Nesta carta, Forjaz expressa seu ceticismo sobre a natureza humana, acreditando que todos escondem instintos cruéis. Ele também critica a hipocrisia da sociedade, onde ninguém é verdadeiramente bom ou justo. Por fim, Forjaz prega que o dinheiro é o verdadeiro deus do mundo, capaz de comprar qualquer coisa ou pessoa.
1. Palavras Cínicas
Por Albino Forjaz
Todo homem tem em si a sua tragédia.
...devo mostrar com sinceridade a minha tragédia.
Sienkiewicz.
A
lbino Forjaz nasce a 19 de janeiro de 1884, encobertas por uma hipocrisia social ou, pior, por uma
provavelmente em Lisboa. Desde os 14 anos de inconsciência do próprio existir.
idade está envolvido em atividades literárias.
Autor de vários livros em prosa e verso, é em Este livro talvez seja dito como um dos mais odiados
1905, aos seus 21 anos, que lança Palavras Cínicas, livros escritos pela humanidade, justamente por
um livro considerado “um dos mais perversos espelhar de forma crua e clara, com todas as palavras,
monstros morais do (...) tempo.” as deformidades do espírito humano.
Palavras Cínicas é composto por oito cartas - ou Antonio Caldas
capítulos - supostamente enviadas a um amigo. Vários
caldas@mail.com
temas são abordados a cada capítulo, desde alguns
dos pecados capitais até uma crítica ferrenha à crença
http://caldas.tripod.com/
em Deus. Feira de Santana, Bahia.
Brasil
Descrença total sobre a vida e a humanidade permeia
Palavras Cínicas, um livro sóbrio. E não há sequer uma ÍNDICE
sentença que enalteça o ser humano. A cada
parágrafo, ser canalha e vil é o conselho dado por
Primeira Carta..................................................... 2
Forjaz aos seus leitores.
Segunda Carta .................................................... 4
Terceira Carta ..................................................... 6
Com sentenças fortes e palavras morbidamente bem
Quarta Carta ...................................................... 9
escolhidas, Forjaz aventura-se a falar sobre verdades
Quinta Carta ......................................................11
profundas e obscuras da alma humana. Talvez
Sexta Carta .......................................................14
verdades sabidas por cada leitor, mas sorrateiramente
SÉTIMA CARTA...................................................17
Última Carta ......................................................19
Carvão de Carlos Reis
2. P r i m e i r a C a r t a
Vi que a vida era má e escrevi estas cartas.
Se as leres no meio dum festim as porás de parte com enfado,
mas buscarás nelas consolação
quando o mundo te fizer chorar.
I
Meu amigo: A raiva também tem o seu gozo, o Ódio também tem o
Escrevo-te de longe, de muito longe, perdido nos confins seu amor. E o amor do Ódio é maior porque é mais
deste meu bairro onde só muito fraco chega o rumor da forte.
grande cidade. De que te hei-de falar? Da vida? Pois
seja. Tu vens para ela, para o imenso brouhaha. A vida Não poderás gozar e serás mais desprezado do que uma
é a escola do cinismo. Trazes coração? Esmaga-o ao serapilheira que o uso condenou.
entrar como uma coisa que nos compromete, que nos
avilta. Se acaso és bom - tolice - não venhas. Aqui, para A carne é matéria como a rocha, a rocha é matéria como
triunfar, é preciso ser mau, muito mau. Sê mau, cínico, a flor. Da mulher honesta à prostituta não há diferença,
hipócrita e persistente que vencerás. Serás aclamado, a distância duma à outra é nula.
respeitado e invejado. Ri do Bem e da Virtude, da Alma
e do Sentir. Ri de tudo, que é preciso que rias. Abafa um Não beijam ambas?! Uma por prazer, outra por precisão.
protesto com um sorriso, uma agonia com uma Pois, meu caro, eu prefiro a prostituta sempre.
gargalhada, um estertor com uma praga.
Acredite que todos se vendem, homens e mulheres,
Sê polido, meu amigo. Encobre a raiva sob o riso, e o palhaços e imperadores, cristos e mendigos: a questão é
riso sob o pesar. de preço e o preço sufoca todas as consciências, todas
as revoltas.
Sê mau, sobretudo. Se a alma compromete estrangula-
a, se o riso desmascara sufoca-o, se o choro atraiçoa Acredita que falta quem compre toda a gente que se
esfibrina-o às gargalhadas. quer vender.
Não ames nem creias. Todo o homem que ama é A mulher mais honesta capitula, e aquilo a que tu
homem perdido, e todo aquele que crê nunca será chamas acaso, chamo eu persistência, e persistência
ninguém. Odeia sempre. Odeia os que sobem e os que gasta a vida como a água gasta a rocha.
pretendem subir, odeia os que subiram e os que um dia
subirão. Odeia todos e desconfia. Lembra-te que o Ódio Tu és filho duma prostituta, pois que tua mão só foi de
dá mais prazeres do que o amor. teu pai e teu pai foi o primeiro a quem ela se entregou,
que depois o egoísmo do seu amor fez conservar junto
A satisfação de ver agonizar um canalha, quer ele seja de si...
um mártir, que ele seja um ladrão, é maior que a de
sentir os braços opulentos duma mulher que se entrega. O seu corpo tinha gozos inusitados, que ele demandou
É menos um. Sê pois forte como o diamante e como o primeiro. E se teu pai não fosse dela, seria o primeiro
ódio. que lhe agradasse, o primeiro que a sua carne lhe
impusesse, o primeiro que passasse à sua rua. Assim, tu
No amor - gentil comédia - sê pródigo, e sobretudo és filho dum operário como poderias ser dum assassino.
nunca ames uma só mulher. Se és bom serás ridículo, se Podia mais a sua carne do que ela, mas o seu egoísmo
é mau serás temido. Sê mau sempre. Este farrapo a que foi maior do que a sua carne.
se chama Vida foi, é, e há-de ser sempre assim.
“A vida é uma luta brutal”. (Tourgueneff).
Tudo é egoísmo. Se és bom morrerás como Cristo, se é
um tolo morrerás como Judas, se és mau - meu amigo - Tu crês em Deus? Crês sim, que bem o sei. Pois bem;
serás lembrado como Satã. vai dizer-lhe que eu o odeio com toda a força do meu
ódio. Tu que te dás com ele, que crês nele, que és
Vem, mas vem cínico. Triunfarás, terás oiro, amantes, amigo dele, vai dizer-lhe que ele é mais vil do que as
mulheres, o diabo. coisas vis. Vai dizer-lhe que eu o odeio, porque ele
deixou morrer aquela criatura aqui do lado, cujos seis
Acredita que metade da humanidade nasceu para se filhos abandonados me vieram comer o meu jantar. Vai
rojar pela lama, para que tu, eu, todos os maus, todos dizer-lhe o ódio lhe tenho por ele deixar morrer aquele
os cínicos, a esmagássemos, e lhe cingíssemos justo, que por ser bom teve de se matar; diz-lhe
fraternalmente as carnes com um chicote. Depois da finalmente que nada disto se deve fazer quando se é
morte há o Nada. Portanto, meu caro, aqueles que o Deus.
sabem, o que pensam é em sugar a vida com um furor
de agiotas sem entranhas. Isto é como no mar; já Que me odeie agora também porque eu dei o jantar ao
Shakespeare dizia que o “mugem vive para ser tragado pequenos que o não tinham; que me odeie porque a
pelo lúcio”. última camisa a dei a um pobre que quase ma roubou;
que me odeie porque eu o castigo como no outro dia
Ou serás vencido ou vencedor. Se vencido esperam-te castiguei um velho que maltratava um cão. Anda, vai
todas as humilhações desde o desprezo até a dizer-lhe que me odeie, que se avilte ainda mais se é
compaixão. Se vencedor todos os triunfos desde o capaz...
respeito ao Capitólio. Luta sempre, calado, fino, sabido
que se não tens jeito para isto serás um eunuco eterno, A geração é de cobardes e “cada ano que passa está
castrado para a Vida, para o Amor, e para o sonho. mais corrupto o mundo”. (Maximo Gork).
Ah! Não ter eu muito que dar a este pequeno miserável
que me bate agora à porta, para que ele, recebida a
Palavras Cínicas - Albino Forjaz Página 2 de 20
3. esmola, me chame o mais vil que o sol cobre, o mais de tudo o que tu me fizeste? Chegou o meu dia. Agora,
canalha de todos, o mais indigno, o mais bandido! meu velho, eu sou maior, ouves? Eu dobrei-me e tu
socorreste-me, mas eu dobrei-me. Eu era um faminto e
Ele não se engana. Lá tem o seu raciocínio que não falha tu sentaste-me à mesa, mas eu dobrei-me. Tive fome tu
nunca. encheste-me, tive frio tu agasalhaste-me. Irritante Tu,
sempre Tu.
Dei-lhe tudo o que tinha e todavia vai a resmungar
baixinho que um dia, um dia que virá cedo, me virá E eu não podia vingar-me, mas agora chegou a minha
bater à porta com uma coronha e me há-de fuzilar a vez.
mim, o maior dos patifes que o socorri.
Acredita que todos aqueles a quem fazemos bem,
Vai-se embora a pensar que se fosse rico, havia de nutrem lá dentro a secreta esperança dum dia nos
azorragar toda essa ralé que pede esmola e toda aquela correrem a pontapé. Logo no primeiro dia em que não
que dá tudo o que tem. temam desconjuntar a bota, quando o fizerem,
percebes?
E cisma em ser um dia o maior dos Neros que o mundo
tem visto; em ter um chicote com que possa duma vez Escutaste? Vem, se te sentes com forças. Demais és
só azorragar a Terra, ele, cujo corpo devia ser balouçado pobre. Então para ti a vida é tudo isto e tudo o mais que
no candeeiro ali defronte. tu tiveres coragem de inventar. “O pobre será odioso até
ao seu parente mais chegado” (Provérbios, XVI-20),
De trinta mendigos a quem dei esmola hão-de nascer que “não merece carinhos quem não tem para caldo”
noventa patifes para me apedrejar. Abençoada esmola! (Silva Pinto), ouves? Tu virás e triunfarás. Tu serás
Mas explica-se. É que a minha esmola - esmola humana mau e cínico e traidor.
- fecunda lá dentro todo o meu cinismo e toda a minha
canalhice. A Vida? “Seria loucura, na verdade, conservarmos
alguns sentimentos compassivos quando vivemos em
Deste-me esmola? Muito bem, odeio-te. Odeio-te porque semelhantes cavernas”. (M. Du Camp).
não posso também dar esmolas e porque me curvei a ti.
Toda a vida tu me fizeste bem, socorreste-me, A vida é uma canalhice, uma farçada, “uma luta brutal”,
agasalhaste-me. Um dia eu - mau como sou - estou por como diz ali o Tourgueneff.
cima. Então eu havia de perder a ocasião de me vingar
Palavras Cínicas - Albino Forjaz Página 3 de 20
4. S e g u n d a C a r t a
II
Foi em Dostoiwsky que eu encontrei um dia esta frase: a mulher falseia. Todos mentem. Mentira é o céu, o
“No fundo de cada um dos nossos contemporâneos inferno é mentira. É mentira Deus, é mentira o Bem, o
residem latentes os instintos dum carrasco!” Amor e a humanidade.
Não tens tu encontrado, ó caricato, nas tuas horas de Em que acredito eu? No crime e no dinheiro. O crime é
angústia, somente semblantes frios, corações Deus, o dinheiro é Deus, e de ambos o dinheiro é maior.
empedernidos e ouvidos cerrados? Quantas vezes É por dinheiro que se compram almas, por dinheiro é
perguntaste onde estavam a Bondade humana, a justiça que as mulheres se vendem. Quantas almas não conterá
humana? Quem te respondeu? Inútil pergunta. um saco de dobrões, quantas? A quantos corpos não
poderia ele fazer despir?
Ninguém.
Por dinheiro tudo se compra. As bênçãos das santas e o
Deus? Onde estava Deus? crânio dos heróis, a camisa de dormir da tua noiva e o
rosário do teu confessor. Ciganas e écuyères,
Deus não é deste mundo! E cada dia que passa me saltimbancos e mendigos, fidalgos e aguardente,
convenço mais que nele só canalhas existem. Quem sou trapaceiros e sacerdotes, coveiros e apóstolos, santos e
eu? Um canalha. Quem és tu? Um canalha. famintos, sultanas e cadelas, bobos e cortesãs, escravos
e libertos, tudo isto é da sua corte. O próprio Deus, o
Todos nós disfarçamos os piores instintos. Inútil próprio céu rende-se, quando se lhe mostra um punhado
mascarada, se todos nos conhecemos bem. de oiro.
Tenho ouvido mais juras sem fé do que de minutos tem E como o dinheiro ri! Tu nunca ouviste o dinheiro rir?
um século. Despeja um saco de oiro e ouvirás uma gargalhada. O
som do oiro que se choca é o seu riso, e esse riso a
Tenho visto mais traições, mais egoísmos e mais crimes quantos não despedaça a alma?!
que de mortos tem a eternidade ou de beijos tem levado
o corpo duma prostituta que envelheceu no ofício. Quero que mates teu irmão, que dispas tua irmã na
praça pública, que esbofeteies tua mãe. Chego-me a ti e
Filhas do homem, mães do homem, foi para ele que digo-te: oiro, terás muito oiro, um grande deboche de
todas essas mulheres se prostituíram; que elas dançam oiro se o fizeres. E tu não resistirás, eu sei-o.
cancãs infames e sofrem abandalhamentos sem nome.
Uma prostituta não é ninguém. Aquela que se dá aos
O seu corpo, onde todos bolçam o seu quinhão de marujos e aos ladrões, à noite, nos recantos, levando-
infâmia é como os mármores divinos dos museus, toda a lhes a sua carne para que eles se saciem, vale tanto
gente lá vai pousar o olhar. Tem alguma coisa duma como a que se dá ao ministro, e a que é cortesã do
sentina ou dum confessionário. Papa. A vida das primeiras é mais suada.
Elas é que sabem por quanto se compra um riso. Quanto Como elas devem odiar as mães.
império, quanta vontade não é preciso para no meio
duma carícia não cuspirem a cara dum canalha. Pobres mulheres? É uma como qualquer outra. A da
“Filhinho, filhinho...” e aquele pedaço de belo lixo esfregadeira, e da mulher a dias, a da amortalhadeira
rebusca frases, prepara gozos requentados, pedidos sem não pesa mais, não custa mais?
cerimónia, como se eu lhes arremessasse à cara uma
baforada de fumo de cigarro ou lhes salpicasse o rosto Aquilo rende, aquilo inda dá muito dinheiro.
com o meu hálito cheio de lama.
Por que não trabalham? É boa! Então quem me havia de
Elas ali são minhas, muito minhas. Paguei-as à hora aturar a mim, a ti, a todo o mundo, a todos os canalhas?
como a corrida dos cocheiros. E o gozo, o gozo brutal, o Quem, não me dirás? Tua irmã? Tua mãe?
gozo Deus, fere-me a retina, fricciona-me a epiderme,
abraça-me, deslumbra-me e puxa-me para si com seus O crime é um negócio, a Vida uma escravatura. A alma
pulsos de aço como uma amante no cio. é escrava do crime, a carne é escrava do gozo.
O vício tem recantos como uma cidade à noite. Morrem? Que temos nós com isso? Todos nós temos que
morrer. Quem se lembra duma prostituta que morre? Os
A quantos já teria pertencido aquilo? Quem seriam? corpos perdem-se na terra e no esquecimento como as
Tateio. “A carne, essa coisa brutal cheia de veias, de blasfêmias se perdem no ar.
nervos, tendões, glândulas e ossos, cheia de instintos e
misérias; a carne que sua e cheira mal; que se A vida é uma grande cama onde existe sempre a plena
desforma, se infecta, se ulcera, se cobre de gelhas, de orgia da carne. Lá passam as noites uma rameira
pústulas, verrugas e pêlos” (G. D'annunzio), é mole, abraçada a um poeta, um bêbado no peito duma
viscosa, flácida. marquesa que empobreceu. É o panteão ignorado dessa
carne infame que o homem chicoteou com beijos. E não
Parece moída. Quantos a terão beijado? Quantos a terão sei, como de cada um, assim amassado em lágrimas,
acariciado? Quantos lhe terão batido, quantos? não floriu uma chaga, tanta peçonha e amargura eles
continham. É a sargeta onde se escoa a lama da Vida,
O pobre corpo nu corre a roda toda como um copo numa para onde a terra baba a nata da podridão.
bodega, amarrota-se, enlameia-se. Toca-me a vez: os
mesmos abraços que dei a minha mãe dou-os agora a A vida é feita de lodo e os homens do pó do crime. Tudo
esta. Isto é lógico. é lama e toda a lama é igual. A que salpica uma toilette
de seda e a que traça constelações nos trapos das
Vender o corpo é melhor do que vender a alma, mas mendigas. As almas são de lama, as rosas são de lama,
vender a alma e o corpo como seria bom! os lírios são de lama, como as estrelas, como as hóstias,
como os mortos, como os vivos. Há a lama vestida de
Mulheres honradas? Ah! tu crês em mulheres honradas e pérolas e a vestida de escrófulas, a lama toucada de
homens bons? És parvo. Todo o homem atraiçoa e toda sedas e cetins e a vestida de crostas e farrapos.
Palavras Cínicas - Albino Forjaz Página 4 de 20
5. Verdade e a Mentira. Que inventou o canalha que
Mas é tudo a mesma impureza, tudo a mesma podridão. governa e o que sofre e sua até morrer, que inventou a
Tão impuras são as vestes de Messalina como a escova guilhotina e a glória, o deboche e o dinheiro.
de dentes da Gauthier, as ligas de Agripina como a cama
de Rigolbeche, e tudo isto como o manto da Imaculada Sobre cada ventre pesa uma maldição, sobre cada berço
Conceição. pesa uma agonia.
A diferença que vai daquele bandalho, que passa de Há mães que à hora da morte amaldiçoam a sua obra.
chapéu alto, àquele malandro, que pisca os olhos e pede Benditos os que amaldiçoam. O ventre das mães é o
esmola, não é nenhuma. Pura convenção. Se tu fosses embrião do crime. Barregãs que o desejo ensandeceu
buscar uma rameira de hospital e a toucasses de sedas deviam ser rompidas pelo ventre como o Senhor
ela arranjaria corte. prometeu às prenhadas dos povos pecadores. Que seja
maldito o ventre de todas as mães.
Viriam a seus pés os famintos, as rascoas, os
interesseiros, os honrados, os banqueiros, o mundo Filhos fecundados em plena bebedeira, que bateis nas
todo. mães, que cuspis em Deus, que quebrais os santos e
rasgais as páginas balofas dos missais, vêde se na
Que me importa que a imagem desta libra seja a duma morte não sois iguais aos justos, se todos não são iguais
rainha ou a duma prostituta se com ela eu posso na morte.
comprá-las ambas?
Benditos sejam pois os matricidas, benditos sejam os
Tudo é dor. A dor é igual. Senti-la maior ou menos é homicidas, os perversos, os malditos. Bendito seja
diferença dos nervos que a sentem, como a grandeza Orestes que violou a mãe, Amon que desflorou a irmã,
dos que a vêem: A dor é egoísta como o mundo. A dor Myrra que teve incesto com o pai.
da mãe que perdeu o filho é egoísta. São os lamentos
pela felicidade que perdeu. Como a da águia a quem Benditas sejam as mães que matam os filhos, o irmão
roubaram os ovos, como a do avaro a quem roubaram que mata o irmão, o canalha que mata o canalha.
um dobrão, como a da Virgem a quem roubaram Jesus.
Bendito os que matam porque eles semeiam a
Tu já leste os Homens do Mar, de Vítor Hugo? Recordas- felicidade.
te da pieuvre? A dor é a pieuvre. Enlaça os corpos, as
almas, suga-as, bebe-as em vida. A alguns deixa Há caveiras que riem bêbadas de riso, outras que
somente o esqueleto. cerram os dentes duma grande raiva. Nunca reparaste?
A águia que rói os fígados a Prometeu não é outra senão Enchi-te de desolação e abandono. Que eu exagero? Mas
a Dor. Bendita seja a Dor que tiraniza e leva ao crime. isto ainda é pouco. A torpeza da vida não caberia em mil
volumes como este. Que eu exagero?! Que eu Exagero?!
Tudo mentira, tudo ilusão. Quem sabe lá vida quanta Patife, tu bem sabes que eu digo a verdade.
podridão levedou para dar um rosa, para abrir um
malmequer, e para florir uma chaga? Que as chagas o Já viste quanto cômico há na vida trágica e quanto
que são senão rubras e esquisitas flores? trágico há na vida cômica? Há risos que são mais tristes
que a tocha dum gato-pingado, lágrima que, por mais
Abre um crânio e vê se distingues a alma de Dante da que se queira, fazem sempre soltar gargalhadas.
alma de Caim, a de Inocêncio III da do galego da
esquina. As lágrimas choradas e que a terra tem bebido há 6.000
anos que o mundo é mundo davam um novo dilúvio
Quem distinguirá lá em baixo no ventre da terra a carne capaz de afogar o mundo todo. A luz do sol tem visto
de Impéria da carne de Chénier, a ossada de Gilbert da mais podridões que o mármore duma casa de autópsias.
ossada de Ravachol?
O que é a vida? Não sei. Eu tenho visto nela muita
O rosto que ri não é o mesmo que chora? A boca que torpeza e muita lama. Sê mau, ouves? Sê mau. Tens
canta e ri não é a mesma que ameaça e insulta, que que ser muito mau que a “terra vive do mal”.
suspira, que geme e que reza? Os olhos não vêem Deus
e o Diabo? As almas não servem a ambos, atraiçoando Às vezes sinto-me fatigado de só o ter sido
ambos? mediocremente.
Vê quanto pus encerra esta palavra: Amor! Tu crês no Ah! Eu nunca poderia vir a ser um Nero! E Nero que
Amor? Na Amizade? No teu semelhante? incendiou Roma não é bem maior do que S. Francisco de
Assis? Incendiar uma cidade é bom, mas incendiar o
É preferível ver um cano de esgoto em toda a sua mundo? Incendiar o mundo, ó gentes? Que grande obra
porcaria a uma alma em toda a sua intimidade. Há para um caricaturista! A lama a não querer morrer, a
almas cuja treva é maior que a noite, consciências cuja fugir do braseiro...
lama é maior que a de todos os pântanos da terra.
Nesta hora, pensa, quanta sinceridade não haveria... no
Cada homem dissimula em si um trágico carnaval. egoísmo do salvamento. Que de crimes essa última hora
Murger disse algures que a Vida era “uma máscara de não conteria!
forçados”. E se pudesses fazer cair a máscara que cada
um afivela recuarias de terror. E o fogo, o fogo enorme, lambendo tudo, triturando
tudo, por entre o rir das labaredas até que a terra
À face da terra o homem não tem feito senão mal. Foi desfeita em cinza, como um bando enorme de
ele quem inventou os tronos e os altares, que fez a andorinhas, voasse pelo espaço através dos séculos.
Palavras Cínicas - Albino Forjaz Página 5 de 20
6. T e r c e i r a C a r t a
III
Lembras-te de quando eu te dizia que a Vida era má, tu seco como as plantas que morrem à míngua de água.
responderes “que ainda havia o Amor?” Amei rude e loucamente, com fé, com ardor. Fui
desamado sempre, escarnecido, pisado.
Convicto sonhavas a vida grande, auroreal, sadia, junto
duma mulher que fosse o corpo do teu corpo, a alma da Quando eu amava, rouco de dizer o meu amor, não
tua alma e para quem tu fosses sempre o insaciável dos encontrava um único coração que se me abrisse. E
seus encantos, das suas frases, dos seus beijos. então, conheci más todas as mulheres.
A cada desilusão que te desse a vida tu te refugiarias Mas como hão-de elas amar-me se eu lhes não posso
nesse amor, turris eburnea tão alta e forte que poderia dar oiro? Que tenho eu para lhes dar? O coração? E para
olhar as estrelas frente a frente, e que nem a morte que serve um coração? Acaso isso já serviu a alguém?
ousaria derrubar.
Não encontrei nunca uma mulher que não roçasse a
Ela, a Eleita, te daria então um encanto novo para cada espinha pela minha bolsa, como os gatos quando fazem
desengano, para cada desânimo te daria coragem na ronrom aos pés do dono.
Bíblia nervosa e quente dos seus braços, no anseio louco
e perfumando do seu corpo. E todo aquele meu passado amor, toda essa afeição foi
como um charuto caro que alguém esqueceu acesso.
Seria a Santa do teu altar, a luz que iluminaria a tua Hoje não amo nem creio, como Schopenhauer.
vida inteira.
Não é porém despeito tudo isso. Eu continuo a cair nos
Tu contar-lhe-ias os teus cansaços e ela te daria o seu braços das minhas amantes, mas julgando-as o pior
colo para descansares. E tu serias bom, altivo e amante. possível.
Serias forte para a defender, criança para a adorares.
Quem ama morre. Chi no stima vien stimato, diz o
Terias a cada frase dos seus lábios o coração em festa. provérbio italiano. Por isso, tu, despreza os homens
como desprezas as mulheres. Ai se acreditas! A mentira
Os teus beijos seriam abençoados, e ela, a Santa, seria no amor é tudo.
bendita entre a mulheres.
Quanta mentira não há num beijo? Quanto veneno?
Quando tu tivesses sede ela te diria abrindo as veias: Quanta traição? Um beijo envenena sempre. Alguns há
“Bebe”. Quando tu tivesses fome ela uniria à tua a sua que envenenam a vida inteira.
boca e te alimentaria com seu hálito caricioso e quente.
Viveria só para ti sem egoísmos nem vaidades. A mulher leva ao degredo, ao crime, à morte, à desonra.
E seus filhos seriam belos como mulheres e fortes como Há homens que se matam por elas, que se arruínam,
Deuses. que enlouquecem. Dalila atraiçoou Sansão, Margarida
perdeu o velho Fausto.
Isto é impossível. Onde encontraste tu uma mulher que
amasse alguém? Inútil. Procurarias em vão. Uma mulher Foi ela que inventou o ciúme para nos roer, os braços
é um objecto que se usa e se põe de parte ao fim duma para no prender, o dinheiro para se vender.
hora, dum dia, duma semana, duma quinzena, dum ano
quando muito. Escuta! Se queres ser amado por tua mulher dá-lhe com
um chicote. As mulheres precisam de ser espancadas
A fidelidade aborrece. Mas há acaso alguma mulher fiel? para amarem alguém. Há nisto um fundo de verdade. A
pancada é sempre mais sincera do que o beijo.
Em que pensam elas? No interesse. Todas se vendem.
Umas compram-se por amor, como outras se compram Mas para que amar? Para que bater? Todo o amor
por dinheiro. Varia muito o preço por que uma mulher se acabará na morte.
entrega: uma moeda de prata ou um colar de pérolas,
uma nota do banco ou um adereço, uma ceia, um reino, O amor é dos romances. Lá é que viveram Romeu e
um capricho, um cigarro. Eu já tenho comprado Julieta, o apaixonado Rafael, Paulo e Virgínia.
mulheres por um cigarro. Trasladar o romance para a vida é uma loucura
inconcebível.
E o que é o amor? Uma triaga deliciosa, não é verdade?
A mais podre das ilusões. Enquanto o pobre D. Quixote quebrava lanças e corria
mundo pela sua Dulcinea, esta aquecia a cama todas as
A mulher é sempre uma criatura vaidosa e interesseira, noites a algum cavaleiro menos andante e mais positivo.
balofa e irritante, como os homens são e serão sempre
cínicos, canalhas e traidores. Uma mulher ama por egoísmo, e só gostará de ti
enquanto tu fores para ela o máximo ponto onde ela
É a maior das egoístas do gênero humano. Seus lábios pode pousar os olhos.
são uma ânfora maldita que tem no fundo a mentira.
Eles derramam o crime, a cobardia, a perfídia. Se acaso a minha amante, essa criatura que tem para
cada minha pancada uma carícia, encontrasse outro que
Seus ventre são “sementeiras de dores” (Eugênio de fosse maior do que eu na sua retina psicológica, eu seria
Castro). preterido sem dó nem piedade.
Mas porque gosto eu tanto delas? Todas as mulheres são sensuais e perversas. Toda a
mulher se esquece.
Toda a vida me acorrentaram à cadeia de beijos dos
seus braços. Assassinaram-me a energia. Tornaram-me Se tu hoje desses a vida por uma mulher ela segredaria
à força de desgostos e de irritações, eu que era uma às amigas que tu nunca passaste dum tolo que morreu
criatura de pequeninas carícias, de mil afectos por ela. E o teu nome andaria em triunfo nos seus
pequeninos, de pequenas coisas amorosas, embotado e lábios, como o couro cabeludo dum inimigo na mão dum
Palavras Cínicas - Albino Forjaz Página 6 de 20
7. pele vermelha. Dias depois tu serias esquecido e já Um fidalgo nasceu tão desastradamente como um moço
outros braços teriam imprimido no seu corpo o vergão de restaurant. Ninguém diferenciará na morte um
dos abraços. cardeal do seu fâmulo, um cabeleireiro dum palhaço.
Não somos acaso todos irmãos, ó meu irmão canalha?
Quer ela fosse actriz ou freira, ladra ou imperatriz.
Da mulher do salão à mulher do esgoto há uma só
“Uma mulher é capaz de tudo. Não se esqueças nunca. diferença: - a cama. A da primeira terá uma coroa
Algumas vezes, o grande manto do heroísmo não serve bordada no travesseiro. A da segunda será a cama duma
senão para esconder uma meia dúzia de amantes” hospedaria onde todos passaram, dormiram, que de
(Annunzio). todos foi usada. A primeira terá meias de Escócia,
mitenes de Suede, perfumes de Circássia. A segunda
A mulher é um misto confuso, um amálgama singular de nem às vezes terá meias, terá as mãos calejadas e
lama e de desejos, de sujidades e incensos, polvilhado grosseiras e cheirará aos arrotos e suores. O amor da
de oiro. primeira é uma coisa leve como um Watteau, delicado
como uma porcelana cara, magnífico como uma renda
O que és tu em amor? Um Falstaff pandilha. Tua mulher antiga. O amor da segunda é uma mancha, brutal como
quem é? Uma honrada Messalina. um soco ou um borrão.
Antes de tu a conheceres e a arredares de corpo e alma, Não é verdade que uma rameira se entrega a um ladrão
tinha ela olhado aquele militar que além passa e uma açafata a um príncipe? Mas há marquesas que
presumido; este estudantinho loiro; aquele caixeirola prostituem os cocheiros, condessas que levam murros
imberbe; os dentes brancos deste, a cabeleira daquele, do criado, servilhetas que são as baronesas dos barões.
os pardessus e as botas daqueloutro.
Pensa bem. Não há crime nenhum que não tenha saído
A sua alma fora uma hospedaria. Todos lhe convinham. dum ventre duma mulher, nem que uma cova não
Foste tu afinal o que ficaste. contenha.
Nunca pensaste em que tua mulher cismasse em quem Uma mulher? Mas o que é uma mulher? A mulher é o
seria que a desfloraria se não fosses tu? Quem seria? gozo. Tira-lhe a formosura e o que te fica? Nada.
Que abraços o outro lhe não daria? Com que beijos
loucos ele contaria as rugas do seu corpo? Mulheres honradas! Nem tua mãe!
Todas as casada ou são Teresas Raquin ou se chamam Tu sabes quantos adultérios praticou tua mãe para com
Bovarys. Todas elas traem o marido com o seu Rodolfo e teu pai? Nenhum. O que nunca, nuca tu me poderás
o seu Leon como na Bovary, de Flaubert. Estes ainda por dizer é quantos ela pensaria em praticar.
seu turno as atraiçoam e são atraiçoados.
Para seres feliz no Amor precisas de ser como na Vida:
Pergunta a tua mulher se alguma vez que ela precisou egoísta, seco e mau. Se não fores infame, serás imbecil.
de recorrer ao amante não teve, ainda como na Bovary, Se fores romântico, sonhador e amoroso, elas
somente um riso ou uma recusa como resposta? inventarão para crucificar a tua paixão mil laços
traiçoeiros, mil enganos, mil atrocidades.
O Desejo é o Waterloo de homens e mulheres. A mulher
que nunca se entregou cisma em entregar-se. A que se Se estimares tua mulher serás atraiçoado por ela, como
entregou cisma em entregar-se novamente. se estimares tua mão ela te difamará. Sê orgulhoso!
Uma mulher? Há tantas mulheres por esse mundo! Um
Toda a carne tem cegueiras de desejos a que ninguém amor? Tantos amores virão substituir este!
pode resistir. É o Desejo que fustiga com suas unhas
deliciosas a alma dos eremitas e faz pela calada dos As mulheres ou se castigam ou se desprezam. E se
claustros mortos, na paz silenciosa das celas sonolentas, desprezares a tua amante, ela inventará carícias mil
ciliciarem-se mutuamente com seus corpos em brasa as para te apaixonar, te agradar, te satisfazer. A sua boca
irmãs da caridade. ardente carregada de beijos como uma árvore
carregadinha de flor, tatuará no teu corpo uma legenda
O Desejo é tudo. Irmão do Oiro tem com ele a sua extraordinária de dedicações e de carícias. Sê, pois,
genealogia do crime. canalha com as mulheres que elas gostam dos
infinitamente canalhas.
O que quero eu da minha amante? O seu corpo, esse
corpo nervoso que se estorce e se agita ante os meus O dilema é este: beijava os pés a minha mulher e ela
braços e onde há tempestades de delírios, catadupas de atraiçoava-me, bato-lhe e ela adora-me.
beijos, explosões de luxúrias com arrancos de
crucificada. No Amor, como na Vida, de quem é o triunfo? Dos
fortes, dos que mentem, dos que batem, dos que
Se ele, esse corpo que eu adoro e beijo, apodrecesse de falseiam.
repente, florisse todo numa chaga aberta eu desprezá-
la-ia. E seria para mim como o corpo dessas cortesãs da Se queres ser feliz sê, como eu, brutal na posse, canibal
plebe, noivas de toda a gente, que todos possuíram ou na ambição, sem uma aresta de apego a uma alma,
podem possuir e no qual eu teria asco de tocar. pisando sempre, avançando sempre, crânio de sílex na
energia, coração de sílex nas dedicações e nas torpezas.
Assim como na vida não há senão interesses, no amor
não há senão desejos. O Amor faz tantos crimes como a guerra. Foi por amor
que a minha vizinha fronteira despedaçou do quarto
É o Desejo que irmana a concubina da mulher honesta, andar o corpo na calçada. Que este homem se deitou
o pobre do rico, o bom do mau. Acaso a alcova duma nos rails à passagem do comboio. Que aquela costureira
honesta não tem visto bastantes prostituições? Há tomou fósforos e está no hospital. Que esta afivelou à
rameiras que são mais sóbrias e mais recatadas a rival uma máscara de vitríolo que o tempo não apagará.
entregar-se do que a mais honesta das mulheres.
Foi por amor que este homem roubou a casa onde
Cada criatura tem latente em si uma Sodoma. estava empregado e se matou quando lhe bateu à porta
a polícia; que este outro, que tu não conheces, vem ter
Todos nós somos iguais. Filhos da Luxúria, escravos do comigo pedindo-me dinheiro para mandar um ramo à
Gozo, servos do Interesse. Iguais no nascimento e iguais sua actriz, que o despreza, oferecendo-se-me em troca
na morte. para matar um homem se preciso for; que este mancebo
que passava todos os dias na minha rua, pensativo e
Palavras Cínicas - Albino Forjaz Página 7 de 20
8. tristonho, apareceu um belo dia enforcado no seu sempre aberta que sangra e que cheira mal...”
quarto; que aquele delirou de amor e acabou morto de (Annunzio).
frio numa rua. Que este homem se arruinou ao jogo
para dar à amante; que este matou e foi degredado; Há homens orgulhosos que pedem de joelhos perdão às
que este roubou, entisicou, está na cadeia ou no mulheres. Mulheres orgulhosas que sofrem em silêncio
hospital. as pancadas dos maridos, dos irmãos, dos amantes.
Isto ainda não é tudo. Há tragédias misteriosas, mortes E como o Amor tudo transfigura, das rameiras faz
ignoradas, casos frustes, que, se se fossem a desvendar, santas, dos feios faz belos e arma os fortes em fracos;
aterrorizariam um comissário de polícia. livra-te pois do Amor para que não sejas desgraçado.
A mulher é o crime. É mentirosa, é cínica. Mente por Lembra-te sempre de que ele é a pior e a mais
vaidade, crucifica por prazer. São os seus encantos, a enganosa das realidades, a mais disfarçada das ciladas.
carne palpitante, os cabelos, os beijos, os gozos que
amolecem a energia, a espinha, a cabeça, o orgulho e o Ai de ti se nele acreditares! Quem ama morre, quem
dinheiro. É aquela “chaga original, a vergonhosa ferida ama avilta-se tão baixo que a própria lama tem ainda
que descer muito para lá chegar.
Palavras Cínicas - Albino Forjaz Página 8 de 20
9. Q u a r t a C a r t a
IV
Há uma tela de Rochegrosse intitulada Angoisse fábricas atiram para os astros o seu fumo apodrecido e
humaine. É um quadro que representa a vida. No gasto, como um hálito maldito e dosolador.
primeiro plano muitas criaturas erguem o braço para
chegar mais alto. Homens de casaca tão correctos como
se fossem para um baile. Há mulheres decotadas A minha casa deita sobre a cidade e sobre o mar. Lá em
vestidas em rigor. Homens condecorados e homens baixo ficam os seus hospitais, as suas prisões, as suas
banais, e moços, misturam-se e empurram-se, velhos morgues, os seus cemitérios, igrejas, calaboiços,
disputando-se numa agonia pavorosa, num combate penitenciárias, hospedarias e albergues, docas, oficinas
sem nome. e quarteis. Seus bairros magníficos e seus bairros
pobres. Lá moram os que se embebeda e os que
Aquele monte é a Ambição de subir, de que fala Vieira. esmolam, os que têm dinheiro, os que não têm trabalho
Atrás, pela riba acima, numa escalada vertiginosa, e os que portam mal.
aparece uma maré cheia de cabeças ululantes,
estranguladas pela ambição, correndo, empurrando-se, Os telhados amontoam-se e o sol, que agoniza para lá
pisando os que ficam, agarrando-se de pés e mãos, da barra, põe grandes retalhos de oiro fulvo no
como se após viessem também correndo numa agrupamento irregular e caprichoso dos edifícios e das
perseguição fantástica, as ondas dum novo dilúvio. moradias, afogueando o horizonte num clarão de autora.
Todos daquela multidão ávida querem ser os primeiros. Bolaiça no ar pesadamente uma fumarada espessa como
O lugar é disputado a soco, a murro, a dente. O caminho um nevoiro, feita de mil suores, mil respirações, mil
que na vida leva ao triunfo é uma cena medonha que hálitos diferentes, desde o hálito do bispo ao do bêbado,
mais parece a fuga duma derrota. do do órfão ao do mendigo, do do chocheiro ao do
sacerdote. E como o fumo, paira no ar a Babel dos
Todas aquelas cabeças têm o rictus dum Tântalo ruídos, um rumor confuso feito do ralo das agonias ao
supremo. São gastas, cansadas, lívidas. Os rostos são estrupido das pragas, do das cantigas ao das disputas. O
pálidos, suados, cor de terra, um não sei quê de loucura ruído das máquinas que rangem, chaminés que
e de pesadelo; os olhos brilhantes, emoldurados no resfolgam, peitos que respiram, olhos que choram,
bistre das insónias e dos tormentos, as mão crispadas, garantas que soluçam, corpos que tombam. O
rapaces, em foice, os vultos rembrandtescos. São desabrochar das violetas no canteiros e das rosas nas
ferozes e são crúéis. jarras dos salões, subtil como um aroma mistura-se com
o ruído tamborilado e convulso, como um rufo de
A tela é violenta e verdadeira. A vida é aquilo, assim pandeiro, das carpideiras de enterro. Os gritos e as
enérica, sinistra, brutal. Não há trégua, não há pragas dos vencidos baralham-se com as exclamações
descanso. Cada um vigia sempre o seu vizinho, espreita de triunfo dos vencedores.
se ele cai, e tripudia, espreita se ele sobe, e inveja-o.
E quantas cidades tem o mundo? As cidades quantas
Há um homem de peitilho engomado e cabelo colado almas? As almas quantas tragédias? Toda a gente tem
sobre as frontes que, sentado, morto, segura não mão em si a sua tragédia. As próprias coisas mudas, a lama,
inerte e suicida, a coronha dum revólver. o pão e o vinho, a pedra da calçada, a labareda e a gota
de água, o verme e a planta a têm.
Um grande homem brutal, de camisola, pulou, destruiu
o último tapume, frágil afinal como uma convenção, e Pensaste alguma vez na tragédia duma cama de
continua avançando sempre. hospedaria, na das enxergas dos hospitais, na duma
ladra, duma mortalha ou duma camisa de rendas? Na
Toda aquela populaça, todas aquelas criaturas cuidam só tragédia das bandeiras esfuracadas de mil batalhas, na
em subir. A certa altura a Morte fixa-as com suas dos afogados no alto mar, na dos violinos, na dum
pupilas de aço, hipnotizantes, e elas caem, rolam, náufrago da Medusa ou na da princesa de Lambelle?
afundam-se lá em baixo, onde as espera uma cova Tudo é tragédia desde a tragédia do parto à tragédia do
aberta, algumas sem terem chegado, outras que estertor.
pararam finalmente, levando nos olhos um pavor
incerto, qualquer coisa de espantoso e indescritível que Quem poderá saber a que há na frauta dum pastor e no
faz parar o sangue nas artérias. leito duma rainha? A tragédia que houve na alma de
Vaillante o anarquista, e na de Tintoreto o pintor? Na de
Por cada um que tomba avançam mil. Trava-se um Alexandre o grande e na de Sócrates o estóico? Na lama
combate em que o mais cruel, o mais forte, o mais de Jesus e na alma de Marat? Quem sabe o que vai na
canalha, é o que triunfa. Nada de piedade nem de alma dos clowns e na dos pescadores? Na dos loucos e
compaixão. Se não esmagares serás esmagado. Não há na dos maus?
tempo de olhar, nem de pensar sequer. Avançar seja
como for, custe o que custar. A tumba dos pobres, o carro celular, a vala, a
serapilheira, o caixão, as costumeiras, os vagabundos,
A vida é dos de coração gelado e hirto. Amanhã é tarde, as cigarreiras, os emigrantes, os degredados, os
depois é impossível. Tudo na vida é mudável, tudo na cavadores, os homens de génio, as que não têm leite
vida é transitório. Tudo passa, tudo esquece. A criança nos peitos, as que arrastam um coração sem amor, os
será homem, o lacaio será senhor, o arbusto será ninhos abandonados, tudo, de tudo isto quem sabe a
árvore, o ontem será hoje, o bom será mal. Ai dos que sua tragédia?
param, ai dos vencidos!
E a tragédia das que têm livro às quais a polícia rouba e
Aquela cena é bem a Vida, esta luta brutal e torturadora o amigo espanca?
que começa quando o sol se ergue loiro e triunfante
para só terminar às horas em que tudo parece desolado O Hamlet cismou na tragédia da caveira. Quem cismará
e morto. agora na da cidade?
O crepúsculo cai suavemente. Ao longe a casaria branca O corpo duma cortesã tem a mesma tragédia do que um
duma cidade adivinha-se. E as altas chaminés das prato de hotel ou um copo de botequim. Por todos
servido, por todos usado, o prato e o copo quando se
Palavras Cínicas - Albino Forjaz Página 9 de 20
10. partem o seu destino é o lixo. A mulher quando sabe como, paridas não se sabe aonde, as filhas das
envelhece e morre, o seu destino é a vala. Não serão ervas, filhas da rua.
pois, copo, prato e mulher inteiramente iguais?
Nos bancos sombrios do square há vultos enigmáticos,
Algumas vezes a tragédia é caricata, é pândega, dá suspeitos, órfãos cujas almas são os ímans da desgraça
vontade de rir. Mas nunca ninguém riu da que consigo de todo o mundo, e à esquina das ruas pedem esmola
arrasta. velhos patriarcas como castanheiros centenários, filhas
que fugiram aos pais pelos amantes que as
A cidade, como a vida, é ignóbil. Ali, tudo se vende. abandonaram, pais que os filhos expulsaram de casa,
Quando custa uma virgindade? A glória? A fama? Um mulheres que outrora foram belas e faladas.
beijo? Uma alma? Um jantar? Um enterro?
Embuçada num portal uma criaturinha esguia e franzina
Quem é senhor do mundo, senhor da cidade, senhor da como uma santa, silenciosa, estende a quem passa a
aldeia, senhor do campo? O dinheiro. É ele que faz mão afilada e transparente e todos se afastam com o
cantar às almas as óperas da torpeza e do interesse. É rancor - enquanto ela lá continua, no olhar a nostalgia
essa lama bendita com que se compra o céu. Para o das que passam os dias a tossir.
alcançar todos os dias o sol vê crimes inauditos e a
humanidade se afadiga e sua e chora. Não há crenças, Há carnes nuas que o frio corta e a nortada arroxeia a
nem escrúpulos, nem religiões. É aquela luta brutal da par de equipagens arrogantes mais brunidas que a água
tela de Rochegrosse. cristalina; vestes roçagantes e sumptuosas, arminhos e
púrpuras, crachás e andrajos. Passeiam na mesma rua a
A honra? A honra é uma fórmula, É pagar uma letra no majestade e o andrógino, a bêbada e a duquesa, e
seu prazo com dinheiro que se ganhou a traficar encontram-se muitas vezes no mesmo olhar os olhos
escravos; é ser torpe sem que ninguém o diga; é roubar que são alvoradas e os que são crateras sempre em
sem que o roubado acuse. perpétuas erupções de lágrimas.
Há mulheres sem honra que todos cortejam, virgindades E na sombra, há criaturas emagrecidas pelas privações,
imaculadas que todos desprezam. recantos sinistros de infâmia onde a luz debuxa, às
vezes, a traços esguios e esqueléticos, uma caricatura
Religiões? A religião é uma comédia cuja representação que em lugar de fazer rir faz arrepiar; há gestos de
já dura há séculos. Fez sucesso! é uma coisa fútil e revolta, meio esboçados, repelentes, grotesco, divinos;
extravagante que se parece com as histórias dos punhos erguidos, caras crispadas, criaturas capazes de
gnomos e das princesas encantadas. Quem a não tem, agatanhar os pais e lhes arrancar os olhos para castigo
compra-a. Para que servem os padres senão para de as ter feito vir ao mundo.
“venderem Deus por grosso e a retalho” - (Zola).
E pensa a gente se foi só para todo este lodo, toda esta
Relicários, cultos, milagres, o céu, bênçãos, mitras, amargura, que sofreram todas as mulheres as dores do
báculos, tudo isto está em leilão. Quem oferece? Quem parto.
dá mais?
Bizarramente, ao longe, silenciosa e erma como um
Às vezes as religiões pregoam entre os homens o Bem, túmulo, esgarça-se a brancura duma casita abandonada,
a Paz e a Igualdade. Mentira, tudo mentira! Olhando e mais distante, na solidão duma encosta verde, umas
bem a vida lá está sempre no fundo a sua face austera e árvores, com o seu reumatismo eterno, descarnadas,
verdadeira - uma Saint-Barthélemy. com seus troncos como aranhas monstruosas são tristes
como a noite e como a desolação.
Que tragédia risível, grotesca, bizzara medonha, sofrida,
desesperada e lancinante não é o mundo? A vida? A O sol agoniza e a sombra que desce lentamente
cidade? amortalha a terra com os seu manto funerário. Depois
surge no céu a lua, muito grande, branca como a face
Lá em baixo nas vielas sujas ou no boulevard caro, a luz duma defunta ou ensanguentada como a cabeça dos
do gás, que baila a dança de S. Vito, pões lívida a carne, guilhotinados. Então por toda a terra se eleva o choro
lívida a alma, lívido o sentimento. das ribeiras soluçantes, o ciclo longo das folhas que se
abraçam, enquanto distante um ou outro galo perdido
Há lá ruas inteiras de toleradas, ruas de loiras solta o seu grito de alarme como o das sentinelas à volta
perfumadas de falas tão lânguidas como fúcsias, de das prisões.
morenas de beijos tão doces como medronhos, de ruivas
de cabelos tão fulvos como o poente. São as filhas dos E eu, debruçado sobre a cidade, escuto o seu respirar e
operários que espancam as mulheres quando chega à sinto elevar-se da treva densa que abraça o mundo,
noite a casa, perdidos de bêbados; são as filhas dum num surdo formilhar, o arfar de mil opressos peitos que
ventre que não tinha nome e cujo pai é toda a gente; mal respiram e que semelham o ralo estertoroso de mil
são aquelas que tendo vendido tudo se vendem afinal; agonizantes.
são a legião enorme e interminável das nascidas não se
Palavras Cínicas - Albino Forjaz Página 10 de 20
11. Q u i n t a C a r t a
V
Pratica sempre o crime, consciente, ferindo, dissimulado. amigo, quando tenho a certeza que, certo da
Sê sempre mau e faz sugerir aos outros que és bom, sê impunidade, me esfaquearias no escuro duma viela,
sempre torpe dizendo-te honesto. Nada de violências. imperturbavelmente.
Hipócrita, cauteloso e subtil, conseguirás tudo, serás
tudo, terás tudo. Uma hora de amor duma casada, uma O que és tu? Um egoísta. Egoísta nos sentimentos e na
condecoração, um emprego, a confidência dum segredo torpeza, na fuga e na vaidade. Tudo tu fazes por
que compromete, dum vício que aviltece. egoísmo. Se tu tivesses tanta fome como a tua mãe e só
houvesse uma côdea a disputar, tu espancarias a pobre
Para isso é necessário saberes insinuar-te, que a velha para lha roubares. Vamos ao caso que lha davas?
questão está em ter manha. Que preferias morrer de fome? Se o tinhas feito é por
que isso te satisfazia, te enchia a vaidade de morreres
Dissimula rindo, ri refletindo. As tuas ambições, os teus por alguém - tu que és o maior egoísta que o sol cobre.
egoísmos, os teus vícios e as tuas qualidades, tudo isso
se mascara. Chama-se fidalguia à ambição, ao egoísmo Que tu dás a vida por mim, que tiras da tua boca para
desinteresse e ao vício honradez. dares à minha?! Egoísmo, tudo egoísmo. Se o fizeste foi
porque isso te deu prazer e nada mais.
É só trocar os rótulos ao sentimento.
Compaixão? Porque hei-de eu ter compaixão de ti?
A mulher que se não dá, viola-se, mas nunca empregues Sofres? Muito bem. Mata-te. A morte é amante que te
violência. Sê pequenino, diabólico e traidor, inofensivo e espera. Ela tem suavidades como nenhuma irmã,
paciente e ela te abrirá os braços sorrindo. carícias como nenhuma mulher.
Sê inacessível à piedade, à compaixão, ao amor. Um conhecido disse-me um dia:
Despreza sempre os outros. Quem sabe se a sua torpeza Tu vais por uma rua com teu pai, teu irmão, qualquer
será maior do que a nossa. Lembra-te que há muito pessoa que te seja mais que a luz dos teus olhos. Ao
canalha por esse mundo que nunca conseguiu nada meio da rua há um prédio em construção. Tu separas-te
porque não soube orientar a sua canalhice. por qualquer motivo de teu pai - seja - e ele vai
andando. Quando passa pelo prédio, um andaime vem lá
O Mal e o Bem, a Verdade e a Mentira, o que são? de cima despenhado e esborracha o velhote. Junta-se
Palavras, só palavras, nada mais. gente, tu chegas, e quando o vês num lençol de sangue,
o teu primeiro pensamento, será - juro - se eu venho
O homem é um enigma. Quem sabe quantas raivas eu com ele?!...
tenho quando estou rindo? E eu concordei.
Quem sabe se eu falo mentira, se eu digo a verdade? Ela perdoa, redime e liberta. Ela, que é boa, te
Pode alguém ao certo saber alguma coisa? recolherá. Não terás fome, nem frio, nem fadiga. Não
lembrarás ninguém, nem ninguém jamais se lembrará
O riso e o choro são duas máscaras iguais. E a ciência de ti. A mulher que tu amaste continuará a passar à
da vida é sabê-las afivelar na oportunidade. Se alguma minha porta vaidosa e descuidada. Terá um novo
coisa quiseres ser tens que ser assim por força. amante a quem adore. O sol continuará a nascer e a
morrer todos os dias, imperturbavelmente. As terras
A Vida? Ah! não é bem o que nós idealizamos. E vós continuarão a dar pão, os ventres a dar filhos, as
outros que ainda tendes crenças e ainda tendes ilusões, árvores a dar flores. Os beijos, a amante, o pão, as
vinde ouvir a minha voz cansada mas experiente. árvores e as flores tudo o tempo há-de tocar com a sua
mão gelada.
Para cá chegar eu tenho vindo sendo um Stradivarius,
pernoitando um pouco em todas as almas, Tanto desfaz um lírio como uma mulher, uma estátua
experimentando um pouco todas as mulheres, como uma catedral. Júpiter o supremo, Brahma o
conhecendo demais todos os homens. criador, Baal o todo poderoso. Allah e Abraão, Ahasverus
e Adonai, a Bíblia e o Alcorão, assombros, religiões,
Eu sei da vida histórias terríveis e melancólicas que cultos e profecias, revoltas e multidões, impérios e
fazem tremer de horror os que não tremem nunca. embaixadas, tudo ela sumiu e levou. E tudo, desde o
frágil ao grandioso tem o mesmo destino.
São, ó tu que nunca viveste, nunca analisaste, as ante-
salas dos hospitais, os bairros onde é perpétua a Persistes em viver? Então dá-te isso gosto! E hei-de eu
maresia da desgraça. São os outros, somos nós todos. A ter compaixão de quem vive satisfeito na sua dor?!...
Vida? Ah! Isto é um tragédia bem torpe.
Intimamente tu não amas, nem crês! Que adoras muito
Auscultei uma geração inteira e todos achei egoístas, tua mulher, e fugirias dela se lhe nascesse um cancro na
corruptos e selvagens. A cada momento tenho que me cara!
abotoar e tomar resolução para não ser roubado e morto
pelos meus irmãos em Cristo. Em que acreditas? Em que pensas? Em que outro caia
para que o seu cadáver te sirva de trampolim, em que
Ai de ti se acreditas em alguém ou em alguma coisa. A outro suba para que tu o enganes.
Esperança é como um teia de aranha. Se lhe tocares
desfaz-se-te não mãos. Chamo-te corrupto, e tu não coras. Esbofeteio-te e já
não há sangue que te chegue à cara. Asseguro-te que se
Tudo no mundo vai pelo pior possível. Disseca uma por assim continuares será um impossível que não chegues
uma todas as ideias, todas as palavras, todos os a ministro, a génio, a Rothschild, a cardeal, a marechal,
sentimentos e vê que podre não é tudo aquilo. Disseco- a tudo enfim que já de pé humano foi pisado.
me a mim mesmo, e de tudo isto só achei egoísmos,
vaidades, securas e aridez. Tudo mentira, tudo Tu não nasceste para outra coisa. Matarás teu próximo
convenção. O bem é uma convenção, o Amor é uma quando ele te sirva de estorvo, matarás teu pai se ele te
convenção. é por convenção que eu te digo bom, negar o pão que o estômago faminto reclama. Pesa
quando tu és um negreiro; honrado, sabendo-te infame; sobre ti a mais execranda maldição. Caim foi teu avô,
Palavras Cínicas - Albino Forjaz Página 11 de 20
12. Impéria foi tua avó, e tens dentro de ti a seiva imunda No dia em que tiveres fome é inútil pedires, que
que faz nascer o louco e o assassino, o cobarde e o nenhuma porta se te abrirá.
regicida.
No fundo somos todos secos, egoístas e sórdidos. Que
O que és? O que serás? Lama que se transforma em me importa a mim que tu padeças e que chores, que os
cinza. Cada gota do teu sangue se mudará num verme, outros vivam ou que eles morram?
cada verme se mudará em pó!
Para me servir, eu sacrificar-te-ia sem dó, nem piedade.
Nunca acordaste com a boca seca, a alma seca, sem Não tenho pão? Roubá-lo-ia. Para o conseguir, ai de ti se
lágrimas nos olhos e uma grande vontade de arranhar te atravessares no meu caminho.
as chagas dos mendigos, envenenar a alegria alheia e
sovar a mulher que dormiu contigo? Criatura irritada e E a Lei? A Lei é uma cobardia. Quem fez a Lei? Um
irritante, tão seca como as folhas mortas que tombam evadido de galés.
na poeira dos caminhos!
Com dinheiro comprarás um código inteiro de leis, os
Perguntarás porque sou eu assim! juízes, os belequins, os papéis.
Todavia eu tive mãe que me cantou para eu adormecer, A Justiça humana é uma roda velha que ameaça ruína a
amores por quem andaria a rojo toda a vida, amigos por cada momento. O azeite é o dinheiro. Quando deixa de
quem daria o sangue dos braços. se azeitar a roda, esta enferruja e pára.
A mãe morreu e eu comi o pão que os parentes dão por Dinheiro! Meu senhor e Deus! Por ti eu levaria meu pai à
esmola, dormi ao relento, ao frio, à chuva. forca ou salvava-o de lá; esbofetearia minha mãe,
bateria em meu irmão, prostituiria minha irmã ou seria o
Os amores mentiram-me, os amigos atraiçoaram-me. pai do seu filho.
Fiquei só e seco. Para que nasci? Não sei. Que tenho eu
a esperar? Nada. Hoje odeio. todos nós odiamos. O Mas o remorso, perguntas tu?
vento - Ahasverus errante sem descanso - quando passa
ganindo pela amplidão, trazendo de longe o seu furor, O remorso é uma larva que ainda em vida se arrasta
também por certo deve odiar assim. O pobre odeia o sobre os corpos. Muito bem. Sacode a larva.
rico, o velho odeia o moço, o fraco odeia o forte. O ódio
vem de pais a filhos, de avós a netos, das gerações Sinto às vezes remorsos de não ter feito o mal. Há
passadas às gerações presentes. criaturas que ainda à porta da eternidade, erguem o
punho como uma clava, para esmagar o mundo. Ah!
Nunca te debruçaste na alma dum paralítico? Pois a como eu me rio.
qualquer momento que o fizesses havias de o encontrar
absorto na raiva de toda a humanidade não ter, como Os mendigos não têm coroa? Que a roubem. E um dia
ele, a sua cadeira de rodas. eles roubá-la-ão.
Este meu ódio decorei-o entre uma côdea que se come e Cada vez nos espoliamos mais uns aos outros. Não
um pontapé que se apanha; uma esperança que mentiu confies nunca. Não te abras com pessoa alguma. Cada
e um amigo que atraiçoou. Quando eu fui mendigo e semelhante é um inimigo, em cada irmão há sempre um
quando fui ladrão, quando fui cocheiro e polícia secreta. Caim; como há um Judas em cada amigo. Acredita! Tu
andas rodeado de traidores.
A inveja é um crime. Todavia há quem inveje a dor
alheia só porque ela passa mascarada. Passam os No dia em que sentires piedade pelo teu semelhante faz
alegres, os banqueiros, os nabados e os simples, toda estalar o crânio com uma bala.
essa malta pícara dos felizes diante da qual eu sinto a
raiva fria e surda que acomete um eunuco diante duma Tudo se disputa. Somos um bando de corvos para uma
mulher nua. Será mentira que eles não tenham alguma caveira só.
dor? Todavia a Bíblia diz “que ninguém vive no mundo
sem alguma tribulação, ainda que seja rei ou papa”. Sê corajoso. Olha quantos são para uma mulher, para
um taça, para um lugar.
Então aqueles malditos não hão-de ter mágoas, nem
sofrimentos? Até na minha rua uma pequenita, grácil como um anjo,
sabe toda a cabala infame do deboche e entra com os
Quando vejo alguém sonhando, ter esperanças, todo eu homens nas escadas a propor-lhes coisas desonestas,
me regozijo: chego mesmo a fazê-las maiores. roubando assim o seu comércio àquela mulher fanada,
Intimamente rio e espero. O tempo virá e deitará toda que nos espera à volta da rua, para ensaiar o seu
aquela caranguejola ao chão. melhor sorriso.
Com que contentamento eu vejo à minha volta O que é a Vida? Arranjar-se.
acanalharem-se as multidões; as injustiças que se
amontoam, as chagas que se abrem na carne baptizada. O lugar na sociedade está na razão directa do carácter
do indivíduo e da canalhice por ele desenvolvida. Vê-se
Isto não acabará um dia? às vezes que os emolumentos do crime são ainda um
grande coisa. A vida tem que ser isto. E tu, escuta bem,
O que é a Fé? Um burla. A Amizade? Uma servidão. A nunca serás nada se assim não fores.
Caridade? Um crime.
Nada de sonhos, nem de quimeras. O sonho é a rede
Não dês esmolas nunca. Dar de comer aos que têm que a Vida deita para nos demorar e nos prender. Ai dos
fome é dar forças a quem nos há-de espancar. que sonham, ai dos vencidos.
Dando esmolas, fazendo o bem, sendo generoso, A Vida é prática, metódica, decisiva. Os ponteiros do
compassivo e bom, qual será o teu fim? Rebentar ao relógio do tempo não param nunca. Deixa falar os outros
canto duma rua sem ter quem te chegue um caldo, não que pregoam o Bem, a Igualdade, a Vida boa e grande.
é verdade? Pois em vez de esmolas dá chicotadas, em
vez de consolações dá pragas e más falas, que Não é o teu esforço que vai endireitar o mundo. Sê
conseguirás o mesmo fim. Faz-te caridoso que irás dar sempre mau, orientado, sabido. Tudo o resto são
com os ossos à tumba do hospital. cantigas. A vida é só uma e mesmo sem querer aflora-
nos aos lábios aquela frase verdadeira que Dostoiewski
põe na boca duma das suas personagens: “eu não tenho
Palavras Cínicas - Albino Forjaz Página 12 de 20
13. senão uma vida, não estou para esperar a felicidade Mas ninguém se lembra de que louca não é toda esta
universal!” ambição, todo este esforço, toda esta ânsia. A terra
alimenta-se de corpos, bebe lágrimas e bebe sangue.
Mas que queres tu, afinal? Que quero eu? Subir. Como, Um coveiro abrirá a cova a outro coveiro; um dia
não importa. Acaso sabendo alguém que tem um meio sucederá a outro dia; uma dor virá precedida de outra
de vencer se deixar derrotar? dor; um carrasco decepará outro carrasco. E
imutavelmente tudo assim continuará.
Palavras Cínicas - Albino Forjaz Página 13 de 20
14. S e x t a C a r t a
VI
“Como pode ser amada uma vida cheia de tantas amarguras,
sujeita a tantas calamidades e misérias?”
Bíblia
“Os dias desta vida são poucos e maus, cheios de dores e
angústias, neles se mancha o homem com muitos pecados, se
enreda com muitas paixões, se molesta com muitos temores, se
diverte com muitos cuidados, se distrai com muita curiosidade,
se embaraça com muitas vaidades; onde é cercado de muitos
erros, gastos de muitos trabalhos, perseguido de tentações,
enfraquecido com delícias e atormentado com pobreza”
Imitação de Cristo
Sob a luz esquia e pobre do meu quarto de invejoso e atravessará com ele todas as idades. Quer ele vá ao
odiado, tenho agora, a hora alta da noite a que te silêncio da Trapa ou à solidão das minas subterrâneas,
escrevo, um farrapo de jornal que, laconicamente, tenha palácios e odaliscas ou ande sobre a água dos
noticia o suicídio dum marçano de 15 anos, que deu um mares.
tiro num ouvido. E eu, sem mesmo querer, surpreendi-
me a cismar na tragédia daquelas quatro linhas do E qual será a compensação de tanta angústia? Qual
jornal. A criança deu-se a conjecturar se isto valeria a será? Nenhuma.
pena. Encontrou-se farta de cismar e de chorar, só,
escarnecida e pobre. Rezou. A mãe devia por certo ter- A vida só tem uma única alegria. A de morrer. Não disse
lhe ensinado orações. Ninguém a ouviu, ninguém a Sólon esta verdade cem vezes confirmada: “Nenhum
atendeu. Os homens eram mesquinhos, o céu era calmo homem se pode dizer feliz: enquanto respirar está
e indiferente. Mas a Providência? Deus? Onde estava sujeito ao sofrimento”.
essa camarilha ignóbil de profetas, de virgens e de
milagreiros? Para que trabalhar, para que ser grande, ó tu que tens
ambições e que te consomes a lutar? - “Os homens
E o pequeno herói, a quem a vida fechou todas as superiores acabam tão vulgarmente como os imbecis”
portas, teve então na sua lógica férrea a dedução de que (Zola).
a única providência seria aquela bala bendita que,
furando-lhe os miolos, lhe levou a alma ao Não traz cada rosto a máscara de mil dissimulações?
esquecimento. Não tem cada alma a recordação de mil infâmias?
A batalha da vida só tem duas fases: ou vencer ou fugir, Tudo na vida é engano, tudo embuste, tudo
porque para os vencidos não há piedade. dissimulação.
O suicídio é lógico, é justo, é necessário. Para que se Que importa que tu trajes de holanda e de brocados, de
vive? Para sofrer? Onde existe a verdadeira felicidade, a sarja ou de burel, se debaixo dessas roupagens o corpo
verdadeira paz? Na morte. “Ali os ímpios cessarão de é sempre a mesma carne imunda e desgraçada?
tumultos e acharão descanso os cansados de forças”
(Bíblia). A veste é uma máscara, a palavra outra máscara. O riso
e o choro o que são senão máscaras?
E todos os dias e a todas as horas, a todos os
momentos, a peregrinação à morte é tão grande que faz Tudo no mundo mente. Para que foi feita a palavra
pensar em que já não há, no mundo, vencedores. senão para mentir? (Talleyrand). A palavra disfarça a
alma como a veste disfarça o corpo. Ai de nós, se
A tragédia do suicida, a sua história, é sempre a mesma. alguma vez disséssemos a verdade!
História trágica amassada de lágrimas e desesperações.
Quer ela seja daquela costureira que cansada de lutar “A vida é uma peça, e quem a acha má tem dois
em vão, meteu um fogueiro aceso no quarto e se deitou recursos: pateá-la é o meu caso; ou ir-se embora, o que
tranquilamente; quer seja a do que se envenena como é o caso dos suicidas. Suportar a farsa toda, lá porque a
Chatterton; se deixe picar da áspide, num leito de maioria gosta dela, um disparate! Os que se matam
rainha, como a amante de Marco António ou se deixe pagaram também o seu bilhete, e muito é que não
crucificar como Jesus. Quer estoire o crânio como Camilo reclamem o preço à saída, nem incomodem os que ficam
ou como o marçano, ou, como a minha vizinha, se deite a rir na platéia”. (Fialho d'Almeida).
da janela à rua. Quer abra as veias num banho de
perfumes, com a sua Eunice, como Petrónio ou se Se infalivelmente a morte há-de um dia parar à tua
trespasse com a própria espada como Saul; abra o porta, porque não irás tu ao seu encontro? “Para que
ventre como um japonês ou beba aguardente como Poe, queres dilatar de dia para dia o teu propósito? “
como Hoffman ou como aquele homem que eu encontro (Bíblia). Acaso a morte te faz pavor? Quem é morto não
todos os dias avermelhado e balofo. sofre nem pensa. Ser terra, ser rosa ou ser pó que
maior aspiração pode existir? Quem sabe o que serei
O homem será sempre perseguido da dor. depois de morto? Que serás tu? Estrume que fecunda a
terra? Trigo da eira? Areia do deserto que o simum
Não lhe poderá fugir, nem a poderá cansar. Ela irá com arrasta? Castanheiro ou flor do campo? Excremento de
ele a toda a parte, percorrerá com ele todos os países,
Palavras Cínicas - Albino Forjaz Página 14 de 20
15. ave, crânio de herói, beijo de imperatriz, sonho de
cortesã? Há vinte anos que o como. E para qualquer que me volto
encontro sempre o mesmo desdém, a mesma solidão,
Mas que importa que o meu corpo sirva de repasto aos como se todo o mundo estivesse gafo dessa gangrena
corvos ou seja devorado pelos cães, contanto que eu de más vontades e rancores. Hoje estou seco como a
não sinta esta ansiedade louca que me devora e me charneca batida da soalheira.
envelhece!
Para vencer todas estas dificuldades preciso de oiro. E
Se há dias em que até me apetece ser verme!!! ouve bem: hei-de tê-lo. Ainda que para isso seja preciso
matar um homem.
Para que serve a vida? A vida é o sofrimento e o único
remédio está no “aniquilamento do globo e dos seus Eu luto, eu sou forte, porque tenho a Morte pelo meu
habitantes, pela ciência humana, conscientemente lado. E querendo eu morrer nem os homens nem Deus
dirigida a esse objecto” (Hartmann) me poderiam impedir.
Eu não quero nem posso mais sofrer. “Vê-se então que a Morte é um remédio e que ela vem
em socorro dos destinos que sentem dificuldade em
Mato-me. Quem se importará com isso? Deixará a terra cumprir-se” (Michelet).
de girar, os ventres de parir e a humanidade de
sofrer?Quem condena o suicídio? A Igreja? Mas a Igreja Qual dentre vós, que gastastes a vida britando o Sonho
pode lá condenar alguém? pela brutalidade dos outros, vos não surpreendestes
cansadamente murmurando: “Não quero continuar a
A vida é uma infâmia. Para que viver? E esta pergunta, viver uma vida sem carinhos e sem fé; vou ter com os
cem vezes repetida, nunca encontrou resposta. Que que morreram” (Maxime du Camp).
somos nós? Lama nascida da lama e que em lama se
tornará. A Morte é a redenção, e aquele que se mata é sempre
com razão que o pratica. E quando, alma blindada de
Nada sabemos e nada podemos. Todo o esforço é inútil, desesperos, determina travar a sorte malfadada,
toda a dedicação perdida. Olhando bem o fundo às pergunta-lhe lá se crê em deus ou no Diabo? Que ela
coisas, a Vénus de Milo não e a mesma coisa que a seja donzel, baronete ou consulesa, cabouqueiro ou
soleira da minha porta? A minha noiva não é a mesma gladiador.
coisa que aquela rascoa que bebe aguardente, fuma e
leva as noites a cantar? A mulheres esplêndidas não Toda a gente leva a sua cruz ao Calvário, diz a frase
morrem como os vermes? E as feias, as velhas, as popular. Mas o que é certo é que muitos ficam
sórdidas não morrem como as mulheres esplêndidas? esmagados ao peso da sua cruz.
Os velhos, os entrevados, as mulheres altivas quando “O bem-estar e a felicidade são pois inteiramente
envelhecem e se encontram sem adoradores, não serão negativos, só a dor é positiva” (Schopenhauer).
a mesma coisa, elas que foram belas, amadas,
orgulhosas, que um vestido de seda que se meteu a “A terra é um vale de lágrimas” (Bíblia). Ah! quem
esfregão? pudesse terminar o mundo, quantas lágrimas não
estancaria, quanta dor minoraria, a quantos tormentos
Dirás que não. Que a tua noiva é imaculada e a rascoa é não poria termo!
impúdica, que duma à outra a diferença é tanta que não
se poderá medir. Mas não foram todas as criatura Depois, não é uma cobardia saber-se que tendo remédio
nascida igualmente e não serão igualmente para tamanho mal se há-de sofrer eternamente, à
amortalhadas? Misturando as suas lágrimas quem as atenças dum Deus que não se comove e dum bem que
poderá apartar? Baralhando as suas angústias quem as não há-de chegar nunca? Ver em cada rosto uma
diferenciará? caveira e em cada riso uma careta? Palpar um corpo e
sentir sob os dedos o latejar de mil ignorados vermes?
Que o suicida é um cobarde? Não, cobarde é quem atura Nascer dum ventre e uma cova nos aguardar? Ir do
isto até ao fim. Então uma criatura que entrou na vida e nada para o nada? Há lá coisa mais torpe?!
se vai embora, lá por não poder ou não querer pactuar
com a torpeza dela é um cobarde? Então eu que piso, eu Mas - pergunta tu - e Deus? Deus foi um egoísta.
que falseio, eu que minto, é que devo ser louvado pela Padeceu por vaidade, sofreu porque lhe deu prazer,
minha coragem? Cobarde é quem cobarde lhe chama. morreu porque assim o quis. Submeteu Lázaro à prova,
Pudesses tu ver bem a vida e verias se o suicídio não é a para lhe experimentar a fé. Desconfiou, logo não é fiel.
única porta que o homem arrombou ao céu. Ele azorragou, logo é sujeito a ira. Vingou-se, logo é tão
baixo como nós outros. Homem e basta.
No dia em que eu subi ao mirante do mundo estremeci
de horror ao ver a luta que se desenrola todos os dias, Que ele morreu para nos salvar? Não, para nos perder.
de canto a canto, de pólo a pólo, do passado ao provir. E Quem socorrerá agora a humanidade?
desse dia horrível ficou-me na alma a impressão que,
como o sarro às dentaduras cariadas, nunca mais me De que serviu o seu sacrifício? Para que ergueu ele a sua
abandonará. cruz sobre uma pira de corpos ainda quentes? Para que
fez ele dezenas de Mártires? Pois não é um crime
Tudo no mundo são interesses e traições. Pois não é por sacrificar assim inutilmente tantos corações? Não é um
interesse que Plínio vai ao Vesúvio, Stanley ao sertão, crime enganar tantas almas que ainda crêem nele?
Colombo à América? Não é por interesse que o soldado
vai à guerra, que as mulheres dão beijos e abre campas Mas que veio ele cá fazer? A morte já existia antes dele
o coveiro? vir. O sofrimento não cessou com a sua vinda.
Não é por interesse, finalmente, que o suicida procura o E ele, o Deus forte, senhor dos exércitos e da guerra,
Nada donde veio? aconselha-nos a cobardia e vende o céu pelo sofrimento.
Aquele que tu acarinhes e a quem matares a fome será Queres ver Deus? Vem comigo aos conventos, às
o primeiro a fechar a sua porta para que tu o não igrejas, à catedrais. Que viste? Uma escultura que nem
importunes com os teus rogos, nem impacientes com as sequer te comoveu.
tuas lágrimas.
Perguntas por ele? A resposta surpreendia eu, alta noite,
Nunca ouviste dizer à tua volta esta frase típica: Comer a um bêbado filósofo:
o pão que o diabo amassou?
Palavras Cínicas - Albino Forjaz Página 15 de 20
16. “Eu bebo. Mas para que bebo eu? Para não sofrer? Toda “Deus é pai de todos, mas só recebe os grande. Deus
a gente sofre. Uns mais, outros menos. Morremos. O havia de dar audiência a um maltrapilho?!”
nosso destino é morrer. O homem nasceu para a
Desgraça. Qual é o seu destino? Cavar a terra com o E o bêbado resumia, que, enquanto a humanidade aflita
suor do seu rosto e com o suor do seu rosto abrir a cova ergue os braços para o céu, Deus, sorrindo cinicamente,
em que outro o há-de enterrar. Desengana-te, meu erguia meio braço e baloiçando-o fazia de lá um colossal
velho. Se beber é bom, bebe. Em morrendo nem céu e obsceno gesto para todos nós.
nem inferno. Então nunca mais beberás.
Palavras Cínicas - Albino Forjaz Página 16 de 20
17. S É T I M A C A R T A
VII
Há dias em que, se me perguntassem o que eu queria nem Hércules com toda s sua força, nem César com
ser, responderia: - Morto. todas as suas conquistas a fizeram parar no seu
caminho. Com um gesto do seu manto faz ajoelhar os
“Ide de país em país e perguntai de porta em porta: heróis e os cobardes, os velhos e as andorinhas.
Reside aqui o contentamento? Sois felizes e estais
tranquilos? Em toda parte vos responderão: Procura em Todas as cabeças brancas do nevar dos anos, todas as
outro lugar. Nós aqui não gozamos isso que dizes! opulências das mulheres soberbas, brâmanes e
Inclinai os ouvidos para as fronteiras! O vento traz-vos esquimós, tudo há-de, a fim dum século, desaparecer
de todas as partes rumores sinistros de desordens, de silenciosamente. E todos os dias emigram caravanas
combates, de revoltas contra opressões brutais!” (Max para a Morte, essa rainha de trono opulento que até faz
Nordau). morder o pó às águias e aos condores.
Como os mortos devem ser felizes no seu esquecimento! Acredita! é somente a idéia da morte o regozijo supremo
Os dias vão e voltam, os anos sucedem-se, os séculos da minha dor e da minha impotência. Quando eu passo
nunca param, e eles eternamente sorrindo-se por essas ruas, encolhido e tímido, sinto uma alegria
indiferentes, na sua podridão. infinita em olhar as mulheres que passam
deslumbrantes e esqueço-me durante horas inteiras e
Só a Morte é boa, só a Morte é grande. Lá se idear os estragos com que o tempo as há-de envelhecer
esmigalham em pó Cleópatra e Vítor Hugo, Paganini e e gastar, as doenças que as hão-de desfigurar, as
Bonaparte. aflições que as porão mais estragadas do que a amantes
dos marujos e dos soldados. E vejo-as passar, vejo-as
A Beleza e o Génio, a Virtude e o Crime, o Egoísmo e a na retina mental, com uma alegria infinita, velhas,
Abnegação, que pode isso contra a Morte? Reconhece-se grotescas, feias, pandilhas, virem pedir-me esmola para
a verdade da frase do Hamlet e diz pelos séculos dos que eu lhes dizer, baixinho e sorrindo cinicamente: -
séculos: - Palavras, palavras, palavras, nada mais! Não!
A carne mais bela, a lama mais nobre, o talento mais E depois, a essa altiva que me despreza, a todas as que
deslumbrante, que vale isso? me desprezam, quando as visse mais rasas do que a
lama, dizer-lhes a persegui-las com o meu riso,
Tudo ali esbarra como ante uma muralha formidável, tornando tão cruel como o do oiro: - Ó filha, ao que tu
tudo ali se afunda como num naufrágio imenso. chegaste!
Não é a morte que iguala pobres e ricos, bons e maus, Sinto então a alegria infinita dum velho souteneur que
majestades e sodomias, carrascos e coveiros, rameiras e vê a amante procurada.
virgens?
Há no Nabab, de Daudet, a figura grotesca e imorredoira
É ela que há-de fazer tombar, como uma flor que do Joyeuse, “O Imaginário”. Lembras-te, não é verdade?
emurcheceu, aquela bela mulher que te escorraça e te Sonha, sonha sempre. A propósito dum nada, sonha que
despreza; é ela que há-de fazer tombar aquele que por é feliz, que se vê contente, que tem dinheiro, uma vida
ser mais forte te pisou e afligiu. É ela que há-de fazer toda quimérica, cor-de-rosa. Pois eu sonho assim, mas
tombar aquele que tu odeias, todos os que tu odeias, sonho sempre o mal dos outros.
todos os que te pisam, todos os que te desprezam.
Aquele a quem tu pediste e te serviu, aquele a quem tu Ah! com que alegria eu soube que F. roubou, que
pediste e te recusou, o que amou e o que te bateu. aqueloutro morreu, se suicidou, está no hospital, foi
preso ou bateu na mulher! Como a morte é grande, a
É ela que há-de levar um dia aquele homem brutal que morte vingadora, a morte que te vinga e que nos vinga
bate na mulher que o sustenta; que há-de levar aquela a todos!
pequenina flor impura que em voz baixa vem à minha
beira segredar-me luxúrias infinitas para que eu lhe Mas para que sou eu assim?
pague o pão do seu dia; que há-de levar aquele bispo
cheio de paramentos e aquele ladrão cheio de Esforço inútil, se tudo é mentira refalsada, tudo ilusão.
comendas; aquela carne cheia de mazelas e esta alma Amar? Para que amar? Beijar? Para que beijar? De que
cheia de crimes. nos vale tanta aflição?
Foi ela que levou a mulher que te trouxe no ventre e a Uma criatura toda a vida se afadiga e sua e chora. Leva
mulher que tu amaste. Os que passam as semanas uma vida arrastada e miserável para quê? Um dia a
enchendo de lágrimas o travesseiro, regando a gleba de Morte virá que a leve. De que lhe serviram os seus
suores, e os que passam pela rua felizes e cansaços, os seus suores, as suas fadigas e as suas
engrandecidos como o sol. As crianças ideais como ralações? Se “tudo pára em nada, tudo em vento!”
pinturas de anjos, as miss loiras como os trigais (Camões).
maduros, as demoiselles franzinas como lírios e as
sevilhanas salerosas, todas essas mulheres divinas, todo Gozar para quê? Se até o próprio gozo se há-de
esse amor, toda essa formosura. converter em fel!
Seu reino é todo o mundo; as areias do deserto e a água Não fecundes a tua mulher para que teu filho não tenha
dos mares, as almas e as flores, os granitos e os que morrer; para que não venha a ser nem assassino,
vegetais, e nem Deus lhe pode resistir. nem mendigo, nem ladrão, se for homem, nem ladra,
nem prostituta, se for fêmea, e para que te não venha
É maior do que o céu porque é infinita, é maior do que bater nem a amaldiçoar. “Para que gerar pecadores?”
Deu porque é sempre boa. (Shakespeare - Hamlet).
Bendita seja a Morte vingadora, a Morte redentora. Para que hás-de tu levantar-te se tens que deitar-te
novamente, amar se o tempo te fará esquecer, beijar se
Não há oiro que a compre, nem lágrimas que e outro apagará teus beijos? Para que serve tanta fadiga,
enterneçam. Nem Salomão com todos os seus tesoiros, não me dirás? Há dor acaso que enterneça a Morte? De
Palavras Cínicas - Albino Forjaz Página 17 de 20