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Nota de Autor
Para vos ser sincero não sabia muito bem como
vos escrever estas notas, não sou de todo um
profissional e admito que apesar deste ser o
segundo livro que público peço-vos para
possuírem o mínimo de compreensão com as
possíveis gralhas que possam existir ao longo
desta obra.
Depois dizer-vos que embora goste de situar a
minha escrita no realismo e tente escrever sobre
problemas que todos nós possamos enfrentar no
dia-a-dia, contudo para cumprir os desafios que
esta história me colocou tive de fugir por
momentos dessa minha dita “realidade” e
imaginar o mundo de uma forma completamente
surreal.
Dizer-vos ainda que todas as personagens
possuem uma base verídica, inspiradas pelos
meus pares, alterando as suas ações, mas
mantendo os seus principais traços psicologico-
fisicos.
Por último espero que desfrutem da leitura deste
livro tanto como eu desfrutei da sua escrita.
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Prólogo
“Numa cidade plantada à beira do Mondego, dois
amigos abraçam um novo desafio.
Felipe Ferreira, um rapaz eticamente intocável,
mas com um passado cheio de fantasmas que ainda
o atormentam e Hugo Monteiro, um jovem musico,
aparentemente normal, mas com um segredo que
lhe pode mudar toda a vida.
Muitos amores vão aparecendo, mas as diferenças
sociais vão minando todas as relações.
Um velho presidente da Câmara, preso por
corrupção é solto e promete voltar aos maiores
palcos da cidade.
Um choque de valores vai fazer tremer a cidade.
Contudo, uma outra sombra faz os seus
movimentos na escuridão, o Poderoso Alfa,
promete acabar com todos os pecadores da cidade.
Começa um jogo de xadrez entre três mentes
brilhantes...apenas um poderá vencer.”
Foi esta história que vos prometi contar no
primeiro capitulo desta história e acredito que não
fugiu muito a realidade dos acontecimentos,
contudo para os mais atentos, as ações do poderoso
Alfa e dos seus pares colocaram em andamento
acontecimentos que se tornaram inevitáveis, falta
ainda decifrar a identidade do misterioso italiano,
falta perceber o que a morte do Alfa significou, e
falta acima de tudo entender quem é que o próximo
Alfa se irá tornar.
Numa cidade a beira do mondego plantada, estas
dúvidas serão esclarecidas nas breves páginas que
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O que nos define afinal de contas? O nosso
passado, o que nós passamos, as nossas
dificuldades, as nossas derrotas, as nossas vitórias?
A nossa linhagem de sangue, se temos sangue azul
somos á partida pessoas com maior sucesso na
vida, e se nascemos entre as palhas num celeiro
numa pequena vila, somos destinados a viver
sempre nas sombras? Ou será ainda, a realidade
que nos rodeia, as pessoas com quem nos damos,
os nossos amigos e familiares, se forem pessoas
“perfeitas”, nós também o seremos, mas pelo
contrario se nos rodearmos por drogados,
assassinos e mentirosos, somo exatamente como
eles, a população até criou uma expressão para
isto, uma não, duas, “diz-me com quem andas, dir-
te-ei quem és”, “junta-te aos bons e serás como
eles, junta-te aos maus e serás pior do que eles”.
Torna-se perigoso afirmar que isto é verdade,
porque se assim for, a nossa personalidade pouco
importa, se somos sempre levados pela corrente em
que nadamos, por que razão nos tentam ensinar o
correto? Se corremos sempre o risco de ir pelas
ideias dos outros, de nada serve uma educação de
bons princípios…, mas quem sou eu para falar, um
preso, irmão do que muitos chamam, do pior
demónio do nosso seculo, o meu irmão Felipe
partiu á quinze anos e dez meses, e deixou-me a
mim a missão de continuar a sua grandiosa
missão…, mas será que o meu futuro se prende
com o mesmo futuro dele, estarei destinado e
acabar como ele? Como um monstro?
A minha casa nos últimos tem sido esta cela, com
pouca decoração e de uma cor cinzenta em toda a
sua extensão, apenas com um beliche onde durmo
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eu e o meu colega de cela, também ele um forte
apoiante da causa do Felipe, as nossas roupas,
sempre as mesmas, cor de laranja, trocamos de
roupa uma vez por mês quando temos sorte, eu
durmo sempre na parte de cima do velho beliche
que range por todos os lados quando nos deitamos
em cima dele, até já saltaram alguma molas e
alguns parafusos dele, mas nada me assusta, o pior
que me pode acontecer é cair em cima do meu
companheiro, ele sim ficaria mal tratado porque
bateria com o costado no chão. As nossas refeições
feitas no refeitório, onde parece que voltamos á
escola primária, onde temos que entrar em filinha,
todos bonitinhos e se reclamarmos somos punidos,
agora não com uma advertência que na verdade
não servia para nada, mas sim com uma belas
lambadas dadas no lombo, o comer em si não é
mau de todo, bem depende dos dias, quando as
cozinheiras realmente perdem tempo a cozinhar ele
sai bem, mas quando fazem a pressa e
simplesmente se estão a marimbar para a nossa
saúde e bem-estar, o comer parece ter sido comido
e deitado fora por cães e só depois colocado em
cima do nosso prato, uma triste realidade que
muita gente não conhece, afinal de contas, muita
gente diz, “ir para a prisão é uma coisa boa”, como
se estar preso e perder toda e qualquer liberdade
fosse algo positivo, é verdade para quem é
masoquista ou simplesmente nunca provou o sabor
da liberdade, vir parar a um estabelecimento
prisional até pode ser algo afável e doce, mas para
pessoas como eu que nunca se virão de tal forma
mal tratadas e presas é um puro inferno, mas está
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quase a acabar, faltam apenas dois meses para sair
daqui!
Os dias de Hugo eram passados entre a cela, onde
já tinha escrito e rescrito inúmeros diários, onde
falava de tudo um pouco, mas de entre todos os
temas que la apareciam retratados um era comum a
todos os dias, o seu irmão perdido dentro dos seus
próprios monstros e as suas amizades perdidas no
tempo, e o ginásio onde tentava por tudo ficar com
uma forma física apresentável e digna de um chefe
de “gang”, porque afinal de contas era isso que ele
era agora, bem ainda não o era, mas estava perto,
os dias que compuseram os últimos dois meses de
prisão pareciam indetermináveis, isto se calhar
também acontecia porque estávamos no verão, e a
hora de recolher era mais tarde, quando já se fez de
tudo, quando já se contaram todas as histórias que
se podiam contar sobre o todo-poderoso que era
admirado por grande parte dos presidiários, resta
pouca coisa a se fazer.
Fisicamente Hugo, até já tinha ultrapassado Felipe,
tinha todos os músculos bem definidos, barriga
“trincada”, braços embora não muito largos, fortes
o suficiente para levantar até o peso mais pesado
do ginásio do presidio, o longo cabelo tinha
desaparecido e dado lugar a um corte mais
atualizado, uma espécie de escada era construída
com diferentes tamanhos de cabelo na parte lateral
da cabeça, deixando o cabelo mais longo em cima,
penteado sempre ligeiramente para a direita, a cor
negra do mesmo tinha dado lugar a algumas
madeixas douradas nas pontas.
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Realmente tinha mudado bastante, quem não o
tivesse acompanhado nesta mudança, dificilmente
o reconheceria, as vezes a pergunta do que Felipe
ia achar desta mudança, surgia no ar.
Durante o tempo em que esteve dentro daquele
sitio, ao qual teve de se habituar a chamar de casa,
não só criou relações quase de feudalismo se assim
podermos dizer, todos os que possuíam a tatuagem
do lobo-negro como as redes sociais e os media lhe
começaram a chamaram, deviam-lhe vassalagem,
para todos os efeitos, ele era o Alfa por direito,
mas estas relações eram facilmente colocadas em
causa, afinal de contas sempre que olhamos para
alguém numa posição de poder desejamos colocar-
nos ao seu lado, ou mesmo no seu lugar, assim
sendo e tomando por exemplo o que se tinha
passado com Felipe, tentou criar ligações mais
fortes, ligações de amizade, sim ele era
homossexual, mas tinha deixado o amor
completamente de lado, queria amigos e não
amantes, afinal de contas o amor é o mais perigoso
e mais destrutivo dos venenos, e digamos que é
docemente fabricado, primeiro sabe-nos ao mais
doce dos sumos do mundo, deixa-nos
completamente rendidos ao seu cheiro e ao seu
sabor, cria-nos água na boca diariamente e somos
capazes de fazer tudo para beber uma vez mais
daquela fonte que parece indeterminável, e quando
damos por ela, bebemos desse sumo todos os dias,
a toda a hora e deixamos que ele nos percorra sem
qualquer obstáculo, tornando-se por vezes mais
importante do que o próprio sangue, e depois que
chega a este ponto, meus caros não há nada a fazer,
deste momento para a frente só tende a piorar, não
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tarda para sentirmos o seu real sabor, um sabor de
magoa e angustia, de lágrimas e dores
insuportáveis, de um veneno que mata tudo o que
existia antes dele e condena tudo o que vem
depois, mas não é disto que tenho que vos falar,
tenho que vos falar dos dois braços direitos de
Hugo, pessoas pela qual ele daria a vida e sabia
que eles fariam o mesmo.
Lazaro, um preso por roubo e assassinato, um
“armário”, como todos o caracterizavam, com o
seu metro e noventa centímetros, os seus músculos
não muito desenvolvidos mas proporcionais ao seu
tamanho, cor de pele escura, poucos cabelos na
cabeça, extremamente bem alinhados bem como a
sua barba, esta negra como o vestido de uma viúva
no dia a seguir a perder o seu marido, temo que
este exemplo esteja desatualizado, mas isso não
importa, vestia sempre roupa de cor oposta a sua
pele, de noite facilmente se viria a sua roupa, mas
muito dificilmente se conseguiria ver a feição ou a
emoção na cara dele, raramente mostrava o que
sentia e muito menos espelhava em palavras isso
mesmo, em muito pouco concordava com as ações
da alcateia, mas por alguma razão sentia que devia
seguir aquele jovem líder, os sentimentos são
armas perigosas, que ou nos tornam indestrutíveis
ou nos tornam drasticamente frágeis, por segurança
ele tentava esconde-los ao máximo, vá-se la saber
o que ele iria passar caso demonstra-se.
Samuel, para os conhecidos simplesmente Sam,
digo conhecidos porque ele raramente conseguia
diferenciar os dois, dava muita confiança a toda a
gente, segundo ele na sua vida tinha apenas três
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grupos de pessoas, os inimigos, os conhecidos e a
família, estranhamente ou nem por isso, os
membros ligados por sangue, encontravam-se no
grupo dos conhecidos, ele escolhia a sua família,
dava a sua vida por eles, mas era mais comum
pedir para que eles dessem a deles por ele, era uma
bomba atómica, quase todos os dias arranjava
problemas dentro da cadeia, apesar do seu pequeno
metro e sessenta, era capaz de derrubar o mais alto
dos gigantes, por vezes ficava com um olho negro,
menos um dente ou simplesmente de cama, mas
nada disso fazia com que ele parasse, cabelo
arranjado, muito parecido ao que Hugo tinha
atualmente, olho claro e barba mal semeada pela
face, uma estranha cicatriz, quase irreparável a
olho nu acima da sobrancelha esquerda, um
autentico playboy, embora que isso dentro da
cadeia não servisse de muito.
Na última terça-feira antes de Hugo ser libertado,
estavam os três prisioneiros sentados nos pequenos
bancos que existiam no recreio, entre gargalhadas e
pequenos murros nos ombros em sinal de amizade
lá se ia passando a tarde, estava um sol escaldante
no céu e pequenas sombras que se pudessem
aproveitar, Hugo escolhia sempre a mesa com
menos probabilidade de apanhar a doce e fresca
sombra, era sempre maltratado por isso, mas a
resposta dele era sempre a mesma:
- Se eu não for capaz de dar o mais doce dos
frutos aos que depositavam a sua confiança em
mim, que tipo de líder serei?
- Um líder racional, neste momento és apenas
um líder estupido e masoquista – respondia Sam,
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abrindo todos os botões do polo que trazia vestido,
usava um pequeno lenço que tinha no bolso para
limpar o suor – mas poe masoquista nisso,
condenar os teus mais próximos subordinados ao
calor devastador do verão português.
- O poder tem o seu preço, se és como tu dizes
um subordinado direto, tens de pagar pela posição
– soltando um pequeno sorriso.
Com o suor a escorrer pela sua pela negra, Lázaro
sem esboçar qualquer emoção, diz baixo, mas
suficientemente alto para que o ouvissem:
- Deixa-o falar Hugo, isto é, do calor e daquele
cabelo esquisito que ele tem, até já diz palavras
caras e tudo, qualquer dia, trata-nos por você e
cumprimenta-nos com dois beijinhos na cara, eu
vou começar a ter cuidado á noite, vá-se lá saber.
Os risos tomaram conta da mesa, apesar de tocar
num ponto complicado, como fora tocado entre
amigos, tinha sido levado na brincadeira. Sam,
com o olhar fitado na cara de Lazaro e com as
sobrancelhas curvadas em sinal de desdém,
aguentou pouco tempo esta postura, deixando sair
o seu contagiante riso que mais se parecia com a
sirene de uma ambulância do que com um riso
verdadeiramente humano, os três amigos riram e
riram, sentiam-se bem, depois de mais conversas
paralelas e mais gargalhadas e mais “bicadas”
amigáveis, Sam colocando a mão em cima do
ombro de Hugo disse:
- Vou sentir saudades disto, tu sábado vais-te
embora, este pequeno sítio vai ficar vazio sem ti,
mas espero que cumpras a promessa que nos
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fizeste no dia em que juramos amor eterno á tua
causa…
- Podem ficar descansados, não desfadigarei
enquanto não vos tirar daqui, ainda tenho alguns
conhecimentos do tempo de Felipe, talvez eles me
ajudem e caso não o façam, tomarei este sítio pela
força.
Os olhos de Sam brilhavam ao ouvir aquilo, era um
apoiante do extremismo, via as ações de Felipe
como necessárias e não como monstruosas, na sua
mente via-se a entrar pelas portas da cidade, com
armas em punho lado a lado com Hugo, para matar
todos os infiéis e espalhar a sua vontade, desejava
poder e sangue acima de tudo, mas os seus sonhos
foram bruscamente interrompidos por Lazaro,
novamente com voz calma falou:
- Aprecio que mantenhas a tua promessa, mas
não te esqueças do que nos disseste, não queres ser
uma imitação barata do Felipe, ele escolheu a força
porque assim tinha que ser, tu tens outra
capacidade, traça o teu caminho, que nós iremos
atrás, não é o passado que nos define, mas sim o
que decidimos fazer com o futuro, foste tu que me
ensinaste isso, não te esqueças.
De dentro do edifício protegido contra o frio e o
calor, modernizado e composto por grandes janelas
de vidro que permitam ver de dentro para fora sem
grande esforço, mas que impossibilitavam o
contrario de acontecer, com alicerces na antiga
prisão, mas deixando completamente o passado
para trás, possuía duas grandes arvores colocadas
ao pé da entrada que dava para o pátio, dois
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chorões que se abraçavam e formavam uma
proteção contra o sol e a chuva, pareciam dois
amantes presos eternamente um ao outro, nunca
aquelas magnificas arvores tinham sido cortadas ou
aparadas, tinham sido deixadas crescer livremente,
no seu tronco ainda estavam muitas iniciais
marcadas, ao longo dos anos todo e qualquer
prisioneiro que fosse libertado deixava lá a sua
marca, de forma a relembrar o mundo que mais
uma vitima tinha saído daquele inferno. A cidade
tinha mudado muito nos últimos anos, nalguns
pontos tinha melhorado, mas noutros nem tanto,
depois de Los Santos morrer e os seus seguidores
também, a câmara tinha sido entregue a diversos
partidos sem fundamento durante os meses
seguintes, as lutas internas entre os mesmos
tinham-se agravado ainda mais, definir a esquerda
e a direita ideologicamente tornava-se complicado,
os problemas sociais e humanos tinham também
eles agravado, a fossa entre os ricos e os pobres era
destruidora, a descoberta das catacumbas depois da
explosão que acontecera dezasseis anos atrás, em
nada tinha beneficiado o povo como Felipe
desejava, o ouro tinha sido distribuído pelos mais
ricos, e as catacumbas tinham-se tornado o local de
trabalho dos mais pobres, uns como mineiros a
explorar e a esgotar até ao ultimo minério que la
pudesse existir, outros a trabalhar como membros
do agora enorme museu Machado de Castro que
fazia visitas guiadas por toda a cidade, o numero
de mendigos aumentava a cada semana que
passava, muitos deles sem comer, outros sem
terem sequer o que vestir, não só de adultos se
tratava, crianças desde muito novas a percorrer as
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ruas da cidade a pedir por dinheiro para comer, de
facto a criminalidade tinha descido
consideravelmente desde da chegada da Alcateia,
mas a pobreza só tinha aumentado, com medo de
praticar tais atos obscenos que tinham conduzido
centenas a morte em haste publica, preferiam o
mendigismo face ao roubo ou a prostituição.
Mas quem vive na prisão, vive num inferno
diferente e as notícias que entram para dentro da
mesma são meticulosamente controladas, Hugo
não fazia a mínima ideia do que a obra de Felipe
tinha feito a sociedade atual, mas estava prestes a
conhecer.
De edifício da prisão que vos falei a pouco, saiu
um guarda prisional, com todo o seu típico
armamento e a sua sujamente reluzente farda, com
as mãos nos bolsos e com o olhar colocado no chão
por detrás dos seus redondos óculos de sol que
refletiam uma cor azul para quem os olhasse de
frente, avançando poderosamente por entre os seus
presos, olhava com desdém para cada um deles, o
olhar era retribuído, afinal de contas eram aqueles
fantoches que os acordavam diariamente, que os
castigavam quando alguma coisa acontecia, não
era lei suprema que vinha bater nos presos, não era
a lei suprema que tinha de castigar ate inocentes de
um roubo de pão, mas quem trabalha para ela,
acaba sempre por ser considerado mais culpado.
Quando chegou ao pé dos três amigos colocados
mesmo debaixo do poderoso e hostil sol,
levantando os olhos e fixando-os no céu começou a
falar com um tom de superioridade:
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- Vocês ou são totalmente doidos, ou então
desejam morrer, em qualquer um dos casos não me
interessa, trago aqui uma mensagem para este
galito rafeiro – gesticulando para Sam – a tua
namorada está lá fora e quer-te ver, diz que não se
vai embora sem tu ires lá, da última vez bateu em
três guardas e acabou internada durante uma
semana num hospital psiquiátrico, desta vez não
tolerarei isso, vai lá matar o fogo a rapariga.
Revirando os olhos e levando as duas mãos a cara,
apoiou-se nos joelhos e começou a abanar
freneticamente a cabeça:
- Outra vez ela não! Eu terminei tudo com ela
antes de vir para cá, não sinto nada por ela, aquela
sua cabeça esta completamente perdida, ela é
paranoica, devia estar ela presa no meu lugar!
- Isso é que era assunto, fazia melhor serviços do
que tu de certeza, mas deixa-te de lamurias e vai lá,
ninguém te manda ser irresistível – soltando um
fraco sorriso. Lazaro.
Os sorrisos tomaram conta de todos os que
ouviram aquelas palavras, Hugo desviou o olhar
em direção ao céu, cerrando os lábios de forma a
evitar que as gargalhadas voassem livremente, até
o cerrado olhar do polícia começou a dar sinais de
felicidade, Sam ao ver aquilo só deixou cair a
cabeça e encolhendo os ombros lá se levantou e
seguiu o polícia, quando já estava perto da saída do
pátio, Hugo desce o olhar e grita:
- Tem juízo Sam, não quero ser padrinho!
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Como resposta recebeu apenas o dedo do meio da
mão direita, a gargalhada voltou a esvoaçar por
todo pátio, enquanto todos se riam da desgraça
alheia Hugo parou o riso e começou a olhar a sua
volta, e ao contrario do espectável não viu
monstros como a sociedade via, não viu assassinos
nem ladrões, viu pessoas, boas pessoas, pessoas
com dotes únicos, uns sabiam cantar, outros
sabiam dançar e outros sabiam apenas fazer
palhaçadas, mas sabiam arrancar risadas, ele
imagina todos aqueles homens juntos á beira de um
café, a beberem uma cerveja que borbulhava e
brilhava sobre a luz do sol, via-se a perder uma
tarde e quem sabe uma noite em conversas vãs
com eles, alguns tinham cometido mesmo crimes
graves, mas outros simplesmente estavam lá por
causa de erros infantis que tinham cometido por
necessidade, ou pelas inúmeras lacunas que
existem na lei que rege o pais, uma leia que
protege os ricos e poderosos e destrui as vidas já
destruídas dos pobres. O olhar percorreu cada um
dos presentes e novamente um sorriso apareceu no
seu resto, era daquilo que Felpe falava, tinha morto
muitos ladroes é verdade, mas por cada morte que
causava era um rio que chorava, matar inocentes
era horrível, mas o que contava nos pensamentos
de Hugo não era o que o Alfa tinha feito, mas sim
o que Felipe defendia, e este sempre defendera
todos por igual, mesmo os que matavam, segundo
ele, todos merecem uma segunda oportunidade,
afinal de contas ninguém e perfeito e todos
cometem erros…A compaixão tinha conseguido
coexistir na perfeição com as sombras, apenas
Felipe tinha conseguido fazer isso, o orgulho e a
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pressão só aumentavam nas costas de Hugo, que
começava a duvidar da sua própria capacidade, não
sabia quem seguir verdadeiramente enquanto líder
da alcateia, se seguia Felipe e apagava a imagem
negra do que se tinha passado á dezasseis anos, se
se tornava um Alfa, uma fotocopia do monstro que
destruiu e tirou tantas vidas, mas tinha que se
decidir rapidamente, na segunda-feira seguinte já
estaria solto e nessa altura tinha de saber quem era,
ou quem queria ser…
Passados quase trinta minutos, retornou ao pátio
Sam, com a cara toda marcada de batom, parte do
vestuário fora do sítio e com uma cara de
desenterrado que na noite de Halloween daria uma
ótima fantasia, com uma feição de desespero,
parecia que não tinha dormido durante dias, com o
cabisbaixo e completamente desajeitado a andar,
enquanto se dirigia para o pé dos seus mais
próximos companheiros, com movimentos em
ziguezague, batia em tudo o que não se desviava
dele, a meio do pátio, uma enorme pedra que
facilmente seria ultrapassada, bastava levantar os
pés, mas naquele momento isso era pedir demais,
quando os seus pés arrastados tocaram no calhau
que teimosamente estava preso ao chão, o seu
corpo projetou-se em direção ao chão, já todos
estavam a preparar os diafragmas para soltar altas
gargalhadas, mas o seu corpo não encontrou o
chão, encontrou sim o corpo de Lazaro, que
subitamente e sem ninguém notar tinha-se
aproximado para evitar a queda do amigo, com um
olhar petrificante, fez com que Sam se recupera-se,
ajudando-o a equilibrar-se em cima das pernas,
acompanhou-o até ao banco onde estavam.
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Depois de se sentar Sam levou o seu olhar a
percorrer as feições dos seus companheiros, e
mesmo que tentasse, não conseguiu e começou a
soltar um pequeno sorriso, que pouco a pouco foi
subindo e crescendo acabando como um conjunto
de gargalhadas descontroladas, contagiantes, Hugo
seguiu-lhe o exemplo e também ele se perdeu no
meio das gargalhadas, Lázaro também, não com
gargalhadas, mas com um sorriso honesto.
Quando as gargalhadas deram lugar a respiração
profunda, e a normalidade, seja ela o que for,
tomaram novamente conta dos seus corpos, Lázaro
tentou colocar lenha na fogueira para arder mais
um pouco:
- Então, resolveram as coisas?
- Já estavam mais do que resolvidas, ela é que é
doida! – Começando a limpar as marcas de batom
que tinha na face.
- Ninguém diria, mas se o dizes eu acredito, pelo
menos levaste um abanão como já não levavas á
muito! – Parecendo procurar algo, inexistente, no
ar.
- Vê lá se quem leva um abanão não és tu –
cerrando o punho e esboçando mais um sorriso.
- Gostava de ver minorca – olhando com pena
para ele.
Os dois amigos pegaram-se em disputas verbais e
mesmo algumas disputas físicas, pouco justas estas
últimas, Lázaro conseguia facilmente colocar Sam
debaixo do seu braço, cerrando o punho em cima
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da cabeça dele, Hugo a ver aquele lembrava-se da
sua infância, aqueles gestos eram idênticos ao que
ele fazia quer com a sua irmã, que com Felipe, a
emoção transbordava, sorrisos ingénuos apareciam,
e sem controlar as suas palavras soltou:
- Vou sentir saudades vossas raparigas – estas
palavras fizeram com que a disputa parece por
momentos, olhares confusos cruzaram-se em
direção a Hugo, mas rapidamente voltaram a ação,
pareciam duas crianças a brincar.
Os últimos dias na prisão, foram passados todos
em plena alegria, todos os dias pequenos grupos
cantavam, outro pequeno dançava, até alguns
guardas se juntavam para as celebrações, todos
prestavam a última homenagem ao poderoso Alfa,
Hugo ficava incomodado com tudo aquilo, mas
fazia o máximo para não se notar, sentia que aquilo
era demasiado para ele, afinal de contas, não era
nada mais do que aqueles que lhe prestavam
vassalagem, durante dezasseis anos foram irmãos a
passar juntos pelo mesmo inferno, passaram pelas
mesmas dificuldades, pelos mesmos abusos, eram
iguais!
Na manhã de sábado, por volta das sete da manhã,
um guarda fora a cela de Hugo na esperança de o
acordar de forma abrupta, já levava na sua mente
mil e uma maneiras de o fazer saltar da cama, mas
todas essas ideias, saíram furadas, quando chegou
á frente do cubículo, onde Hugo tinha vivido nos
últimos anos, já ele estava levantado e pronto para
fazer o processo de libertação, saindo como um
Homem livre, sem algemas, sem armas apontadas,
percorreu os corredores em direção ao mundo dos
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vivos, sabia que não teria a ultima despedida que
tanto desejava, ia de cabisbaixo a olhar para as
celas, pensando que todos os presos estavam ainda
a dormir, como seria espectável, mas o mundo esta
repleto de supressas, quando passou a frente da
cela onde estavam colocados Lazaro e Sam, ouviu
a calma voz galã do mais pequeno dos amigos:
- Não te esqueças da tua promessa, se te
esqueceres quando sair daqui estás feito ao bife! –
Aparecendo ao pé das grades, com um sorriso
estampado na face.
- Não me esquecerei meu amigo – começando
também a sorrir – farei o possível e o impossível
para vos tirar daqui!
- Não te esqueças de quem queres ser, nós
podemos esperar, vai colocar as contas em dia com
o mundo exterior primeiro. – Fazendo aparecer as
suas largas mãos á luz e de seguida a sua cabeça,
Lázaro, sempre com o seu olhar fixo e cara
fechada.
Com ternos sorrisos se despediram, Hugo foi
acompanhado até a saída, quando chegou á porta
que dava para o mundo livre ao qual voltava a
pertencer travou o passo, ficando quase paralisado
a olhar para a porta, com um saco com a sua roupa
colocado as costas, começava a sentir o seu corpo a
tremer por todos os lados, o guarda que tinha sido
colocado para o a acompanhar até a saída, com um
riso estranho na cara comentou:
- Já acompanhei muita gente ao longo deste
corredor e ninguém paralisou tão perto da
liberdade, mas acho que te percebo, afinal de
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contas não fazes a mínima ideia do que vais
encontrar do outro lado da porta, o mundo muda
imenso em dezasseis minutos, quanto mais em
dezasseis anos, mas está na hora, ainda para mais
tu que tens um papel tão importante como toda a
gente diz, não podes refugiar-te para sempre na
sombra de quem tu tens que ser! – Dando-lhe um
pequeno toque nas costas, fazendo-o aproximar-se
ainda mais da porta.
Engolindo em seco, respirando fundo e alongando
os ombros, lá abriu a porta e saiu em direção á
cidade que tão bem conhecia, o sol que sentiu era
exatamente o mesmo que sentia todos os dias no
pátio, mas este parecia ser diferente, mais quente,
mais fraterno, olhava para o céu e ouvia os
pássaros a cantar, e pela primeira vez em muitos
anos era parecido com eles, não por saber voar,
nem por ser infinito, mas por ser livre, percorreu o
espaço a sua volta uma e outra vez, atirou o saco
contra o chão e colocou as mãos encostadas ao
alcatrão ainda fresco, por ter sido aquecido ainda
muito pouco pelos raios de sol noviços, olhou para
as pessoas que passavam, ainda muito poucas se
viam pelas ruas, a cidade ainda estava a acordar, e
todas as que passavam por ele, olhavam-no com
desdém, afinal de contas agora o rotulo que parecia
trazer ao pescoço era “ex-presidiário”, e as
pessoas, apesar de se terem passado dezasseis
anos, não melhoraram nada, continuavam a julgar
sem saber e a autocolocar-se em bolhas de
superioridade, mais frágeis do que uma peça de
porcelana atirada com brutalidade contra o chão,
afinal de contas, o ego torna-se sempre a coisa
mais fácil de alimentar.
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Um homem, mais ou menos com a idade do Hugo,
olhava para toda aquela cena, com um estranho
sorriso na cara, completamente calvo, cheio de
tatuagens, trazia vestida uma camisola de cavas
branca com um enorme número nove a frente
circundado por linhas amarelas, óculos de sol
pretos e algumas pulseiras no braço esquerdo,
atirava calmamente um anel em direção ao ar e
voltava a apanha-lo, o anel, esse em forma de leão,
parecia já massacrado pelo tempo, por mais do que
uma vez o anel quase fugiu das suas mãos, depois
de deixar aquela cena durar quase dez minutos
finalmente aproximou-se, com uma voz
extremamente calma e um pouco roca disse:
- A minha reação foi um pouco diferente, mas
percebo a tua, afinal de contas este sítio é mais
bonito do que aquele que eu vi quando fui
libertado – soltando um pequeno sorriso.
- E tu és? – Caindo de novo em si Hugo,
agarrando de novo no saco e colocando-se de lado
para o homem que agora estava a apenas meia
dúzia de metros dele.
- Não fui eu que mudei drasticamente, mas
percebo-te, passaram-se dezasseis anos, e da última
vez que me viste estava de farda e de boina, eu sou
o Beta do Felipe, sou o jovem comandante que
estava naquela noite da praça, fui eu que vos
mandei retirar do meio da multidão, fui eu que
substitui o Rodrigo como chefe máximo da polícia!
- Agora que falas, começo-me a lembrar, eras o
terceiro na hierarquia da alcateia, não é isso? –
Pousando o saco novamente no chão.
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- Não te acomodes, vamos conversar para outro
lado, tens muito que saber, o Felipe deixou-me
encarregue de te tornar um verdadeiro Alfa.
Virando-lhe as costas, dirigiu-se para um pequeno
carro branco, rebaixado e completamente alterado,
com jantes colocadas posteriormente, com um
barulho ensurdecedor e uma quantidade de fumo
que saía do escape fora do normal, por dentro um
carro confortável, com os acentos revestidos em
cabedal, os da frente com um padrão leopardo,
bem uma espécie, porque já estava bastante
desgastado, e os de trás cobertos por uma manta de
penas, pendurado no espelho retrovisor, uma
pequena palmeira que tinha como objetivo
aromatizar o ambiente, mas novamente falhava
miseravelmente, o volante revestido também com
uma proteção de esponja de forma a não magoar as
mãos, embora grande parte das vezes dificultasse a
condução no seu todo.
A medo e analisando cada toque e retoque do
interior do carro lá acabou por entrar, franzindo o
sobreolho tentou colocar o cinto que teimosamente
não se mexia, depois de imensos puxões alguns
deles de forma até bastante agressivos lá se
conseguiu colocar em “segurança”. Depois de
muitas voltas lá chegaram ao destino, com uma
visão sobre a cidade estacionaram o carro, estavam
no miradouro de Coimbra, dali conseguia-se ver
toda a cidade em todo o seu esplendor, a
universidade como marco da cidade, as ruas
estreitas que fazem possível lá chegar, e depois
todas as pequenas casas que cada uma com o seu
toque especial pintam o quadro da cidade de
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Coimbra de uma forma única, a visão era parecida
com a que Hugo tinha quando vinha a porta da sua
“casa” há dezasseis anos, só que alguns metros
acima, visto do alto todas aquelas majestosas
casas, o poderoso rio e até a imponente
universidade parecem reduzidos a simples objetos
de bolso, sem nunca perderem a sua beleza.
Quando chegaram estacionaram o carro mesmo
encostado aqueles bancos de pedra com dois
acentos colocados frente a frente, com o intuito das
pessoas se sentarem, falhando mediocremente
nessa intenção, as pessoas quando decidam ir lá,
faziam as ditas visitas de “medico”, estacionavam
tiravam algumas fotos e depois saiam em direção a
casa, um dos espaços mais bonitos da cidade
deixado ao abandono e sem qualquer força turística
na cidade, mais um plano falhado!
Depois de desligar o carro, saíram os dois do carro,
Hugo com o olhar sempre semicerrado colocou-se
lado a lado com o misterioso homem que embora
lhe parecesse familiar não conseguia trazer a luz da
memória de onde era essa familiaridade, este
mantinha o olhar fitado na cidade, com um
estranho sorriso na cara, parecia estar a deliciar um
quadro pintado por Van Gogh ou por Picasso,
depois de algum tempo assim dirigiu-se á mala do
carro de onde tirou duas latas de cerveja ainda
frescas, na mala trazia duas arcas congeladoras,
colocadas sobre uma manta de pelo com feitio de
leopardo, fora as caixas tinha um extintor e uma
pequena navalha muito mal tapada por um
conjunto de guardanapos cor-de-rosa, depois de
fechar a mala com força, fazendo um forte
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estrondo ecoar pela estrada vazia, atirou uma das
latas para os braços de Hugo que com muita
dificuldade lá o agarrou.
- Bebe. Faz bem. – Abrindo a sua e bebendo-a
quase toda de uma vez.
- Não quero, não sou de beber e muito menos
logo de manhã. – Colocando a bebida em cima do
carro.
- Pelos vistos não mudaste nada nestes dezasseis
anos, diz-me, não fazes a mínima ideia de quem eu
sou, pois não?
- Não, e começo a ficar preocupado com esse
suposto conhecimento que tens sobre mim e sobre
o Felipe! – Afastando-se um pouco dele.
- Vocês são muito diferentes mesmo, ele
reconheceu-me mal me viu naquele dia á dezassete
anos, mas tu tardes em reconhecer-me, talvez tenha
de te contar a história desde do inicio mas para isso
convém sentares-te – sentando-se nos bancos de
pedra, e fazendo o gesto para que Hugo fizesse o
mesmo, mas recebeu um aceno negativo com a
cabeça como resposta – bem tu é que sabes, para tu
perceberes tenho de voltar aquela noite, uma noite
típica de Coimbra, nem muito fria nem muito
quente, mas isso pouco importa, eu tinha entrado
ao serviço na “Toca” por volta das sete da tarde,
sabia que só ia terminar depois das quatro da
manhã, arrumar aquela sala depois de ela estar
cheia de bêbados e drogados era uma missão
terrivelmente nojenta para dizer o mínimo, mas
naquela noite eu e todos os empregados tínhamos
recebido uma missão especial vinda diretamente do
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chefão, era muito raro o Los Santos nos dar algum
tipo de indicação, por isso quando o fazia sabíamos
que deveria ter história por trás, naquela noite
recebemos um jovem, um jovem diferente,
aguentou muito até cair nas tentações daquele
espaço, fui eu que recebi o Felipe, o olhar dele
pareceu-me familiar mas tal como tu tardei em
reconhecer alguém que conhecia desde de
pequeno, na primeira noite falamos apenas de
cliente para empregado, ele começou a fazer
perguntas que não devia, mas ao contrário do que
acontecia com as outras pessoas que o fizessem,
nele nunca tivemos ordem nem permissão para
tocar, e aquilo durou algumas semanas, mas a
nossa relação começou logo na terceira noite em
que ele apareceu lá, sentado numa mesa encostada
ao fundo da sala, parece que ainda estou a ver o
espaço, ricamente adornado com tons sempre a
fugir para o dourado, parecia uma sala de jantar
dos reis, bastava roubar uma das cadeiras e eras
rico, mas se fosses apanhado a única riqueza que
podias esperar era um tiro no peito, nesse noite ele
chamou-me, eu pensei que fosse para pedir mais
uma garrafa de água, que era o que normalmente
ele pedia, nos primeiros dias, quando ia sozinho,
mas não era essa a sua intenção, pela primeira vez
neste fim do mundo alguém me tratou pelo nome,
Tiago ele me chamou e assim me prendeu á
cadeira, com a voz calma que sempre apresentava
questionou-me o que tinha acontecido para eu ter
ido parar a um sitio como aquele, e com a cara que
tu apresentas desde do inicio da nossa conversa
também eu fiquei, mas rapidamente percebi com
quem estava a conversar, quando ele contou a sua
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história… - levando a lata aos lábios bebendo o
resto que lá estava – ainda hoje me pergunto como
é que ele me reconheceu, principalmente se um dos
membros do meu próprio gangue não o faz – os
olhos de Hugo começaram de forma estranha a
viajar no tempo e a encontrar parecenças de um
velho e distante amigo, perdido na vida, no rosto
daquele desconhecido que começava novamente a
sorrir.
- É impossível, não pode ser, como é que tu?
Não, não pode ser… eu vi-te no chão inanimado,
eu vi-te como morto.
- Finalmente reconheceste-me meu amigo, é
verdade naquela tarde de verão tive cara a cara
com as portas do inferno, mas ainda não tinha
chegado a minha hora, eu vi-te a fugir e vi o nosso
bom amigo moribundo no chão ao meu lado, mas
eu consegui ganhar forças para sair de lá, nenhum
de nós deveria ter morrido naquele dia, ou
morríamos todos ou não morria nenhum, mas a
vida teimou em fazer a sua vontade prevalecer,
ambos mudamos muito desde daí.
- Muito mesmo – acorrendo para lhe dar um
abraço sentido, uma tímida lagrima veio até às
janelas da alma, mas aguentou-se da parte de
dentro – mas o que se passou contigo meu irmão?
- Depois daquele fatídico dia eu procurei um
esconderijo, um sitio onde ninguém ligasse para as
minhas cicatrizes, quer as visíveis, quer as
invisíveis, fugi para a cidade, onde achei que seria
bem recolhido, fosse qual fosse o caminho que
escolhesse, afinal de contas, todos os que vivem
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nas sombras vivem mais, mas a fome e a falta de
dinheiro quase me condenaram novamente, roubei
para comer e não tenho receio de o admitir, bem
dizendo até me encontrar novamente com o Felipe
só me faltava matar, mas ele fez favor de me
ensinar que o maior pecado é não ter pecado
algum, consegui viver assim durante algumas
semanas, mas não era vida estável nem saudável,
rapidamente as feridas mal curadas começaram a
dar sinal, hematomas, sangue pisado e infeções
colocaram-me no leito na morte na beira de uma
estrada desta linda cidade, mas uma vez mais a
minha hora não tinha chegado, um anjo desceu dos
céus para me recolher, uma velha senhora que
morava numa casa na praça, já deves ter ouvido
falar dela, foi a mesma que ajudou o Felipe e
Teresa, a mesma que morreu às mãos do Los
Santos, durante bastante tempo cuidou de mim,
deu-me de comer, tratou-me das feridas com uma
mestria que nunca tinha conhecido a ninguém,
tratou-me como um filho e foi a mãe que durante
muito tempo não tive, mas sabes como eu sou, ou
pelo menos sabias quem eu era, nunca gostei de
viver as custas de ninguém e então arranjei um
emprego, trabalhava de noite para conseguir juntar
algum dinheiro a mais, e numa noite de luar
belíssimo cheguei a casa e dei com a minha
senhora morte em cima da cama, era uma cena
horrorizante, muitas vezes o meu estomago andou
as voltas e muitas vezes as minhas lagrimas o
contiveram, chamei a policia e os paramédicos na
esperança de que aquele corpo mesmo
desmembrado, mesmo quase sem sangue tivesse
vida, mas não, ela estava mais do que morta, estava
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quase apagada do mapa, literalmente, quando se
procurou um testamento alguma coisa, encontrou-
se o falso testamento que o Luís Los Santos tinha
construído, eu vi a velhota a escrever o verdadeiro
testamento, ela deixava-me a mim e ao Rodrigo
toda a sua herança, muitas vezes o reneguei, mas
sabia que de nada valia, naquela noite voltei a
perder o chão, fiquei na rua novamente, ainda
muitas noites dormi de forma clandestina naquela
casa, juro-te que por vezes ainda ouvia os gritos
dela, mas isto era frutos da minha cabeça, estava
novamente sem nada para comer, sem nada onde
viver, foi então que um homem, todo-poderoso me
apareceu á frente, no intuito de me oferecer
trabalho, por isto é que eu costumo defender que
nenhum homem é cem por cento monstro nem cem
por cento santo, apenas é moldado segundo as
circunstância, naquele dia vi um monstro a dar-me
a mão, aceitei de imediato, não fazia a mínima
ideia de que tinha sido ele a colocar-me naquele
inferno novamente, se soubesse te garanto pela
alma daquela boa senhora que não tinha dado a
honra nem oportunidade ao Felipe de o fazer, mas
enganado por um lobo numa pele de cordeiro
aceitei ir trabalhar para o ninho de cobras, e bem
foi isto que me aconteceu, seja uma história boa ou
má, é a minha!
- Não fazia a mínima ideia, pensei mesmo que
tivesses ficado lá, como o Carlos ficou, se soubesse
que ainda estavas vivo nunca te tinha
abandonado…,mas ainda há muitas nuvens de
volta da minha cabeça, onde é que o Felipe entra
nessa história, ou melhor como é que tu entras para
a Alcateia?
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- Era isso que te ia contar a seguir, como te disse
naquela noite ele conseguiu prender a minha
atenção e não sei com que bruxaria fez com que
lhe contasse a mesma história que acabei de te
contar a ti, e com toda a sua frieza ele persuadiu-
me que quem tinha morto a velha senhora tinha
sido o próprio Los Santos, no momento mesmo
sem pensar o meu corpo encheu-se com uma
labareda que nem mil cascatas de água doce
poderia apagar, mas novamente a sua racionalidade
a sua capacidade de liderança prenderam a minha
raiva, e foi nesse momento que ele me contou o
seu difícil e audaz plano, no inicio ao que tu
chamas de Alcateia, era para ser chamado Raio de
Justiça, sei bem um nome um tanto o quanto
infantil mas na altura pareceu o melhor, e era um
movimento apenas político-social, nas nossas
mentes nunca passou matar inocentes, mas algo se
passou, não me perguntes se foi o dia no
aniversário da Teresa, se foi o Felipe ter
descoberto que o Los Santos teve dedo naquela
noite na casa do rio, só sei que um rapaz outrora
racional e extremamente amável tornou-se no que
muitos conseguem chamar de monstro, no fim de
ser ameaçado pelo Los Santos ele ligou-me no
caminho para casa e com um tom de voz que eu
nunca tinha ouvido disse de forma perentória,
“esquece o nome que tínhamos pensado, a partir
desde momento somos os fundadores da Alcateia e
vamos entrar para matar”, e assim foi, a partir
desse dia começamos a planear meticulosamente
todas as nossas ações, cada pessoa que matávamos,
cada inocente que sacrificávamos, ele insistiu para
que eu ficasse nas sombras a funcionar como
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agente duplo e devo-te dizer nunca pensei que
questiona-lo, não por medo, mas porque ele
ganhou o meu respeito, mas desta forma nem ele,
nem eu podíamos aparecer como carne para
canhão, então ele escolheu aqueles dois idiotas
para essa função, deixou-os acreditar que eles eram
os números dois, quando nem o três o eram, os
ómegas nas alcateias servem apenas para fazer
figura de parvos, o Márcio deve-se ter apercebido
disso e tentou trair, não era suposto ele morrer,
mas foi necessário. O Felipe sempre teve noção de
como seria o seu fim, e nunca fugiu dele, ele bem
tentou amar, mas a luta que tinha com os seus
próprios fantasmas nunca o permitiu, ele vivia
atormentado pelas mortes que causava, mas a
morte da Bea e do Pedro foi a gota de água, ele não
aguentava mais, ele tinha um bom coração, mas o
seu desejo de vingança cegou-o, aconteceu a muito
boa gente – levantando-se.
- Nunca soube desta versão da história…
- Não era suposto tu saberes, todos os dias ele
perguntava-se, se te devia contar, mas o desejo de
te proteger foi sempre maior, mas isso são águas
passadas e ele deixou-te uma missão, não apenas
seres o Alfa desta nova geração, mas também algo
maior, encontrares o verdadeiro assassino da
família dele, o italiano que ele fala nos seus
diários, tens capacidade para isso?
- Se não a tiver, terei de a arranjar, se o Felipe
acreditou em mim e me deixou o seu legado para
seguir não lhe posso virar as costas.
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- Ótimo, porque aqui tens o teu primeiro
mistério – mostrando o anel com que andava a
brincar quando chegou ao pé de Hugo – o Felipe
deixou isto para ti, juntamente com um papel que
diz, “isto é a primeira de três chaves, para a missão
encontrar”, sempre tão linear o nosso amigo, mas
toma, já tens alguma coisa por onde começar.
- Como é suposto eu começar a partir de um
anel? E a Alcateia não precisa do seu Alfa?
- Não sei, talvez ires procurar ajuda a um sítio
onde a alma do Felipe esta mais vigorosamente do
que no próprio tumulo seja um bom ponto de
partida, e quanto á alcateia, sobreviveu dezasseis
anos sem ti, poderá viver mais uns dias sobre a
alçada do Beta não achas?
- E onde seria esse sítio?
- A casa do Rodrigo vamos eu deixo-te lá –
atirando a lata em direção á cidade fazendo-a rolar
encosta abaixo.
- Tiago, tenho mais um pedido para te fazer…
- Diz-me – sentando atrás do volante.
- Consegues tirar dois presos da cadeia?
- Dá-me os nomes e mais tardar para a próxima
semana estão cá fora, e antes que me esqueça,
toma! Vais precisar de um – atirando um velho
telemóvel de teclas para o colo de Hugo.
E assim saíram do Miradouro em direção á casa de
Rodrigo, muito mais descontraído, Hugo já se
encostava por completo no banco, a aparência já
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não lhe fazia confusão, parecia que o ar que
circulava no carro estava mais leve, depois de
andarem meia dúzia de metros, uma pergunta
surgiu na mente dele, “mas afinal onde mora agora
Rodrigo?”, há dezasseis anos atrás vivia num
pequeno apartamento junto às faculdades, não
havia grande informação sobre como era a casa,
Rodrigo nunca fora propriamente um bom
anfitrião, detestava que o visitassem lá, Felipe
tinha ido lá duas vezes se fosse tanto, por que
razão agora seria diferente? Olhando pela janela e
vendo todas as casas a movimentarem-se a alta
velocidade ficando para trás, tal como acontecia
com as árvores e com as poucas pessoas que
circulavam pelas ruas, quebrando o silêncio que se
fazia sentir entre ambos, perguntou:
- O Rodrigo ainda vive no mesmo sítio?
- Não, ele mudou de casa passado pouco tempo
de irmos para prisão, deixou o pequeno e apertado
apartamento que tinha lá na velha cidade e passou
para a casa do velho comandante, mesmo depois
de morto ele deixou-lhe quase tudo o que tinha, o
Rodrigo teve imenso trabalho, teve de reconstruir
toda a infraestrutura e adapta-la as dificuldades
visuais, mas pelo que eu ouvi as coisas ainda
pioraram, os problemas de saúde só aumentaram,
por isso não te admires se quando olhares para ele,
mas agora vamos, que eu deixo-te lá e vou reunir-
me com alguns militantes, somos poucos, mas
temos de começar a juntar forças.
O resto do caminho foi feito em silencio, também a
distancia não era muita, passados uns míseros dez
minutos já estavam á frente da majestosa casa, com
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uma apresentação completamente nova, a ultima
imagem que Hugo tinha, era de uma casa em
chamas, com um velho lá dentro a gritar, e agora
estava perante uma mansão ainda maior do que
aquela que outrora conhecera, com enormes
portões de ferro com duas marcas estranhas
incrustadas neles, pareciam dois brasões mas
definitivamente era da policia, irreconhecíveis ao
olhar ignorante dos dois homens, quando o carro
parou Tiago fez sinal para que Hugo saísse do
carro e com um piscar de olho voltou a arrancar,
deixando-o ali sozinho perante mais um dos
fantasmas do passado, respirou fundo antes de
tocar á campainha como se preparasse para saltar
para uma piscina de água gelada, mas quando se
recompôs lá tocou á campainha.
Num pequeno apartamento na rua Visconde da
Luz, com dimensões bastante reduzidas, tendo
apenas um pequeno quarto e uma sala-cozinha,
completamente desarrumado, com roupa espalhada
pelo chão, com loiça por lavar na pia, já com
pedaços de comer ressequidos do tempo que já
tinham passado em contacto com o oxigénio da
casa, a televisão acesa num canal de noticias
internacionais com um gato preto preguiçoso
deitado sobre as mantas do sofá, miando e
recostando-se como se fosse dono do mesmo, em
cima da mesa, por cima das teclas do mais recente
computador do mercado, duas mãos raquíticas
percorriam freneticamente, procurando escrever o
mais brilhante dos textos a favor do cyber-trabalho
e cyber-ensino, colocando todos os argumentos
mentalmente plausíveis e outros nem tanto, mas
todos eles com o mesmo objetivo, mostrar que
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trabalhar com as nádegas coladas a uma cadeira é
melhor do que trabalhar em pé ou á frente de uma
plateia que sinta e questione o que é dito, de vez
em quando lá uma das mãos abandonava á área de
combate entre os dedos e as teclas para pegar numa
chávena de café, usada uma e outra vez, mas
rapidamente a voltava a colocar em cima da mesa,
os olhos azuis cristalinos, já tão cansados que
pequenas lágrimas saiam de forma involuntária,
colocados atrás de uns óculos com armação
extremamente fina, passando muitas vezes
despercebidos pelas mentes mais desatentas, mas
apesar desta sua camuflagem, possuíam uma das
graduações mais pesadas, de tal forma que se
alguém que não o seu portador os colocasse
sentiria de imediato uma dor de cabeça profunda.
Mas algo fez com que o barulho irritante do
teclado mecânico parasse, um som ainda mais
irritante, uma música eletrónica extremamente alta,
levando a mão ao telemóvel atendeu, com uma voz
cansada e seca:
- Tem a certeza?
- Sim, saiu á poucas horas!
- Isso é ótimo! Obrigado!
Desligando a chamada de forma abrupta, fechou o
computador, sem sequer guardar o ficheiro, um
erro cometido varias vezes por amadores, mas
dificilmente cometido por um mestre das últimas
tecnologias, correndo calçou umas sapatilhas
castanhas de couro, vestiu o seu casaco de cabedal
também ele castanho, sacudindo as manchas de pó
que estavam em toda a sua extensão, com
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movimentos rápidos arranjou como pode o cabelo,
dando-lhe uma aparência menos desleixada e saiu
aceleradamente em direção á porta de saída!
A alguns metros, não, quilómetros dali, numa casa
de telhado vermelho, vestida ainda de pijama, com
um longo robe cor-de-rosa que dava até aos pés,
Francisca abria a porta para ir buscar o correio,
com um sorriso afável cumprimentava o ainda
jovem carteiro que acabava de deixar as cartas, o
seu sorriso brilhante encantava todos os que o
viam, embora tivesse ganho algumas marcas da
idade, pouca gente lhe daria a idade que tinha, no
leque das cartas que recebera, estavam as típicas
cartas cliché, a água, a luz e o gás, juntamente com
os típicos anúncios dos supermercados que só
servem para acender as lareiras no inverno, mas
havia uma que se diferenciava, com o papel na
tonalidade do papiro e com uma selo com um
enorme leão dourado com uma cicatriz no olho
direito, ao ver esta simbologia respirou fundo,
retorceu o olhar e voltou a entrar para dentro de
casa, dirigiu-se á maquina do café e tirou um café
curto mas forte e de seguida sentou-se na enorme
mesa da sala de estar, abrindo a carta com as
enormes unhas de gel, também elas cor-de-rosa,
uns passos começaram-se a fazer ouvir no andar de
cima, vestida também com um robe, mas este
muito mais extravagante, de uma cor sangue, com
umas pequenas pantufas com uma carinha de
coelho e ainda com uma enorme cara de sono, Inês
começava a descer a enorme escadaria que tinha
aguentado o poder do tempo, dando um beijo da
testa da sua amada, sentou-se ao seu lado:
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- Tu não consegues ficar na cama até tarde, pois
não?
- Sabes bem que ainda tenho os hábitos de
quando era criada, não consigo ficar muito tempo
na cama, e para além disso preciso de ir a empresa,
olha o que chegou – mostrando a carta que tinha
acabado de abrir.
- O que é isto? - Começando a percorrer as
muitas linhas que compunham a extensa carta.
- Mais uma ameaça do Diogo, desta vez ameaça
mesmo partir para o tribunal – suspirando
profundamente.
- Mas será que ele não desiste?
- Ele nunca vai desistir da riqueza do vosso tio,
não é uma questão de necessidade, mas sim de
orgulho, ele está a tentar vencer-nos pelo cansaço,
é a sétima carta nos últimos dois meses.
- Mas se ele pensa que nos vai vencer está muito
enganado, se ele é Los Santos, nós também o
somos, não vamos desistir – encostando a cabeça
na de Francisca.
- Mãe! Mãe! – Uma voz doce ecoou pela casa
vinda do escritório.
- Sim! – Responderam em coro, começando a
sorrir no fim.
- Temos de definir melhor isto dos papéis –
disse com tom irónico Inês.
Indo em direção dos risos, entrou na sala uma
jovem, na flor da idade, acabada de fazer os
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dezassete anos, uma beleza incomparável, olhos
verdes esmeralda, um sorriso docemente alinhado
e brilhante, umas pequenas covinhas nas
bochechas que lhe atribuíam um ar ainda mais
angelical, longos cabelos castanhos até ao meio das
costas, belamente esticados, vestida ainda com o
pijama, bem com uma espécie, um top preto que
não chegava a tapar o umbigo e uns calções
extremamente curtos, atirando-se para os braços
das suas duas “mães”, perguntou com uma
meiguice contagiante:
- Posso ir dar uma volta a beira-rio? Por favor? –
Começando a fazer beicinho e tocando com os
dedos indicadores um no outro.
- Marta, tu já não tens idade para fazer essas
carinhas de anjo, já tens tudo pronto para o início
das aulas ou falta alguma coisa, não te esqueças é
um ano especial, vais para a escola em que quase
toda a nossa família andou. – A escola onde Inês
tinha estudado á dezasseis anos, tinha sofrido um
duro golpe financeiro e tinha fechado, mas agora
pela obra de um investidor anonimo tinha
recuperado funções, tinha levado uma lavagem,
tinha toda uma nova estrutura e agora era a escola
com maior oferta da cidade, o esqueleto era o
mesmo, mas a carne que o revestia era
completamente novo.
- Sim mãe, tenho tudo pronto, vá-la deixem-me
ir.
- O que dizes Inês?
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- Acho que não há mal nenhum, mas com uma
condição, tens de colocar uma roupa em condições
– percorrendo as curvas corporais da filha.
- Tá bem eu faço – soltando um pequeno sorriso
– mas então posso ir?
- Sim, vai-te lá vestir que eu deixo-te na ponte,
tenho de ir trabalhar e aproveito, a falar nisso
também não vou de robe – soltando um pequeno
sorriso.
- Pronto lá se vão as duas e deixam-me aqui
sozinha, mas já estou habituada – fazendo uma
cara triste rapidamente substituída por um sorriso
carinhoso.
Os sorrisos encheram a casa, que agora tinha mais
vida do que nunca.
Á frente do enorme portão de ferro Hugo esperava
uma resposta ao seu toque na audível e irritante
campainha que fazia tocar uma música clássica,
que era difícil de reconhecer, ao fim de alguns
minutos lá apareceu um empregado que lhe abriu o
portão:
- Eu queria falar com…
- Com o senhor Rodrigo, obviamente, não viria
cá se não fosse para isso, faça o favor de me seguir
– interrompeu de forma rígida sem dar tempo de
reação.
Aquelas palavras foram como um murro no
estomago, segundo a regra os empregados tendem
a ser amáveis com as visitas mas aquele não
demonstrava qualquer sentimento de hospitalidade,
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era pouco mais baixo do que Hugo, com um cabelo
estandardizado, igual a todos os outros, mais longo
na parte de cima da cabeça, e completamente
rapado na lateral, muito mal vestido, ignorando
completamente as normas éticas, trazia a camisa
por fora das calças, o colete desabotoado e os
sapatos todos sujos de terra, apesar do seu aspeto
pouco convincente, Hugo não teve outra opção do
que segui-lo, quanto mais entrava para dentro da
propriedade mais fascinado ficava, tinha uma
pequena ideia de quão magnifica era a casa á mais
de uma década, mas depois da recuperação levada
a cabo por Rodrigo, tinha ficado dez vezes mais
extraordinária, no pequeno percurso até a entrada
principal da casa, podiam-se ver várias estátuas
espalhadas em redor do pequeno caminho de
mosaico, imitando o mosaico romano, as estatuas
num estilo neoclássico, magnificamente
construídas mostrando cada traço humano com
uma clarividência estonteante, em redor deles um
jardim preenchido com toda a quantidade de
arvores de fruto bem como de todas as flores, de
todos os cheiros e cores possíveis, desde da mais
comum rosa-vermelha, á mais rara rosa negra
turca, o jardim era de tal forma extenso que o olhar
mortal apenas poderia deslumbrar um terço dele
sem se desviar do caminho principal, ocupando
mais de dois terços do terreno, era facilmente um
labirinto, tinha escondidas no seu interior várias
fontes de água potável, construídas por mestres
artesãos, algumas com figuras divinas, outras
apenas com figuras mais realistas, por dentro dele
corriam animais selvagens de pequeno porte,
pequenos coelhos castanhos, e os destemíeis
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esquilos que saltavam de arvore em arvore, sem
terem medo dos inúmeros jardineiros que
percorriam todos aqueles becos que tão bem
conheciam, era um paraíso para os amantes da
natureza, e colocado mesmo no meio de uma das
zonas onde a natureza tinha sido completamente
esquecida, paradoxal mas ao mesmo tempo
perfeito.
Quando chegou á porta principal, uma porta
extremamente normal, comparada com o resto da
casa, recebeu uma ordem impetuosa para se
descalçar, sem poder discutir muito assim fez, se o
exterior da casa era magnifico, o interior em nada
lhe ficava atrás, a primeira repartição da casa que
visitou foi a glamorosa sala de estar, talvez uma
das maiores repartições dentro das quatro paredes,
no teto tinha um enorme candelabro com quase
duas dezenas de lâmpadas, com tons a tocar o
dourado, com uma estrutura parecida aos inúmeros
candeeiros que compõem os tetos da mansão do rei
Sol, em Versalhes, por debaixo dele uma enorme
mesa de madeira de carvalho pura, muito bem
cortada mantendo todas as linhas naturais da
madeira, envernizada para que quando o sol lhe
tocasse, esta brilhasse, dois enormes sofás de
cabedal negro em forma de L, ocupavam o espaço
á frente do enorme LCD que ocupava toda a
parede frontal para a porta, apenas deixando
espaço para duas colunas que tinham a extensão de
toda a parede desde do chão até ao teto, as paredes
que restavam eram ocupadas por uma coleção de
livros impossíveis de contar, muitos deles em
muito mau estado, parecendo que tinham sido
resgatados de um incendio.
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O olhar de Hugo pasmou perante aquela visão
paradisíaca, de boca aberta percorria uma e outra
vez o espaço que tinha á sua frente, tinha vagas
memórias do que tinha visto anos atrás, mas aquele
espaço superava em anos-luz todas as memórias
que poderia ter, mas uma vez mais o seu momento
de transe foi bruscamente interrompido:
- Realmente o meu patrão gosta de causar essa
reação nos convidados, mas vamos seguir em
frente, não tenho o dia todo e tenho a certeza que
você também não – seguindo em frente em direção
a uma enorme escadaria.
A escadaria em nada ficava atrás do resto da casa,
enorme em extensão, contava com quase quatro
dezenas de degraus, matematicamente divididos
em duas estruturas diferentes, metade deles
enormes ripas de madeiras acompanhadas por um
corrimão com uma tonalidade a fugir para o
vermelho tinto, esta primeira fase levava para um
pequeno patamar onde a escadaria se dividiria, a
uma parte para a ala este da casa, onde ficavam os
quartos, as casas de banho e o escritório, os
quartos, três para ser mais exato eram divisões
enormes, com camas de casal construídas á imenso
tempo, guarda-roupas com capacidade para
aguentar até a mais esbanjadora das mulheres, com
o chão sempre composto por uma madeira que
brilhava ao sol. As casas de banho ainda com
mosaicos, colocados á boa maneira antiga, de
forma manual e individualizada, sempre colocadas
entre os tons esbranquiçados e cinzentos, e depois
o enorme escritório, talvez a secção mais
modernizada da casa, com dois enormes
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computadores da última geração, três impressoras,
um scanner e todos os aparelhos tecnológicos
necessários neste seculo iluminado. A outra
metade das escadas levava á maior divisão da casa,
á enorme biblioteca, o espaço onde Rodrigo
passava quase todos os seus dias, mergulhado nas
memórias do que poderia ter sido, mas preso ao
que era.
Depois de subir a majestosa escadaria, Hugo
encontrava-se de frente para a porta que dava para
a biblioteca, sentido os seus gémeos a queixarem-
se da enorme quantidade de escadas que ele os
tinha obrigado a subir, embora fizesse muito
desporto no irónico, tempo livre que tinha na
cadeira, passar das máquinas construídas para
aumentar a capacidade muscular para uma
realidade onde a carne humana tem que aguentar é
ligeiramente diferente.
Estagnou, olhou e respirou, o primeiro teste estava
prestes a começar.
Quando entrou, deparou-se com uma realidade
bastante mais cruel do que estava á espera, bem
que o Tiago o tinha avisado.
Sentado numa cadeira de rodas, virado para a
enorme parede de vidro construída virada para o
jardim que ocupava também o lado esquerdo da
casa, com o cabelo longo, mas já cinzento, com
óculos escuros que tapavam as principais entradas
da alma, com um cobertor vermelho a tapar-lhe os
joelhos, mas sem tocar nos tornozelos para não
condicionar as rodas, o outrora poderoso chefe da
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polícia de Coimbra, estava ali, sozinho, indefeso e
vencido pelo tempo.
No gira-discos tocava uma peça famosa de
Beethoven, parecia fazer o passado, uma realidade
ainda mais presente.
Vagarosamente foi-se aproximando do homem,
procurando ficar o mais próximo possível, quando
estava agachado mesmo á frente de Rodrigo, as
palavras ainda pareciam mais difíceis de proferir,
mas foi então que o agora “velho” homem quebrou
o silêncio:
- Sabes que não precisas de quase te sentar ao
meu colo para falar comigo, certo? Fiquei cego,
não surdo.
Aquilo fez com que Hugo desse alguns passos para
trás, quase caindo redondo no chão.
- Eu sabia que ias acabar por me procurar, mas
nunca pensei que fosse logo no dia em que saísses
em liberdade, pensei que quisesses aproveitar um
pouco mais antes de mergulhares outra vez no
passado, mas agora que aqui estás chega-te a mim,
para eu te ver – erguendo as mãos em direção ao
vazio, era a única forma de “ver” as pessoas agora.
Mas Hugo sentiu o seu o seu corpo a paralisar, o
suor começou a deslizar face abaixo, a pele a ficar
branca como o cale da parede, e num movimento
de puro desespero sentou-se no chão, ao ouvir o
barulho da queda, as mãos do “velho” senhor
começaram a retrair-se em direção á manta.
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Uma vez mais, tinha sido rejeitado pelo ambiente
que o rodeava, por mais que desejasse conter as
suas feições de desgosto, a vida desde da noite em
que o Felipe morrera, em nada tinha sido fácil, a
lesão ocular era muito mais grave do que ao inicio
parecera, para além de retirar permanentemente a
visão, os danos tinham -se alargado a outras partes
do corpo, a demora na administração de
tratamentos tinha criado várias outras lesões quer
na região cefálica, bem como nos membros
superiores, as feridas causadas por se andar a
arrastar pelo chão também tinham deixado algumas
cicatrizes, apesar de ter conseguido uma posição de
algum relevo dentro da policia, tinha sido
condecorado graças á sua bravura e pelo facto de
ter injustamente retirado do cargo que ocupava
com tanta capacidade, mas nada, nem ninguém
podia preencher o vazio que ele trazia no peito,
naquela noite tinha perdido duas das coisas mais
importantes na sua vida, o seu priminho, o seu
menino de quem tanto gostava, a pessoa que se
sentia na obrigação de proteger, mas de quem nem
sequer tinha sido capaz de ver a própria alma, e por
outro lado tinha perdido totalmente a capacidade
de fazer aquilo que mais gostava, impor e lutar
pelo bem, tinha perdido duas partes de si, pouco
restava do que outrora o jovem Rodrigo era, aquele
jovem de óculos de sol, poderoso, mulherengo,
cabelo sempre muito bem arranjado, preocupado
com o corpo e com a opinião dos outros, tinha
dado lugar a um velho sem motivo para continuar
neste mundo, mas por teimosia ou destino, vá-se lá
saber, continuava, cada dia mais destruído, mas
continuava. O golpe final na sua saúde tinha sido
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dado durante a grave pandemia que tinha assolado
o mundo nos anos seguintes á prisão de Hugo, um
monstruoso vírus que tinha como principal alvo o
sistema respiratório da população, começava com
pequenos ataques de tosse, culminando numa
terrível falta de ar, parecendo que todas as fontes
de ar tinham sido cortadas, milhares, quase
milhões sucumbiram perante a doença, crianças,
idosos, magros, gordos, de todas as cores e feitios,
e quando parecia que o ultimo ingrediente da caixa
de Pandora tinha sido solto, tudo voltava a estaca
zero, inúmeras vacinas apareciam para trazer a
“normalidade”, mas com elas só traziam mais
problemas, muitas apenas permitiram ao vírus
evoluir, trazer consigo novas estirpes e como
consequência mais mortes, mas o que importava é
que alguma empresa tinha enchido os bolsos á
conta das vidas de inocentes, que davam tudo
apenas para poder respirar por mais um dia, por
muito difícil que fosse, bairros inteiros no Chile
desapareceram, milhares de famílias americanas
foram erradicadas do mapa, toda a gente sofreu
com esta doença que não escolhia idades,
simplesmente matava. Infelizmente, ou felizmente,
Rodrigo também foi apanhado nesta tempestade, se
o seu estado já era complicado, então ficou trinta
vezes pior, sozinho numa cama de hospital, com
uma enorme bola de plástico de volta da sua
cabeça para permitir que respirasse, com uma
mascara vinte e quatro sobre vinte e quatro, preso á
vida por um fio, por muitas vezes os médicos o
davam como perdido, mas todas essas vezes ele
mostrou que tinha força para lutar contra as
probabilidades, ao todo foram dois anos de intensa
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luta, contra este vírus que parecia ter inteligência e
vontade própria para evoluir e adaptar perante as
vacinas, quando finalmente surgiu a vacina que
resolveu toda esta trapalhada, tudo conseguiu
voltar ao normal, bem quase tudo, as sequelas no
corpo de Rodrigo eram incorrigiveis, por algum
motivo que os médicos não conseguiam explicar as
suas pernas tinham-se tornado apenas acessórios
estéticos, de nada serviam, ficou preso a uma
cadeira de rodas, cego e a depender a cem por
cento de ajuda exterior, todo mundo em redor
olhava para ele com pena, as doações anonimas
que recebera tinham-lhe chegado para reconstruir
aquela casa e comprar quase todos os livros do
planeta, muitos em inglês, outros tantos em
francês, até tinha uma prateleira dedicada só a
livros em mandarim, mas era um pouco inútil ter
tantos livros, não os conseguia ler, mas por algum
motivo sentia que ainda iam ser uteis.
Naquele momento em que Hugo tinha caído, toda
esta conjunção de pensamentos passou na mente de
Rodrigo, mesmo que quisesse não podia chorar, até
esse ato simplista lhe tinha sido retirado, nesse
sentido até os bebés tinham mais sorte do que ele.
Quando as suas fracas mãos estavam quase a tocar
a manta, sentiu um movimento brusco á sua frente,
todos os seus sentidos tinham melhorado muito
desde que perdeu a visão, talvez o poder sensitivo
tenha sido o que melhorou mais, conseguia
facilmente notar tudo o que se passava á sua volta,
e no momento seguinte sentiu as quentes mãos de
Hugo a pousar-se sobre as dele, levando-as até a
sua face, quando começou a percorrer a
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envelhecida face, procurou de imediato a marca de
Hugo quando era mais jovem, mas com muito
desgosto não encontrou o seu longo encaracolado
cabelo, sem tentar perceber o resto da face afastou
de imediato as mãos e suspirou profundamente:
- Peço desculpa, mas penso que me enganei,
você não é quem eu pensava que fosse, tenho que
lhe pedir que se retire, não aceito estranhos dentro
do meu lar – começando a afastar-se lentamente,
rodando a cadeira em direção aos quartos.
- O tempo passou por todos nós velho amigo, eu
mudei sim, talvez até mais por dentro do que por
fora, mas o meu nome não mudou, sem grande
receio digo que o tempo foi mais ingrato para ti do
que para mim, mas sinceramente os últimos
dezasseis anos também não foram propriamente
fáceis, a prisão pode ser um sítio bastante negro
para quem tem esqueletos no armário.
A voz fez-se ecoar no silêncio da enorme
biblioteca, um estranho sorriso apareceu na face de
Rodrigo, e agora suspirava de satisfação e alegria,
como se desfizesse a sua última ação virou-se para
o homem que agora imaginava e com um tom de
voz mais audível disse:
- Da próxima vez que visitares um homem cego,
avisa pelo menos o que decidiste fazer ao cabelo –
abanando negativamente a cabeça – mas diz-me
meu amigo, o que procuras aqui? O que procuras
na casa de um velho cego e incapacitado?
- Luzes sobre um passado que nunca consegui
compreender – encostando-se numa mesa redonda
que se encontrava a sua direita.
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- De facto viver o presente sem compreender o
passado, pode de certa forma tornar-se perturbador,
aprendi isso com o Felipe, naquelas aulas grátis
que ele gostava tanto de dar, mas temo que não
possa ser grande ajuda, tens imensos livros sobre a
“Alcateia”, sobre o “Alfa”, que de certeza te
poderão ajudar mais do que eu – apontando para
uma prateleira cheia de livros e revistas, com o
nome e a cara de Felipe estampados em todas elas,
muitos títulos faziam de Felipe um herói, outros
um enorme vilão, comparando-o a Hitler, a Luís
XIV e por ai fora, todos eles escritos por apoiantes
fervorosos ou simplesmente inimigos de tudo o
que ele construiu.
- Talvez estes livros me ajudassem a entender
quem era o Alfa, ou o que foi no seu tempo a
primeira alcateia, mas o que eu procuro é entender
quem foi o Felipe – largando alguns livros que
tinha agarrado.
- Estranho que não saibas quem foi o teu melhor
amigo Hugo, acho que o que tu procuras é entender
quem foi o Felipe que deu lugar ao Alfa, para
decidires que tipo de Alfa deves ser – aquelas
palavras caíram redondas no chão ficando sem
resposta alguma, para alem da ofegante respiração
de Hugo que parecia ter perdido o controlo da
mesma – mas conversemos sobre isto lá fora, gosto
sempre de sentir o calor do sol na minha pele –
saindo em direção á enorme porta-janela que
conduzia ao jardim no terraço, a sua cadeira ao
contrario de muitas outras não necessitava de
contacto direto nas rodas, bastava comandar um
manipulo num dos assentos de braço para levar a
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cadeira na direção que desejasse, trazia sensores de
choque para o caso da cadeira se aproximar de
algum objeto colocado recentemente no caminho,
Rodrigo tinha conseguido memorizar todos os
cantos da casa, sabia onde cada móvel terminava,
onde cada livro estava colocado e até sabia onde o
seu empregado deixava a pequena garrafa de
whiskey irlandês que com tanto esforço tentava
esconder.
Rapidamente sentiu a sua pele ser abraçada pela
luz do quente sol de Agosto, os pequenos pássaros
cantavam uma doce melodia, uma suave brisa
ondulava as pequenas flores que estavam
colocadas nos canteiros, e as folhas de uma velha
cerejeira colocada exatamente ao centro do terraço,
no seu ramo mais longo tinha um baloiço virado
intencionalmente para a cidade, a vista era
simplesmente surreal, parecida com a do
miradouro, mas muito mais aconchegadora,
colocando de fora obviamente o barulho feito pelas
dezenas de carros que passavam a porta da casa,
das buzinas dos impacientes e dos acidentes
causados pelos bêbados, mas como se costuma
dizer toda a luz tem a sua escuridão e a beleza das
paisagens não pode ser diferente. Passando sem
grande dificuldade pelas torres de pedras colocadas
ao longo do terraço de forma a torna-lo mais belo,
Rodrigo colocou-se ao lado da velha cerejeira,
ainda pintada com o branco e cor-de-rosa das suas
flores, mostrava também aos poucos as pequenas
cerejas que ainda persistiam, era uma imagem
linda, como se fosse retirada de um quadro de um
pintor qualquer naturalista que tentava passar
sentimentos a partir da natureza, Hugo seguiu e
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ficou em pé ao lado dele a olhar para a linda
arvore, sem saber porquê um estranho sorriso
apareceu-lhe na face.
- Sakura.
- O quê?
- É o nome da árvore que se encontra ao nosso
lado, os japoneses conseguiram encontrar uma
palavra tão simples, mas tão bela, acho que
combina mais do que “cerejeira”.
- Sei bem que a tua masculinidade não deixará,
mas senta-te no baloiço, para ficarmos ao mesmo
nível, e também por mais que as tuas pernas sejam
vigorosas irão começar a doer.
Com o olhar colocado nas flores da cerejeira,
sentou-se e num gesto irracional começou a
balançar o corpo para a frente e para trás, aquele
movimento transportava-o de volta para a sua
infância e para o baloiço enferrujado que Felipe
tinha no seu quintal, passavam bons momentos lá,
muitas quedas deram a tentar sair do baloiço em
movimento, muito asfalto ficou marcado nos
joelhos, muitos desafios de ver quem elevava as
pernas mais alto fizeram, Hugo ganhava sempre
era mais velho e por ventura mais alto, pouco
tempo isso durou, na sua adolescência o seu amigo
tinha-o ultrapassado em largos centímetros, o
silencio entre os dois perdurava, enquanto subia e
descia também as lágrimas salgadas das
recordações o faziam por toda a sua face, até ao
momento que o seu movimento foi brutalmente
interrompido pela mão de Rodrigo:
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- Penso que não vieste até aqui para andar de
baloiço…
- Peço desculpa, simplesmente deixei-me
controlar pelas memórias do passado…
- Isso acontece muitas vezes, o passado controla-
nos, pode ser perigoso se a nossa história não for
repleta de canções alegres e pássaros a voar mas
sim se for abarrotada de muros de espinhos e
caminhos lamacentos, temos de ser nós a controlar
o nosso passado e não deixar que ele nos defina –
começando a tremer nervosamente da mão que
segurava o manipulo – não precisas de tentar
formular qualquer pergunta, bem sei quais são as
questões que te atormentam, são as mesmas que
não me deixavam dormir, noite apos noite nos anos
que se seguiram á morte do Felipe, quem é que
afinal de contas ele era? Era um herói, um salvador
ou simplesmente um monstro capaz de matar
inocentes… seria ele o que os cristãos chamam de
messias, ou simplesmente um demónio saído dos
infernos, embora muita gente tenha achado
resposta a esta questão, colocando-lhe um simples
rotulo, eu nunca consegui, e comecei a procurar os
seus motivos, os seus ideais, teria ele lido a bíblia e
seguido as suas normas a risca, duvido, teria
seguido o caminho das sete virtudes, o caminho do
Bushido, Gi;Rei;Yu;Meiyo;Jin;Makoto;Chu,
Integridade, Respeito, Coragem, Honra,
Compaixão, Honestidade e Lealdade, mas uma vez
mais cheguei a um beco sem saída, porque apesar
de demonstrar algumas delas, falhava
miseravelmente noutras, por isso li, arranjei e
adaptei livros a minha condição, fui a palestras,
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falei com psicólogos e cheguei a uma conclusão
que partilhei com o mais famoso admirador do
Felipe, diz-me Hugo, o que mais desejas na vida?
- Talvez felicidade, não sei é uma pergunta
difícil, o Felipe fez-me uma pergunta parecida
quando visitamos a nossa terra natal, perguntou-me
o que era mais importante para mim na vida… a
minha resposta na altura foi diferente…
- Diferentes palavras para o mesmo objetivo,
mas deixa-me adivinhar ele não te disse o que era
mais importante para ele, ou simplesmente deu
uma resposta vaga, estou certo?
- Sim…
- Na minha pesquisa deparei-me com a reposta
mais abrangente para esta questão, todo o Homem,
procura duas coisas, amor e imortalidade – sentido
o corpo de Hugo a recuar – não uma imortalidade
literal, mas uma imortalidade de nome, mas
normalmente as duas não são compatíveis,
vejamos grandes histórias de amor que conheças
que terminem bem? Páris e Helena de Troia, a
guerra começa por causa deles, mas o mais
conhecido herói dessa guerra é Aquiles que só a
lutou pela imortalidade, pela gloria eterna, são
raros os casos onde o amor, ou os seus atos de
tornam imortais, Felipe percebeu isso, ele deve ter
olhado para Alexandre, o Grande, para Hitler, para
Platão ou para Augusto e viu que em nenhum deles
havia amor, e quando havia eles quase morriam,
ele tentou amar mas foi-lhe retirado esse direito,
então por vingança ou simplesmente por estratégia
perseguiu a imortalidade, para este tipo de homens
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não interessa como se a alcança, só interessa que se
tenha o seu nome escrito na história, por isso todas
as tuas questões sobre quem era Felipe, o que ele
desejava, o porquê de ele ter feito tudo isto, tem as
suas respostas nisto, ele era um homem que
sonhava ser reconhecido e lembrado, não por uma
ou duas gerações mas para toda a eternidade, e
meio que conseguiu, espero que tenha sido
suficientemente esclarecedor…
- Acho que tudo isso faz muito sentido, mas
onde é que nessa teoria toda entram os amores que
ele teve já quando era o Alfa, parece-me
improvável que o Felipe tenha desistido de amar…
- Como te disse, todas essas questões também
me passaram pela cabeça, mas diz-me, ele
realmente se entregou ao amor? Com Teresa teve
pouco tempo e desistiu dela de forma facílima,
como se nunca lhe tivesse interessado realmente
estar com ela, com Bea, aconteceu a mesma coisa,
o odio e o medo de ser apanhado afastaram-na dele
e acabaram por conduzi-la mesmo a sua morte, e
por fim Ariana, ela amou-o com todas as suas
forças, mas para ele, ela nunca passou de um
divertimento físico, o único grande amor de Felipe,
morreu há muitos anos, naquela noite na casa do
lago, desde aí, outros sentimentos tomaram conta
do coração dele, e conduziram-no ao seu fim, ele
tentou amar, mas o amor só o afastava do que ele
realmente queria…viver eternamente na mente de
todos…
- Custa-me acreditar nisso… isso faria de nós,
amigos dele…simples…
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- Objetos! Sim, exatamente, mas á forma dele
ele conseguiu gostar de cada um de vocês, e
deixar-vos vivos é a maior mostra de amor que
podem pedir!
- Não! – Elevando a voz e saltando fora do
baloiço, com o olhar perdido na cidade, as veias
dos seus braços começaram a ganhar relevo e
quase saltaram fora dos braços – O Felipe que eu
conheci era gentil, isto não pode ter sido apenas
um jogo para ele, não pode ser, ele tinha razões
mais do que suficientes para fazer tudo o que fez,
tinha razões para matar o Los Santos…ele
tinha…tinha… razões – baixando a cabeça e
percorrendo a ultima noite de Felipe na sua cabeça,
o ultimo sorriso antes do suicídio, aquele sorriso
não podia ser de um lunático perdido no desejo de
imortalidade.
- Então, tens alguma justificação melhor? -
Respondeu com um tom de voz gélido Rodrigo.
-Não…simplesmente sinto que isso não é tão
linear, os seres humanos são seres complexos, não
somos simplesmente bons ou maus, e muito menos
o Felipe, temos motivações para agir
quotidianamente, o Felipe deve ter tido as suas, e
eu vou descobrir quais foram!
Neste exato momento aparece junto deles o
empregado que recebera Hugo, com uma estranha
de desdém, tal e qual como aquela que tinha
demonstrado ao primeiro convidado, fazendo uma
pequena vénia, disse com um tom hirte:
- O senhor Pasolini chegou. Devo-o mandar
subir?
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- Sim, faz-me esse favor – virando-se para Hugo
– vais conhecer uma pessoa que dedicou toda a sua
vida ao estudo das ações do Alfa.
Um calafrio tomou conta de todo o corpo de Hugo
seria aquele homem um lunático ou simplesmente
um estudioso, bem estava prestes a descobrir.
Ao longo da grande escadaria, o jovem jornalista e
escritor ainda vinha a luta com o seu cabelo para
que parecesse minimamente apresentável, afinal de
contas ia conhecer uma das personagens principais
das suas pesquisas e dos seus livros romantizados,
sonhara com aquele dia durante anos, toda a sua
vida académica tinha sido acompanhada pelo
estudo do “maior feito sociopolítico do século”,
como ele descrevera, graças a sua genialidade tinha
conseguido ter acesso a imensos documentos
confidenciais sobre a alcateia e sobre o Alfa, tinha
inclusive na sua desarrumada casa, uma copia feita
posteriormente do livro sagrado, guardava-o
emocionalmente numa arca, para quando chegasse
a altura da Alcateia renascer, aquele livro estivesse
em perfeitas condições.
Quando alcançou o patamar onde estavam Rodrigo
e Hugo, o seu olhar ganhou um brilho enorme,
igual aquele brilho quando uma criança ganha o
presente que queria no Natal, engolindo em seco
avançou com as mãos enfiadas nos bolsos,
esticando o peito em sinal de confiança, enquanto
por dentro parecia uma maria madalena a chorar de
felicidade, quando estava frente a frente com
Hugo, estendeu a mão extremamente fina e a
tremer como varas verdes, aquele nervosismo fez
com que Hugo franze-se uma das sobrancelhas,
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engolindo uma ultima vez a saliva que não tinha
disse com a sua voz extremamente roca:
- O meu nome é Romeu Pasolini, sou um
enorme fã!
- Fã? Meu?
- Sim, seu e do Alfa!
Aquelas palavras despertaram uma cólera interna
em Hugo, ele deveria ter dito “fã do Felipe”, e não
do “Alfa”, mas as coisas só iriam piorar.
- Dediquei a minha vida a estudar as suas ações,
tenho tudo documentado, e tenho a certeza que
estou bastante perto de conhecer perfeitamente a
sua personalidade, podemos dizer que sou quase o
melhor amigo do Alfa, afinal de contas sei tudo
sobre ele! – Soltando uma pequena gargalhada.
Aquilo era a gota de água, num gesto de raiva
impulsiva Hugo, deitou as mãos ao colarinho do
pomposo jornalista que se apresentava a sua frente,
se tal fosse possível, dos seus olhos emanariam
chamas capazes de reduzir a cara fina daquele
homem a cinzas, com um tom de voz tempestuoso
rasgou o silêncio:
- Tu achas-te muito inteligente? Tu não sabes
nada sobre o Felipe, nenhum de vocês sabe –
olhando por momentos para Rodrigo- ele era muito
melhor homem do que qualquer um de nós alguma
vez será, e vocês continuam a tratá-lo como se
fosse um maníaco? Ele pode ter tido algumas ações
menos corretas sim, mas bem no fundo, ele tinha
razões para o fazer. Vocês metem-me nojo, nojo! –
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Puxando o braço direito para trás com o punho
fechado, quando ia para deixar a sua raiva sair
sentiu o pequeno telemóvel a vibrar, respirando
fundo largou o fraco homem que rastejou para
detrás da cadeira de Rodrigo, se tivessem com
atenção viam que tinha perdido o controlo sobre a
bexiga, sem duvida era muito inteligente, mas
coragem não contava no seu dicionário, atendeu o
telemóvel e com uma voz mais calma disse “já
desço, mesmo a tempo”, recompondo a roupa sem
olhar para trás começou a dirigir-se para a saída.
Quando já estava mesmo á entrada da porta a voz
de Rodrigo fez-se ouvir:
- Por muito que te custe, a história mostra os
factos, e nós temos de os aceitar, tal e qual como
eles aconteceram, não podemos mudá-los.
Estagnando, baixando a cabeça e sem olhar para
trás respondeu friamente:
- Se ouvirmos só a versão do capuchinho
vermelho, o lobo mau será sempre o vilão da
história- saindo porta fora.
Saindo de detrás da cadeira ainda com o queixo a
tremer, Romeu colocou-se em pé e em tom de
lamúria disse:
- Bem não foi propriamente uma boa
apresentação…nem me deu tempo para lhe falar do
enigma deixado pelo Alfa…
- Aconselho-te a começar a tratá-lo pelo nome
verdadeiro, senão todos os encontros serão assim,
o Felipe era como um irmão para o Hugo, e a
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imagem dele deve ser preservada na sua presença,
e outra coisa, vai trocar de roupa, cheiras mal –
voltando para dentro da casa também.
Dirigiu-se ao seu quarto onde tinha uma cama
adaptada, colocou-se ao lado da mesinha de
cabeceira, e abriu a ultima gaveta, de onde tirou
uma velha caixa de madeira, com um trabalhado na
sua tampa que formava pequenas flores e os seus
caules, com uma enorme forma oval mesmo no
centro de onde surgiam duas rosas extremamente
bonitas, a caixa estava cheia de pó, com todo o
cuidado limpou o pó que ia sentido na ponta dos
dedos, e abriu a caixa, com as dobradiças já gastas,
fez um pequeno barulho estridente, la dentro uma
velha fotografia de Rodrigo com Felipe, mesmo
sem ver a fotografia um estranho sorriso apareceu
na face dele, junto com a foto estava um velho
anel, com um símbolo estranho nele, um velho
martelo da mitologia nórdica, um sinal de força
supostamente, tinha sido uma prenda de Felipe,
bem mais uma recordação, aquela fotografia tinha
sido tirada sem motivo aparente, estavam
simplesmente os dois a conversar, algumas
semanas antes da noite da praça oito de maio, e
sem razão Felipe tinha pedido para tirar aquela
fotografia, era muito raro ele tirar fotos, então ser
ele a pedi-la ainda a tornava mais especial, no fim
de tirarem a fotografia, Felipe tinha tirado aquele
anel da mão, e disse com um tom de voz
melancólico:
- Se algum dia me acontecer alguma coisa,
guarda este anel, de certa forma estarás mais perto
de mim – começando a sorrir.
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Na altura não deu muita importância aquela
conversa, mas agora percebia perfeitamente o que
ele queria dizer, se conseguisse tinha chorado, mas
a tristeza era bem visível na sua face. Os seus
pensamentos foram interrompidos pela voz do seu
empregado:
- O senhor Romeu já se foi embora, disse que
tinha que ir corrigir qualquer coisa, eu estou lá em
baixo caso necessite de mim…, mas deixe-me
fazer uma pergunta, acha que eles se vão entender?
- Espero bem que sim…, mas algo me diz que
ainda agora começou, ainda faltam muitas luas até
a verdadeira batalha começar, acho que estamos só
no aquecimento…
- Sempre tão concreto você, acho que isso é da
idade, está a ficar senil!
Já fora da casa Hugo acabara de entrar no carro de
Tiago, tinha fechado a porta com extrema força
num pleno gesto de raiva, o carro como já tinha a
sua idade, queixou-se com um pequeno ruido,
respirando fundo Tiago colocou o olhar na estrada
e arrancou a toda a velocidade, deixando uma
nuvem de fumo negro para trás, já quando estavam
a alguns metros de distância da casa é que a música
do carro vou diminuída e a voz de Tiago se fez
ouvir:
- Presumo que não tenhas ouvido o que
querias…
- Tu sabes o que eles têm feito? Têm analisado o
Felipe como um lunático, isso deixa-me doido! –
Dando um murro no tablier do carro.
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- Tenta manter-te calmo, o carro não tem culpa
alguma, mas sim a tentativa deles de tornar o Alfa
o Felipe e vice-versa é errada, mas uma coisa que
tenho a certeza é que a verdade virá ao de cima, o
Felipe ensinou-me que pode tardar, mas que ela
chega sempre, mas agora não penses mais nisso,
vou-te levar a nossa sede improvisada, tens de
estar calmo, afinal de contas todos esperam
ansiosamente pelo seu Alfa – sorrindo.
A sede era no bairro mais rico da cidade, bastante
perto da casa do telhado vermelho, tratava-se de
um velho armazém que tinha sido entregue á
Alcateia, as condições não se equiparavam em
nada á poderosa sede que um dia fora o Terreiro da
erva, mas seria impossível regressar para lá, apesar
de já se terem passado uns bons anos, o espaço
onde ocorrera uma das maiores explosões da
década continuava exposto ao sol, estava tudo em
ruinas apesar da importância turística, tinha sido
considerado um lugar amaldiçoado, todos os que
chegavam ao poder, temiam que um dia a Alcateia
recupera-se o seu total vigor, apesar de haverem
soldados infiltrados, o seu poder tinha diminuído
bastante, afinal de contas uma cobra sem a cabeça
não causa muitos estragos não é verdade?
Quando finalmente chegaram á frente do armazém,
tinham uma pequena comitiva á sua frente, cerca
de duas dezenas de pessoas, entre elas algumas
crianças, atrás delas o velho armazém, uma
estrutura retangular com umas velhas telhas
cinzentas no seu topo, com um enorme portão de
correr como entrada principal e pintado sobre ele
um enorme lobo negro, a tradição tinha sido
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mantida, todos mantinham as tatuagens e os
casacos, sem se dar conta Hugo deixou fugir um
pequeno sorriso, quando estava para sair do carro
foi puxado por Tiago que lhe atirou um velho
casaco preto para as pernas:
- Não podes sair sem vestir isso, a tatuagem já
tens, mas tens de ter algo de diferente de nós, esse
casaco pertenceu-lhe, acho que é justo que o vistas,
afinal de contas és o escolhido, ele ficaria
extremamente orgulhoso…
Colocando o casaco, sentiu-se por momentos mais
perto de Felipe, quando colocou o pé fora do carro,
viu o numero de pessoas aumentar
exponencialmente, de duas dezenas passavam para
perto de uma centena, a puxa-lo em direção ao
armazém, a deitar louvores em direção aos céus, as
crianças a pedir-lhe colo e as mulheres a tentarem-
se colocar lado a lado com ele, naquele momento
qualquer um se sentiria o rei do mundo, quando
finalmente chegou ao interior da sede, viu o
excelente trabalho que tinha sido feito, o espaço
estava habilmente organizado, subdividido em três
zonas de maior relevância, a primeira dedicada
discussão dos assuntos principais da organização,
ocupava grande parte do salão, era composta por
várias cadeiras, divididas também elas por estatuto
hierárquico, no centro, um enorme trono de
madeira negra, com pequenas estruturas de ferro a
aparecerem em toda a sua extensão, fortemente
revestida com cabedal negro e com um acento
rígido também ele de madeira, os apoios para os
braços tinham a forma de dois majestosos lobos
negros, ambos a mostrar toda a sua ferocidade, de
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seguida as outras cadeiras iam perdendo qualidade
e empoderamento consoante o estatuto que
ocupavam, passando por cadeiras de couro
reutilizado até uns simples bancos de madeira,
alguns muito mal tratados pelo tempo. A segunda
zona, prendia-se com a zona do lazer e das
refeições, uma cozinha que trabalhava vinte e
quatro horas por dia, sete dias por semana, sem
nunca parar, não só servia os membros da
organização, mas distribuía comer pelos sem-
abrigo, enquanto eles não aceitavam fazer parte da
mesma, ao seu lado tinha alguns bancos de
madeira cumpridos, onde se jogava as cartas, ao
bingo ou simplesmente ao braço de ferro, as
crianças corriam felizes por aquele espaço, e por
ultimo, a ultima fação do espaço pertencia aos
dormitórios, varias camas tinham sido colocadas
no seu interior, desde esqueletos de ferro, até
simples sacos de cama, colocados sobre o frio
cimento que revestia o chão do pavilhão.
Hugo percebera naquele momento o tamanho da
ação de Felipe, para alem de criar uma organização
que colocava inveja as melhores forças de
segurança, devido a sua organização e capacidade
de ação, tinha criado um lar, um espaço onde as
pessoas que não tinham para onde ir podiam
acorrer e eram acolhidos como uma grande família,
o sorriso das crianças, os abraços dos mais velhos e
as pequenas conversas entre as mulheres faziam-no
lembrar os pequenos bailaricos da sua terra, onde
por momentos todos eram felizes, bem pelo menos
até um bêbedo qualquer estragar a festa, mas
mesmo quando isso acontecia era por poucos
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momentos, porque rapidamente a felicidade
voltava a reinar.
Começou então a sua visita “real”, percorrendo
cada metro quadrado do espaço, sempre com um
sorriso afável olhou nos olhos de todos os que
possuíam a tatuagem amaldiçoada, como tinha sido
vulgarmente denominada, do outro lado recebia
pequenas reverencias, grandes sorrisos e claro
algumas raparigas tapavam a face quando
coravam, nos seus primeiros momentos parecia
apenas mais um membro, ajudou na cozinha por
breves momentos, jogou um jogo de sueca e até
andou a brincar com os miúdos, parte dos
membros ficaram surpreendidos, estavam á espera
de um líder um pouco diferente…um pouco mais
Alfa…
Quando já se tinha passado um bom bocado, Tiago
chegou ao pé de Hugo e disse com tom de voz
baixo para que ninguém ouvisse “está na hora da
assembleia, toma o teu lugar!”, acenando
positivamente com a cabeça dirigiu-se ao
magnífico trono, endireitou as costas e lá esperou
até que todos ocupassem as suas posições.
Pouco tempo depois já estavam todos colocados
nos seus lugares, bem quase todos, uma das
cadeiras mais bem constituídas estava vazia, mas
mesmo assim a reunião começou:
- Meu caro Alfa, a nossa sociedade próspera
desde da morte do seu antecessor, o Todo-
Poderoso, mas nos dias que correm somos
abraçados por dois grandes problemas, e por mais
que tenhamos tentado, só a sua sabedoria os pode
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resolver de vez…- começou um dos Deltas- o
nosso grupo é ameaçado por todos os lados, devido
a ausência de um líder, formaram-se vários grupos
independentistas que proclamam para si o poder
absoluto, desde do norte do país até ao sul, isto
torna-se perigoso para a sua pessoa… e o outro
prende-se obviamente com o enigma deixado pelo
nosso adorado Alfa, há mais de dezasseis anos que
o procuramos e nada encontrámos.
- Talvez eu possa ajudar nisso – disse uma voz
roca vinda do fundo do pavilhão.
Todos os olhos se acenderam ao ver a silhueta do
homem quando ele se colocou entre a assembleia,
uns por admiração, mas o brilho que os olhos de
Hugo emanavam mostravam tudo menos isso.
Enquanto isto se passava no bairro da casa de
telhado vermelho, junto ao Rio, Marta continuava
a sua calma e serena caminhada junto ao rio, com o
olhar colocado na calma corrente que levava tudo o
que estava no rio diretamente da nascente em
direção á foz, muito tinha lido sobre a bela
nascente do rio Mondego, mas nunca tinha tido a
oportunidade de a ver, adorava ver os patos a nadar
e a mergulhar no rio, as crianças em cima das
pranchas a cair e depois da pequena aflição que
qualquer queda traz, rirem-se como nunca, ver os
casais andarem de mãos dados junto ao rio,
naqueles momentos onde são realmente felizes,
bem até um deles fazer algo idiota e despontar a
raiva do outro, diga-se de passagem que os homens
são peritos nisso. Enquanto deambulava com estes
mil pensamentos e com o olhar vidrado na água,
quase, cristalina do rio, tropeçou e caiu em cima de
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um jovem que devia ter mais ou menos a sua
idade, com cabelos curtos encaracolados e olhos de
um castanho mel docemente profundos com um
estranho colar, um fio de prata com um anel
pendurado, uma ave de rabina, uma aguia de prata,
algo pouco usual de se usar num colar digamos, a
reação do rapaz foi soltar um pequeno sorriso de
forma a demonstrar o seu brilhante sorriso, levando
uma mão até á relva para se conseguir levantar
ajudou a desamparada moça que tinha-se perdido
no seu olhar:
- Não é que me possa queixar, porque levar com
uma rapariga como tu, principalmente em dias
belos como estes é uma dádiva que qualquer rapaz
daria tudo para receber, mas se te quiseres levantar
para termos uma apresentação como deve ser,
agradecia.
Ouvindo a voz do rapaz, voltou a cair em si, e num
gesto muito rápido, levantou-se e começou a
sacudir as roupas muito apressadamente:
- Peço imensa desculpa, não sei o que me
aconteceu…
- Não te preocupes, eu percebo perfeitamente,
ainda agora cheguei, mas percebo a beleza e o
poder que este sítio tem, eu próprio já me perdi
algumas vezes, mas normalmente perco-me nos
meus livros e não em cima das pessoas- soltando
um pequeno riso.
- Novamente peço imensa desculpa…não me
costuma acontecer… espero que não o tenha
incomodado demais…
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- Ficarei mais incomodado se não souber o nome
da rapariga que me caiu no colo…
- Ah, claro, o meu nome é Marta, e tu como te
chamas?
- Eu sou o Luís, foi um prazer conhecer-te –
sentido o telemóvel a vibrar – mas temo que a
nossa apresentação tenha de ficar por aqui, o dever
chama-me, foi um prazer conhecer-te Marta, a
envergonhada – piscando o olho e saindo em
direção á estrada.
Marta sentiu todo o seu corpo em chamas, não
sabia por que razão mas havia alguma coisa
naquele rapaz que a fascinava, talvez isto se
devesse a pouca convivência com pessoas do sexo
oposto, as mães sempre pintaram os homens como
seres pestilentos que não sabiam respeitar as
mulheres, e ela sabia que lá no fundo elas tinham
um desejo que ela lhes seguisse as pisadas, mas por
mais contacto que tivesse com mulheres nunca
tinha sentido nada por nenhuma delas, tentando
baixar um bocado a temperatura corporal com
alguns salpiques de água doce voltou ao caminho,
tinha de estar em casa antes da hora de almoço.
Voltando á assembleia, num gesto de pura raiva
Hugo levantou-se fechando a sua mão num
fervoroso murro pronto a voar em direção daquele
recém-chegado ser:
- O que este ser faz aqui?
Já sentando na sua cadeira, Romeu Pasolini
esperou que o apresentassem, o que não tardou a
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acontecer pela voz do mesmo que tinha colocado
os problemas em cima da mesa para discussão.
- O senhor Pasolini, é um dos mais antigos
membros desta associação, inclusive tem sido com
o seu trabalho fantástico que tem sustentado esta
casa que tanto amamos, tornou o mito do Alfa
numa história que é contada nas escolas, devemos-
lhe muito, para não dizer que era o que estava mais
bem colocado caso acontecesse alguma coisa a si
ou ao seu Beta.
Estas palavras levaram Hugo a sentar-se
novamente, tinha mesmo que levar com aquele
charlatão nas assembleias, ele apenas denegria a
imagem do Felipe…
- Meu caro senhor Alfa, bem sei que começamos
com o pé esquerdo, mas permita-me resolver o que
fiz ainda á bem pouco tempo – todos os presentes
ficaram com cara de estranheza perante aquelas
palavras – uma vez, que tal como fui apresentado,
eu sou dos mais antigos membros desta casa, eu
era uma das crianças que pertencia a primeira
Alcateia, graças a benevolência do primeiro Alfa
estou vivo, e devo-lhe isso, por essa razão dediquei
toda a minha vida a contar a história tal e qual
como eu me lembrava, das festas, das missões e da
figura que poucos conheceram presencialmente,
mas talvez tenha errado a tentar explicar apenas
quem era o Alfa, devia ter tentado saber quem era
e quem foi o Felipe, mas sempre pensei que fossem
a mesma pessoa, por isso peço desculpa, e espero
que isto possa agilizar as nossas relações –
puxando de dentro da mochila que tinha nas costas,
um enorme livro corroído pelo tempo.