Este documento descreve as alterações na mobilidade que afetam pacientes após internamento prolongado em unidades de terapia intensiva. Estudos mostram que mais de 90% dos pacientes desenvolvem alterações na força muscular, como fraqueza generalizada, e 80% apresentam alto grau de dependência na alta. Contraturas articulares também são comuns, mas não limitam a mobilidade articular. O documento discute as causas dessas alterações, incluindo síndromes neuromusculares adquiridas na unidade de terapia intensiva.
Alterações da mobilidade após internamento prolongado em cuidados intensivos
1. ALTERAÇÕES DA MOBILIDADE APÓS INTERNAMENTO
PROLONGADO EM CUIDADOS INTENSIVOS
A SITUAÇÃO NO HOSPITAL AMATO LUSITANO
Mobility changes related to Prolonged intensive care stay - The situation at the Hospital Amato Lusitano
R. M. G MENDES1, C. A. F. CHAVES2
RESUMO ABSTRACT
O internamento em cuidados intensivos está geralmente Intensive care hospitalization is generally associated with
associado a situações de doença grave. Apesar da mor- serious illness situations. Although death is the most
te ser a consequência mais grave dessa situação crítica, serious consequence of this critical situation, discharged
a alta da unidade de cuidados intensivos pode também from intensive care unit can also bring significant problems
acompanhar-se de problemas significativos a nível físico at psychosocial and physical dimensions with an
e psicossocial, com impacto na qualidade de vida des- important impact on the quality of life of patients and
ses doentes e dos seus familiares ou cuidadores. their relatives or caregivers.
Esta investigação teve como objetivo conhecer as alte- This investigation aims to determine the changes of
rações da mobilidade que afetam os doentes com alta mobility that affect patients discharged from the Hospi-
da Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente do Hos- tal Amato Lusitano’s Intensive Care Unit after a long stay
pital Amato Lusitano, após internamento superior a uma hospitalization - more than a week. This is a cross-
semana. Trata-se de um estudo transversal, baseado na sectional study, based the quantitative method and that
metodologia quantitativa e que se enquadra nos estu- fits the level I studies.
dos de nível I. At the time of unit discharge were evaluated: joint
À data da alta da unidade foram avaliadas: mobilidade arti- mobility, muscle strength and degree of physical
cular, força muscular e grau de dependência. Os instrumen- dependence. The data collection instruments were used
tos de colheita de dados utilizados foram a goniometria, a goniometry, Medical Reseach Council scale and the
escala Medical Reseach Council e o índice de Barthel. Barthel index.
Os resultados da investigação revelam ausência de limi- The research results reveal the absence of limitations in
tações na mobilidade articular. Em oposição, mais de joint mobility. In contrast, over 90% of patients
90% dos doentes desenvolveram alterações da força developed changes in muscle strength ranging from mild
muscular que vão desde situações ligeiras a quadros to severe cases of generalized weakness. There was a
graves de fraqueza generalizada. Verificou-se uma rela- positive correlation between the degree of impairment
ção positiva entre o grau de comprometimento da for- of muscle strength and the degree of dependence. At
ça muscular e o grau de dependência. À data da alta da the time of intensive care discharge significant number
unidade um número significativo de doentes (80%) apre- of patients (80%) had a total degree or serious
sentava um grau de dependência total ou grave. dependence.
Palavras chave: Keywords:
reabilitação, cuidados intensivos, alterações da mobili- rehabilitation; intensive care; mobility changes;
dade, dependência. dependence
Correspondência do Autor: R. M. G. Mendes
Email: robertomiguelmendes@gmail.com
1
ENFERMEIRO ESPECIALISTA EM ENFERMAGEM DE REABILITAÇÃO, A EXERCER FUNÇÕES NA UNIDADE DE CUIDADOS INTENSIVOS DA ULS DE CASTELO BRANCO
2
ENFERMEIRO ESPECIALISTA EM ENFERMAGEM DE REABILITAÇÃO, PROFESSOR ADJUNTO DA ESCOLA SUPERIOR DE SAÚDE DR. LOPES DIAS
6
REVISTA DE SAÚDE AMATO LUSITANO 2012; 31:6-12
2. INTRODUÇÃO significativa. Segundo esta investigação, o doente com
A perda de mobilidade é dos problemas mais contraturas tem geralmente mais que uma articulação
incapacitantes para o doente crítico após a alta de uma afetada, sendo observável uma relação positiva com o
Unidade de Cuidados Intensivos (UCI). Mesmo na ausên- tempo de internamento.(5) Os autores salientam ainda que
cia de trauma, alguns doentes necessitam mais de um mais de um terço dos doentes internados na UCI por
ano para recuperar a mobilidade anterior. Estas limita- mais de duas semanas desenvolvem contraturas articu-
ções podem não só comprometer a autonomia do do- lares e que cerca de um quarto tem alta hospitalar com
ente na realização das suas atividades de vida diária, contraturas suficientemente graves para interferir nas
como inclusive dificultar o desmame e retirada da venti- atividades diárias.(5)
lação mecânica, prolongando assim o tempo de
internamento. (1; 2) ALTERAÇÕES DA FORÇA MUSCULAR
Schaaf et al. analisaram 69 doentes, que permaneceram No que diz respeito à fraqueza muscular adquirida na
internados em cuidados intensivos por mais de 48 ho- UCI, e contrariamente ao que se poderia supor, esta não
ras, e as alterações funcionais manifestadas na primeira é devida a atrofia muscular associada à imobilização,
semana após a alta. Este estudo concluiu que, de um mas a neuropatias ou miopatias decorrentes da doença
modo geral, os doentes apresentam limitações funcio- crítica, especialmente após internamentos prolongados
nais significativas. Por exemplo, em termos de autono- (mais de uma semana) devido a situações de sepsis, fa-
mia na realização das suas atividades de vida diária, 67% lência multiorgânica ou ARDS (Acute Respiratory Distress
mostrava-se muito dependente, 15% tinha uma depen- Syndrome). (6; 7) A este conjunto de neuropatias e
dência moderada e 9% uma dependência ligeira. A mar- miopatias resultantes do internamento em cuidados in-
cha é uma das limitações mais frequentes, sendo que tensivos foi denominado Síndrome Neuromuscular Ad-
73% dos doentes não consegue deambular sem ajuda.(3) quirido no Doente Crítico (SNADC), também conhecido
Estes compromissos a nível da mobilidade encontram- por polineuromiopatia do doente crítico. (8; 9) Vilas et al.(9)
se geralmente associados a situações de redução da distinguem vários subtipos dentro do SNADC:
mobilidade articular e fraqueza muscular, fenómeno que Polineuropatia do Doente Crítico (PDC); miopatia
pode ocorrer isoladamente ou associado a patologia quadriplégica aguda, ou Miopatia Aguda dos Cuidados
neuromuscular.(1; 2) Intensivos (MACI) e bloqueio neuromuscular prolonga-
do. Apesar desta separação de etiologias, na prática
ALTERAÇÕES DA MOBILIDADE ARTICU- não é fácil realizar este diagnóstico diferencial e não
LAR raras vezes há uma sobreposição dos quadros clínicos.
A principal causa de alterações na mobilidade articular A PDC foi descrita pela primeira vez em 1984 por Bolton
do doente crítico são as contraturas articulares, devidas et al.(10) em cinco doentes que desenvolveram um qua-
ao encurtamento muscular e/ou alterações a nível do dro de difícil “desmame” da ventilação, após estabiliza-
tecido conjuntivo articular ou periarticular, que produz ção da doença crítica, acompanhado de flacidez e
diminuição da amplitude articular e dor.(4; 5) O diagnósti- arreflexia a nível dos membros. Trata-se de uma
co é feito com base na observação física e na medição polineuropatia distal axonal sensitiva e motora. A inci-
da amplitude articular através de goniometria – compa- dência desta patologia é maior em doentes com falên-
rando o grau de mobilidade com a articulação cia multiorgânica (70%), choque séptico (76%) e na com-
contralateral ou com tabelas de referência. binação de sepsis com falência multiorgânica (82%).(11)
Sendo a imobilidade uma causa importante para o de- Por vezes, a primeira manifestação da doença é o difícil
senvolvimento de contraturas, os doentes críticos, inca- “desmame” da ventilação mecânica, apesar do doente
pazes de se mobilizar de forma autónoma, tornam-se aparentar estar em condições de desconexão do venti-
um grupo especialmente vulnerável. Em 2008 foi publi- lador. Em outras situações a suspeita surge após a sus-
cado, por Clavet et al.(5), um estudo sobre a incidência pensão da sedação, verificando-se que o doente é inca-
de contraturas articulares após longa estadia em UCI, paz de mobilizar as extremidades.(9)
constatando-se que 39% dos doentes desenvolvera pelo A MACI, também conhecida por miopatia do doente crí-
menos uma contratura e que 34% desenvolvera pelo tico, foi descrita pela primeira vez em 1977, numa mu-
menos uma contratura causadora de limitação funcional lher asmática tratada com corticoides e relaxantes mus-
7
REVISTA DE SAÚDE AMATO LUSITANO 2012; 31:6-12
3. culares não despolarizantes. Trata-se de uma miopatia METODOLOGIA
primária (isto é, não é consequência da desinervação Esta investigação foi realizada na UCI do Hospital Amato
muscular) com elevada incidência no doente crítico, com Lusitano (HAL), Unidade Local de Saúde de Castelo Bran-
valores iguais ou até mesmo superiores à PDC. Na reali- co, uma unidade polivalente com 8 camas em funciona-
dade, o diagnóstico diferencial entre estas duas situ- mento e presentemente sem apoio de cuidados inter-
ações é difícil, implicando o recurso à médios. Trata-se de um estudo do tipo descritivo, de
eletromiografia.(9; 11) Na avaliação física destaca-se o nível I, que utiliza uma metodologia quantitativa. Em ter-
aparecimento de quadriplegia, que afeta tanto a mos temporais, trata-se de um estudo transversal, en-
musculatura próximal como a distal, acompanhada volvendo a colheita de dados à data da alta da UCI.
frequentemente de debilidade dos músculos flexores A questão de investigação colocada foi: “Quais as alte-
do pescoço, podendo incluir paralisia facial, mas ha- rações da mobilidade que afetam os doentes após
bitualmente com preservação dos movimentos oftál- internamento prolongado na UCI do HAL?”
micos. A sensibilidade, quando é possível avaliá-la, é A avaliação das alterações da mobilidade foi feita medi-
normal e os reflexos osteotendinosos encontram-se ante a análise da mobilidade articular e da força muscu-
geralmente diminuídos.(9) O desenvolvimento da MACI lar, utilizando testes específicos e validados para o efei-
está relacionado com quadros asmáticos e com a to. A mobilidade articular foi avaliada através da
administração de corticosteróides e relaxantes mus-
goniometria e a força muscular através da escala Medical
culares, e de forma menos evidente com a adminis-
Research Council (MRC). A análise terminou com a avalia-
tração de aminoglicosídeos e beta agonistas. (12) Se-
ção funcional, utilizando o índice Barthel, visando avali-
gundo um estudo realizado por Weber-Carstens et
ar o grau de dependência na realização das Atividades
al.(13), a inflamação sistémica durante a doença críti-
de Vida Diária (AVD) tendo em conta as alterações de
ca é o principal fator de risco para o desenvolvimen-
mobilidade encontradas.
to de miopatia. Em adição, a gravidade da doença
A população em estudo inclui a totalidade dos indivídu-
de base, a resistência à insulina (manifestada por
os com alta da UCI após um internamento superior a
hiperglicemia), a terapêutica com catecolaminas e
sete dias, sem história de alterações da mobilidade an-
sedativos parecem também estar relacionados com
tes do internamento. Foi selecionada uma amostra aci-
um aumento da incidência deste problema no doen-
dental, constituída por 11 elementos internados no ser-
te crítico. Em contraste com pressupostos anterio-
viço no intervalo temporal entre Novembro de 2010 e
res, neste estudo não se verificou uma relação signi-
Fevereiro de 2011.
ficativa entre o desenvolvimento da MACI e a admi-
nistração de doses baixas de hidrocortisona em situ-
RESULTADOS
ações de choque séptico.
Os doentes com internamento superior a uma semana
O bloqueio neuromuscular prolongado verifica-se em
representaram 39,39% do total de doentes admitidos
doentes críticos tratados com relaxantes musculares, ou
na UCI do HAL, nos meses de Novembro de 2010 a Fe-
bloqueadores neuromusculares, não despolarizantes, que
apresentam uma paralisia muscular de maior duração que vereiro de 2011.
a esperada, devido a um efeito prolongado do fármaco A taxa de mortalidade durante o internamento no servi-
e dos seus metabolitos. Clinicamente verifica-se uma ço, para este período, foi de 31%, constatando-se que
paralisia muscular generalizada com arreflexia. A suspei- 19% dos óbitos aconteceram no dia de admissão, 38%
ta diagnóstica deve estabelecer-se na presença de pa- entre o 2º e o 7º dia de internamento e 43% ocorreram
ralisia facial e/ou paralisia dos músculos oculomotores. além de uma semana de internamento. O óbito é o resul-
As alterações sensitivas são mínimas ou não existem. tado de aproximadamente 35% dos doentes com
Constituem fatores de risco para o bloqueio internamento prolongado.
neuromuscular prolongado: insuficiência renal e hepáti- Excluindo os óbitos, temos uma amostra 17 de doentes
ca, hipermagnesiemia, acidose metabólica e o uso com alta do serviço de cuidados intensivos após um
concomitante de vários antibióticos, especialmente internamento superior a uma semana. Dentro deste gru-
aminoglicosídeos e clindamicina. A paralisia geralmente po só foi possível efetuar a colheita de dados a 11 do-
não dura mais que duas semanas após a suspensão do entes, que correspondem à amostra efetiva desta inves-
fármaco e a recuperação é completa.(9; 14) tigação. Esta amostra é composta por 9 indivíduos do
8
REVISTA DE SAÚDE AMATO LUSITANO 2012; 31:6-12
4. sexo masculino (81,82%) e 2 do sexo feminino (18,18%), Para além da ventilação mecânica, ou mais especifica-
com idades compreendidas entre os 36 e os 82 anos mente do tempo de ventilação, foram analisados nesta
(média de 54,45 anos e desvio padrão de 16,4). O gráfi- investigação a existência de outros fatores de risco para
co 1 mostra a distribuição de frequências da amostra o desenvolvimento de alterações da mobilidade duran-
segundo o grupo etário. A duração média do te o internamento, nomeadamente: a perfusão de seda-
internamento foi de 19,27 dias, com mínimo de 8 e tivos, catecolaminas, bloqueadores neuromusculares,
máximo de 72 dias, e desvio padrão de 18,53. nutrição parentérica ou administração de
corticosteroides. Da totalidade da amostra apenas os 2
elementos que não foram ventilados invasivamente não
estiveram expostos a algum destes fatores. Todos os
doentes ventilados invasivamente estiveram sob
perfusão de sedativos, 5 doentes (45,45%) estiveram
expostos a 3 ou mais destes fatores de risco e uma
doente esteve exposta a todos os fatores de risco ana-
lisados. O gráfico 3 mostra o número de elementos da
amostra expostos aos diferentes fatores de risco anali-
sados.
GRÁFICO 1 - Distribuição de frequências segundo o grupo etário
A patologia respiratória foi o principal fator que moti-
vou o internamento destes doentes. Na amostra estu-
dada 90,91% dos elementos tiveram necessidade de
suporte ventilatório, predominando claramente a utili-
zação da ventilação invasiva em detrimento da ventila-
ção não invasiva (Gráfico 2). Em média o suporte
ventilatório foi aplicado durante 14,7 dias, com mínimo
GRÁFICO 3 - Número de utentes expostos aos diferentes fatores de risco analisados
de 4, máximo de 62 e desvio padrão de 17,41. Após a
extubação os doentes permaneceram na UCI em média Identificadas as situações de risco, importa também iden-
6 dias, com um mínimo de 2 e um máximo de 10 dias. tificar a existência de alguns fatores que possam contri-
buir para a prevenção de incapacidades ou para a sua
redução, ainda no decorrer do internamento. Assim, ava-
liamos se os doentes foram alvo de alguma intervenção
de reabilitação, prestada por fisioterapeutas ou enfer-
meiros. O resultado obtido foi que 72,73% da amostra
foi submetida a intervenções de reabilitação (incluindo
cinesioterapia respiratória e mobilização articular/forta-
lecimento muscular).
Terminado o internamento em cuidados intensivos os
doentes foram transferidos para os serviços
especializados no tratamento dos problemas remanes-
centes. Dentro deste grupo de doentes verificou-se uma
readmissão na UCI que faleceu durante o internamento.
Dos restantes doentes um foi transferido para o hospital
GRÁFICO 2 – Comparação proporcional do tipo de suporte ventilatório aplicado da área de residência (no dia seguinte à alta da UCI), 6
tiveram alta para o domicílio (em media após 10 dias) e
9
REVISTA DE SAÚDE AMATO LUSITANO 2012;31:6-12
5. 2 para a Rede Nacional de Cuidados Continuados Inte- igual número apresentou perda de força moderada a gra-
grados (após 16 dias no primeiro caso e 28 no segun- ve (índice MRC entre 40 e 80). De salientar que dois ele-
do). Um destes doentes passou pelo Centro de Medici- mentos apresentam perda de força considerada grave
na de Reabilitação da Região Centro (Rovisco Pais) em (índice MRC entre 40 e 60), o que traduz um estado de
virtude das sequelas adquiridas durante este fraqueza muscular que compromete a capacidade de re-
internamento. alizar movimentos que contrariem a ação da gravidade.
ALTERAÇÕES DA MOBILIDADE ARTICULAR AUTONOMIA NAS ATIVIDADES DE VIDA
Apesar das alterações da mobilidade articular serem, DIÁRIAS
segundo a bibliografia consultada, um problema impor- A avaliação da autonomia nas AVD foi realizada com
tante após a alta, nomeadamente devido ao desenvol- uma versão do Índice de Barthel em que a pontuação
vimento de contraturas, na avaliação realizada não foi final pode variar entre zero, dependência máxima, e 20,
verificada nenhuma situação de alteração da amplitude máxima autonomia.
de movimento disponível, de forma passiva nas articula- Nesta investigação foi encontrada uma avaliação do Ín-
ções testadas ou em outras articulações. dice de Barthel igual a zero, numa doente do sexo femini-
no, 36 anos, internada por pneumonia durante 72 dias,
ALTERAÇÕES DA FORÇA MUSCULAR dos quais 62 submetida a ventilação mecânica invasiva.
Contrariamente às alterações da mobilidade articular, a Para além destes fatores esta doente esteve ainda sob
grande maioria dos elementos da amostra desenvolveu todos os fatores de risco para o desenvolvimento de al-
alterações da força muscular. Em mais de 90% dos ca- terações da mobilidade que foram analisados (perfusão
sos verificou-se uma redução do Índice MRC [soma da de sedativos, catecolaminas, bloqueadores
pontuação dos testes / (número de músculos testados neuromusculares, nutrição parentérica e administração de
x 5) x 100] , com valores que variaram entre 54,2 e 92,5. corticosteroides). Esta doente, tal como os restantes, não
Em média o valor deste índice foi de 78,71 e o desvio desenvolveu alterações da mobilidade articular, em ter-
padrão de 13,51. Para melhor compreensão destas alte- mos de amplitude de movimento disponível, mas apre-
rações a nível no índice MRC, na Tabela 1 agrupamos os sentou um Índice MRC bastante baixo (54,17) apesar da
resultados em 5 classes, que correspondem a 5 graus reabilitação física que lhe foi prestada por enfermeiros e
de fraqueza muscular. fisioterapeutas durante a parte final do
internamento, após o período crítico,
mesmo antes da extubação.
Neste estudo foi também encontra-
da uma situação de autonomia máxi-
ma, que corresponde ao único doen-
te que não desenvolveu défices de
força muscular.
O índice médio foi de 8,60. Analisan-
do as respostas em cada item avalia-
do constatamos que à data da alta
da UCI:
- 50% dos doentes necessita ajuda
para o cuidado pessoal, não conse-
guindo lavar o rosto, os dentes, ou
TABELA 1- Resultados da avaliação do índice MRC agrupados por classes
barbear-se e pentear-se sozinhos;
- 80% não consegue entrar na banheira e tomar banho
Da análise da tabela constatamos que apenas numa situ- de forma independente;
ação não se verificou perda de força. Dentro do grupo de - 80% carece de alguma ajuda para se vestir, em maior
doentes com alteração de força, 5 elementos apresen- ou menor grau;
tam perda de força ligeira (índice MRC entre 80 e 100) e - 50% necessita ajuda para se alimentar;
10
REVISTA DE SAÚDE AMATO LUSITANO 2012; 31:6-12
6. - 80% carece de ajuda para se levantar da cama ou de 100%. Essa situação reporta-se a um indivíduo do sexo mas-
uma cadeira e 40% necessita mesmo de uma grande aju- culino, internado durante 10 dias por Tromboembolismo
da física para consegui-lo; Pulmonar, que não foi ventilado mecanicamente e que tam-
- 90% não consegue subir escadas de forma independente; bém não esteve sob influência de outros fatores de risco de
- 90% tem dificuldade em andar e 40% não consegue alterações da mobilidade, nem imobilização prolongada,
andar nem com ajuda; uma vez que a partir do 4º dia de internamento iniciou le-
- 90% tem controlo sobre a eliminação intestinal; vante e retomou progressivamente a atividade física.
- 80% não controla a função vesical por se encontrarem Em oposição, foi evidenciado um quadro compatível com
algaliados; polineuromiopatia do doente crítico, ou SNADC. Tratou-
- 80% não consegue ir à casa de banho. se de uma doente internada por pneumonia, que se fez
acompanhar de sepsis e falência multiorgânica, o que
DISCUSSÃO segundo a bibliografia consultada contribui para 82%
Os doentes com internamento prolongado correspondem de probabilidade de desenvolver PDC. (11) Tal como foi
a uma parte significativa do total de admissões na UCI referido na bibliografia a suspeita surgiu após a suspen-
em questão (39,39%). Para além disso, se somarmos os são da sedação, verificando-se que a doente era inca-
dias de internamento de todos os doentes com paz de mobilizar as extremidades. O desmame da venti-
internamento prolongado no período em análise, obte- lação foi difícil, apesar da doente aparentar estar em
mos 517 dias, que correspondem a 78,69% do total de condições de desconexão do ventilador.
dias de internamento na unidade nesse mesmo período. Mais importante que quantificar a limitação de uma arti-
Estes doentes, pelo tempo de permanência, pelas com- culação ou a fraqueza de um músculo, ou grupo muscu-
plicações iatrogénicas e pelas complexas terapêuticas lar, é conhecer as repercussões que essas alterações têm
realizadas, são os maiores consumidores de recursos hu- em cada pessoa. Os resultados obtidos através da análi-
manos e financeiros da unidade. Esta permanência pro- se do índice de Barthel apontam para estados de depen-
longada está na maior parte das vezes associada à ne- dência elevada, como é evidenciado na tabela 2, que
cessidade de ventilação mecânica, e consequentemente mostra a distribuição de frequências de acordo com o
de perfusão de sedativos e bloqueadores neuro-muscu- grau de dependência (foi excluída uma doente desta ava-
lares, com as complicações que daí advêm, não só a ní- liação por ter indicação de repouso absoluto). Constata-
se que 40% dos elementos da amostra apresenta um grau
vel físico como também a nível psicológico.
de dependência total, e igual número apresenta um grau
Contrariamente aos resultados obtidos por Clavet et al.(5)
de dependência grave. Apenas 20% apresenta um grau
que revelaram uma incidência significativa de contraturas
de dependência ligeiro, ou é independente. Assim, reve-
articulares após o internamento em cuidados intensivos,
la-se importante a implementação de programas de rea-
nesta investigação não foram detetadas situações de al-
bilitação, que promovam a recuperação da autonomia e
teração da amplitude de movimento disponível nas articu-
o acolhimento destes doentes, com elevado grau de de-
lações testadas. Pensamos que este facto não pode ser
pendência, nos serviços de destino após a alta.
dissociado da intervenção do fisiotera-
peuta e dos enfermeiros em especializa-
ção em Enfermagem de Reabilitação, que
contribuíram para que estes doentes fos-
sem mais e melhor mobilizados, com os
conhecidos benefícios que daí advêm.
No que diz respeito à força muscular,
a maioria dos doentes desenvolveu al-
terações que variaram entre situações
de ligeira redução da força a formas
graves de fraqueza generalizada.
Na amostra de 11 doentes, apenas se
verificou um caso de preservação da for- TABELA 1- Resultados da avaliação do índice MRC agrupados por classes
ça muscular, com um Índice MRC de
11
REVISTA DE SAÚDE AMATO LUSITANO 2012; 31:6-12
7. Os resultados demonstraram ainda uma correlação po- com envolvimento simétrico dos membros superiores,
sitiva entre o índice MRC e o índice de Barthel (coeficien- inferiores e do hemicorpo esquerdo e direito. Essa fra-
te de correlação de Spearman de +0,79), ou seja, os queza muscular está directamente relacionada com a
doentes que apresentam maior fraqueza muscular são perda de autonomia, havendo um elevado número de
os que têm maior grau de dependência, tal como é evi- doentes a ter alta da UCI num estado de dependência
denciado no gráfico 4, que mostra a dispersão dos re- total ou grave.
sultados da relação destas duas variáveis. Pelo exposto, fica clara a necessidade de iniciar um pro-
grama de reabilitação ao doente crítico o mais precoce-
mente possível, procurando evitar ou limitar o contacto
com os fatores de risco para o desenvolvimento de al-
terações da mobilidade, onde se inclui a opção pela
ventilação não invasiva quando indicado, o desenvolvi-
mento de programas de desmame de ventilação, a rea-
bilitação física e respiratória. (15; 16) Parece-nos também
importante que seja dada continuidade a esses progra-
mas mesmo após a alta dos cuidados intensivos, para
evitar a descontinuidade de cuidados e “fazer a ponte”
entre a UCI e a enfermaria. Desta forma para além de
estarmos a contribuir para melhores práticas e para mai-
or satisfação dos utentes, acreditamos estar também a
GRÁFICO 4 - Correlação entre o índice de Bharthel e o índice MRC
contribuir para reduzir a taxa de reinternamentos e o
tempo de hospitalização pós alta dos cuidados intensi-
CONCLUSÕES vos.
O internamento numa UCI é por norma um acontecimen-
to marcante na vida de uma pessoa. Essa importância
BIBLIOGRAFIA
relaciona-se, por um lado com o estado crítico, de pro- 1. Waldmann C. Common problems after ICU. In Bersten A, Neil S - Oh’s
ximidade com a morte, e por outro, com as marcas físi- Intensive Care Manual. 6ª ed. [s.l.] : Elsevier, 2009: 67-73
2. Griffiths R, Jones C. ABC of Intensive Care: Recovery from intensive care. BMJ.
cas e psicológicas que esse acontecimento provoca em 1999; 319: 427-429
3. Van der Schaaf M, Dettling DS, Beelen A, Lucas C, Dongelmans DA, Nollet
quem o vivencia. A duração do internamento, o estado
F. Poor functional status immediately after discharge from an intensive care unit.
crítico do doente e as terapêuticas agressivas a que é Disabil Rehabil. 2008;30(23):1812-1820
4. Moffat F, Jones M. Physiotherapy in intensiva care. In Bersten A, Neil S. Oh’s
submetido, contribuem para a deterioração da sua fun- Intensive Care Manual. 6ª ed. [s.l.] : Elsevier, 2009:43-51
ção física, ao mesmo tempo que se desenvolvem tam- 5. Clavet H, Hébert PC, Fergusson D, Doucette S, Trudel G. Joint contracture
following prolonged stay in the intensive care unit. CMAJ. 2008;178(6):691-
bém problemas a nível psicológico. Igualmente impor- 697
tantes são as consequências socioeconómicas. Um 6. Angel MJ, Bril V, Shannon P, Herridge MS. Neuromuscular funtion in survivor of
the Acute Respiratory Distress Syndrome. Can J Neurol Sci. 2007;34(4):427-432
internamento com estas caraterísticas, e o período de 7. Eikermann M, Koch G, Gerwig M, et al. Muscle force and fatigue in patients
convalescença que se segue, acarreta gastos avultados with sepsis and multiorgan failure. Intensive Care Medicine. Intensive Care Med.
2006;32(2):251-259
para o doente, para a sua família e também para o Siste- 8. Antoniazzi P, Ferraz F. Polineuromiopatia do doente crítico. Prática Hospitalar.
2008;57:126-128
ma Nacional de Saúde. As complicações adquiridas 9. Vilas E, Fernández JM, Navarro C, Suárez L, García de Lorenzo A. Síndrome
durante o internamento e o grau de dependência à data neuromuscular adquirido en el paciente crítico. Rev Neurol. 2006;42(11):674-680
10. Bolton CF, Gilbert JJ, Hahn AF, Sibbald WJ. Polyneuropathy in critically ill
da alta dos cuidados intensivos obrigam a manter uma patients. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 1984;47(11):1223-1231
quantidade de cuidados significativa, muitas vezes in- 11. Latronico N. Neuromuscular alterations in the critically ill patient: critical
illness myopathy, critical illness neuropathy or both? Intensive Care Med.
compatível com o regresso a casa. A Rede Nacional de 2003;29(9):1411-1413
Cuidados Continuados Integrados procura ser uma solu- 12. Skowronski G. Neuromuscular disorders in intensiva care. In Bersten A, Neil
S. Oh’s Intensive Care Manual. 6ª ed. [s.l.] : Elsevier, 2009:599-609
ção para estas situações, contudo, o acesso nem sem- 13. Weber-Carstens S, Deja M, Koch S, et al. Risk factors in critical illness
pre acontece com a facilidade e rapidez desejadas, obri- myopathy during the early course of critical illness: a prospective observational
study. Critical Care Published Online First: 18 Jun 2010. DOI:10.1186/cc9074
gando a prolongar o internamento hospitalar e manter o 14. Visser L. Critical illness polyneuropathy and myopathy: clinical features, risk
consumo de recursos diferenciados. factors and prognosis. Eur J Neurol. 2006(11):1203-1212
15. Enrico C, Nicolino A. Early physiotherapy in the respiratory intensive care unit.
Os resultados deste trabalho permitem-nos constatar que Respir Med. 2005;99:1096-1104
as alterações da mobilidade que afetam estes doentes 16. Puthucheary Z, Hart N. Intensive care unit acquired muscle weakness: when
should we consider rehabilitation? Critical Care Published Online First: 20 Jul
dizem sobretudo respeito à redução da força muscular, 2009. DOI: 10.1186/cc7937
12
REVISTA DE SAÚDE AMATO LUSITANO 2012; 31:6-12