O primeiro poema descreve as lembranças do eu-lírico da festa de São João de sua infância e como todos agora estão "dormindo profundamente", ou seja, mortos. O segundo poema mostra que a figura da Morte não é tão terrível quando se percebe que ela vem em paz, como um anjo. O terceiro poema trata de uma morte absoluta, onde nem o nome da pessoa é lembrado.
1. Profundamente
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam, errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.
***
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
Análise:
O poema pode ser dividido em duas partes : o
passado e o presente. O passado mostra as
lembranças do eu-lírico da noite de São João
(“Quando eu tinha seis anos”), ele dormiu antes do fim
da festa e ao acordar no meio da noite percebeu que o
barulho tinha se transformado em silêncio, porque
todos da casa estavam dormindo profundamente.
O presente mostra o hoje do eu-lírico, que não ouve
mais as vozes da noite de São João pois estão todos
dormindo profundamente, mas dessa vez no sentido
conotativo. Estão todos mortos.
O Homem e a Morte
O homem já estava deitado
Dentro da noite sem cor.
Ia adormecendo, e nisto
À porta um golpe soou.
Não era pancada forte.
Contudo, ele se assustou,
Pois nela uma qualquer coisa
De pressago adivinhou.
Levantou-se e junto à porta
- Quem bate? Ele perguntou.
- Sou eu, alguém lhe responde.
- Eu quem? torna. – A Morte sou.
Um vulto que bem sabia
Pela mente lhe passou:
Esqueleto armado de foice
Que a mãe lhe um dia levou.
Guardou-se de abrir a porta,
Antes ao leito voltou,
E nele os membros gelados
Cobriu, hirto de pavor.
Mas a porta, manso, manso,
2. Se foi abrindo e deixou
Ver – uma mulher ou anjo?
Figura toda banhada
De suave luz interior.
A luz de quem nesta vida
Tudo viu, tudo perdoou.
Olhar inefável como
De quem ao peito o criou.
Sorriso igual ao da amada
Que amara com mais amor.
- Tu és a Morte? Pergunta.
E o Anjo torna: - A Morte sou!
Venho trazer-te descanso
Do viver que te humilhou.
-Imaginava-te feia,
Pensava em ti com terror...
És mesmo a Morte? Ele insiste.
- Sim, torna o Anjo, a Morte sou,
Mestra que jamais engana,
A tua amiga melhor.
E o Anjo foi-se aproximando,
A fronte do homem tocou,
Com infinita doçura
As magras mãos lhe cerrou...
Era o carinho inefável
De quem ao peito o criou.
Era a doçura da amada
Que amara com mais amor.
Análise:
O poema fala da imagem que se tem da morte e
do pavor provocado por ela. O personagem, com
medo, tenta fugir, mas quando ela entra ele
percebe que a morte não é tão terrível assim e
que a sua figura se assemelha à de um anjo. Um
anjo que veio trazer paz e conforto, que é tão
doce quanto a amada “que amara com mais
amor”.
Morte Absoluta
Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão — felizes — num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto
da morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma
sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: “Quem foi?...”
Morrer mais completamente ainda,
— Sem deixar sequer esse nome.
Análise: O poema trata de uma morte que não
deixa saudade, que não deixa restos (corpo), que
não deixa um sinal de existência − uma morte
absoluta.
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