Este documento resume as principais fases e obras do poeta brasileiro Manuel Bandeira. Em três frases:
Apresenta as temáticas recorrentes na obra de Bandeira como amor, morte e solidão. Discorre sobre as três fases do poeta, desde seus primeiros poemas influenciados pelo parnasianismo e simbolismo até sua maturidade. Destaca alguns poemas característicos de cada fase, como "Desencanto" e "Cartas de meu avô" dos primórdios e "Balada de Santa Maria Egipcíaca
2. TEMÁTICAS
poesia e vida
morte doença amor erotismo
solidão metafísica infância paixão
saudade arte poesia modernismo
3. AS FASES DE BANDEIRA
poesia e modernismo
PRIMEIRA FASE
[neoparnasianismo, neo-simbolismo, modernismo]
A cinza das horas [1917] Carnaval [1919] O ritmo dissoluto [1924]
SEGUNDA FASE
[a cristalização do modernismo]
Libertinagem [1930] Estrela da manhã [1936]
TERCEIRA FASE
[maturidade: a estabilidade criadora]
Lira dos cinqu’entanos [1940] Belo belo [1948] Mafuá do malungo [1948]
Opus 10 [1930] Estrela da tarde [1960]
4. A CINZA DAS HORAS
1917, simbolismo [07 poemas]
ASPECTOS FORMAIS
[influências parnasianas e simbolistas]
formas fixas versos [rima, métrica] lirismo tradicional classicizante e medieval
ASPECTOS TEMÁTICOS
[período inicial da tuberculose do poeta]
dor doença morte solidão
POEMAS SELECIONADOS
[uma poética penumbrista]
“Desencanto”
“Cartas de meu avô”
“Poemeto erótico”
5. DESENCANTO
metalinguagem & lirismo amoroso
Eu faço versos como quem chora quase soneto [dois quartetos, um terceto e um verso solto]
De desalento... de desencanto...
Fecha meu livro, se por agora versos rimados e metrificados [eneassílabos, rimas alternadas]
Não tens motivo nenhum de pranto.
função catártica [poesia associada a expressão dos sentimentos]
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão... visão romântica, tradicional, da poesia [extravasamento subjetividade]
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração. representação do leitor
E nestes versos de angústia rouca a poesia está associada à expressão da interioridade e à vida
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca. lirismo amoroso + fusão do lírico com o biográfico [sofrimento, morte]
– Eu faço versos como quem morre. metalinguagem [a poesia fala da poesia]
6. CARTAS DE MEU AVÔ
lirismo amoroso &formas tradicionais
A tarde cai, por demais E enquanto anoitece, vou Enternecido sorrio
Erma, úmida e silente... Lendo sossegado e só, Do fervor desses carinhos:
A chuva, em gotas glaciais, As cartas que meu avô É que os conheci velhinhos,
Chora monotonamente Escrevia a minha avó. Quando o fogo era já frio.
forma [quadras + heptassílabos + vocabulário seleto] + lirismo amoroso [ternura e sensibilidade]
Cartas de antes do noivado... Temendo a cada momento A mão pálida tremia
Cartas de amor que começa, Ofendê-la, desgostá-la, Contando o seu grande bem.
Inquieto, maravilhado, Quer ler em seu pensamento Mas, como o dele, batia
E sem saber o que peça. E balbucia, não fala... Dela o coração também.
A paixão, medrosa, dantes, Depois o espinho do ciúme... E eu bendigo, envergonhado,
Cresceu, dominou-o todo. A dor... a visão da morte... Esse amor, avô do meu...
E as confissões hesitantes Mas, calmado o vento, o lume Do meu – fruto sem cuidado
Mudaram logo de modo. Brilhou, mais puro e mais forte. Que inda verde apodreceu.
lirismo amoroso [o amor dos avós alimenta o amor do sujeito poético]
O meu semblante está enxuto. E a noite vem, por demais E enquanto anoitece, vou
Mas a alma, em gotas mansas, Erma, úmida e silente... Lendo, sossegado e só,
Chora, abismada no luto A chuva em pingos glaciais, As cartas que meu avô
Das minhas desesperanças... Cai melancolicamente. Escrevia a minha avó.
7. POEMETO ERÓTICO
lirismo amoroso & metalinguagem
Teu corpo claro e perfeito Teu corpo é chama e flameja
Teu corpo de maravilha Como à tarde os horizontes...
Quero possuí-lo no leito É puro como nas fontes
Estreito da redondilha A água clara que serpeja,
Teu corpo é tudo o que cheira... Que em cantigas se derrama
Rosa... flor de laranjeira... Volúpia da água e da chama...
Teu corpo, branco e macio, A todo momento o vejo...
É como um véu de noivado... Teu corpo... a única ilha
No oceano do meu desejo...
Teu corpo é pomo doirado...
Teu corpo é tudo o que brilha,
Rosal queimado do estio, Teu corpo é tudo o que cheira...
Desfalecido em perfume... Rosa, flor de laranjeira...
Teu corpo é a brasa do lume...
forma [redondilha maior, irregularidade estrófica]
lirismo amoroso [metáforas sucessivas: celebra-se a paixão pelo corpo da amada: elogio + celebra entusiaticamente]
caráter sensual [reticências e caráter sinestésico + pomo doirado]
metáforas ígneas [rosal queimado no estio, brasa, chama]
8. CARNAVAL
1918, simbolismo [04 poemas]
ASPECTOS FORMAIS
[simbolismo, livra-se da influência parnasiana]
formas fixas caráter irônico caráter impressionista
ASPECTOS TEMÁTICOS
[anti-parnasianismo, defesa da liberdade formal]
anti-parnasianismo grande volume de símbolos musicalidade
POEMAS SELECIONADOS
[sapos e símbolos e músicas]
“Os sapos”
“Alumbramento”
“Debussy”
9. OS SAPOS
liberdade poética & metalinguagem
Enfunando os papos, Em ronco que aterra,
Saem da penumbra, Berra o sapo-boi
Aos pulos, os sapos. - "Meu pai foi à guerra!"
A luz os deslumbra. - "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!"
notem-se as atitudes exibicionistas dos sapos [poetas parnasianos] e seu deslumbre pela luz [gostam de publicidade]
O sapo tanoeiro, Vede como primo O meu verso é bom
Parnasiano aguado, Em comer os hiatos! Frumento sem joio.
Diz: - "Meu cancioneiro Que arte! E nunca rimo Faço rimas com
É bem martelado: Os termos cognatos. Consoantes de apoio.
metalinguagem irônica [aponta-executa ironicamente recursos]: crítica ao sapo tanoeiro [parnasiano]
Vai por cinqüenta anos Clama a saparia
Urra o sapo-boi:
Que lhes dei a norma: Em críticas céticas:
- "Meu pai foi rei!" - "Foi!"
Reduzi sem danos Não há mais poesia,
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!"
A formas a forma. Mas há artes poéticas..."
apropriação irônica do discurso parnasiano: Não há mais poesia, mas há artes poéticas
10. OS SAPOS
liberdade poética & metalinguagem
Brada em um assomo Ou bem de estatuário Outros, sapos-pipas
O sapo-tanoeiro: Tudo quanto é belo, (Um mal em si cabe)
- "A grande arte é como Tudo quanto é vário, Falam pelas tripas:
Lavor de joalheiro. Canta no martelo". - "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!"
apropriação paródica do poema “Profissão de Fé”, de Olavo Bilac [Torce, aprimora, alteia, lima a frase]
Longe dessa gritaria Lá, fugido ao mundo, Que soluças tu,
Lá onde mais densa Sem glória, sem fé, Transido de frio
A noite infinita No perau profundo Sapo-cururu
Verte a sombra imensa. E solitário é Da beira do rio.
sapo cururu: poesia autêntica, despida de artificialismos, moderna e popular [defesa da poesia modernista]
11. ALUMBRAMENTO
sensualidade & lirismo amoroso
Eu vi os céus! Eu vi os céus! Nem uma nuvem de amargura
Oh, essa angélica brancura Vem a alma desassossegar.
Sem tristes pejos e sem véus! E sinto-a bela... e sinto-a pura...
Eu vi nevar! Eu vi nevar! Eu vi o mar! Lírios de espuma
Oh, cristalizações da bruma Vinham desabrochar à flor
A amortalhar a cintilar! Da água que o vento desapruma...
Eu vi a estrela do pastor... E vi a Via-Láctea ardente...
Vi a licorne alvininente!... Vi comunhões... capela... véus...
Vi... vi o rastro do Senhor!... Súbito... alucinadamente...
Vi carros triunfais... troféus...
Pérolas grandes como a lua...
Eu vi os céus! Eu vi os céus!
– Eu vi-a nua... toda nua!
forma [versos octossilábicos e rimas alternadas]
nítida influência simbolista [reiterado uso de símbolos que sugerem o objeto de desejo do sujeito poético]
fusão do lírico e do místico [reúne impulso erótico, emoção poética e êxtase místico]
o termo alumbramento será retomado mais tarde, em Libertinagem, para se referir à nudez feminina
12. DEBUSSY
musicalidade & liberdade formal
Para cá, para lá...
Para cá, para lá...
Um novelozinho de linha...
Para cá, para lá...
Para cá, para lá...
Oscila no ar pela mão de uma criança
(Vem e vai...)
Que delicadamente e quase a adormecer o balança
– Psiu... –
Para cá, para lá...
Para cá e...
– O novelozinho caiu.
forma [versos livres e brancos – antecipa a liberdade formal do modernismo brasileiro]
música [repetições + anáfora + homenagem ao compositor francês – caráter simbolista]
ternura [presença de uma imagem encantadora + uso de diminutivos]
13. O RITMO DISSOLUTO
1924, modernismo [09 poemas]
ASPECTOS FORMAIS
[transição: entre a tradição e a modernidade]
métrica e rima simplicidade, coloquialismo prosaísmo versos livres
ASPECTOS TEMÁTICOS
[uma poesia participante e cotidiana]
elementos populares imagens brasileiras aspectos biográficos poesia participante
POEMAS SELECIONADOS
[um poeta moderno]
“Balada de Santa Maria Egipcíaca” “Os sinos”
“Gesso” “Berimbau”
14. BALADA DE SANTA MARIA EGIPCÍACA
religiosidade & erotismo
fontes [poema inspirado num romance – narrativa – espanhol do século XII]
[conta-se a história de Maria do Egito: prostituta que virou santa]c
certa feita, ia atravessar o rio e não tinha dinheiro; então, oferece [a pedido do barqueiro] sua nudez
forma [versos livres e brancos]
antecipa de certa forma a mulher degredada que é redimida pelo olhar do sujeito poético [lirismo social]
o lirismo social também está presente em “Meninos carvoeiros”, que denuncia a pobreza e o trabalho infantil
15. OS SINOS
fusão lírico-biográfico & musicalidade
Sino de Belém,
Sino da Paixão...
Sino de Belém, sino [metáfora polissêmica]
Sino da Paixão...
Sino do Bonfim!... Belém [celebração da vida]
Sino do Bonfim!...
Sino de Belém, pelos que ainda vêm! Paixão [constatação do poder da morte]
Sino de Belém bate bem-bem-bem.
Bomfim [antevisão da finitude humana]
Sino da Paixão, pelos que lá vão!
Sino da Paixão bate bão-bão-bão. notações biográficas
Sino do Bonfim, por quem chora assim?...
Sino de Belém, que graça ele tem! referências explícitas à morte [pai, mãe, irmã, irmão]
Sino de Belém bate bem-bem-bem.
angústia ante a constatação da morte iminente
Sino da Paixão – pela minha irmã!
Sino da Paixão – pela minha mãe! forma [decassílabos, pentassílabos, onomatopéias]
Sino do Bonfim, que vai ser de mim?
Sino de Belém, como soa bem! a alusão aos aspectos biográficos [tuberculose, morte]
Sino de Belém bate bem-bem-bem.
também aparece em “Na rua do sabão”, deste livro
Sino da Paixão... Por meu pai?... – Não! Não...
Sino da Paixão bate bão-bão-bão.
Sino do Bonfim, baterás por mim?
16. GESSO
esteticismo & tensão poético-prosaico
Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova
– O gesso muito branco, as linhas muito puras –
Mal sugeria imagem de vida
(Embora a figura chorasse).
Há muitos anos tenho-a comigo.
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de pátina amarelo-suja.
forma [versos livres e brancos] + metáfora [estátua representa a condição humana – viver é sujar, é murchar]
Os olhos, de tanto a ollharem,
Impregnaram-na da minha humanidade irônica de tísico.
Um dia mão estúpida
Inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos,
recompus a figurinha que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo mordente de pátina.
fusão do lírico com o biográfico + humanização da estátua + o poético supera o prosaico [micro-narrativa + cotidiano]
Hoje este gessozinho comercial
É tocante e vive, e me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.
17. BERIMBAU
musicalidade & imagens brasileiras
Os aguapés dos aguaçais
Nos igapós dos Japurás
Bolem, bolem, bolem.
Chama o saci: – Si si si si!
– Ui ui ui ui ui! uiva a iara
nos aguaçais dos igapós
Dos Japurás e dos Purus.
A mameluca é uma maluca.
Saiu sozinha da maloca –
O boto bate – bite bite...
Quem ofendeu a mameluca?
– Foi o boto!
O Cussaruim bota quebrantos.
Nos aguaçais os aguapés
– Cruz, canhoto! –
Bolem… Peraus dos Japurás
De assombramentos e de espantos!...
forma [predomínio de octossílabos] + vocabulário amazonense [aguapés, Japurá, igapós, purus]
folclore [saci, iara, cussaruim, boto – peixe que tira a virgindade das mulheres]
musicalidade [onomatopéias e paronomásias] + poesia brasileira, versátil e bem-humorada
18. LIBERTINAGEM
1930, modernismo [15 poemas]
ASPECTOS FORMAIS
[libertação dos modelos tradicionais]
versos brancos simplicidade, coloquialismo prosaísmo versos livres
ASPECTOS TEMÁTICOS
[cenas e imagens brasileiras]
lirismo amoroso imagens brasileiras aspectos biográficos liberdade alucinante
POEMAS SELECIONADOS
[anseio de liberdade vital]
“Pensão familiar” “O cacto”
“Pneumotórax” “Poética”
“Porquinho da Índia” “Evocação do Recife”
“Profundamente” “Vou-me embora pra Pasárgada”
19. PENSÃO FAMILIAR
modernismo & crítica à burguesia
Jardins da pensãozinha burguesa.
Gatos espapaçados ao sol.
A tiririca sitia os canteiros chatos.
O sol acaba de crestar as boninas que murcharam.
Os girassóis
amarelo!
resistem.
E as dálias, rechonchudas, plebéias, dominicais.
Um gatinho fez pipi.
Com gestos de garçom de restaurante-Palace
Encobre cuidadosamente a mijadinha.
Sai vibrando com elegância a patinha direita:
– É a única criatura fina da pensãozinha burguesa.
pensão: espaço burguês; primeira estrofe: sequências descritivas + assonância + aspecto visual + caráter plástico];
segunda estrofe: sequência narrativa + uso figurado [e ambíguo] do diminutivo; poema prosaico x lirismo social;
diminutivo: gatinho, mijadinha, patinha x pensãozinha [afetividade x ironia]: crítica aos costumes burgueses;
crítica: não-refinamento da burguesia + à ostentação de aparências + valorização do cotidiano + versos livres e brancos
20. O CACTO
caráter plástico & paisagem brasileira
Aquele cacto lembrava os gestos desesperados de estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes.
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.
Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas
[privou a cidade de iluminação e energia.
– Era belo, áspero, intratável.
poesia extraída do cotidiano [poema inspirado em fato real: um grande cacto, arrastado pelo vento, tombou numa avenida]
comparações [Laocoonte: personagem da Eneida: esmagado por serpentes]
comparações [Ugolino: personagens da história italiana, aparecem na Divina comédia; morreram de fome numa torre]
comparações [Nordeste: aspereza, resistência; desespero, dor do drama humano; vegetal retorcido pela dor, que resiste]
21. PNEUMOTÓRAX
lírico-biográfico & auto-ironia
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
– Diga trinta e três.
– Trinta e três... trinta e três... trinta e três.
– Respire.
................................................................................................
– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo
[e o pulmão direito infiltrado.
– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
Neste poema-diagnóstico, o locutor aborda ironicamente seu problema de saúde.
Fusão do eu-lírico com o eu-biográfico [destaque verso 2] + ironia ao abordar morte inevitável.
último verso: o carpe diem é irônico e desiludido [a iminência da morte não dá origem à auto-comiseração].
22. POÉTICA
metalinguagem & poesia-libertação
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto
expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
metalinguagem: definição da liberdade temática e lingüística na poesia [defesa da liberdade de expressão poética]
crítica ao Parnasianismo [comedido: contenção emocional: impassibilidade] e às formalidades
defesa da liberdade [anáfora: terceira estrofe] lingüística e rítmica
23. POÉTICA
metalinguagem & poesia-libertação
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que
seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras
de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare
– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
crítica ao Romantismo [namorador, político, raquítico, sifilítico] e a tudo aquilo que limita a expressão poética
defesa da de um lirismo libertário [anáfora: reforço poético]
24. PORQUINHO-DA-ÍNDIA
lirismo & ternura
Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor no coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos e mais limpinhos
Ele não se importava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
– O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.
experiência amorosa [a aprendizagem da desilusão]
presença da infância e da ternura [porquinho, limpinho, ternurinhas]
aspectos formais [versos livres e brancos + coloquialismos]
25. EVOCAÇÃO DO RECIFE
lírico-biográfico & imagens brasileiras
Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
– Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância.
memória afetiva + a paisagem brasileira [o lírico se sobrepõe ao histórico e ao turístico]
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e
[partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava pincenê
[na ponta do nariz.
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com
[cadeiras, mexericos, namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
fusão do lírico com o biográfico [imagens da infância + mitos familiares + cotidiano do Recife Antigo]
26. EVOCAÇÃO DO RECIFE
lírico-biográfico & imagens brasileiras
Coelho sai!
Não sai!
A distância as vozes macias das meninas palitonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro me dá um botão
(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão)
incorporação de elementos da cultura popular [cantigas de roda] + sinestesia [vozes macias] + engajamento
De repente
nos longes da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir
[ver o fogo.
valorização do espaço em branco da página + valorização das tradições populares nordestinas [festas juninas]
27. EVOCAÇÃO DO RECIFE
lírico-biográfico & imagens brasileiras
Rua da União...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Atrás da casa ficava a rua da Saudade...
... onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da rua da Aurora...
... onde se ia pescar escondido
nostalgia [a infância aparece como uma época idílica, na qual tudo é permitido] + liberdade formal + coloquialismo
Capibaribe
– Capiberibe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
referência a uma contenda que tivera com o professor de português + intratextualidade
28. EVOCAÇÃO DO RECIFE
lírico-biográfico & imagens brasileiras
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não
entendia bem.
oralidade [defesa dos princípios modernistas]
29. PROFUNDAMENTE
lírico-biográfico & presença da morte
Quando ontem adormeci No meio da noite despertei
Na noite de São João Não ouvi mais vozes nem risos
Havia alegria e rumor Apenas balões passavam errantes
Estrondos de bombas luzes de Bengala Silenciosamente
Vozes cantigas e risos Apenas de vez em quando
Ao pé das fogueiras acesas. O ruído de um bonde
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
poema de caráter prosaico [micro-fábula sobre a morte e a recordação do período da infância] + liberdade formal
30. PROFUNDAMENTE
lírico-biográfico & presença da morte
– Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
– Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
sono: metáfora da morte [inevitabilidade] + mitos familiares
31. VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA
utopia & aspectos biográficos
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
utopia: projeto de natureza irrealizável; idéia generosa, porém impraticável; quimera, fantasia
por que utopia?: o locutor encontra-se em uma situação privilegiada [amigo do rei], de exceção
Pasárgada: espaço de realização amorosa; lugar de aventuras inconsequentes [segunda estrofe]
Pasárgada: espaço em que o locutor tem proximidade com o poder [segunda estrofe]
intertexto: sutil alusão à “Canção do exílio” [aqui eu não sou feliz; lá a existência é uma aventura]
32. VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA
utopia & aspectos biográficos
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
TERCEIRA ESTROFE [a apresentação do espaço utópico]
verbos no futuro: situam a vivência da utopia num tempo posterior ao vivido
a utopia: realização de atividades físicas, ligação com a cultura popular, volta da infância
aspectos biográficos: nota-se sutil alusão à doença de Bandeira, que o impossibilitava de
realizar atividades físicas, por isso torna-se necessário fugir do presente e partir em busca do sonho
33. VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA
utopia & aspectos biográficos
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone à vontade
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
QUARTA ESTROFE [a apresentação do espaço utópico]
a utopia bandeiriana evidencia ao leitor a incompatibilidade entre os anseios do sujeito poético
e a situação de impotência vivenciada e mostra porque é necessário partir para outra civilização
a utopia: sexo livre e despreocupação com filhos; tecnologia; drogas-remédio;
sequência anafórica
34. VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA
utopia & aspectos biográficos
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
– Lá sou amigo do rei –
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
QUINTA ESTROFE [a metafísica bandeiriana]
Encontra-se, na quinta estrofe, novamente, uma sutil alusão aos elementos que motivam a fuga do sujeito poético do
presente trágico. A morte [sempre presente na obra de Bandeira] aparece como consequência de uma incontornável e
e angustiante tristeza. Essa tristeza emerge da situação de impotência em que se encontra o sujeito poético, entretanto,
reflete a fragilidade da condição existencial de todo ser humano, que, dado às múltiplas impossibilidades do presente,
acaba por sonhar com um mundo no qual a realização de seus desejos não encontrará obstáculos.
[heranças barroca, romântica e simbolista]
35. ESTRELA DA MANHÃ
1936, modernismo [19 poemas]
POEMAS SELECIONADOS
[a plenitude poética]
“Estrela da manhã” “Tragédia brasileira”
“Poema do beco”
“Momento num café” “Trem de ferro”
36. ESTRELA DA MANHÃ
pecado & ternura & lirismo
Eu quero a estrela da manhã Pecai com os malandros
Onde está a estrela da manhã? Pecai com os sargentos
Meus amigos meus inimigos Pecai com os fuzileiros navais
Procurem a estrela da manhã Pecai de todas as maneiras
Ela desapareceu ia nua Com os gregos e com os troianos
Desapareceu com quem? Com o padre e com o sacristão
Procurem por toda a parte Com o leproso de Pouso Alto
Digam que sou um homem sem orgulho Depois comigo
Um homem que aceita tudo Te esperarei com mafuás novenas
Que me importa? […] comerei terra e direi coisas de uma
Eu quero a estrela da manhã ternura tão simples que tu desfalecerás
Três dias e três noites Procurem por toda parte
Fui assassino e suicida Pura ou degredada até a última baixeza
Ladrão, pulha,falsário Eu quero a estrela da manhã
Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos
estrela da manhã: metáfora da poesia bandeiriana [poesia, alumbramento, idéia de plenitude] + Vênus [deusa, planeta]
busca apaixonada por uma figura feminina capaz de revelar diversas facetas
37. POEMA DO BECO
lirismo social & forma sugere conteúdo
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
– O que eu vejo é o beco.
primeiro verso: remete a espaços abertos [sugestão fônica: sons abertos + grande extensão]
segundo verso: remete a espaço fechado [sugestão fônica: sons fechados + pequena extensão]
opção por uma poética que focaliza as coisas simples do cotidiano e que denuncia problemas sociais
aspecto biográfico [Beco das Carmelitas: logradouro onde o poeta viveu durante 13 anos: Lapa: Carmelitas x Prostitutas]
intratextualidade [o tema do beco volta em “Segunda canção do beco” e em “Última canção do beco”]
38. TRAGÉDIA BRASILEIRA
intertextualidade inter-gêneros
Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade, conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída,
com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista,
manicura... Dava tudo quanto ela queria.
Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.
Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de
casa.
Toda vez que Maria Elvira arranjava um amante, Misael mudava de casa.
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Vila
Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos,
Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...
Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis
tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.
épico [texto em prosa + elementos da narrativa] + lírico [lirismo amoroso + linguagem] + dramático [título + assassinato]
texto elaborado a partir de uma notícia de jornal [trabalho poético: lugares + organdi azul + desencontro dos amantes]
39. MOMENTO NUM CAFÉ
morte & lirismo metafísico
Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.
Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.
forma [estrofes irregulares com versos livres e brancos]
poesia extraída do cotidiano [uma simples cena de rua se transforma em poesia + compreensão dolorosa e resignada]
paradoxo-materialismo [saudava a matéria que passava liberta para sempre da alma extinta]
respingos do biográfico [temática recorrente + celebração da matéria liberta]
40. TREM DE FERRO
poesia e invenção
Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virge Maria que foi isto maquinista?
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
primeira estrofe: a repetição do trecho “café com pão” imita onomatopaicamente os sons produzidos pelo trem de ferro
segunda estrofe: a repetição da vogal /i/ [Virge Maria que foi isto maquinista] sugere o som produzido pela campainha
terceira estrofe: o metro de 4 sílabas [muito curto] sugere que o trem se desloca rapidamente pela estrada
41. TREM DE FERRO
poesia e invenção
Ôô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar
o predomínio dos versos de três sílabas sugere um aumento de velocidade no deslocamento do trem;
aliteração sugere os estouros na fornalha: passa povo/ passa ponte/ passa poste/ passa pasto/ passa boi/ passa boiada
42. TREM DE FERRO
poesia e invenção
Ôô...
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Ôô...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matá minha sede
Ôô...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Ôô...
O uso do metro pentassílabo indica a diminuição do ritmo
O uso do coloquialismo indica o lugar por onde passa o trem [zona rural]
43. TREM DE FERRO
poesia e invenção
Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente
Se na estrofe anterior, havia a presença do metro de cinco sílabas, na última estrofe do poema, usa-se o
metro de três sílabas = aumento da velocidade [do trem]
repetição da forma verbal “vou” = reforço de sentido
repetição do verso “pouca gente” = onomatopéia [barulho produzido pelo trem]
44. LIRA DOS CINQÜENT’ANOS
1940, modernismo [20 poemas]
POEMAS SELECIONADOS
[retomada de algumas formas fixas]
“Maçã” “Belo belo”
45. A MAÇÃ
lirismo amoroso & lirismo metafísico
Por um lado te vejo como um seio murcho
Pelo outro como um ventre de cujo umbigo pende
ainda o cordão
[placentário
És vermelha como o coração do amor divino.
Dento de ti em pequenas pevides
Palpita a vida prodigiosa
Infinitamente.
E quedas tão simples
Ao lado de um talher
Num quarto pobre de hotel.
natureza morta [maçã ou prostituta dentro de um quarto de hotel]
o quadro é composto por justaposição [cena prosaica de uma refeição rápida]
a cena constrói num espaço de intimidade [quarto] e mostra uma mulher decaída, associada à cor vermelha
cor vermelha [sexualidade + religiosidade: proposta de resgate poético da mulher caída]
seio murcho X cordão placentário, pevides [sementes]
46. BELO BELO
intratextualidade & lirismo metafísico
Há dois poemas com este título [intratextualidade]: no primeiro, o locutor afirma ter tudo o que quer
[fogo das constelações, lágrimas da aurora, segredo da noite]
recusa êxtases e tormentos, o penar dos trabalhos e a dádiva dos anjos, diz não querer amar nem ser amado, apenas
a delícia de poder sentir as coisas simples
o segundo poema é uma espécie de retratação, em que o locutor afirma ter tudo o que não quer
[não quer óculos, tosse e obrigação de voto], mas deseja coisas inatingíveis
ao final do poema, o locutor reflete ironicamente: Mas basta de lero-lero: vida, noves fora zero.
47. BELO BELO
1948, modernismo [13 poemas]
POEMAS SELECIONADOS
[metáforas da aceitação da vida]
“O bicho” “Neologismo”
“A realidade e a imagem”
48. O BICHO
poesia participante & lirismo social
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos
Quando encontrava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava
Engolia com voracidade
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
indignação do sujeito poético diante de uma cena de exclusão social [suspense: gradação]
49. NEOLOGISMO
lirismo amoroso
Beijo pouco, falo menos ainda,
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.
50. A REALIDADE E A IMAGEM
a metafísica do biográfico
O arranha-céu sobe no ar puro lavado pela chuva
e desce refletido na poça de lama do pátio.
Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separa,
quatro pombas passeiam.
o locutor observa a paisagem da janela de seu apartamento:
cena prosaica [poesia extraída do cotidiano] na qual se insere o poético [pombas que passeiam] e o biográfico [quarto]
51. OPUS 10
1952, modernismo [09 poemas]
POEMAS SELECIONADOS
[poemas de circunstância]
“Boi morto” “Consoada”
52. BOI MORTO
lirismo metafísico
Como em turvas águas de enchente,
Me sinto a meio submergido
Entre destroços do presente
Dividido, subdividido,
Onde rola, enorme, o boi morto.
boi [metáfora]
Boi morto, boi morto, boi morto.
[reflexão sobre o destino do corpo humano no tempo]
Árvores da paisagem calma,
Convosco – altas, tão marginais! – retomada do metro octossilábico + repetição [boi: 16 vezes]
Fica a alma, a atônita alma,
Atônita para jamais. metáfora
Que o corpo, esse vai como boi morto. [entre os destroços do presente, o sujeito poético]
Boi morto, boi morto, boi morto. [sente-se esfacelado: seu corpo é como o boi morto]
Boi morto, boi descomedido, repetição [fixa a idéia do fluxo do tempo q leva o homem e o boi]
Boi espantosamente, boi
Morto, sem forma ou sentido
Ou significado. O que foi
Ninguém sabe. Agora é boi morto,
Boi morto, boi morto, boi morto!
53. CONSOADA
lirismo metafísico & enfrentando a morte
Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez, eu tenha medo.
Talvez eu sorria e diga:
– Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer,
(A noite com os seus sortilégios)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta
Cada coisa em seu lugar.
apenas do nome [consoada: pequena refeição noturna], trata-se de um poema que fala da preparação para a morte
o tom do poema é de apaziguamento, de aceitação [o locutor se mostra familiarizado com a morte]
intertexto [A desejada das gentes, conto de Machado de Assis]
54. ESTRELA DA TARDE
1960, modernismo [19 poemas]
POEMAS SELECIONADOS
[a volta de Vésper]
“Preparação para a morte”
55. PREPARAÇÃO PARA A MORTE
lirismo metafísico & enfrentando a morte
A vida é um milagre,
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre,
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu vôo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre,
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
– Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.