Primeiro capítulo do novo trabalho do Mário César, Ciranda da Solidão. Leiam, compartilhem e contribuam par ao projeto sair do papel no Catarse: http://catarse.me/pt/ciranda
Lírica Camoniana- A mudança na lírica de Camões.pptx
O encontro que despertou a fera
1.
2.
3. o clube das
pessoas normais
“Mais de uma vez, três, doze, vinte, eu repetia
sempre, me olhando no espelho antes de dor-
mir: pequeno, pequeno monstro, ninguém,
ninguém te quer.”
Caio Fernando Abreu
01
7. Gregório, já
acordou?
Já mãe.
Se arruma.
Sua aula
de natação
é daqui a
pouco.
Eu tenho
mesmo que ir,
mãe? Eu tô de
férias...
E vai
ficar sozinho
enfurnado nesse
quarto o tempo
inteiro?
Vou. Qual o
problema?
Você sabe
que o médico
mandou por causa
da asma. E, se
não for, nada de
mesada, nada
de gibi, nada de
videogame...
Saco...
Anda,
menino!
Deixa de
enrolar!
Tô indo!
Calma!
8. Que
exagero de
roupa.é
esse?
Tá
frio. Me
deixa.
Quando eu era pequena, minha mãe me obrigou
a fazer balé. Odiei a ideia no começo. Achava
coisa de menininha fresca. Mas acabei pegando
gosto, me enturmei e fiz boas amigas. Você
pode acabar gostando no fim das contas.
Hnf.
Toma o dinheiro pro lanche e vê se
deixa essa cara amarrada de lado.
Faça amigos e se divirta como as
outras criança da sua idade,
meu filho.
Queria saber
quem foi o
idiota que
inventou que
esporte é
diversão.
Ficar correndo atrás
de uma bola ou indo
de um lado pro outro
numa piscina que nem
um retardado... Qual a
graça disso?
9. Vão é se
divertir
às minhas
custas
Se virem como eu sou, vão
rir da minha cara nojenta
e do meu corpo gosmento
e deformado.
Eu não passo de
uma aberração.
Tem um fliperama
aqui perto, lá é
mais minha praia.
Não faço parte desse
clube, o clube das
pessoas normais.
Me divertir
aqui? Pff...
10. Doze
fichas,
moço.
Pois então é
exatamente
isto que irei
fazer.
Minha mãe
falou para eu
me divertir.
Todo mundo escolhe
Ryu e Ken pra ficar na
apelação de Hadouken
e Shoryuken. Eu gosto
do Blanka.
Ele
sobreviveu
a uma
queda
de avião
quando era
pequeno
e cresceu
entre os
animais no
meio da
Amazônia.
Virou um
monstro,
uma versão
bizarra do
Mogli.
Talvez eu devesse fazer isso:
fugir de casa e me isolar do
mundo em alguma floresta
feito um animal selvagem.
11. Minhas férias ficaram mais
suportáveis com o fliperama.
Eu só precisava
molhar a sunga
e a toalha no
banheiro antes
de voltar pra
casa pra enganar
minha mãe.
E passava as
tardes em meu
templo secreto,
lutando contra
os manés que
só escolhiam
Ryu e Ken.
Eu era
praticamente
um X-Men.
Só ali eu
conseguia ser
um vencedor.
Um vingador
encapuzado
em mundo
de pessoas
normais que
me odeiam.
12. Então, eis que um dia ele apareceu.
Todo vingador encapuzado tem que
ter um inimigo pra atazanar sua vida.
Pela cara de cantorzinho do New
Kids on the Block, parecia ser
mais uma pessoinha ordinária
que escolheria Ken ou Ryu. Mas o
desgraçado escolheu o Dhalsim.
Se tem alguém
menos popular que o
Blanka, é o Dhalsim:
um indiano maluco
que faz yoga, cospe
fogo e estica o corpo,
mas é mais lento que
uma tartaruga.
Deu um pouco de
trabalho, mas o venci.
Agora
você vai
ver.
Achei que agora ele ia escolher
Ryu ou Ken pra revidar, mas ele
foi de E. Honda, outro esquisitão
do jogo, um lutador de sumô.
Deu mais trabalho, mas
o venci novamente.
Quase ninguém
escolhe o Dhalsim.
13. Ele ficou tentando de novo e
de novo. E eu sempre o vencia.
Mas ele nunca escolhia Ken
ou Ryu como os outros.
Tinha cara de galãzinho,
mas também parecia ser
deslocado como eu.
Cara, eu achava que eu
era viciado nesse jogo, mas
tu joga demais. Nunca perdi
tanta ficha assim
pra ninguém.
Valeu.
Mas até que você joga
bem também.
Eu tenho esse jogo em casa. Mas
meus amigos não curtem muito
videogame. Acabo gastando a mesada
em ficha aqui só pra não jogar
sozinho.
Minha mãe
não me deixa em paz
nem quando eu tô de
férias. É curso disso,
curso daquilo, curso
não sei do quê!
Argh!
“É pro seu
futuro, meu filho. É pra
sua saúde, meu filho. Você
tem que fazer amigos, meu
filho.” Quem tem tempo para
fazer amigos com tanta
aula?
Eu venho aqui
pra matar aula de
natação.
Não sei o que deu em mim
naquela hora. Comecei
a tagarelar sobre essas
coisas pesadas que a gente
guarda só para si.
14. Mãe é mãe. Todas
acham que o filho será
o próximo Messias e às
vezes cobram demais
mesmo.
É, nem
fala.
Mas
isso passa com o
tempo... ou não.
Vai saber... De
qualquer jeito, é
normal.
É normal
ter raiva
da própria
mãe?
Mais do
que você
pensa. Eu
mesmo já
briguei tanto
com a
minha.
Nunca pensei que nada em mim
fosse normal, muito menos que
pudesse ter algo em comum com
alguém como ele. Isso fez eu me
sentir um pouco mais leve.
Vem cá.
O que tu acha de
ir jogar lá em casa
qualquer dia desses?
Aí a gente economiza
umas fichas pelo
menos.
Ia ser
bacana.
Massa! Que
tal depois de
amanhã?
Me
chamo
Alex.
Poder
ser.
Gregório.
Tá marcado
então. Te prepara
pra tomar uma
sova.
Quem diria. Meu suposto vilão era,
na verdade, a pessoa mais legal que
eu já tinha conhecido.
Qual o seu
nome?
15. E aí,
cara! Você
veio!
Mas alguma
coisa em Alex
também me
deixava aflito.
Eu não entendia
o que era.
Parecia que algo iria explodir dentro de
mim se eu me aproximasse demais dele.
Há!
Ganhei!
Havia encontrado
minha Shangri-La
onde as únicas lutas
que eu precisava
batalhar eram as
do videogame.
A partir desse dia, a casa
de Gregório virou um
novo templo.
16. Não acredito!
Venci o teu Blanka!
A besta finalmente
foi domada!
Hahaha!
Só apelando
com o Ryu pra detonar
tuas viadagens com esse
monstro, hein?!
Para,
Alex.
Não precisa
choramingar
que nem uma
menininha só
porque tomou
um coió. Tô
só brincando,
cara.
Não teve graça
nenhuma.
Ah, qual é?!
Vai dizer que você
é uma mariquinha
que não sabe
perder?
Não
enche,
porra!
Ficou brava a
mariquinha
Para,
Alex!
Mariquinha.
Mariquinha.
PARA COM ISSO!!
Mariquinha.
Mariquinha.
Mariquinha.
Mariquinha.
17. Tudo voltou
a ser pesado
naquele
momento.
Porra, Greg!
Que merda foi essa?
Ficou maluco,
cara?!
Olha a
merda que
você fez...
Monstros como
eu só destroem
o que tocam.
Monstros como
eu deveriam estar
presos em algum
lugar deserto, longe
de tudo e de todos.
Greg?
18. Eu deveria poupar
o mundo de toda
a minha feiura.
Eu deveria
poupar o clubinho
das pessoas
normais da visão
grotesca de meu
corpo disforme
e cada vez mais
gigantesco.
Eu deveria poupar
o munda da minha
existência inútil.
Eu deveria poupar o
mundo de meus pelos
tortos que crescem nos
lugares errados.
19. Ei, cara.
Tá tudo bem
contigo?
SAI DAQUI,
ALEX! ME DEIXA
EM PAZ!
Calma, Greg.
Você saiu lá de casa que
nem um louco. Esqueceu
sua mochila.
Nenhum.
Só quero ficar
sozinho.
Pode falar
comigo. Sou teu
amigo. Eu não
tenho amigo
nenhum! Eu sou
um monstro
medonho que
destroi tudo ao
seu redor.
Que
bicho te
mordeu?
20. Você não entende,
Alex. Eu nunca vou ser
bonitão que nem você.
Eu nem ao menos vou
ser normal. Eu sou
uma aberração.
E você
acha que
esse capuz
escondia seu
rosto?
Olha pra
você, cara.
Com essa
pinta de
galãzinho de
novela, você
vai é destruir
muitos
corações
por aí.
Cara, quando
eu era mais novo eu era
gordinho e me achava o ser mais feio e
esquisito do mundo. Eu parecia um bicho
selvagem. Vivia com raiva de tudo e repelia
todo mundo ao meu redor. Tinha uma
dificuldade enorme para fazer
amigos. Isso é coisa de idade.
Uma hora passa.
Ninguém
vai querer ficar
perto de mim
quando ver como
eu sou.
21. Óbvio que
esta cena só
aconteceu
na minha
cabeça.
O mundo pode até ser um
grande palco, mas a vida
está longe de ser uma leve
comédia romântica de
sessão da tarde.
A vida está mais para um
filme de terror com doses
de humor negro.
22. Não sei nem como tive coragem de
me abrir com o Alex. Tive um medo
enorme de que ele não quisesse mais
ser meu amigo ou até me espancar,
mas consegui.
Ele só respondeu que não era a praia
dele e que podíamos ser amigos.
Apenas amigos. Para quem não tinha
amigo algum, até que sai no lucro.
No fim das contas eu posso não ter
virado um destruidor de corações como
Alex havia premeditado
Na verdade, foi ele quem despedaçou
o meu e isso foi a melhor coisa que já
me aconteceu.
Meu coração de monstro
estava era batendo todo
errado. Precisava ser
trocado.
23. Quem sabe
agora o meu
coração de
monstro esteja
começando
a bater no
ritmo certo.
Ou quem sabe
Alex estivesse
certo afinal.
Quem sabe eu irei
mesmo despedaçar
muitos corações por aí.
24. Preparem-se.
E está faminto.
Ele vai invadir o clubinho
das pessoas normais.
Monstruosamente
faminto!
Uma fera indomável
acabou de despertar.
FIm.
25. O clube das pessoas normais é o primeiro capítulo de
Ciranda da Solidão, nova edição de EntreQuadros do autor
Mário César. Trata-se de seu primeiro trabalho com temática
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