence. Através da reconstrução dos pensamentos oníricos, via análise, Freud percebe que as moções de afeto presentes nesses são muito mais intensas que aquelas presentes no conteúdo do sonho, por isso atribui ao trabalho do sonho uma sufocação de afetos.Tal sufocação adviria de uma inibição provocada pelos poderes psíquicos em conflito durante a formação do sonho. A inibição do afeto resultaria, então, da ação da censura onírica, na verdade seu segundo resultado, após o da desfiguração onírica. Além de surgirem no conteúdo do sonho fora de contexto ou consideravelmente reduzidos, os afetos podem também ser transformados em seu contrário. Segundo Freud pôde concluir, na formação do sonho o trabalho psíquico " (...) decompõe-se em duas operações: a produção de pensamentos oníricos e sua transmutação no conteúdo do sonho. Os pensamentos oníricos formam-se de modo inteiramente correto e com todo o gasto psíquico de que são capazes; pertencem a nosso pensar não tornado consciente, do qual, por uma certa transposição surgem os pensamentos conscientes.(...) Por outro lado, o outro trabalho, o que muda os pensamentos inconscientes no conteúdo do sonho, é próprio da vida onírica e característico dela.”26 Sobre esse trabalho, responsável pela realização do desejo sob forma alucinatória, não se pode exercer nenhuma influência, conforme Freud expressaria no capítulo VII de Observações sobre a teoria e a prática da interpretação dos sonhos, de 1922: "Sobre o mecanismo de formação do sonho como tal, sobre o trabalho do sonho propriamente dito, nunca se exerce influência; é lícito ter isto por seguro" 27 O trabalho do sonho é, portanto, através do conjunto de mecanismos que representa, uma operação básica na constituição do aparelho psíquico. No entanto, fica-nos a questão: qual é o fator que requer a suposição de uma operação tão básica e tão independente de influências como é a do trabalho do sonho ? Do mesmo modo que, no Projeto, em A Interpretação dos Sonhos, embora sob outra perspectiva, o objeto primeiro sobre o qual o trabalho do sonho opera são as quantidades de investimento. O trabalho do sonho opera, portanto, com uma grandeza que foi concebida como tendo todas as propriedades de uma quantidade e que, praticamente, fundamenta todo o funcionamento do aparelho psíquico. 25 AE, vol. 5, p. 502; GW, vol. II/III, p. 511 26 AE, vol. 5, p. 502; GW, vol. II/III, pp. 510-11 27 AE, vol. 19, p.116
  • 34. 34 2.3 A PRIMEIRA TÓPICA A palavra tópica, que deriva do grego topoi, significa teoria dos lugares, e foi utilizada pela Filosofia desde a Antigüidade. Para Aristóteles, por exemplo, os lugares (topoi) eram a base a partir da qual derivavam as premissas de uma argumentação. Já para Kant, a tópica transcendental é a determinação do lugar que convém a cada conceito. Para Freud, o aparelho psíquico é um construto teórico, um modelo que tem como objetivo representar o nosso funcionamento psíquico. Em psicanálise, a palavra tópica supõe que esse aparelho ou modelo é composto de diferentes sistemas de funcionamento, dotados de determinadas características. Trata-se de uma representação espacial que considera esses sistemas, metaforicamente, como lugares psíquicos (Tubert, 2000). De acordo com o ponto de vista tópico, os sistemas inconsciente, pré-consciente e consciente são sistemas mnêmicos constituídos por grupos de representações regidos por diversas leis de associação. Por analogia com um aparelho ótico, Freud supõe que a localidade psíquica corresponde a um lugar situado no interior desse aparelho, em que a imagem gerada por meio da passagem da luz entre as lentes não corresponde a nenhum elemento concreto do instrumento, ou seja, não coincide com as próprias lentes. Freud supõe um ordenamento espacial dos sistemas: o sistema pré-consciente encontra-se situado entre o inconsciente e a consciência; está separado do primeiro por meio de uma rígida censura que impede que as representações inconscientes passam ao sistema pré-consciente e à consciência. Por isso o inconsciente, em si, é inacessível. Somente podemos conhecê-lo por meio de seus efeitos, que irrompem em nossas palavras ou atos, por exemplo, de modo alheio a intenção de nosso eu. Entre o sistema pré-consciente e a consciência, o autor supõe existir outra censura, de caráter mais brando, que controla o acesso à consciência e à motricidade voluntária. Para o autor, todo e qualquer ato psíquico é inconsciente em sua origem, e poderá permanecer nesse estado ou não, dependendo da intensidade de censura que sofrer. A partir dessa premissa podemos compreender a diferenciação entre pensamentos pré-conscientes, suscetíveis de se tornarem conscientes a qualquer momento, e pensamentos inconscientes, que, se alcançam a consciência, o fazem mediante deformações, impostas pela censura. A explicação para a oposição entre os sistemas pré-consciente e inconsciente reside em um ponto de vista dinâmico, para o qual a oposição entre os dois sistemas é o resultado de um conflito de forças psíquicas que lutam ativamente entre si, de modo que nosso psiquismo não é homogêneo, senão que se encontra marcado por contradições que o dividem.
  • 35. 35 Inconsciente e Pré-Consciente podem ser compreendidos como redes de registros mnêmicos que se diferenciam, do ponto de vista topográfico, por sua posição em relação à consciência, e do ponto de vista dinâmico e econômico, segundo os modos de funcionamento que Freud chama de processos primário e secundário (Tubert, 2000). Como vimos, as formações do inconsciente (atos falhos, sonhos, sintomas) são o resultado de duas forças opostas: o conteúdo reprimido retorna, mas de uma maneira disfarçada (o esquecimento da palavra ALIQUIS, no exemplo do capítulo anterior), o que faz o autor supor que uma força repressora esteja atuando constantemente para que isso ocorra. No entanto, tal repressão não ocorre contra representações extáticas. É preciso considerar as cargas de energia que circulam no aparelho psíquico, o que nos leva ao ponto de vista econômico da psicanálise. Toda a representação é investida por um impulso (TRIEB = pulsão), e procura continuamente ter acesso à consciência. A passagem de um ato psíquico de um sistema para outro efetua-se por meio de um desinvestimento por parte do primeiro e um reinvestimento pelo segundo. No entanto, a dinâmica e a economia dos sistemas demonstram que cada qual possui características singulares, os quais exporemos a seguir. 2.3.1 O sistema Inconsciente Freud postulou que determinados processos ocorrem dentro do sistema Inconsciente, modulando o seu funcionamento. A característica essencial do sistema inconsciente é que nele só existem conteúdos mais ou menos investidos. Ele é caracterizado por uma extrema mobilidade das intensidades de investimento, o que Freud chamou de processo psíquico primário, e que representaria sua marca fundamental. O processo psíquico primário é regido pela extrema mobilidade dos investimentos. Isso significa que a energia psíquica que investe os registros mnêmicos escoa- se livremente, movendo-se sem barreiras de uma representação para outra segundo os mecanismos de deslocamento e condensação, sendo sua tendência o reinvestimento pleno das representações ligadas às vivências de satisfação constitutivas do desejo (alucinação primitiva). Desde o Projeto (1895) Freud verificou que uma representação podia transmitir seu quantum de investimento a outra representação. O processo de deslocamento pode-se definir pelo fato da energia investida em uma representação ser suscetível de retirar-se dela para unir- se a outras representações de intensidade antes fraca, mas ligadas à primeira por uma série de associações. Para exemplificar, lembremos do papel do deslocamento em relação ao sonho: ele tanto pode substituir um elemento importante da trama do sonho por uma
  • 36. 36 representação bastante afastada na cadeia associativa, trazendo à consciência nada mais do que uma alegoria em relação ao conteúdo principal, como pode transferir o acento psíquico de um elemento importante para outro, pouco importante, deslocando o centro do sonho, o que o faz parecer absurdamente estranho. Já a condensação faz de uma só representação o representante de numerosas séries de associações, tomando para si a energia que antes investia uma série de representações. Nesse caso, é igualmente por meio do sonho que podemos exemplificar esse processo mais facilmente: a descrição de certos elementos do sonho manifesto apresenta uma grande disparidade quando comparada aos achados, proporcionados pela via associativa, dos pensamentos oníricos latentes. Por exemplo, vários elementos diferentes podem se apresentar, no sonho manifesto, reunidos em uma unidade composta, seja por meio de um tema ou de um personagem. • Características do sistema Inconsciente (Ics): Regido pelo processo primário (mobilidade dos investimentos, energia livre), o Inconsciente freudiano, como sistema, possui as seguintes características específicas: a. Atemporalidade: como o próprio Freud ressaltou, os processos no Inconsciente não são ordenados cronologicamente, não são alterados pela passagem do tempo, não tem qualquer relação com o tempo, como nós racionalmente o concebemos. (Podemos notar que o conceito de tempo desenvolve-se na criança somente após determinados estágios de seu desenvolvimento cognitivo). b. Indiferença perante a realidade: a tendência do inconsciente é seguir o princípio do prazer, que pressiona no sentido da busca da realização dos desejos mais primitivos, independentemente da realidade, que ele desconhece. c. Realidade psíquica: memórias de acontecimentos reais e de experiências imaginárias não se distinguem nessa instância psíquica. Símbolos abstratos não são reconhecidos como abstratos, mas são tratados como se eles representassem a realidade concreta. d. Ausência de contradição: independentemente do pensamento racional e julgamento formal, elementos contraditórios (situações contraditórias) são totalmente compatíveis no inconsciente, e coexistem lado a lado. e. Ausência de negação: diferentemente do que o não representa no processo formal de pensamento, adquirido durante o desenvolvimento, a negação não existe para o inconsciente. A negação está presente nos outros sistemas psíquicos, mas não no inconsciente. Um dos exemplos mais claros, que pode ser comprovado em diversas situações, é que, por não conhecer a negação, o inconsciente não conhece a morte (como negação, oposição, ou fim da vida).