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A REDAÇÃO - O GAME
Jaimendonsa
Para Lucas, seu amigo, Juninho, e o feroz cão Ransk
- Lucas, desliga este vídeo game e vai fazer a
redação!
- Peraí, mãe! Tou terminando.
Saco! Toda hora que estou detonando um chefão de
fase, ela manda desligar o vídeo-game.
Na tela, eu cavalgava por um labirinto cheio de ca-
veiras e mortos, muitos já sem cabeça e braços,
Gritos de socorro e agonizantes. Afinal, havia muito
por fazer ainda.
O sangue escorria para dentro do rio azul, tingindo-
o de vermelho vivo. Raios e bolas de fogo passavam
zunindo sobre minha cabeça.
A Morte me seguia. Eu tinha pouca energia e meu
cavalo já sangrava muito. Não ia agüentar por mui-
to tempo. Precisava sair dali. Ao longe a Morte,
toda de negro, montada em um dragão de sete ca-
beças, que vomitava fogo por todos os lados; caval-
gava em minha direção.
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- Vou te matar, Morte!
Será que tem jeito de matar a Morte? Deixa pra là.
De repente, tudo ficou negro, o som se foi e as ima-
gens desapareceram. na tela da TV. A chata da minha
mãe puxou a tomada. Um verdadeiro absurdo.
- Qualé, mãe?!
- Vai fazer a redação!
- Poxa, mãe, logo agora que ia passar de fase!
- Sem conversa! Vai fazer a redação. Só volta a jogar
depois que terminar a tarefa da escola.
Fiquei na minha, deitado vendo ela recolher os cabos
e os controles do vídeo-game. Me controlava pra não
xingar. Se respondesse, o castigo estenderia por vári-
os dias sem vídeo-game. A vida sem um game é uma
tortura.
Saiu e fechou a porta, desaparecendo dos meus olhos.
Os vestígios dos meus inimigos tinham também de-
saparecido na tela da TV. Mas eu ainda podia sentir
todos eles ali, dentro do vídeo da TV, me olhando, me
chamando para um pega.
- Só depois que terminar a tarefa da escola - a frase
retumbava no meu cérebro.
Se mãe tá pensando que vou fazer esta maldita
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redação, tá muito enganada comigo.
Escrever é uma coisa bem chata. Ler não é chato como
escrever, dá menos trabalho, até dá gosto. Jogar video-
game, é bem melhor, Talvez seja a melhor coisa do
mundo. Tem gente que tem outra opinião. Meu amigo
Téo disse que namorar é a melhor coisa do mundo.
Como diz meu avô, atrás dos seus óculos de casco de
tartaruga:
- Cada um com o seu igual.
E eu fiquei sem o meu vídeo-game. Hoje pelo jeito
não vai dar mais pra jogar. Meus inimigos terão que
me esperar. Logo agora que eu estava zerando o game.
Sair do quarto não vai dar também. Mãe deve tá me
vigiando. Se não tivesse, eu poderia ir pra casa do
Juninho e a gente ia pegar no jogo pra valer, até de-
toná-lo.
Vou ter que ficar aqui boiando por algum tempo, com
toda a calma possível. Como a mãe da gente é má,
não é capaz de compreender as nossas necessidades.
Quando eu tiver um filha, vou comprar pra ele um
montão de jogos e deixar o garoto divertir pra valer:
- Toma, filho, jogue à vontade.
Na minha casa não vai ter esse regime militar que
tem aqui não. De jeito nenhum!
Que saco! Não vou agüentar ficar por muito tempo
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sem fazer nada. Se eu não fizer essa droga de redação,
mãe não vai largar do meu pé. Não é fácil escrever.
Dona Guilhermina tem que parar com essa mania de
mandar fazer redação todo o santo dia. Sempre diz:
- Escrever e coçar é só começar. E, além do mais, só se
aprende fazendo.
Pra ela pode ser, sabe tudo de português, corno e
dorme no meio de livros, pra gente é um martírio. E
toma redação no nosso lombo!
Dona Guilhermina tá querendo que todo mundo vira
escritor. Profissão meio sem graça. Ficar escrevendo
as aventuras que não se pode viver. Eu não dou pra
isso! Gosto de viver, sentir tudo. Nem sei como um
sujeito prefere ser escritor em vez de ser jogador de
futebol. Esporte dá muito mais grana. Cantor também
dá. Chove de mulher em cima do cara. A turma
namoradeira ia gostar. Eu não, tou fora! Compraria um
montão de games pra mim.
Segundo Dona Guilhermina, para escrever tem que ter
em mente três regras:
1- Ordenar as idéias.
2- Expor bem claro as idéias, ser compreendido
sem dificuldade.
3- Escrever sempre sobre um assunto que se co-
nhece bem; procurando passar a sua própria ex-
periência.
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Há mil maneiras de fazer uma mesma redação. O re-
sultado depende de quem faz. Cada modo de escrever
é um jeito particular, pessoal, bem individual, poden-
do ser chamado de Estilo.
Li uma vez, não sei onde, quem determina o Estilo de
um escritor é a natureza, o seu jeito de ser, pensar e
agir. Agora, quem corrige o Estilo, tornando-o compre-
ensível a todo mundo é a observação, o estudo da
língua, e a leitura dos bons autores. Tudo isso ajuda
o cara na hora de escrever qualquer texto.
Acho que me lembro da matéria de redação. Tem três
maneiras de escrever uma Redação:
Descrição, Narração, Dissertação.
Descrição - ocorre quando você descreve todos os
detalhes do cenário paisagens e objetos em cena, até
mesmo os seres irracionais, como meu cão Ransk.
Este é nosso quarto. Tem uma janela, que dá para um
estreito corredor. As duas camas, sendo uma minha, e
a outra de minha irmã, dividem o quarto ao meio.
Temos uma TV, um video-game, um videocassete, um
escrivaninha, um aquário, cheios de peixes, e um guar-
da-roupas, com minhas roupas e as bugigangas de
minha irmã.
Narração - onde você narra o acontecimentos e os
fatos. UM detalhe que se deve levar em conta: sem-
pre tem personagem em cena.
Um texto Narrativo ficaria mais ou menos assim:
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Este é nosso quarto. Tinha que ser só meu. Mas Lívia
não concorda. Sempre grita pra mim:
- Eu nasci primeiro, tenho mais direito.
Pós essas tolices na cabeçona loira e ninguém tira
mais. O quarto tem ainda uma janela, que dá para
área de serviço, um corredorzinho estreito que nem
dá pra, bater uma bola. As duas camas, uma minha, e
a outra de minha irmã, dividem o quarto ao meio: o
meu território e o território de Lívia. Às vezes nin-
guém respeita o território do outro.
Durante algum tempo, brigamos pela posição das ca-
mas. Meu pai entrou no meio e eu venci.
Minha cama agora fica onde eu queria, perto da jane-
la. Se bem que não foi uma grande vitória: a vista é
pobre. Vejo parte do telhado do alpendre e o céu,
quando minha mãe tão estende as roupas nos varais
do corredorzinho pra secar.
Meu pai disse que eu tive uma vitória inglória, uma
vitória de Pirro. Levei algum tempo para sacar quem
era esse infeliz Pirro. Pai me explicou que Pirro viveu
há quase trezentos anos antes de Cristo.
Comandou uma batalha, e sofreu tantas baixas, que o
restante do seu exército ficou em petição de miséria,
tão na pior que Pirro nem soube se sofrera uma derro-
ta ou obtivera uma vitória. Chegou mesmo a dizer aos
seus esmolambados soldados:
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- Outra vitória desta, e estamos perdidos.
De qualquer maneira, não perdi muito, acho que levei
a melhor por ser o caçula Lívia não concorda; tem
sempre a mesma resposta na ponta da língua:
- Venceu porque papai lá sempre do seu lado.
- E mamãe do seu.
Temos no nosso quarto ainda, uma TV, um video-game,
um videocassete, uma escrivaninha, um aquário cheio
de peixes, e um guarda-roupas, com minhas roupas e
as bugigangas de minha irmã.
Sempre disputamos a posse da TV, do viadeocassete,
da escrivaninha e mais espaço no guarda-roupas. Mas
não discutimos pela o video-game e do aquário. Lívia
não acha graça nesses troços de menino.
- Tenho coisas mais importante para fazer.
Dissertação - ocorre quando se expõe e defende uma
idéia, sem ser descritivo, nem narrativo, apenas se
defende uma idéia, ou tese. Escreve mais ou menos
assim:
Por direito, este quarto deveria ser apenas meu do
que de nós dois - meu e de minha irmã. Meus pais não
concordam. Para eles temos que viver em harmonia e
sabermos compartilhar as coisas com os outros. As
pessoas de uma casa não podem brigar entre si, ape-
nas defender pontos de vista e tentar chegar a um
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acordo satisfatório sobre o assunto em questão, Uma
casa não pode se manter dividida contra si mesma.
Talvez eu tenha mais direito quando mudarmos para
uma casa com mais cômodos, e eu ganhar um quarto
só para mim. Mas, até lá, terei que compartilhar o
espaço físico com minha irmã.
De todas as maneiras para escrever um texto, a que
mais me agrada é a Narração. Acho que podemos ex-
plorar mais a nossa imaginação.
Eu bem que podia copiar essa redação de algum lugar,
assim minha mãe acabaria liberando os controles e os
cabos do video-game.
Ah, é o que vou fazer! Vou descolar essa história dos
livros da Lívia. Se ela não me dedurar, vai ser fácil.
Cadê os livros dela? Ah, no armário. Se ela entrar
aqui, vai xingar. É uma chata que eu tenho que aturar
todo dia. Vamos abrir o armário dela: Tãm! Tãm! Tãm!
Se o Dragão Amarelo entrar agora, estou frito.
Na primeira gaveta: nada! Na segunda: só bagulho
dela. Que isto? Eco! As cartas dela. Até as cartas dela
cheiram a perfume.
Que livrão é este? Dicionário do Folclore Brasileiro,
Câmara Cascudo. Tinha que ser Câmara Cascuda, não?
O adjetivo não tá concordando com o substantivo.
Poderia soar melhor. Ah, deixa pra lá!
Vamos abrir o bichão. Como um cara consegue escre-
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ve um livrão deste? Tem que ter muita paciência. Vou
abrir em qualquer letra. Vamos lá:
Letra C Cadáver
Corpo, defunto. O homem morreu. A alma saiu sob
a forma de ave, escondida no último suspiro. Ou a
alma conserva a conformação humana, mas em
substância transparente, impalpável, como uma
fumaça branca. Nem todos têm o direito de locar o
cadáver.
Legal. Parece até mensagem de filme policial. Cadê o
caderno pra mim anotar? Aqui tá ele. Têm duas pala-
vras meio complicadas, Conformação e impalpável.
Vamos ao Dicionário:
Conformação- A forma exterior de um corpo; aspec-
to figura, feitio.
Impalpável - Que não pode pegar, apalpar; imaterial.
Estou gostando. Sabia que isto, dá um roteiro para
um tremendo game? Tomando nota:
O corpo, um defunto, O cadáver de um sábio. O ho-
mem sábio morreu. Foi morto para que sua alma fosse
aprisionada pelo Senhor da Guerra. Mas a alma do
sábio saiu sob a forma de ave, escondida no último
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suspiro. Ninguém viu, ou melhor apenas os iniciados
-, os dois garotos que estavam escondido no meio da
multidão: eu e meu amigo Juninho.
Ah, estava me esquecendo, meu corajoso cão pastor
alemão, Ransk, estava junto de nós.
Às vezes, as almas dos mortos conservam o aspecto
humano, em substância transparente, imaterial, e fi-
cavam perambulado pelas ruelas em busca de ajuda
ou vingança.
Não podiam ser vista nem tocadas a não ser pelos
iniciados. Nem todos tinham o direito de tocar o ca-
dáver e ver a alma dos mortos.
Poxa! não é que está ficando legal a redação? Tenho
que eliminar as repetições. Cadáver e defunto é a
mesma coisa. Risco defunto. O vocábulo Cadáver soa
melhor, é mais sinistro. Vai dar mais clima de terror à
redação. Não sei porque, mas me faz lembrar de chei-
ro; não soa legal, nem mete medo. Ca-dá-ver, uma
palavra forte, essa mexe com a imaginação da gente.
Continuando:
Vi quando os quatro anões do Senhor da Guerra arras-
taram o corpo do Velho Sábio pela Floresta das Árvo-
res Mortas. Saí atrás deles, tomando o estreito cami-
nho da encosta, coberto de plantas podres e pedras
lodosas. Não deixei que eles me vissem.
Os morcegos estavam a fim de morder os nossos cor-
pos. Eu, Juninho e Ransk estávamos correndo a mais
14. 14
de uma hora. Como eu, Juninho e meu cão Ransk es-
távamos ficando exaustos.
Epa! Essa frase não ficou legal, posso simplificar:
Estávamos correndo a mais de uma hora, já estáva-
mos exaustos.
E, ficou bom desta maneira.
Uso a fim de ou afim de? Cadê o Manual de Redação
da Lívia. Ah, lá aqui. Vamos tirar a dúvida.
A fim de - Tem o mesmo sentido de para.
Minha irmã saiu a rim de ir ao clube nadar.
Afim de - tem sentido de parentesco, afinidade, de-
sejos; algo como:
Posso dizer: - Sou afim de zerar um game de RPG.
Vamos deixar de conversa fiada e voltar ao texto:
Qualquer menino sensato, pensaria duas vezes antes
de tomar o caminho da Floresta, ainda mais naquela
hora da noite. Se não me engano, já tinha passado
das onze horas, Ou melhor, das vinte e três horas.
Compreendo, somente agora, a nossa imprudência em
penetrar na Floresta sem nenhuma arma para nos pro-
teger.
Mal a lua surgiu no alto do Morro da Caveira, iluminan-
15. 15
do o pântano, os vampiros começaram a sair das ve-
lhas sepulturas para nos vampirizar. Nos vimos com-
pletamente embrulhados no meio daquelas horripi-
lantes criaturas da noite.
Será que existe o verbo vampirizar ? Se não existe,
acabei de inventar. Qual é a forma para formar verbos
derivados de substantivos? Vamos embarcar no Ma-
nual de Redação da Lívia. Aqui está a solução do
meu problema:
Substantivo - Sufixo - Verbo
Fiscal izar - fiscalizar
Colono izar - colonizar
vampiro izar - vampirizar
Engraçado, noto que toda a desinência verbal, termi-
nada izar, encerra um sentido de lentidão, de coisa
demorada: martirizar, agonizar, canonizar, vampirizar,
etc.
Está ficando supimpa a minha redação. De volta ao
texto:
O caminho havia se tomado perigoso. Notei os vestí-
gios de pegadas na lama úmida. Dou um toque aqui,
para quem se aventurar nesta parte da Floresta das
Árvores Mortas: toma sempre cuidado com os seres
rastejantes. São grandes centopéias que mordem as
canelas da gente e queima pra caramba. Um alívio
para a dor é passar cuspe no lugar ou deixar o seu cão
16. 16
lamber o lugar. Refresca por alguns instantes.
Uma observação: só deixe seu cão lamber o lugar se
for um cão asseado, bem limpo que nem o meu Ransk.
Continuamos avançando, cuidando das nojentas
centopéias. Não havia mais possibilidade de recuar.
Quando eu e Juninho estamos juntos, dificilmente
desistimos de uma aventura.
Confesso que o cenário ali não era dos melhores,
parecia que estávamos dentro de um filme de terror.
Os vampiros nos seguiam mantendo uma certa dis-
tância, andando pela margem esquerda do pântano.
Acho que eles estavam esperando uma oportunidade
melhor para nos atacar. Meu sexto sentido me avisa-
va que a coisa não estava boa pro nosso lado, e esta-
va para acontecer coisas estranhas...
Aqui posso usar essas reticências. Deixando as reti-
cências - é sinal que existe uma dúvida no ar. Quem lê
completa com a imaginação.
Já que decidi fazer a redação, vou caprichar. Pode ser
que minha mãe libera o game ainda hoje.
Queríamos saber o que estava realmente acontecen-
do na Floresta das Árvores Mortas, Por que eles que-
riam a alma do Velho Sábio? Sabíamos que há anos o
Senhor da Guerra vinha atormentando o povoado. Não
deixava ninguém viver em paz. Todo mundo tinha que
trabalhar de graça nas minas de urânio pro maldito
tirano, nem as crianças eram poupadas.
17. 17
Melhor eu tirar de graça e escrever: sem receber, fica
mais literário.
O Velho Sábio tinha a certeza absoluta que o urânio
tirado das minas seria usado na produção de armas
nucleares. O Senhor da Guerra não apenas queria
dominar o povoado, mas todo o planeta. Era um ser
insensível.
E o Velho Sábio era um empecilho, atrapalhava seus
planos, formava um pequeno Exército de Resistência
contra a tirania, por essa razão fora morto.
Será que ocorre Crase aqui?
... formava um pequeno Exército de Resistência con-
tra à tirania.
Vamos rever a matéria sobre Crase no Manual de
Redação.
Crase - é a fusão da preposição a com o artigo femi-
nino a - só ocorre diante de palavras femininas que
pedem a presença do artigo definido a, as.
Minha irmã gosta de ir à praia com a turma dela
O Senhor da Guerra não tem apego à felicidade.
Tem um, macete pra descobrir se há crase ou não na
frase. Vamos ver se eu me lembro.
Basta substituir a palavra feminina depois do arti-
gos a, as por outra masculina, se ocorrer ao (combi-
18. 18
nação da preposição a com o artigo masculino o) dian-
te da palavra masculina, então haverá Crase.
Minha irmã gosta de ir ao cinema.
O Senhor da Guerra não tem apego ao mundo.
Formava um pequeno Exército de Resistência contra o
sofrimento - neste caso não ocorreu o encontro entre
a preposição a com o artigo masculino o (ao) não
haverá
Crase
Como vivia dizendo o Senhor da Guerra:
As pedras no meu caminho, eu chuto. Podíamos ava-
liar o seu total desprezo com relação às pessoas ao
seu redor.
Vem outra vez minha mãe pegar no meu pé:
- Lucas! Você já começou a fazer a redação?
- O que a senhora acha, mãe ?
- Se você tiver me enrolando eu vou te proibir de jogar
video-game o resto da semana.
- Se a senhora não me der sossego, como vou fazer a
redação? Que saco! Não me dá um pingo de sossego.
Não ligando para minha mãe, volto à narrativa:
19. 19
Enganei-me, não era o Senhor da Guerra, mas a Se-
nhora da Guerra; uma mulher perversa e muito má
que vivia torrando a paciência de todo mundo no po-
voado, inclusive a paciência das crianças.
Posso citar aqui poeta Carlos Drummond de
Andrade:
No meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Eu e meu amigo Juninho éramos novatos na pilota-
gem dos robôs extraterrestres. Tínhamos sido escala-
dos por meio de um torneio nacional, entre os melho-
res jogadores de games de simulação. Vencer, foi uma
babada.
Somos muito bons em games de simulação. Verdadei-
ros arrasos! Agora surgiu outro problema: escrevo
extraterrestres ou extra-terrestres; com ou sem hí-
fen? Voltemos ao Manual de Redação.
Hífen - usa-se este sinal gráfico (-) que une dois ou
mais vocábulos, para formar um terceiro, independen-
te de sua categoria gramatical, desde que fique man-
tido a noção de composição, sentido e unidade ao
novo conjunto:
arco-íris, má-fé, pé-de-meia,
20. 20
Ouso do hífen não obedece apenas uma regra, mas a
várias; e ainda por cima tem dezenas de exceções,
dificultando a memorização. Não dá para decorar; tem
que entender mesmo o assunto e usar o bom senso.
Uma das regras diz que usa-se hífen nos vocábulos
formados por prefixos como no caso do vocábulo ex-
tra, seguido por vocábulos começados por vogal, h, r,
s.
Exemplos:
extra-alcance
extra-humano
extra-regulamentar;
extra-sensorial.
No meu caso, não se aplica o hífen, ficando: Robôs
Extraterrestres.
Ainda usa o hífen com objetivo literário. Posso muito
bem grafar:
Dragão-Amarelo
Senhora-da-Guerra
Robôs-extraterrestres.
Não vou complicar, fica do jeito que eu escrevi. Conti-
nuando com a narrativa:
Passamos a trabalhar diariamente nas cabinas dos
21. 21
nossos robôs, tentando exterminar os robôs extrater-
restres, comandados pela Senhora da Guerra, que
estava disposta a tudo para reaver o corpo do Velho
Sábio. Ela desejava aprisionar-lhe a alma e dominar
assim de vez todo o nosso país. Por onde ela passava
distribuía desgraças. Era uma força maligna agindo
sem cessar. Não gostava de ser desafiada, gritava:
- Seu ódio traz mais ódio para mim.
Faço uso de trás ou traz? Vamos pesquisar no Manu-
al de Redação da Lívia.
Trás - preposição e advérbio - vem da preposição
latina trans, que tem o sentido de: além de para lá de
seus derivados são: atrás, detrás, em seguida, após,
por trás, etc.
Traz - é a terceira pessoa do Presente do Indicativo
do verbo trazer. Ele traz. Então, escrevi certo.
Prosseguindo com a narrativa:
As planícies desertas eram minadas e tínhamos que
evitar que os robôs pisassem nas minas e nos man-
dassem para o espaço. Ganhávamos por cada bata-
lha, por cada robô inimigo destruído. Dedicávamos
todo tempo a isso, e era bem divertido.
Na verdade, era como jogar um game dos bons, ficá-
vamos bem à vontade. Apenas como uma diferença,,
tínhamos intensa preocupação em nos manter vivos.
Um errozinho à-toa, poderia ser fatal.
22. 22
Surgiram dois problemas agora, escrevo:
à-vontade ou à vontade?
À-toa ou à toa?
Manual de Redação da Lívia pra resolver a questão:
à-vontade - neste caso é substantivo, eqüivale a
com naturalidade; desembaraço; sem cerimônia, etc.
Pilotei até a planície à-vontade.
à vontade - no caso, uma locução adverbial, no sen-
tido de a gosto, a bel-prazer.
Pilotei bem à vontade até a planície.
à-toa - tem função de adjetivo na oração; o mesmo
que impensado, irrefletido, insignificante, desprezí-
vel, etc.
Um gesto à-toa e estamos mortos.
à toa - funciona como locução adverbial; sendo o
mesmo que ao acaso, a esmo, sem destino, etc.
Ficamos a passear com os robôs à toa pela planície.
Bombardeávamos ostensivamente os inimigos. Nos-
sos robôs cortavam o céu numa velocidade espanto-
sa. Nos provocava acesso de risos. Não nego que
arriscávamos nossas vidas.
23. 23
O prêmio era pouco compensador, por isso mal dava
para equipar ou renovar as partes danificadas dos
robôs.
Outra dúvida aqui: uso por isso ou porisso ? Vamos o
que diz o Manual de Redação da Lívia.
Por isso - é incorreto grafar juntos os dois vocábulos.
Tem um fira dúvidas aqui: basta substituir o vocábulo
isso pelas seguintes vocábulos: essa, esta, essas,
aquelas, aquilo. Ficando assim:
Por essa razão mal dava para equipar ou renovar as
partes danificadas dos robôs.
Nossa missão era patrulhar o Deserto Norte, lugar
infestado de inimigos. Era vital o controle dessa parte
do Deserto para o sucesso do avanço das nossas tro-
pas por terra.
Lutávamos contra inimigos asquerosos, que pareciam
calangos-gigantes dentro das cabinas dos robôs. Eles
não se importavam em morrer. A Senhora da Guerra
tinha incutido na cabeça deles que não havia morte,
apenas uma transição de corpo.
Não há morte como prega os humanos. Vocês perdem
o corpo e automaticamente entrava em outro corpo
que estava nascendo naquele momento.
Pelo receptor das cabinas, ela recitava sem parar a
mesma coisa.
- Meus Guerreiros! Não preocupam com a morte de
seus corpos! Vocês morrem neste corpo e nascem em
24. 24
outros. A morte é apenas uma troca de pele. Repitam
comigo: A morte é apenas uma troca de pele!
E eles viam para cima da gente gritando:
- A morte é apenas urna troca de pele!
Muitos enchiam suas cabinas de explosivos e se ati-
ravam contra nossos robôs. Com o tempo nossos ci-
entistas desenvolveram um mecanismo de radar que
acusava a presença de robôs-kamikazes. Assim eles
eram alvejados antes que se atirassem sobre nós em
ataque suicida.
Todo garoto que já assistiu filme sobre a Segunda
Guerra Mundial sabe muito bem sobre os ataques
suicidas realizados pelos pilotos japoneses contra os
alvos aliados.
De minuto a minuto recebíamos, nas telas dos com-
putadores, notícias do avanço de nossas tropas em
terra, eram mensagens transmitidas em freqüência
acima da audição dos extraterrestres. Mesmo se os
extraterrestres capturassem os sinais não eram ca-
pazes de decifrá-los.
O nosso código era baseado no canto do uirapuru; um
pássaro do tamanho de um pardal muito colorido que
habitava as nossas matas antes da Senhora da Guer-
ra transformá-las em pântanos.
Em homenagem a esse pássaro pintando, porque
uirapuru na língua dos nativos quer dizer pássaro pin-
tado, nossos robôs foram confeccionados e pintados
25. 25
com as cores do uirapuru: o peito em vermelho vivo,
parte dos ombros preto e branco e as costas e os
membros inferiores multicoridos.
Segundo a lenda, que conta os nativos, quando o
uirapuru. começava a cantar os outros pássaros para-
vam para ouvi-lo. Seu canto era musical, com sons
claros e metálicos. Era um canto de trinados curtos,
repetitivos para os ouvidos desatentos, mas para um
bom observador, notava-se que a cada trinado repe-
tido, o pássaro sabiamente acrescentava-se outras
notas musicais e, desse modo, o canto ia se modifi-
cando, crescendo cada vez em notas melódicas.
Os cientistas aproveitaram essa peculiaridade do
uirapuru e passou a transmitir as mensagens em cur-
tos e repetitivos fonemas, que iam a cada repetição
acrescentando outros fonemas, criando inúmeras fra-
ses.
Nota: Para que esqueceu o que vem a ser fonemas
vai aí a explicação: fonemas é o som produzido pela
garganta, e não correspondem sempre às letras escri-
tas para representá-los.
Por exemplo: escreve-se as palavras CASA, ASA,
CASACA, em todas usamos a letra S mas quando
falamos produzimos o fonema Z (lê-se Zê).
Sacou a diferença entre letra e fonema?
A guerra entre robôs era meio louca. Às vezes, as
batalhas duravam dia e noite. A missão era meter
bala e destruir todos os robôs da Senhora da Guerra.,
26. 26
e acabar de fez com a sua arrogância.
Escreve-se às vezes ou as vezes? Vamos ver o que diz
o Manual de Redação da Lívia
Às vezes - locução adverbial,- algumas vezes, por
vezes, etc.
Manda a regra acentuar o a das locuções adverbiais: à
toa, às presas, às tantas, às tontas, etc.
O acento é usado por tradição e para diferenciar o
substantivo as vezes da locação adverbial às vezes.
Estou fazendo as vezes de Juninho.
Às vezes, as batalhas duravam dia e noite.
Se a configuração do robô não tivesse dentro das
normas, você não durava muito tempo no campo de
batalha. Tinha que estar sempre indo no mercado
negro e comprando peças de reposição.
O controle dos comandos tinha que ser muito preciso,
e reajustado a cada batalha. Mira para baixo, mira
para cima, à direita, à esquerda e: fogo!
Se o tiro saía certeiro, lá se ia um braço, ou uma
perna do robô inimigo. Os mísseis e os raios laser
eram as melhores armas para a batalha durante a
noite. Como Juninho dizia:
- O céu se pipocava de clarões.
É o cara que mais gosta de pipoca que eu conheço.
27. 27
Tudo pra ele tem que ter uma comparação tipo: es-
tourou que nem pipoca; empipocou-se todo; espipocou
pra valer; pipoqueou meio saltitante, pipocou pra valer
e não sei mais o quê. Mas é um tremendo dum com-
panheiro.
Como eu ia escrevendo:
Pedaços de metal voando por todos os lados. Mais
uma cabina de um robô extraterrestre foi pelos ares.
Ou melhor.- mais uma cabina espipocou-se em mil
pedaços. Outras explosões por todo o corpo do robô;
grito de dor e desespero do piloto sobrevivente, que
possuía as fuças de um calango gigante.
Os malditos dos pilotos extraterrestres quase sempre
escapavam com vida. Saiam correndo de dentro das
cabinas em chamas e mergulham literalmente na areia
escaldante da planície, sumindo em poucos segun-
dos, Não passavam de calangos-gigantes.
Ontem, durante o entardecer, eu e Juninho fomos
encurralados no Vale da Morte por seis robôs extra-
terrestres.
Como todo mundo sabe, o Vale da Morte é um lugar
bem tenebroso. Quem chega lá pela primeira vez, só
de por os olhos, saca logo que nenhuma espécie de
vida pode sobreviver naquelas paragens.
O robô do Juninho foi encurralado num paredão rocho-
so por três robôs e acabou sendo bem alvejado. Per-
deu o braço direito e uma das asas ao mesmo tempo.
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O painel de controle recebeu uma saraivada de tiros,
danificando-se totalmente. Não podia mais decolar
nem selecionar outros tipos de armas.
Levei um bom tempo para exterminar um dos três
robôs que me cercavam. Eu estava sob fogo cerrado.
Sabia que as variações da temperatura na cabina podia
causar muito danos aos comandos, dificultando o fun-
cionamento do radar e das telas de seleção de armas.
Enquanto tivesse munição, eu continuaria indo para
cima do inimigo. O calor dentro da cabina era insupor-
tável. Os seis robôs inimigos continuavam nos man-
tendo em fogo cerrado.
Serrado ou cerrado?
Vamos ao Manual de Redação da Lívia:
Serrado - que se serrou; que tem aspecto dentado da
serra.
Cerrado -.fechado, vedado; denso, espesso.
Escrevi certo. Vamos lá, continuando a narrativa:
Vi quando parte da fuselagem da cabina de Juninho
foi danificada por uma série de disparos simultâneos
de laser. Juninho não ia conseguir manter o escudo de
resistência térmica ligado por muito tempo sem zerar
a sua energia por completo. Pensei, por algum mo-
mento, que jamais tornaria a ver meu amigo com vida.
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Eu tinha que fazer alguma coisa para salvá-lo. Preci-
sava ter acesso ao meu menu de armas e por em
funcionamento meu canhão Laser, que era a minha
melhor arma, boa pra caramba para explodir de uma
vez a cabina do inimigo. Se eu não conseguisse, en-
tão era preciso começar a rezar.
Acionei o código por seis vezes e nada. No visor do
painel, o meu escuto de resistência térmica estava
zerado também. Estávamos fritos!
Os cinco robôs extraterrestres continuavam nos man-
tendo sob fogo cruzado. Minha cabina esquentava pra
caramba e a do Juninho já estava em brasas, Ele fazia
gestos e, pela expressão do rosto, encontrava-se em
desespero. Não nos restava muitas chances.
Voltei a acionar o comando do menu, sabendo que
seria a minha última oportunidade. Por três vezes, o
comando não me obedeceu. Suava as bicas e tremia
muito. O nervosismo estava me deixando descontro-
lado.
Na quarta tentativa, consegui acionar o comando de
acesso do menu de armas- escolhi rapidamente o laser
e fiz fogo total contra as cinco cabinas dos inimigos.
Esses foram os cinco tiros mais certeiros que já dei
na minha vida. Os malditos robôs explodiram clarean-
do o entardecer.
Qual o pronome demonstrativo que utilizo: esses ou
estes ?
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Tenho que recorrer ao Manual de Redação da Lívia
mais uma vez. Pelo jeito que vou, nem daqui uma
semana acabo a redação.
Esse - usa-se quando está próximo da pessoa com
quem fala. Exemplo:
A cabina esquentava muito, esse era um dos proble-
mas que tínhamos que lidar.
Este - aplica-se quando está próximo e presente da
pessoa que fala. Exemplo:
Estes robôs são os inimigos que teremos que enfren-
tar.
Aproximei meu robô do que sobrara do robô do Juninho
e resgatei meu amigo de dentro da cabina em cha-
mas. Acionei os motores de decolagem e, assim que
saímos do chão, o robô do Juninho explodiu. Voamos
para fora da Vale da Morte e direção ao...
Minha irmã entra em cena:
- Lucas! Abra a porta que eu quero entrar aí no quarto.
- Peraí, Lívia.
- Não posso esperar; eu quero entrar.
- Eu vou acabar primeiro a minha redação.
- Eu tenho que entrar aí, Lucas,
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- Problema seu!
- Mãããeeee é! O Lucas não quer abrir a porta do quar-
to não!
Todo mundo quer me interromper, mas não vai conse-
guir. Eu sei como prosseguir. Como diz meu avô: sou
cabeça fria, não esquento muito com as coisas, Vida
longa para os cabeças frias! Nunca deve subestimar
um jogador como eu.
A nossa missão agora, minha, de Juninho, juntamen-
te corri o meu cão Ransk, era recuperar o corpo do
Velho Sábio e levá-lo ao Templo dos Mortos.
Estamos de novo na Floresta das Árvores Mortas. Uma
extensão de terra hoje morta, cheia de pântanos e
resíduos de cinza, A floresta, antes exuberante, re-
pleta de pássaros e bichos, abundante em frutas e
plantas tropicais foi literalmente pulverizada pelo
Dragão Amarelo e seus zumbis, na Batalha dos Mil
Dias, quando eu ainda era um bebê. Desde então,
nada mas germinou nesta extensa área. Tomou-se
um ambiente selvagem e muito hostil para os huma-
nos. Nenhum lugar na terra pode ser comparado à
Floresta das Árvore Mortas em se tratando de desola-
ção.
Hoje os zumbis do Dragão Amarelo roubaram o corpo
do Velho Sábio e o arrastaram para dentro da maior
caverna a fim de capturar-lhe a alma. Saímos atrás
deles. Só eu sei que eles não poderão aprisionar a
alma do Velho Sábio, pois a alma sairá escondida no
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último suspiro, sob a forma de ave.
Outro detalhe, que o Dragão Amarelo não sabe: nem
todos em tocar o cadáver do Velho Sábio. Porque só
pessoas puras, e bem intencionadas, como eu e
Juninho, podem tocar o corpo dele.
Tou com uma dúvida aqui; qual devo usar: por que,
por quê, porquê, porque. Tenho que rever a matéria
no Manual de Redação da Lívia.
Por que - usa-se separado e sem acento, quando
estiver no início de uma pergunta. Exemplo:
Por que queriam a alma do Velho Sábio?
Por quê - usa-se quando lá respondendo uma per-
gunta, tipo:
Logo vou saber porque.
Porque - usa-se num só caso: quando for substanti-
vo. Exemplo:
Ficarei sabendo o porquê da questão.
Porque - usa-se ligado e sem acento quando quere-
mos dar uma explicação. Exemplo:
Porque só as pessoas puras, como eu e Juninho, po-
dem preparar o cadáver.
Acertei no uso do porque. Então, tou pisando em ter-
reno firme. Vamos em frente:
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Entramos numa caverna imensa mal iluminada por
pequenas tochas de fogo esparramadas pelas cavida-
des das paredes. Seguíamos os rinchos e os gritos
estridentes de vitória dos zumbis, A entrada da imen-
sa caverna era cercada de galhos secos, árvores
envelhecidas e muito entulho.
Tivemos muita dificuldade em seguir os zumbis, Se
eu não tivesse levado comigo o meu cão Ransk, difi-
cilmente teríamos conseguido achar a trilha no meio
daquele emaranhado todo.
Nos arrastamos sob os galhos e troncos das árvores
por uns dois metros, nos sujando de coisas gosmentas
e muita teia de aranha. Encontramos um salão com o
teto cheio de estalactites, também mal iluminado por
pequenas tochas. Já não ouvíamos mais a algazarra
dos zumbis.
Foram para onde?
O lugar era meio assustador, Ransk percebeu que além
de nós três havia mais alguém naquele salão,- se pôs
a latir e pular de um lado para o outro, muito agitado.
Quase caímos de susto quando demos de cara com
um Ciclope de cabelos loiros e de voz gutural bem
irritante para meus ouvidos.
O grandão não perdeu tempo, avançou sobre nós. Soltei
um palavrão e corri, pegando uma tocha para afugen-
tar o cretino, mas ele nem ligou.
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Tá certo o adjetivo grandão?
Deixe me ver se recordo a fórmula:
Para formar o grau aumentativo, acrescenta-se
ão ou ona à palavra primitiva.
Pedra - pedrão - pedrona
Grande - grantrão - grandona
Nem sempre o grau aumentativo e diminutivo se rela-
cionam com tamanho. O vocábulo palavrão não tem
sentido, de gigante, mas uma palavra grosseira, chula;
como a que eu gritei de susto.
Vamos em frente que tem Ciclope em cima de nós.
O asqueroso animal cuspiu fogo em nossa direção.
Pulamos para o lado e a chama passou raspando nos-
sos corpos, indo incendiar os galhos secos na entrada
da caverna. Escapamos por milagre.
Nem tivemos tempo de nos por de pé direito e o
Ciclope voltou a cuspir fogo. Juninho pegou outra tocha
e nós dois passamos a atacar o Ciclope com elas,
enquanto Ransk corajosamente fatia e tentava
abocanhar os pés da horrível criatura de um olho só.
Foi uma batalha e tanto. Nem sei quanto tempo fica-
mos naquela lengalenga.
Como éramos muito pequenos para atingir o olho do
Ciclope, tivemos que contar com a ajuda do Ransk.
Percebi logo que o Ciclope loiro temia pelo seu único
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olho. Cuspia fogo sobre nós ao mesmo tempo em que
protegia o olho com as mãos. Ransk não marcou
bobeara, assim que pode, grudou os dentes afiados
na canela do grandalhão e não largou mais. O ciclope
deu pernada, urrou de dor, dançou a dança dos aflitos
e Ransk ali, firme na mordida. Foi aí que aproveitamos
para agir.
O Ciclope teve a infelicidade de abaixar-se para agar-
rar meu cão e aí metemos as duas tochas no único
olho dele. As tochas grudaram no seu olhão, cegan-
do-o para sempre, Foi aí que o grandalhão berrou de
dor. Urrou e pulou tão desorientado que fez boa parte
do teto da caverna se desprender, cair sobre nós e...
Minha mãe em socorro da minha irmã. As duas entram
em cena:
- Lucas abra esta porta para sua irmã entrar aí.
- Eu tou. terminando a redação, mãe.
- Isto não é motivo para trancar a porta, Lucas.
- Também não era motivo pra senhora desligar o vídeo
game.
- Era sim. Você tinha que fazer a redação e só estava
me enrolando. Abra esta porta.
- Não! Não vou abrir - grito decidido.
- Vai lá chamar seu pai, Lívia- ele resolve isso.
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- Resolve nada, mamãe, papai é puxa-saco do Lucas.
- Então vamos lá falar com ele.
Já vão tarde! Tou nem aí pra elas, Vou continuar a
minha redação:
E a perversa Senhora da Guerra e o malvado Dragão
Amarelo, ajudadas pelos duendes verdes, tinham le-
vado o corpo do Velho Sábio para dentro da Residên-
cia do Mal. E o trio dinâmico, eu, Juninho e o feroz cão
Ransk saímos atrás delas.
Tínhamos corrido até as margens do rio pantanoso
que descia para a região subterrânea da terra, para o
Mundo dos Mortos. Havia muitos esqueletos nas mar-
gens no rio lodoso. Ransk achou uma jangada e se
pós a latir para ela.
Subimos na jangada de bambu e pegamos duas varas
suficientemente compridas para remarmos até a ou-
tra margem. Não foi fácil remar naquela água pesada
e lodosa.
Tenho que substituir o adjetivo lodosa; já usei lodo-
so. Outra vez o Dicionário:
Lodoso - que tem lodo, lama; lamacento, enlamea-
do, lamoso; semelhante à lama. Prefiro lamacenta. É
só trocar; vou substituir depois.
O fundo do rio também estava cheio de zumbis, que a
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cada remada, agarravam as varas e tentavam subir a
bordo; muitos deles procuravam nos atirar para fora
da jangada.
Batíamos fortemente em suas cabeças apodrecidas,
que explodiam como abóbora madura. Muitos deles
largando sobre nós uma gosma esverdeada e muito
fedorenta. Por duas vezes, Ransk arrancou a mão de-
les e eu tive que tomar da sua boca e devolver à água.
- Sei que você tá fome, mas não pode comer essa
nojeira, amigo.
Dei graças a Deus quando atingimos a outra margem
e pisamos em terra firma.
Lá no alto, através da cerração, vimos, no cume do
morro, a mansão abandonada: A Residência do Mal.
Aceitamos o desafio de invadi-la, tirar o corpo do Velho
Sábio das horripilante criaturas.
Apareceu mais uma dúvida: Cerração ou serração?
Dicionário pra resolver a questão.
Cerração - nevoeiro espesso, trevas, escuridão.
Serração - ato ou efeito de serrar; serradura, serra-
gem.
Acertei mais um vez. A té que não estou tão ruim
assim em ortografia. Em frente, que atrás vem gente:
Subimos o morro, as escadas cheias de mato, e abri-
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mos a porta., que gemeu sob as dobradiças. Antes de
penetrarmos na fortaleza, eu disse:
- Vamos vasculhar em cada canto, Juninho. Nosso
sucesso depende de encontrar o corpo do Velho Sábio
e libertar a sua alma para a Terra da Paz.
- Será que vamos conseguir, Lucas?
- Claro que vamos. Pensamento positivo.
Ransk entendeu minha certeza, latiu forte para mim.
Afaguei a sua cabeça.
- Assim mesmo que age, amigam.
Não estou gostando desse diálogo; foi mal conduzi-
do! Vou ter que refazê-lo. Vamos recapitular a matéria
no Manual de Redação:
Diálogo - é o intercâmbio verbal entre duas ou mais
personagens.
No Diálogo Direto - o escritor apenas transcreve a
conversa entre as personagens.
- Vamos vasculhar em cada canto, Juninho. Nosso
sucesso depende de encontrar o corpo do Velho Sábio
e libertar sua alma para a Terra da Paz.
- Acha mesmo que vamos encontrar o corpo dele,
Lucas?
- Tem que ter pensamento positivo, Juninho.
39. 39
Ransk parece que entendeu meu comentário; deu al-
guns latidos bem fortes, em total acordo, Afaguei a
sua cabeça.
- Assim mesmo que age, amigão.
No Diálogo indireto - o escritor interpõe entre o leitor
e o texto. Exemplo:
- Vamos vasculhar em cada canto, Juninho - disse
Lucas confiante; e, de voz emocionada, prosseguin-
do: - Nosso sucesso depende de encontrarmos o cor-
po do Velho Sábio e liberta a sua alma para a Terra da
Paz.
- Acha mesmo que vamos encontrar o corpo dele,
Lucas? - quis saber Juninho, já sem muita esperança.
- Temos que ter pensamento positivo, Juninho - retru-
cou Lucas sem perder a confiança.
Até Ransk entendeu o seu comentário otimista, latiu
bem alto, em total acordo com o dono. Afaguei a sua
cabeça.
- Assim que age, amigo - disse-lhe.
No Diálogo indireto livre - é mais complicado de se
fazer; há a presença do escritor e da personagem,
fundindo o narrador com a personagem, de, modo muito
bem dosado. Exemplo:
40. 40
Tinham que vasculhar cada canto, propusera Lucas,
antes de penetrar na fortaleza. Conto com meu amigo
Juninho e Ransk, O sucesso depende de nós, temos
que encontrar o corpo do Velho Sábio e libertar a sua
alma para a Terra da Paz. Juninho não tinha tanta
certeza disso, pouco confiante. Mas precisávamos ter
pensamento positivo. Até Ransk percebia o otimismo
do dono., se pós a latir em pleno acordo. Afaguei a
sua cabeça, assim mesmo que age, amigo.
No Diálogo interior ou melhor dizendo: no monólogo
interior direto - ocorre quando a personagem dirige a
si mesma De alguma forma continua sendo um diálo-
go uma vez que o em da personagem dirige-se a um
provável interlocutor. No caso, não há escritor, apenas
peneiramos na mente da personagem; é como se ti-
véssemos dentro da sua alma. Sem barreiras e sem
respeito ás normas gramáticas da língua. Exemplo:
antes de penetrar na fortaleza eu disse que tínhamos
que vasculhar cada canto para isso contava com
Juninho e meu cão Ransk sabia que o sucesso depen-
deria de encontrar o corpo do Velho Sábio e libertar a
sua alma em direção a Terra da Paz mas Juninho não
estava tão confiante nem tinha tanta certeza do nos-
so sucesso eu disse que precisávamos ter pensamen-
to positivo até Ransk acreditava e sentia meu otimismo
se pós a latir em pleno acordo comigo afaguei a sua
cabeça assim mesmo que pensa e age amigo.
No Diálogo interior indireto / monólogo interior
indireto - ocorre a presença do escritor, que saí e
interfere tios pensamentos e ações da personagem.
41. 41
Transcreve aquilo que lhe convém, respeitando a gra-
mática, a lógica do tempo e das coisas. Exemplo:
Antes de penetrar na fortaleza, havia decidido vascu-
lhar cada canto: ‘é preciso achar o corpo do Velho
Sábio e libertar a sua alma para a Terra da Pai. Para
isso, ele contava com Juninho e Ransk: ‘o sucesso
depende apenas de nós’, Onde estava a confiança de
Juninho? Era preciso ter pensamento positivo. Até o
Ransk acreditava no meu otimismo. O cão se punha a
latir de pleno acordo comigo. Afaga-lhe a cabeça:
‘assim mesmo que age, amigo’.
Agora que são elas. Qual o melhor diálogo para mim
utilizar na redação?
- Lucas, abre a porta para a sua irmã entrar.
- Vou só acabar a redação, pai.
- Mas a sua irmã não pode esperar, ela tem que ir para
a aula de inglês.
- Só mais um pouquinho, pai.
- Tem que ser agora, Lucas. Abra esta porta que eu te
devolvo os controles e os cabos do video-game, quan-
do você acabar a composição...
- É redação, pai.
- Tá bom, a redação, assim que terminá-la pode voltar
a jogar. Concorda?
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- Concordo. Um minuto só, pai, e já vou abrir a porta,
Prosseguindo a redação:
E assim vimos no negrume da noite o bater forte de
asas de uma pássaro dourado, voando sobre o cadá-
ver do Velho Sábio. Deu várias voltas sobre nós, an-
tes de pousar sobre a sua cabeça imóvel na pedra de
granito. Ficou ali, nos olhando com seus olhos de
águia, como se nos estudasse.
De súbito, soltou um trinado melodioso para os nos-
sos ouvidos, quase sem abrir muito o bico. Nem todos
tinham o direito de tocar o corpo morto do Velho Sá-
bio, mas este belo pássaro bem que merecia essa
honra.
Não fizemos nada, ficamos apreciando o seu canto,
Vimos quando começou a sair de dentro de seu bico,
uma substância transparente, impalpável, como uma
fumaça branca, e se dirigiu para dentro da boca do
Velho Sábio, sumindo-se. Era alma do Velho Sábio
que saía da ave e regressava ao corpo morto. O pás-
saro ergueu vôo e se manteve sobrevoando as nossas
cabeças.
O Velho Sábio ergueu-se lentamente como se desper-
tasse de um sono profundo e sentou-se na pedra que
lhe servira até aquele momento de sepultura. Sorriu
com bondade, era um homem justo que voltava à
vida. Ajeitou suas vestimentas escarlate e se pós de
pé, sem muita dificuldade.