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1
A IDEIA DAAUFKLÄRUNG KANTIANA: SOBRE O DEVER DE ESCLARECER-SE
COMO PRESSUPOSTO DA DESTINAÇÃO MORAL DO HOMEM
José Eltondion de Vasconcelos1
RESUMO
O presente ensaio versa sobre a possibilidade da destinação moral do homem a partir da ideia
da Aufklärung kantiana, sobre o pressuposto do dever de esclarecer-se. Partimos da constatação
da menoridade do homem que é sua incapacidade de agir sem a tutela de outrem. Em seguida
apresentamos o cultivo da vontade e do entendimento como ferramenta para se trilhar o
percurso do esclarecimento e, por fim, confrontamos a ideia do esclarecimento com a
destinação moral do homem a partir de seus desdobramentos na história por meio da espécie
humana. Portanto, não nos arrogamos em esgotar o problema da Aufklärung, mas oferecemos
algumas chaves de leitura para os que, mais profundamente, desejarem se deter nessa vasta
problemática do sistema kantiano.
Palavras-chave: Esclarecimento; Dever; Destinação moral; Kant.
1 INTRODUÇÃO
Immanuel Kant (1724-1804), está situado em uma época caracterizada pela grande
produção científica e pela busca incessante de grandes pensadores em superar o discurso
teológico dogmático vigente até então, com o intuito de levar o homem ao sucesso e ao
progresso por meio de sua razão. Quando tinha cerca de 57 anos, Kant se inscreveu em um
movimento intelectual na Alemanha chamado Aufklärung (esclarecimento), que também
repercutiu na França com a Revolução Francesa e seus ideais de liberdade, igualdade e
fraternidade.
A filosofia de Kant se configura pela superação das correntes empirista e racionalista
e procurou responder a quatro perguntas fundamentais: “O que posso saber?, o que devo
fazer?, o que me é permitido esperar? e, finalmente, o que é o homem?” 2
Sendo esta última
pergunta a mais abrangente no sistema kantiano. Das muitas obras de Kant, as três críticas a
1
Licenciando em Filosofia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA, sob a orientação do Prof. Ms. José
Edmar Lima Filho. E-mail: meunomeeltondion@hotmail.com.
2
SAMPAIO, R. G. Metafísica e modernidade; método e estrutura, temas e sistema em Henrique Cláudio de Lima
Vaz, 2006, p.310.
2
saber: a Crítica da razão pura (1781), a Crítica da razão prática (1788) e a Crítica do juízo
(1790), além da Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático (1798) que, juntas, formam o
esqueleto de seu colossal pensamento e se propõem a responder as quatro indagações básicas
anteriormente citadas.
A indagação sobre o que é o homem? será a base do nosso estudo dentro do vasto
sistema kantiano. Na obra Resposta à pergunta: O que é esclarecimento? nos deteremos em
demostrar a passagem do estado de menoridade do homem rumo ao esclarecimento, a partir da
ideia de ilustração herdada do Iluminismo. Em seguida apresentaremos o cultivo da Vontade e
do Entendimento como um caminho seguro para que o homem se esclareça, a partir da doutrina
da virtude presente na Metafísica dos costumes. E, por fim, chegaremos no desdobramento da
Aufklärung kantiana que é a destinação moral do homem, ideia presente, principalmente nas
obras Antropologia de um ponto de vista pragmático e Ideia de uma história universal com um
propósito cosmopolita. A articulação entre essas obras articuladas a outras coadjuvantes,
procurará demonstrar a existência de um progresso não somente científico-cultural do homem,
mas sobretudo seu crescimento moral ao longo da história.
Portanto, este ensaio pretende apresentar, embora de forma propedêutica, um
progresso na filosofia de Kant a partir da ideia de uma destinação moral do homem. Essa
proposta de progresso moral do indivíduo permeia todo o texto desde a demonstração da
menoridade do homem e seu esforço para superar tamanha condição de tutela até a realização
de sua destinação por meio da humanidade na história.
2 O CONCEITO KANTIANO DE AUFKLÄRUNG COMO RESPOSTA AO IDEAL DE
ILUSTRAÇÃO MODERNO
A ideia da Aufklärung kantiana se estabelece a partir da herança de progresso recebida
do iluminismo. Em linhas gerais, o Iluminismo foi um movimento que se aliou à
fundamentação antropocêntrica moderna, em que o homem podia, por meio de sua razão, levar
adiante a tarefa de progredir e se emancipar de toda uma cosmovisão embasada em uma
tradição misticista e religiosa que o precedia. Junto às grandes revoluções na Filosofia da
Natureza operadas por Copérnico e Galileu, aos avanços da física newtoniana (pela qual Kant
era fascinado) e às descobertas químicas de Lavoisier, este foi um momento histórico
particularmente fecundo, que contou com a militância de muitos pensadores como Rousseau,
Voltaire e Diderot, dentre outros, que postulavam uma ascensão do homem das trevas à luz,
3
considerando-se obscura a época3
em que o homem esteve sob o jugo do determinismo
religioso com suas superstições e dogmas, posto que uma divindade sobrenatural como que
controlava as ações humanas impondo-se como verdade última e inquestionável.
Kant, como membro dessa tradição filosófica do Iluminismo, teve sua peculiaridade
na abordagem de determinadas questões. A grande perspicácia dele foi abordar a questão do
esclarecimento não como um movimento meramente político, voltando a discussão para o
aspecto intelectual e moral, até então praticamente inexplorado pelos filósofos iluministas. O
projeto filosófico de Kant é, “[...] de certa forma, mais ambicioso no que se refere ao homem.
Espera uma transformação completa da natureza humana, [posto que] acredita que o homem
pode aperfeiçoar-se”4
. Desse modo, a ideia de progresso ainda continua presente em Kant, mas
agora a elevação do homem deixa de ser somente científico-tecnológica, mas também, e
sobretudo, moral; a discussão, portanto, deixa de ser apenas gnoseológica para assumir um viés
ético, para o qual o homem se destina através do exercício livre de sua racionalidade.
O projeto kantiano de esclarecimento (Aufklärung) tem como ponto de partida a
constatação da menoridade que, para Kant, é a incapacidade que existe no homem de agir
sozinho, sem a direção de outro. Kant compreende que é extremamente necessário que o
homem supere essa situação de dependência, ao mesmo tempo em que percebe a existência de
uma enorme dificuldade do homem em realizar tamanho intento.
Entre os maiores empecilhos para a efetivação do esclarecimento estão a preguiça e a
covardia. Ambos, como dois vilões do estágio de menoridade, impedem o caminho rumo ao
esclarecimento. Isso ocorre porque o homem, preguiçoso e covarde5
, dificilmente se encorajará
em sair de seu marasmo e pôr-se a caminho para buscar esclarecer-se e, nesse sentido, é ele o
principal culpado por seu estado de menoridade. Ademais, “é muito cômodo ser menor”6
, o que
significa dizer que é bastante confortável ter um tutor para nos conduzir na execução de uma
determinada ação ou até realiza-la por nós, em vez de despendermos esforço e tempo para
agirmos sozinhos e, por isso, Kant constata que não será fácil para o homem dar o salto da
menoridade ao esclarecimento:
3
Talvez por isso o período anterior ao Iluminismo tenha ficado caracterizado como certa Idade das Trevas, em
oposição ao Século das Luzes inaugurado na modernidade.
4
CHÂTELET, F. Uma história da razão, 1994, p. 90.
5
A ideia de uma antropologia negativa, se é que se pode usar tal expressão, que justifica as características da
preguiça e da covardia são retomadas em Ideia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita,
sobretudo na Quarta Proposição (cf. KANT, I. Ideia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita,
s/d, p. 7-9).
6
KANT, I. Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?, In: Textos seletos, 1985, p. 100.
4
É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da
menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar
amor a ela, sendo por ora realmente incapaz de utilizar seu próprio
entendimento, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim proceder.
Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou, antes,
do abuso de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua menoridade.
Quem deles se livrasse só seria capaz de dar um salto inseguro mesmo sobre o
mais estreito fosso, porque não está habituado a este movimento livre. Por isso
são muito poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio
espírito, emergir da menoridade e empreender então uma marcha segura7
.
Kant nos chama a atenção para a possibilidade de ocorrer o esclarecimento de alguns
homens por si mesmos. Essa possibilidade, entretanto, lhes será demasiado penosa por conta do
hábito de toda uma vida de ação tutelada, pelo que se apresenta, assim, a necessidade do
homem em esforçar-se para agir livremente. De fato, a ação tutelada dos homens é algo que
perpassa toda uma tradição histórica. Desde pequenos nos acostumamos a viver sob a tutela de
outro indivíduo e isso, de certa forma, nos oferece uma falsa sensação de segurança.
Dentre as várias maneiras de tutela, uma é indicada por Kant como particularmente a
mais perigosa, a tutela religiosa, da qual o homem é consciente. Mesmo assim, muitas vezes o
sujeito insiste em nela permanecer por vontade própria, inviabilizando o percurso do
esclarecimento. A respeito disso Kant comenta:
Nesses casos, porém, os seres humanos se inclinam a garantir mais segurança
para sua pessoa renunciando a todo uso próprio da razão e submetendo-se
passiva e obedientemente aos dogmas introduzidos por homens santos. Mas
não o fazem tanto por sentimento de sua incapacidade no conhecimento (pois
a essência de toda religião é a moral, que logo aparece a todo ser humano
como evidente por si mesma) quanto por artimanha, em parte para poder
atribuir a culpa aos outros, caso possa haver algo errado, em parte e
principalmente para escapar habilmente àquilo que é essencial (a modificação
do coração), que é muito mais difícil que o culto8
.
Ser tutelado pela religião é garantia de segurança e de bem-estar, até mesmo porque
ela contém em sua constituição uma ideia de finalidade para o homem. Tal finalidade, contudo,
por melhor que nos pareça, não nos faz necessariamente agir moralmente, isto é, de maneira
que nossa ação tenha fim em si mesma, o que faz que a tutela religiosa não contribua para que o
homem se esclareça, mas, pelo contrário, o induz a satisfazer-se com os ditames propostos (ou
impostos) pelas instituições religiosas.
7
KANT, I. Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?, 1985, p. 102.
8
KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático, 2006,p. 98.
5
Só um homem livre pode agir por si mesmo. Para tanto, é mister que ele faça uso de
seu próprio entendimento, pois só um homem que racionaliza suas ações pode ser considerado
plenamente livre. Nessa perspectiva de ação racional, Kant distingue dois tipos de uso da nossa
razão: o uso público, que é a utilização da razão para um grande público, no qual o homem se
posiciona criticamente ante as diversas situações do mundo, e o uso privado da razão, em que
esta capacidade de executar o raciocínio é minimizada pelo exercício de algum cargo ou função
pública. Kant declara que o uso público da razão é a maneira mais eficaz de se alcançar o
esclarecimento, já que este uso é livre de qualquer restrição da ação racional.
É necessário salientar que a Resposta à pergunta: o que é o Esclarecimento? destaca
que para um público a passagem da menoridade para o esclarecimento requer apenas que se lhe
conceda liberdade, ocasião em que essa tarefa se torna quase inevitável. Isso acontece porque a
liberdade é a capacidade que o homem tem de fazer um uso livre de sua razão. Em uma
situação de liberdade se poderá encontrar alguns indivíduos capazes de pensamento próprio,
disseminando nos outros a vontade e a capacidade de também pensarem por si mesmos.
Obviamente, Kant tem consciência da dificuldade que há em um homem sozinho para realizar a
passagem de sua condição de menor para alcançar o estágio de esclarecimento, o que deriva,
principalmente, do apego que adquiriu pela condição de tutelado e da brevidade de sua vida9
. O
imperativo de se esclarecer pode, entretanto, ser adiado por um homem particular que em sua
curta vida não conseguiu realizá-lo. Renunciá-lo, contudo, é algo impossível para esse mesmo
homem, porque sua constituição humana tende ao esclarecimento. Sobre a questão, Kant
afirma:
Um homem sem dúvida pode, no que respeita à sua pessoa, e mesmo assim só
por algum tempo, na parte que lhe incumbe, adiar o esclarecimento
[<Aufklärung>]. Mas renunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais
para sua descendência, significa ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da
humanidade10
.
Por conseguinte, se o homem singular pretender renunciar ao esclarecimento
individual, isso é algo não facultado à espécie humana, para a qual isso é absolutamente
9
Essa ideia atenta para a necessidade do conceito de destinação da humanidade enquanto espécie, posto que é só
através da espécie que o homem pode realizar sua destinação moral (cf. KANT, I. Antropologia de um ponto de
vista pragmático, 2006, p. 118). Na Antropologia Kant faz menção ao problema ao dizer: “cada indivíduo alcança
sua plena destinação, mas entre os homens no máximo apenas a espécie a alcança, de modo que o gênero só pode
avançar até sua destinação mediante um progresso numa série imensa de gerações, onde porém a meta contínua
sempre à sua vista, não obstante a tendência para esse fim-último ser com frequência tolhida, embora jamais possa
retroceder” (KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático, 2006, p. 218).
10
KANT, I. Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?, In: Textos seletos, 1985, p. 110.
6
impossível. É nessa perspectiva que se defende, em Kant, a ideia de certo progresso da
humanidade11
.
Vale notar que negar a possibilidade de esclarecimento a um homem é o mesmo que
roubar o direito da humanidade de agir livremente, de pautar sua vida nas leis internas de sua
razão. “Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, esse é o lema do
esclarecimento [<Aufklärung>]”12
. Esse mandamento, ousa saber, encoraja o homem para que
supere sua condição de submissão e aja livremente, fazendo uso de sua própria razão. Kant, no
entanto, compreende que:
Se for feita então a pergunta: “vivemos agora uma época esclarecida
[<aufgeklärten>]?”, a resposta será: “não, vivemos em uma época de
esclarecimento [<Aufklärung>]”. Falta ainda muito para que os homens, nas
condições atuais, tomados em conjunto, estejam já numa situação, ou possam
ser colocados nela, na qual em matéria religiosa sejam capazes de fazer uso
seguro e bom de seu próprio entendimento sem serem dirigidos por outrem13
.
O esclarecimento, desse modo, apesar de estar inerente ao homem como condição de
possibilidade de sua autorrealização, certamente ainda não se concretizou plenamente. Aliás,
falta muito para que seja alcançado14
, do que Kant afirma ser sua época a época de
esclarecimento (Aufklärung), pois há claros indícios de que foram abertos os campos nos quais
os homens podem se lançar livremente para trabalhar e se tornarem, por meio de um processo,
capazes de agir com o livre uso de sua razão.
Certamente, apenas um homem em pleno uso de suas faculdades intelectuais é capaz
de agir por si mesmo, de impor a si mesmo as regras para a execução de sua ação. Essa
condição de busca por uma ação autônoma é individual e intransferível, por isso,
demasiadamente perigosa e demorada. Para um homem que passou a vida inteira agindo sob a
jurisdição de outrem, parece-lhe impossível mudar sua maneira de agir. Entretanto, com esforço
intelectual logrará êxito em sair de sua estaticidade pra buscar esclarecer-se.
Kant demonstra, portanto, que o esclarecimento é condição fundamental e
insubstituível para que o homem supere sua subordinação à tutela alheia e aja em conformidade
com sua razão. Nesse sentido, um homem “esclarecido” é aquele que se livrou de todas as
11
Cf. KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático, 2006, p. 218.
12
KANT, I. Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?, 1985, p. 100.
13
KANT, I. Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?, 1985, p. 112.
14
De acordo com a Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, “estamos cultivados em alto
grau pela arte e pela ciência. Somos civilizados, até ao excesso, em toda a classe de maneiras e na respeitabilidade
sociais. Mas falta ainda muito para nos considerarmos já moralizados” (KANT, I. Ideia de uma história universal
de um ponto de vista cosmopolita, s/d, p. 14).
7
formas de tutela, até mesmo da mais perigosa e danosa delas. Esclarecer-se é, afinal, o livre ato
humano de expressar voluntariamente sua posição crítica diante do mundo que o rodeia.
3 A AUFKLÄRUNG COMO UM FIM QUE É, AO MESMO TEMPO, UM DEVER
Ao iniciar a Doutrina da Virtude de sua Metafísica dos Costumes, Kant parte do
conceito de dever como um constrangimento que a lei provoca às nossas escolhas, podendo ser
este de ordem externa ou interna. O primeiro desses constrangimentos acontece por coação das
leis que nos vêm de fora, ao passo que o segundo ocorre quando somos coagidos por nós
mesmos, pela lei da razão que subsiste em cada sujeito. É, portanto, na ideia de
autoconstrangimento que adentramos no conceito de dever moral.
Segundo Kant, na sua Metafísica dos costumes (2003), a ética pode ser definida como
sistema dos fins da razão prática ou mesmo como uma doutrina da virtude. A prática da virtude
é, a seu ver, condição fundamental para o cumprimento do dever. Se fôssemos guiados pelas
inclinações que em nós bradam para a determinação das nossas ações, consequentemente
realizaríamos atos i-morais, posto que a condição fundamental para a efetivação de uma ação
moral é que a nossa vontade esteja submetida à lei autoimposta pela razão humana, de modo
que racionalizemos as nossas práticas colocando-as sob o crivo do dever.
O dever, como autoconstrangimento do homem, é um fim em si mesmo e deve estar
livre de qualquer imposição externa para que se realize. Quanto menos um ser humano for
constrangido por meios naturais e mais for coagido pelo dever moral, mais livre ele será. Nesse
intento, a vontade é garantidora da efetivação do dever moral e, por isso, se faz tão relevante no
projeto da Aufklärung kantiana.
É importante ressaltar, segundo Kant, que não pode haver praticamente nada que possa
ser considerado bom a não ser uma boa vontade15
, que cumpre seu papel de efetivação do
dever. A vontade, nesse sentido, não é simplesmente submissa à lei moral: é-lhe obediente ao
mesmo tempo que é sua autora. Por isso Kant sustenta que somos sujeitos à lei moral porque
somos autores dela e a vontade garante que isso ocorra dessa forma. É como ato de autonomia
15
Este conceito (de boa vontade que está sempre no cume da apreciação de todo o valor das nossas ações e que
constitui a condição de todo o resto, vamos encarar o conceito do dever que contém em si o de boa vontade, posto
que sob certas limitações e obstáculos subjetivos, limitações essas que, muito longe de ocultarem e tornarem
irreconhecível à boa vontade, a fazem antes ressaltar por contraste e brilhar com luz mais clara (cf. Fundamentação
da metafísica dos costumes, KANT, 2005, p. 26).
8
que nos sujeitamos à lei moral, a fim de não nos desviarmos do percurso do esclarecimento que
por escolha livre resolvemos galgar.
Quando dizemos que nos sujeitamos, pela vontade, a agir livremente, queremos
salientar que a vontade boa e provedora do dever moral só pode ser assim porque está livre de
todo e qualquer interesse posterior à ação, de modo independente de qualquer inclinação
sensível. Se, porventura, a vontade não agisse desinteressadamente, não se efetivaria o
imperativo categórico16
de Kant e, por conseguinte, deixaríamos de agir eticamente para
sermos guiados pelas nossas inclinações naturais17
.
Nesse sentido, exercer a virtude conforme o imperativo moral não é tarefa fácil.
Somos sujeitos naturalmente inclinados a agir interessadamente, isto é, a querer satisfazer
nossos desejos e instintos sempre que em nós estes se manifestam. A vontade não é um algoz
que reprime a nossa natureza, mas age como educadora de tais inclinações a fim de que
possamos ser bons não somente para nós, mas também para os outros homens. Isso é o que se
pode dizer de uma ação moral, que age de tal maneira a conformar-se com todos os homens,
por mais diferentes que sejam de nós.
O homem é o ser pelo qual a satisfação das suas necessidades é a mais difícil e exige
um esforço sempre renovado. Mas, sobretudo, o destino da razão não poderia residir
neste fim utilitário. Ele é o de produzir uma vontade boa. Se o fim do homem é, pois,
transcendente, a consciência, e não o instinto, deve ser juiz da nossa conduta. É
mesmo graças a isso que a moralidade não é privilégio de uma aristocracia do saber:
consistindo na boa vontade, ela está ao alcance de todos os homens18
.
A tematização da moralidade kantiana em uma investigação sobre o esclarecimento é
justificada pela consequência da constatação da dificuldade que existe no homem para que este
faça uso livre de sua razão como uma proposição recorrente na ética de Kant. Por mais penoso
que isso seja ao homem, entretanto, é mister que este cultive a boa vontade para que alcance a
moralidade. Tal moral é uma espécie de elo entre todos os homens: é por meio dela que o
indivíduo pode ser visto como fim em si mesmo19
. Nesse sentido, o ser humano deve,
incessantemente, buscar aperfeiçoar-se rumo à moralidade, efetivando-se como fim em si
16
Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes Kant apresenta a ideia de um imperativo categórico, que nada
mais é que o critério fundamental a partir do qual o homem pode verificar se sua ação é moral ou não, por meio de
uma possível universalização de sua máxima (cf. KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 2005, p.
59).
17
Vale salientar que Kant sustenta que há no homem “[...] uma propensão para o ilícito, ainda que saiba que é
ilícito, isto é, uma propensão para o mal, [...]” (KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático, 2006, p.
219).
18
LACROIX, J. Kant e o kantismo, s/d, p. 88.
19
O imperativo prático será pois o seguinte: Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na sua pessoa como
na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio. (Cf. KANT,
I. Fundamentação da metafisica dos costumes, 2005, p. 69).
9
mesmo e se projete na humanidade que pode ser compreendida como racionalidade ou natureza
racional20
.
Toda ação, portanto, possui seu fim; e uma vez que alguém não pode ter um fim sem
este próprio alguém transformar o objeto de sua escolha no fim, ter qualquer fim de
ação, seja qual for, constitui um ato de liberdade da parte do sujeito agente e não um
efeito da natureza. [...] Assim, não se trata aqui dos fins que o ser humano realmente
adota no acatamento dos impulsos sensíveis de sua natureza, mas de objetos de livre
escolha em submissão às suas leis, dos quais ele deve fazer seus fins21
.
Os fins de que trata Kant são aqueles provenientes da submissão às leis morais. A
liberdade do homem, portanto, consiste em autoconstrangimento do ser humano ante suas
ações, a fim de que estas se conformem à ação de todo homem em qualquer circunstância
possível:
Quando se diz que é em si mesmo um fim para o ser humano converter em seu fim a
perfeição pertencente a um ser humano como tal (expressando-se propriamente, à
humanidade), essa perfeição tem que ser colocada naquilo que pode resultar de seus
atos não em meros dons pelos quais ele precisa estar em débito com a natureza, pois,
de outro modo, não seria um dever. Este dever pode, portanto, consistir somente no
cultivo das faculdades de cada um (ou predisposições naturais), a mais elevada das
quais é o entendimento, a faculdade dos conceitos e, assim, também, daqueles
conceitos que têm a ver com o dever22
.
Como consequência, o conceito kantiano de Aufklärung parece apresentar a
perspectiva de uma contínua busca que tem o entendimento como uma das principais
ferramentas para essa finalidade. Por meio do cultivo dessa faculdade em nós, cada vez mais
nos aproximamos do esclarecimento. Como fim que é, ao mesmo tempo um dever, o cultivo do
entendimento está estritamente ligado à ideia de moralização do homem. Por essa razão, temos
a obrigação moral de buscar todos os meios possíveis para o cultivo do nosso entendimento. A
cultura, as artes e as ciências, entre outras formas de erudição, contribuem para que cada vez
mais nosso entendimento se expanda na compreensão das coisas.
Ser erudito, contudo, não significa ser esclarecido. A busca por esclarecer-se não se
limita apenas à ideia de um progresso intelectual ou gnoseológico do homem, mas, sobretudo,
de um progresso moral, uma vez que Kant apresenta, além da busca por um cultivo do
entendimento, a necessidade do aprimoramento da vontade. Esse exercício de procura por uma
moralização de si acumula a busca por uma perfeição do ser humano, perfeição esta que, em
sentido lato, é idêntica ao que Kant chama Aufklärung. Desse modo, esforçarmo-nos para
sermos “perfeitos” como indivíduos é projetarmo-nos para o fim último de nós mesmos.
20
Cf. WEBER, T. Ética e filosofia política: Hegel e o formalismo kantiano, 1999, p. 39.
21
KANT, I. A Metafísica dos Costumes, 2003, p. 229.
22
KANT, I. A Metafísica dos Costumes, 2003, p. 230.
10
Segundo Kant, não somos apenas impelidos a cultivar o entendimento e a vontade, mas
obrigados por uma exigência da lei moral a agirmos desta maneira:
Um ser humano tem o dever de erguer-se da tosca condição de sua natureza, de sua
animalidade (quoad actum) cada vez mais rumo à humanidade, pelo que somente ele
é capaz de estabelecer ele mesmo fins; tem o dever de reduzir sua ignorância através
da instrução e corrigir seus erros. E não é meramente que a razão tecnicamente prática
o aconselha a fazê-lo como um meio para seus outros propósitos (ou arte);
moralmente a razão prática o comanda absolutamente e faz desse fim o dever dele, de
modo que possa ser digno da humanidade que dentro dele reside23
.
A ênfase na obrigatoriedade de uma instrução do ser humano rumo à moralidade é
fundamental para o projeto de esclarecimento kantiano. O homem não pode se esquivar dessa
tarefa, sob pena de não ser identificado como ser racional capaz de agir livremente. A razão
prática obriga o homem a fazer desse dever de ser moral um fim em si mesmo, como se
constata nas palavras de Kant:
Um ser humano tem o dever de conduzir o cultivo de sua vontade à mais pura
disposição virtuosa, na qual a lei se converte também no incentivo para que suas ações
que se conformam ao dever e ele acata a lei a partir do dever. Essa disposição é
perfeição interior moralmente prática. Uma vez que é o sentimento do efeito que a
vontade legisladora dentro do ser humano exerce sobre sua capacidade de agir de
acordo com sua vontade, é denominado sentimento moral, um sentido especial (sensus
moralis)24
.
A boa vontade é aquela que é fruto do esforço interior de cada um em conformá-la ao
dever moral. O cultivo dessa faculdade a levará a uma conformação à lei moral, de tal modo
que a vontade, seduzida também pelas nossas inclinações, saberá optar pela regra moral, não se
sentindo forçada a agir por imposição do dever, mas identificada com este na realização de
qualquer ação.
Desse modo, o cultivo da vontade e do entendimento na prática de nossas ações nos
conduzirá para o reino dos fins, o reino onde nossas ações são livremente morais, não por mera
coação externa, mas por identificação com dever moral. Se em parte somos culpados pelo fato
de agirmos na menoridade, por outro somos impulsionados a conquistar a perfeição interior. É
o sentimento moral que conforma nossas ações ao dever moral e, assim, o que nos conduzirá a
um progresso gnoseológico e moral do ser humano.
23
KANT, I. A Metafísica dos Costumes, 2003, p. 231.
24
KANT, I. A Metafísica dos Costumes, 2003, p. 231.
11
4 DA IDEIA DE UMA DESTINAÇÃO MORAL DO HOMEM EM KANT
Como salientado, a ideia de um progresso da humanidade perpassa toda a
modernidade com o iluminismo, o que é refletido na filosofia kantiana, na qual esse progresso
não se resume ao avanço da cultura, das artes e das ciências, mas prioritariamente um progresso
moral para o qual a humanidade está destinada. O alcance da moralidade não será, então,
possível a um homem sozinho, mas somente na humanidade se realizará plenamente. A
constatação da brevidade da vida humana é o fator principal de se afirmar que a este é
impossível que, individualmente, chegue à sua destinação, o que é possibilitado por meio de
sua espécie.
Segundo Kant, há uma tendência no homem para que se esclareça de sua condição
pueril e alcance a moralidade em suas ações por meio do cultivo da vontade e do entendimento
que o conduzem a agir pelo dever como fim em si mesmo. Considerando-se o fato de que Kant
admite a impossibilidade desse esclarecimento singular do ser humano, sua destinação moral se
dará por meio da sociabilidade com os outros. Segundo Kant, a característica principal do
aprimoramento do homem, como resultado final de antropologia pragmática em relação à sua
destinação consiste no seguinte:
O ser humano está destinado, por sua razão, a estar numa sociedade com seres
humanos e a se cultivar, civilizar e moralizar nela por meio das artes e das
ciências, e por maior que possa ser sua propensão animal a se abandonar
passivamente aos atrativos da comodidade e do bem-estar, que ele denomina
felicidade, ele está destinado a se tornar ativamente digno da humanidade na
luta com os obstáculos que a rudeza de sua natureza coloca para ele25
.
Kant considera que na humanidade o homem realizará o desígnio de sua perfeição
moral. É por essa mesma humanidade que este se coage a não permanecer em seu estado de
estaticidade para empenhar-se em realizar o propósito de sua constituição humana, ou seja,
procurar sempre mais evoluir culturalmente. Ascender culturalmente é o primeiro passo para
que o homem caminhe rumo à sua destinação26
.
O indivíduo é mortal, a espécie é imortal. Talvez noutros seres o indivíduo
possa realizar plenamente o seu destino, quer dizer, atingir o pleno
25
KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático, 2006, p. 219.
26
Segundo Kant, a natureza humana quer a discórdia, isto é, o embate de forças contrárias que nos fazem superar
nossas dificuldades e crescer rumo à nossa destinação (cf. KANT, I. Ideia de uma história universal de um ponto
de vista cosmopolita, s/d, p. 12).
12
desenvolvimento de que é capaz; mas, para nós, apenas há a espécie para
alimentar essa esperança27
.
Constatando-se a dificuldade individual do homem evoluir-se moralmente, a ponto de
cumprir sua destinação, surge então a ideia de que esse destino moral se realizará na espécie,
dado a esta um status de imortalidade através de sua realização na história. Kant compreende
que, observando os grandes acontecimentos da história da humanidade, é possível perceber nela
um grande avanço no tocante às descobertas de novas maneiras de sociabilidade. Desse modo,
segundo Jean Lacroix, Kant tem uma filosofia da história para demonstrar as etapas de
evolução da humanidade garantindo que o homem tenha um norte assegurador de sua
destinação.
O alimento do progresso da história é dado por um antagonismo de forças presentes no
homem, umas que os impelem à sociabilidade e outras que os repelem. Esse embate de forças
contrárias provoca no homem o impulso de querer superar-se em seus próprios limites e por seu
próprio esforço a sair de sua condição atual para uma outra sempre mais evoluída. Essa
condição antagônica presente no homem o levará a uma conformação de si à humanidade, que
é o máximo de seu desenvolvimento e a única maneira para que ele se plenifique em sua
identidade de ser racional. Kant sustenta:
Entendo aqui por antagonismo a sociabilidade insociável dos homens, isto é, a sua
tendência para entrar em sociedade; essa tendência, porém, está unida a uma
resistência universal que, incessantemente, ameaça dissolver a sociedade. Esta
disposição reside manifestamente na natureza humana. O homem tem uma inclinação
para entrar em sociedade, porque em semelhante estado se sente mais homem [...]28
.
Muito embora o homem seja constitutivamente inclinado a viver em comunidade,
como nos disse Kant, existe nele também “uma grande propensão para se isolar, porque depara
ao mesmo tempo em si com a propriedade insocial de querer dispor de tudo ao seu gosto e, por
conseguinte espera resistência de todos os lados”29
. Nesse sentido, essa resistência fruto da
sociabilidade é boa, porque induz o homem a abandonar sua “inclinação para a preguiça e,
movido pela ânsia das honras, do poder ou posse, e obter uma posição entre os seus
congéneres, que não pode suportar, mas dos quais também não pode prescindir”30
.
Compreende-se, portanto, que por mais penoso que seja para o homem viver em
sociedade, ele não pode renunciar a isto, sob pena de não evoluir-se como ser humano. É
27
LACROIX, J. Kant e kantismo, s/d, p.111.
28
KANT, I. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, s/d, p. 7.
29
KANT, I. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, s/d, p. 7.
30
KANT, I. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, s/d, p. 8.
13
exatamente nessa tenção de forças antagônicas que o homem se supera na competição com os
outros homens:
Sem esta fundamental insociabilidade humana, fonte de resistência, de
oposição e de luta, todos os talentos permaneceriam dissimulados em germe,
[...] a humanidade seria um rebanho inocente, mas sem progresso possível. A
natureza lança o homem no trabalho e na dor para que ele se liberte pelo seu
próprio esforço. São os antagonismos que obrigam o homem a elevar-se do
estado de natureza ao estado da cultura31
.
O estado de cultura, ainda não é considerado um estado de esclarecimento, mas apenas
um estado de polidez. Um homem polido, versado nas letras e nas artes, porém, tem muito mais
possibilidade de se obrigar à lei moral. Voltaríamos àquela ideia de cultivo da vontade e do
entendimento. É através do exercício dessas duas faculdades que o homem passará a evoluir
como ser sociável e a caminhar para sempre mais esclarecer-se.
Vale dizer que a ideia de um progresso cultural é algo comum à modernidade como
um todo. A perspicácia de Kant, como se afirmou, foi perceber que esse progresso se dá
também no campo moral e não somente no campo gnoseológico. Para dar conta de uma
destinação moral do homem, Kant utilizou a ideia de que esse progresso é experienciado na
história por meio do caráter da espécie humana.
Compreende-se por caráter de um ser vivo, “aquilo a partir do qual se pode reconhecer
de antemão a sua destinação. – Mas como princípio para os fins da natureza se pode admitir o
seguinte: a natureza quer que toda criatura alcance sua destinação”32
. Por isso, Kant afirma que
cada ser vivo se desenvolve com as disposições naturais para alcançar sua destinação, isto é,
seu fim. Se isso não for possível a um ser individual (como é o caso do ser humano), esse fim é
garantido na espécie. Por essa razão é preciso verificar o significado e o caráter da espécie
humana, sobre o que Kant afirma:
[...] A espécie, tomada coletivamente (como um todo da espécie humana) é
uma multidão de pessoas existentes sucessivamente e próximas umas das
outras, que não podem prescindir da convivência pacífica, nem todavia evitar
estar constantemente em antagonismos umas com as outras; que, por
conseguinte, se sentem destinadas pela natureza, pela coerção recíproca de leis
emanadas delas mesmas, a uma coalisão constantemente ameaçada pela
dissenção, mas em geral progressiva, numa sociedade civil mundial [...]33
.
31
LACROIX, J. Kant e kantismo, s/d, p.110.
32
KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático, 2006, p. 223.
33
KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático, 2006, p. 225.
14
No trecho supracitado fica em voga a importância da história no processo de
esclarecimento do homem, mesmo porque o progresso da espécie humana se realizará na
história. Segundo Javier Herrero (1991), o conceito de história seria, então, “um conceito
apriorístico, um fio condutor oferecido pela natureza [...]”34
, donde se segue que a natureza, em
Kant, seria considerada sob a ótica teleológica.
Se a natureza humana está munida de todas as condições de possibilidade para que o
homem progrida rumo à sua destinação moral, é imprescindível que ele se desvencilhe, sempre
mais, de suas inclinações sensíveis como móbile de suas ações e se empenhe a agir por dever,
isto é, segundo uma máxima tal que possa ao mesmo tempo querer que ela se torne lei
universal35
. A ideia de uma história universal garante que o homem não se engane no intento de
agir por dever, já que esta assegura a destinação moral de cada sujeito por meio de sua espécie,
a partir da observação do progresso presente em nossa geração em comparação a períodos
anteriores da história humana.
A expectativa de realizar-se moralmente é fundamentada na experiência da história, de
modo que o homem não se desespera em caminhar para algo que, embora não alcançando em
vida, pode empenhar-se sempre mais no que lhe compete em aproximar-se do esclarecimento.
É mister, pois, deixar claro que a proposta de um progresso moral do homem, realizado em sua
espécie, demonstra um grande otimismo de Kant em relação ao ser humano. Essa ideia de
perceber no homem, apesar de todas as suas contrariedades, uma semente de esclarecimento
moral presente na natureza de cada um, põe Kant em um patamar único na história da filosofia,
patamar este que leva o homem a uma completude no seu propósito de esclarecimento e sua
destinação moral.
CONCLUSÃO
Diante de tudo que até aqui tratamos, podemos nos perguntar até que ponto o homem
avançou, estagnou ou retrocedeu no seu ideal de esclarecimento. Por certo, constata-se na
história que muito se progrediu com relação à civilidade e polidez do homem, o próprio Kant já
observava isso em sua época. Entretanto, com relação ao avanço moral há controvérsias.
34
HERRERO, J. Religião e história em Kant, 1991, p. 135.
35
KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes, 2005, p. 59.
15
Em Kant se lançou as bases para quem ousar sair de seu marasmo confortável de cada-
dia e pôr-se a caminho para progredir rumo à sua moralização. Se isso será possível, só o fim
da nossa espécie nos dirá ou aos nossos sucessores. O que nos é relevante, portanto, é que Kant,
apesar dos limites de sua época, legou ao homem a possibilidade de evoluir não somente nos
avanços científicos e culturais, mas sobretudo moral. A legitimidade do empenho de seu projeto
de esclarecimento é válido até os nossos dias, senão como propósito individual de cada um em
querer sair de sua condição de menoridade para a autonomia, mas como um ideal que quis
resgatar a dignidade do homem a ponto de criar uma proposta tão complexa e ousada que
garantia a identidade do homem ante os desafios de sua epocalidade.
Conclui-se, portanto que, Kant nos legou a possibilidade de nos superarmos enquanto
indivíduos por meio do uso livre de nossa razão e da necessidade de sempre agirmos
moralmente para o nosso bem e da humanidade. Se assim vamos agir ou, se hoje tal proposta
não se sustenta mais, a verdade é que as bases para o esclarecimento foram lançadas e a história
demonstra que se quisermos, poderemos, pelo menos, alcançar a polidez na nossa vida em
sociedade.
Pergunta-se, por fim, se o projeto da Aufklärung Kantiana se sustenta atualmente ou é
apenas mais um castelo de elucubrações teóricas desses que na história da filosofia se construiu
muitos? Por certo haveria respostas controversas, o que em nada minimiza o rigor do projeto
filosófico de Kant. Uma vez destinados a sermos morais, como pensou Kant, e que tal
destinação se cumpre na espécie no desdobramento da história, nesta se desvelará a moralidade
da humanidade e, por conseguinte, do próprio homem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHÂTELET, F. Uma história da razão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
HERRERO, J. Religião e história em Kant. São Paulo: Loyola, 1991.
KANT, I. A metafísica dos costumes. 1.ed. Bauru: Edipro, 2003.
_______. Antropologia de um ponto de vista pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006.
_______ . Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Luso Sofia:press,
s/d
_______. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 2005.
16
_______. Resposta a pergunta: o que é esclarecimento? In: Textos seletos. 2. Ed. Petrópolis,
Vozes, 1985
LACROIX, J. Kant e o kantismo. Porto-Portugal: RES-Editora, s/d.
SAMPAIO, R. G. Metafísica e modernidade; método e estrutura, temas e sistema em Henrique Cláudio de Lima
Vaz. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
WEBER, T. Ética e filosofia política, Hegel e o formalismo kantiano. Porto Alegre: Edipucrs,
1999.g

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  • 1. 1 A IDEIA DAAUFKLÄRUNG KANTIANA: SOBRE O DEVER DE ESCLARECER-SE COMO PRESSUPOSTO DA DESTINAÇÃO MORAL DO HOMEM José Eltondion de Vasconcelos1 RESUMO O presente ensaio versa sobre a possibilidade da destinação moral do homem a partir da ideia da Aufklärung kantiana, sobre o pressuposto do dever de esclarecer-se. Partimos da constatação da menoridade do homem que é sua incapacidade de agir sem a tutela de outrem. Em seguida apresentamos o cultivo da vontade e do entendimento como ferramenta para se trilhar o percurso do esclarecimento e, por fim, confrontamos a ideia do esclarecimento com a destinação moral do homem a partir de seus desdobramentos na história por meio da espécie humana. Portanto, não nos arrogamos em esgotar o problema da Aufklärung, mas oferecemos algumas chaves de leitura para os que, mais profundamente, desejarem se deter nessa vasta problemática do sistema kantiano. Palavras-chave: Esclarecimento; Dever; Destinação moral; Kant. 1 INTRODUÇÃO Immanuel Kant (1724-1804), está situado em uma época caracterizada pela grande produção científica e pela busca incessante de grandes pensadores em superar o discurso teológico dogmático vigente até então, com o intuito de levar o homem ao sucesso e ao progresso por meio de sua razão. Quando tinha cerca de 57 anos, Kant se inscreveu em um movimento intelectual na Alemanha chamado Aufklärung (esclarecimento), que também repercutiu na França com a Revolução Francesa e seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. A filosofia de Kant se configura pela superação das correntes empirista e racionalista e procurou responder a quatro perguntas fundamentais: “O que posso saber?, o que devo fazer?, o que me é permitido esperar? e, finalmente, o que é o homem?” 2 Sendo esta última pergunta a mais abrangente no sistema kantiano. Das muitas obras de Kant, as três críticas a 1 Licenciando em Filosofia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA, sob a orientação do Prof. Ms. José Edmar Lima Filho. E-mail: meunomeeltondion@hotmail.com. 2 SAMPAIO, R. G. Metafísica e modernidade; método e estrutura, temas e sistema em Henrique Cláudio de Lima Vaz, 2006, p.310.
  • 2. 2 saber: a Crítica da razão pura (1781), a Crítica da razão prática (1788) e a Crítica do juízo (1790), além da Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático (1798) que, juntas, formam o esqueleto de seu colossal pensamento e se propõem a responder as quatro indagações básicas anteriormente citadas. A indagação sobre o que é o homem? será a base do nosso estudo dentro do vasto sistema kantiano. Na obra Resposta à pergunta: O que é esclarecimento? nos deteremos em demostrar a passagem do estado de menoridade do homem rumo ao esclarecimento, a partir da ideia de ilustração herdada do Iluminismo. Em seguida apresentaremos o cultivo da Vontade e do Entendimento como um caminho seguro para que o homem se esclareça, a partir da doutrina da virtude presente na Metafísica dos costumes. E, por fim, chegaremos no desdobramento da Aufklärung kantiana que é a destinação moral do homem, ideia presente, principalmente nas obras Antropologia de um ponto de vista pragmático e Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita. A articulação entre essas obras articuladas a outras coadjuvantes, procurará demonstrar a existência de um progresso não somente científico-cultural do homem, mas sobretudo seu crescimento moral ao longo da história. Portanto, este ensaio pretende apresentar, embora de forma propedêutica, um progresso na filosofia de Kant a partir da ideia de uma destinação moral do homem. Essa proposta de progresso moral do indivíduo permeia todo o texto desde a demonstração da menoridade do homem e seu esforço para superar tamanha condição de tutela até a realização de sua destinação por meio da humanidade na história. 2 O CONCEITO KANTIANO DE AUFKLÄRUNG COMO RESPOSTA AO IDEAL DE ILUSTRAÇÃO MODERNO A ideia da Aufklärung kantiana se estabelece a partir da herança de progresso recebida do iluminismo. Em linhas gerais, o Iluminismo foi um movimento que se aliou à fundamentação antropocêntrica moderna, em que o homem podia, por meio de sua razão, levar adiante a tarefa de progredir e se emancipar de toda uma cosmovisão embasada em uma tradição misticista e religiosa que o precedia. Junto às grandes revoluções na Filosofia da Natureza operadas por Copérnico e Galileu, aos avanços da física newtoniana (pela qual Kant era fascinado) e às descobertas químicas de Lavoisier, este foi um momento histórico particularmente fecundo, que contou com a militância de muitos pensadores como Rousseau, Voltaire e Diderot, dentre outros, que postulavam uma ascensão do homem das trevas à luz,
  • 3. 3 considerando-se obscura a época3 em que o homem esteve sob o jugo do determinismo religioso com suas superstições e dogmas, posto que uma divindade sobrenatural como que controlava as ações humanas impondo-se como verdade última e inquestionável. Kant, como membro dessa tradição filosófica do Iluminismo, teve sua peculiaridade na abordagem de determinadas questões. A grande perspicácia dele foi abordar a questão do esclarecimento não como um movimento meramente político, voltando a discussão para o aspecto intelectual e moral, até então praticamente inexplorado pelos filósofos iluministas. O projeto filosófico de Kant é, “[...] de certa forma, mais ambicioso no que se refere ao homem. Espera uma transformação completa da natureza humana, [posto que] acredita que o homem pode aperfeiçoar-se”4 . Desse modo, a ideia de progresso ainda continua presente em Kant, mas agora a elevação do homem deixa de ser somente científico-tecnológica, mas também, e sobretudo, moral; a discussão, portanto, deixa de ser apenas gnoseológica para assumir um viés ético, para o qual o homem se destina através do exercício livre de sua racionalidade. O projeto kantiano de esclarecimento (Aufklärung) tem como ponto de partida a constatação da menoridade que, para Kant, é a incapacidade que existe no homem de agir sozinho, sem a direção de outro. Kant compreende que é extremamente necessário que o homem supere essa situação de dependência, ao mesmo tempo em que percebe a existência de uma enorme dificuldade do homem em realizar tamanho intento. Entre os maiores empecilhos para a efetivação do esclarecimento estão a preguiça e a covardia. Ambos, como dois vilões do estágio de menoridade, impedem o caminho rumo ao esclarecimento. Isso ocorre porque o homem, preguiçoso e covarde5 , dificilmente se encorajará em sair de seu marasmo e pôr-se a caminho para buscar esclarecer-se e, nesse sentido, é ele o principal culpado por seu estado de menoridade. Ademais, “é muito cômodo ser menor”6 , o que significa dizer que é bastante confortável ter um tutor para nos conduzir na execução de uma determinada ação ou até realiza-la por nós, em vez de despendermos esforço e tempo para agirmos sozinhos e, por isso, Kant constata que não será fácil para o homem dar o salto da menoridade ao esclarecimento: 3 Talvez por isso o período anterior ao Iluminismo tenha ficado caracterizado como certa Idade das Trevas, em oposição ao Século das Luzes inaugurado na modernidade. 4 CHÂTELET, F. Uma história da razão, 1994, p. 90. 5 A ideia de uma antropologia negativa, se é que se pode usar tal expressão, que justifica as características da preguiça e da covardia são retomadas em Ideia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita, sobretudo na Quarta Proposição (cf. KANT, I. Ideia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita, s/d, p. 7-9). 6 KANT, I. Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?, In: Textos seletos, 1985, p. 100.
  • 4. 4 É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor a ela, sendo por ora realmente incapaz de utilizar seu próprio entendimento, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim proceder. Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou, antes, do abuso de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua menoridade. Quem deles se livrasse só seria capaz de dar um salto inseguro mesmo sobre o mais estreito fosso, porque não está habituado a este movimento livre. Por isso são muito poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito, emergir da menoridade e empreender então uma marcha segura7 . Kant nos chama a atenção para a possibilidade de ocorrer o esclarecimento de alguns homens por si mesmos. Essa possibilidade, entretanto, lhes será demasiado penosa por conta do hábito de toda uma vida de ação tutelada, pelo que se apresenta, assim, a necessidade do homem em esforçar-se para agir livremente. De fato, a ação tutelada dos homens é algo que perpassa toda uma tradição histórica. Desde pequenos nos acostumamos a viver sob a tutela de outro indivíduo e isso, de certa forma, nos oferece uma falsa sensação de segurança. Dentre as várias maneiras de tutela, uma é indicada por Kant como particularmente a mais perigosa, a tutela religiosa, da qual o homem é consciente. Mesmo assim, muitas vezes o sujeito insiste em nela permanecer por vontade própria, inviabilizando o percurso do esclarecimento. A respeito disso Kant comenta: Nesses casos, porém, os seres humanos se inclinam a garantir mais segurança para sua pessoa renunciando a todo uso próprio da razão e submetendo-se passiva e obedientemente aos dogmas introduzidos por homens santos. Mas não o fazem tanto por sentimento de sua incapacidade no conhecimento (pois a essência de toda religião é a moral, que logo aparece a todo ser humano como evidente por si mesma) quanto por artimanha, em parte para poder atribuir a culpa aos outros, caso possa haver algo errado, em parte e principalmente para escapar habilmente àquilo que é essencial (a modificação do coração), que é muito mais difícil que o culto8 . Ser tutelado pela religião é garantia de segurança e de bem-estar, até mesmo porque ela contém em sua constituição uma ideia de finalidade para o homem. Tal finalidade, contudo, por melhor que nos pareça, não nos faz necessariamente agir moralmente, isto é, de maneira que nossa ação tenha fim em si mesma, o que faz que a tutela religiosa não contribua para que o homem se esclareça, mas, pelo contrário, o induz a satisfazer-se com os ditames propostos (ou impostos) pelas instituições religiosas. 7 KANT, I. Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?, 1985, p. 102. 8 KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático, 2006,p. 98.
  • 5. 5 Só um homem livre pode agir por si mesmo. Para tanto, é mister que ele faça uso de seu próprio entendimento, pois só um homem que racionaliza suas ações pode ser considerado plenamente livre. Nessa perspectiva de ação racional, Kant distingue dois tipos de uso da nossa razão: o uso público, que é a utilização da razão para um grande público, no qual o homem se posiciona criticamente ante as diversas situações do mundo, e o uso privado da razão, em que esta capacidade de executar o raciocínio é minimizada pelo exercício de algum cargo ou função pública. Kant declara que o uso público da razão é a maneira mais eficaz de se alcançar o esclarecimento, já que este uso é livre de qualquer restrição da ação racional. É necessário salientar que a Resposta à pergunta: o que é o Esclarecimento? destaca que para um público a passagem da menoridade para o esclarecimento requer apenas que se lhe conceda liberdade, ocasião em que essa tarefa se torna quase inevitável. Isso acontece porque a liberdade é a capacidade que o homem tem de fazer um uso livre de sua razão. Em uma situação de liberdade se poderá encontrar alguns indivíduos capazes de pensamento próprio, disseminando nos outros a vontade e a capacidade de também pensarem por si mesmos. Obviamente, Kant tem consciência da dificuldade que há em um homem sozinho para realizar a passagem de sua condição de menor para alcançar o estágio de esclarecimento, o que deriva, principalmente, do apego que adquiriu pela condição de tutelado e da brevidade de sua vida9 . O imperativo de se esclarecer pode, entretanto, ser adiado por um homem particular que em sua curta vida não conseguiu realizá-lo. Renunciá-lo, contudo, é algo impossível para esse mesmo homem, porque sua constituição humana tende ao esclarecimento. Sobre a questão, Kant afirma: Um homem sem dúvida pode, no que respeita à sua pessoa, e mesmo assim só por algum tempo, na parte que lhe incumbe, adiar o esclarecimento [<Aufklärung>]. Mas renunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais para sua descendência, significa ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade10 . Por conseguinte, se o homem singular pretender renunciar ao esclarecimento individual, isso é algo não facultado à espécie humana, para a qual isso é absolutamente 9 Essa ideia atenta para a necessidade do conceito de destinação da humanidade enquanto espécie, posto que é só através da espécie que o homem pode realizar sua destinação moral (cf. KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático, 2006, p. 118). Na Antropologia Kant faz menção ao problema ao dizer: “cada indivíduo alcança sua plena destinação, mas entre os homens no máximo apenas a espécie a alcança, de modo que o gênero só pode avançar até sua destinação mediante um progresso numa série imensa de gerações, onde porém a meta contínua sempre à sua vista, não obstante a tendência para esse fim-último ser com frequência tolhida, embora jamais possa retroceder” (KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático, 2006, p. 218). 10 KANT, I. Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?, In: Textos seletos, 1985, p. 110.
  • 6. 6 impossível. É nessa perspectiva que se defende, em Kant, a ideia de certo progresso da humanidade11 . Vale notar que negar a possibilidade de esclarecimento a um homem é o mesmo que roubar o direito da humanidade de agir livremente, de pautar sua vida nas leis internas de sua razão. “Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, esse é o lema do esclarecimento [<Aufklärung>]”12 . Esse mandamento, ousa saber, encoraja o homem para que supere sua condição de submissão e aja livremente, fazendo uso de sua própria razão. Kant, no entanto, compreende que: Se for feita então a pergunta: “vivemos agora uma época esclarecida [<aufgeklärten>]?”, a resposta será: “não, vivemos em uma época de esclarecimento [<Aufklärung>]”. Falta ainda muito para que os homens, nas condições atuais, tomados em conjunto, estejam já numa situação, ou possam ser colocados nela, na qual em matéria religiosa sejam capazes de fazer uso seguro e bom de seu próprio entendimento sem serem dirigidos por outrem13 . O esclarecimento, desse modo, apesar de estar inerente ao homem como condição de possibilidade de sua autorrealização, certamente ainda não se concretizou plenamente. Aliás, falta muito para que seja alcançado14 , do que Kant afirma ser sua época a época de esclarecimento (Aufklärung), pois há claros indícios de que foram abertos os campos nos quais os homens podem se lançar livremente para trabalhar e se tornarem, por meio de um processo, capazes de agir com o livre uso de sua razão. Certamente, apenas um homem em pleno uso de suas faculdades intelectuais é capaz de agir por si mesmo, de impor a si mesmo as regras para a execução de sua ação. Essa condição de busca por uma ação autônoma é individual e intransferível, por isso, demasiadamente perigosa e demorada. Para um homem que passou a vida inteira agindo sob a jurisdição de outrem, parece-lhe impossível mudar sua maneira de agir. Entretanto, com esforço intelectual logrará êxito em sair de sua estaticidade pra buscar esclarecer-se. Kant demonstra, portanto, que o esclarecimento é condição fundamental e insubstituível para que o homem supere sua subordinação à tutela alheia e aja em conformidade com sua razão. Nesse sentido, um homem “esclarecido” é aquele que se livrou de todas as 11 Cf. KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático, 2006, p. 218. 12 KANT, I. Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?, 1985, p. 100. 13 KANT, I. Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?, 1985, p. 112. 14 De acordo com a Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, “estamos cultivados em alto grau pela arte e pela ciência. Somos civilizados, até ao excesso, em toda a classe de maneiras e na respeitabilidade sociais. Mas falta ainda muito para nos considerarmos já moralizados” (KANT, I. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, s/d, p. 14).
  • 7. 7 formas de tutela, até mesmo da mais perigosa e danosa delas. Esclarecer-se é, afinal, o livre ato humano de expressar voluntariamente sua posição crítica diante do mundo que o rodeia. 3 A AUFKLÄRUNG COMO UM FIM QUE É, AO MESMO TEMPO, UM DEVER Ao iniciar a Doutrina da Virtude de sua Metafísica dos Costumes, Kant parte do conceito de dever como um constrangimento que a lei provoca às nossas escolhas, podendo ser este de ordem externa ou interna. O primeiro desses constrangimentos acontece por coação das leis que nos vêm de fora, ao passo que o segundo ocorre quando somos coagidos por nós mesmos, pela lei da razão que subsiste em cada sujeito. É, portanto, na ideia de autoconstrangimento que adentramos no conceito de dever moral. Segundo Kant, na sua Metafísica dos costumes (2003), a ética pode ser definida como sistema dos fins da razão prática ou mesmo como uma doutrina da virtude. A prática da virtude é, a seu ver, condição fundamental para o cumprimento do dever. Se fôssemos guiados pelas inclinações que em nós bradam para a determinação das nossas ações, consequentemente realizaríamos atos i-morais, posto que a condição fundamental para a efetivação de uma ação moral é que a nossa vontade esteja submetida à lei autoimposta pela razão humana, de modo que racionalizemos as nossas práticas colocando-as sob o crivo do dever. O dever, como autoconstrangimento do homem, é um fim em si mesmo e deve estar livre de qualquer imposição externa para que se realize. Quanto menos um ser humano for constrangido por meios naturais e mais for coagido pelo dever moral, mais livre ele será. Nesse intento, a vontade é garantidora da efetivação do dever moral e, por isso, se faz tão relevante no projeto da Aufklärung kantiana. É importante ressaltar, segundo Kant, que não pode haver praticamente nada que possa ser considerado bom a não ser uma boa vontade15 , que cumpre seu papel de efetivação do dever. A vontade, nesse sentido, não é simplesmente submissa à lei moral: é-lhe obediente ao mesmo tempo que é sua autora. Por isso Kant sustenta que somos sujeitos à lei moral porque somos autores dela e a vontade garante que isso ocorra dessa forma. É como ato de autonomia 15 Este conceito (de boa vontade que está sempre no cume da apreciação de todo o valor das nossas ações e que constitui a condição de todo o resto, vamos encarar o conceito do dever que contém em si o de boa vontade, posto que sob certas limitações e obstáculos subjetivos, limitações essas que, muito longe de ocultarem e tornarem irreconhecível à boa vontade, a fazem antes ressaltar por contraste e brilhar com luz mais clara (cf. Fundamentação da metafísica dos costumes, KANT, 2005, p. 26).
  • 8. 8 que nos sujeitamos à lei moral, a fim de não nos desviarmos do percurso do esclarecimento que por escolha livre resolvemos galgar. Quando dizemos que nos sujeitamos, pela vontade, a agir livremente, queremos salientar que a vontade boa e provedora do dever moral só pode ser assim porque está livre de todo e qualquer interesse posterior à ação, de modo independente de qualquer inclinação sensível. Se, porventura, a vontade não agisse desinteressadamente, não se efetivaria o imperativo categórico16 de Kant e, por conseguinte, deixaríamos de agir eticamente para sermos guiados pelas nossas inclinações naturais17 . Nesse sentido, exercer a virtude conforme o imperativo moral não é tarefa fácil. Somos sujeitos naturalmente inclinados a agir interessadamente, isto é, a querer satisfazer nossos desejos e instintos sempre que em nós estes se manifestam. A vontade não é um algoz que reprime a nossa natureza, mas age como educadora de tais inclinações a fim de que possamos ser bons não somente para nós, mas também para os outros homens. Isso é o que se pode dizer de uma ação moral, que age de tal maneira a conformar-se com todos os homens, por mais diferentes que sejam de nós. O homem é o ser pelo qual a satisfação das suas necessidades é a mais difícil e exige um esforço sempre renovado. Mas, sobretudo, o destino da razão não poderia residir neste fim utilitário. Ele é o de produzir uma vontade boa. Se o fim do homem é, pois, transcendente, a consciência, e não o instinto, deve ser juiz da nossa conduta. É mesmo graças a isso que a moralidade não é privilégio de uma aristocracia do saber: consistindo na boa vontade, ela está ao alcance de todos os homens18 . A tematização da moralidade kantiana em uma investigação sobre o esclarecimento é justificada pela consequência da constatação da dificuldade que existe no homem para que este faça uso livre de sua razão como uma proposição recorrente na ética de Kant. Por mais penoso que isso seja ao homem, entretanto, é mister que este cultive a boa vontade para que alcance a moralidade. Tal moral é uma espécie de elo entre todos os homens: é por meio dela que o indivíduo pode ser visto como fim em si mesmo19 . Nesse sentido, o ser humano deve, incessantemente, buscar aperfeiçoar-se rumo à moralidade, efetivando-se como fim em si 16 Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes Kant apresenta a ideia de um imperativo categórico, que nada mais é que o critério fundamental a partir do qual o homem pode verificar se sua ação é moral ou não, por meio de uma possível universalização de sua máxima (cf. KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 2005, p. 59). 17 Vale salientar que Kant sustenta que há no homem “[...] uma propensão para o ilícito, ainda que saiba que é ilícito, isto é, uma propensão para o mal, [...]” (KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático, 2006, p. 219). 18 LACROIX, J. Kant e o kantismo, s/d, p. 88. 19 O imperativo prático será pois o seguinte: Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na sua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio. (Cf. KANT, I. Fundamentação da metafisica dos costumes, 2005, p. 69).
  • 9. 9 mesmo e se projete na humanidade que pode ser compreendida como racionalidade ou natureza racional20 . Toda ação, portanto, possui seu fim; e uma vez que alguém não pode ter um fim sem este próprio alguém transformar o objeto de sua escolha no fim, ter qualquer fim de ação, seja qual for, constitui um ato de liberdade da parte do sujeito agente e não um efeito da natureza. [...] Assim, não se trata aqui dos fins que o ser humano realmente adota no acatamento dos impulsos sensíveis de sua natureza, mas de objetos de livre escolha em submissão às suas leis, dos quais ele deve fazer seus fins21 . Os fins de que trata Kant são aqueles provenientes da submissão às leis morais. A liberdade do homem, portanto, consiste em autoconstrangimento do ser humano ante suas ações, a fim de que estas se conformem à ação de todo homem em qualquer circunstância possível: Quando se diz que é em si mesmo um fim para o ser humano converter em seu fim a perfeição pertencente a um ser humano como tal (expressando-se propriamente, à humanidade), essa perfeição tem que ser colocada naquilo que pode resultar de seus atos não em meros dons pelos quais ele precisa estar em débito com a natureza, pois, de outro modo, não seria um dever. Este dever pode, portanto, consistir somente no cultivo das faculdades de cada um (ou predisposições naturais), a mais elevada das quais é o entendimento, a faculdade dos conceitos e, assim, também, daqueles conceitos que têm a ver com o dever22 . Como consequência, o conceito kantiano de Aufklärung parece apresentar a perspectiva de uma contínua busca que tem o entendimento como uma das principais ferramentas para essa finalidade. Por meio do cultivo dessa faculdade em nós, cada vez mais nos aproximamos do esclarecimento. Como fim que é, ao mesmo tempo um dever, o cultivo do entendimento está estritamente ligado à ideia de moralização do homem. Por essa razão, temos a obrigação moral de buscar todos os meios possíveis para o cultivo do nosso entendimento. A cultura, as artes e as ciências, entre outras formas de erudição, contribuem para que cada vez mais nosso entendimento se expanda na compreensão das coisas. Ser erudito, contudo, não significa ser esclarecido. A busca por esclarecer-se não se limita apenas à ideia de um progresso intelectual ou gnoseológico do homem, mas, sobretudo, de um progresso moral, uma vez que Kant apresenta, além da busca por um cultivo do entendimento, a necessidade do aprimoramento da vontade. Esse exercício de procura por uma moralização de si acumula a busca por uma perfeição do ser humano, perfeição esta que, em sentido lato, é idêntica ao que Kant chama Aufklärung. Desse modo, esforçarmo-nos para sermos “perfeitos” como indivíduos é projetarmo-nos para o fim último de nós mesmos. 20 Cf. WEBER, T. Ética e filosofia política: Hegel e o formalismo kantiano, 1999, p. 39. 21 KANT, I. A Metafísica dos Costumes, 2003, p. 229. 22 KANT, I. A Metafísica dos Costumes, 2003, p. 230.
  • 10. 10 Segundo Kant, não somos apenas impelidos a cultivar o entendimento e a vontade, mas obrigados por uma exigência da lei moral a agirmos desta maneira: Um ser humano tem o dever de erguer-se da tosca condição de sua natureza, de sua animalidade (quoad actum) cada vez mais rumo à humanidade, pelo que somente ele é capaz de estabelecer ele mesmo fins; tem o dever de reduzir sua ignorância através da instrução e corrigir seus erros. E não é meramente que a razão tecnicamente prática o aconselha a fazê-lo como um meio para seus outros propósitos (ou arte); moralmente a razão prática o comanda absolutamente e faz desse fim o dever dele, de modo que possa ser digno da humanidade que dentro dele reside23 . A ênfase na obrigatoriedade de uma instrução do ser humano rumo à moralidade é fundamental para o projeto de esclarecimento kantiano. O homem não pode se esquivar dessa tarefa, sob pena de não ser identificado como ser racional capaz de agir livremente. A razão prática obriga o homem a fazer desse dever de ser moral um fim em si mesmo, como se constata nas palavras de Kant: Um ser humano tem o dever de conduzir o cultivo de sua vontade à mais pura disposição virtuosa, na qual a lei se converte também no incentivo para que suas ações que se conformam ao dever e ele acata a lei a partir do dever. Essa disposição é perfeição interior moralmente prática. Uma vez que é o sentimento do efeito que a vontade legisladora dentro do ser humano exerce sobre sua capacidade de agir de acordo com sua vontade, é denominado sentimento moral, um sentido especial (sensus moralis)24 . A boa vontade é aquela que é fruto do esforço interior de cada um em conformá-la ao dever moral. O cultivo dessa faculdade a levará a uma conformação à lei moral, de tal modo que a vontade, seduzida também pelas nossas inclinações, saberá optar pela regra moral, não se sentindo forçada a agir por imposição do dever, mas identificada com este na realização de qualquer ação. Desse modo, o cultivo da vontade e do entendimento na prática de nossas ações nos conduzirá para o reino dos fins, o reino onde nossas ações são livremente morais, não por mera coação externa, mas por identificação com dever moral. Se em parte somos culpados pelo fato de agirmos na menoridade, por outro somos impulsionados a conquistar a perfeição interior. É o sentimento moral que conforma nossas ações ao dever moral e, assim, o que nos conduzirá a um progresso gnoseológico e moral do ser humano. 23 KANT, I. A Metafísica dos Costumes, 2003, p. 231. 24 KANT, I. A Metafísica dos Costumes, 2003, p. 231.
  • 11. 11 4 DA IDEIA DE UMA DESTINAÇÃO MORAL DO HOMEM EM KANT Como salientado, a ideia de um progresso da humanidade perpassa toda a modernidade com o iluminismo, o que é refletido na filosofia kantiana, na qual esse progresso não se resume ao avanço da cultura, das artes e das ciências, mas prioritariamente um progresso moral para o qual a humanidade está destinada. O alcance da moralidade não será, então, possível a um homem sozinho, mas somente na humanidade se realizará plenamente. A constatação da brevidade da vida humana é o fator principal de se afirmar que a este é impossível que, individualmente, chegue à sua destinação, o que é possibilitado por meio de sua espécie. Segundo Kant, há uma tendência no homem para que se esclareça de sua condição pueril e alcance a moralidade em suas ações por meio do cultivo da vontade e do entendimento que o conduzem a agir pelo dever como fim em si mesmo. Considerando-se o fato de que Kant admite a impossibilidade desse esclarecimento singular do ser humano, sua destinação moral se dará por meio da sociabilidade com os outros. Segundo Kant, a característica principal do aprimoramento do homem, como resultado final de antropologia pragmática em relação à sua destinação consiste no seguinte: O ser humano está destinado, por sua razão, a estar numa sociedade com seres humanos e a se cultivar, civilizar e moralizar nela por meio das artes e das ciências, e por maior que possa ser sua propensão animal a se abandonar passivamente aos atrativos da comodidade e do bem-estar, que ele denomina felicidade, ele está destinado a se tornar ativamente digno da humanidade na luta com os obstáculos que a rudeza de sua natureza coloca para ele25 . Kant considera que na humanidade o homem realizará o desígnio de sua perfeição moral. É por essa mesma humanidade que este se coage a não permanecer em seu estado de estaticidade para empenhar-se em realizar o propósito de sua constituição humana, ou seja, procurar sempre mais evoluir culturalmente. Ascender culturalmente é o primeiro passo para que o homem caminhe rumo à sua destinação26 . O indivíduo é mortal, a espécie é imortal. Talvez noutros seres o indivíduo possa realizar plenamente o seu destino, quer dizer, atingir o pleno 25 KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático, 2006, p. 219. 26 Segundo Kant, a natureza humana quer a discórdia, isto é, o embate de forças contrárias que nos fazem superar nossas dificuldades e crescer rumo à nossa destinação (cf. KANT, I. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, s/d, p. 12).
  • 12. 12 desenvolvimento de que é capaz; mas, para nós, apenas há a espécie para alimentar essa esperança27 . Constatando-se a dificuldade individual do homem evoluir-se moralmente, a ponto de cumprir sua destinação, surge então a ideia de que esse destino moral se realizará na espécie, dado a esta um status de imortalidade através de sua realização na história. Kant compreende que, observando os grandes acontecimentos da história da humanidade, é possível perceber nela um grande avanço no tocante às descobertas de novas maneiras de sociabilidade. Desse modo, segundo Jean Lacroix, Kant tem uma filosofia da história para demonstrar as etapas de evolução da humanidade garantindo que o homem tenha um norte assegurador de sua destinação. O alimento do progresso da história é dado por um antagonismo de forças presentes no homem, umas que os impelem à sociabilidade e outras que os repelem. Esse embate de forças contrárias provoca no homem o impulso de querer superar-se em seus próprios limites e por seu próprio esforço a sair de sua condição atual para uma outra sempre mais evoluída. Essa condição antagônica presente no homem o levará a uma conformação de si à humanidade, que é o máximo de seu desenvolvimento e a única maneira para que ele se plenifique em sua identidade de ser racional. Kant sustenta: Entendo aqui por antagonismo a sociabilidade insociável dos homens, isto é, a sua tendência para entrar em sociedade; essa tendência, porém, está unida a uma resistência universal que, incessantemente, ameaça dissolver a sociedade. Esta disposição reside manifestamente na natureza humana. O homem tem uma inclinação para entrar em sociedade, porque em semelhante estado se sente mais homem [...]28 . Muito embora o homem seja constitutivamente inclinado a viver em comunidade, como nos disse Kant, existe nele também “uma grande propensão para se isolar, porque depara ao mesmo tempo em si com a propriedade insocial de querer dispor de tudo ao seu gosto e, por conseguinte espera resistência de todos os lados”29 . Nesse sentido, essa resistência fruto da sociabilidade é boa, porque induz o homem a abandonar sua “inclinação para a preguiça e, movido pela ânsia das honras, do poder ou posse, e obter uma posição entre os seus congéneres, que não pode suportar, mas dos quais também não pode prescindir”30 . Compreende-se, portanto, que por mais penoso que seja para o homem viver em sociedade, ele não pode renunciar a isto, sob pena de não evoluir-se como ser humano. É 27 LACROIX, J. Kant e kantismo, s/d, p.111. 28 KANT, I. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, s/d, p. 7. 29 KANT, I. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, s/d, p. 7. 30 KANT, I. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, s/d, p. 8.
  • 13. 13 exatamente nessa tenção de forças antagônicas que o homem se supera na competição com os outros homens: Sem esta fundamental insociabilidade humana, fonte de resistência, de oposição e de luta, todos os talentos permaneceriam dissimulados em germe, [...] a humanidade seria um rebanho inocente, mas sem progresso possível. A natureza lança o homem no trabalho e na dor para que ele se liberte pelo seu próprio esforço. São os antagonismos que obrigam o homem a elevar-se do estado de natureza ao estado da cultura31 . O estado de cultura, ainda não é considerado um estado de esclarecimento, mas apenas um estado de polidez. Um homem polido, versado nas letras e nas artes, porém, tem muito mais possibilidade de se obrigar à lei moral. Voltaríamos àquela ideia de cultivo da vontade e do entendimento. É através do exercício dessas duas faculdades que o homem passará a evoluir como ser sociável e a caminhar para sempre mais esclarecer-se. Vale dizer que a ideia de um progresso cultural é algo comum à modernidade como um todo. A perspicácia de Kant, como se afirmou, foi perceber que esse progresso se dá também no campo moral e não somente no campo gnoseológico. Para dar conta de uma destinação moral do homem, Kant utilizou a ideia de que esse progresso é experienciado na história por meio do caráter da espécie humana. Compreende-se por caráter de um ser vivo, “aquilo a partir do qual se pode reconhecer de antemão a sua destinação. – Mas como princípio para os fins da natureza se pode admitir o seguinte: a natureza quer que toda criatura alcance sua destinação”32 . Por isso, Kant afirma que cada ser vivo se desenvolve com as disposições naturais para alcançar sua destinação, isto é, seu fim. Se isso não for possível a um ser individual (como é o caso do ser humano), esse fim é garantido na espécie. Por essa razão é preciso verificar o significado e o caráter da espécie humana, sobre o que Kant afirma: [...] A espécie, tomada coletivamente (como um todo da espécie humana) é uma multidão de pessoas existentes sucessivamente e próximas umas das outras, que não podem prescindir da convivência pacífica, nem todavia evitar estar constantemente em antagonismos umas com as outras; que, por conseguinte, se sentem destinadas pela natureza, pela coerção recíproca de leis emanadas delas mesmas, a uma coalisão constantemente ameaçada pela dissenção, mas em geral progressiva, numa sociedade civil mundial [...]33 . 31 LACROIX, J. Kant e kantismo, s/d, p.110. 32 KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático, 2006, p. 223. 33 KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático, 2006, p. 225.
  • 14. 14 No trecho supracitado fica em voga a importância da história no processo de esclarecimento do homem, mesmo porque o progresso da espécie humana se realizará na história. Segundo Javier Herrero (1991), o conceito de história seria, então, “um conceito apriorístico, um fio condutor oferecido pela natureza [...]”34 , donde se segue que a natureza, em Kant, seria considerada sob a ótica teleológica. Se a natureza humana está munida de todas as condições de possibilidade para que o homem progrida rumo à sua destinação moral, é imprescindível que ele se desvencilhe, sempre mais, de suas inclinações sensíveis como móbile de suas ações e se empenhe a agir por dever, isto é, segundo uma máxima tal que possa ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal35 . A ideia de uma história universal garante que o homem não se engane no intento de agir por dever, já que esta assegura a destinação moral de cada sujeito por meio de sua espécie, a partir da observação do progresso presente em nossa geração em comparação a períodos anteriores da história humana. A expectativa de realizar-se moralmente é fundamentada na experiência da história, de modo que o homem não se desespera em caminhar para algo que, embora não alcançando em vida, pode empenhar-se sempre mais no que lhe compete em aproximar-se do esclarecimento. É mister, pois, deixar claro que a proposta de um progresso moral do homem, realizado em sua espécie, demonstra um grande otimismo de Kant em relação ao ser humano. Essa ideia de perceber no homem, apesar de todas as suas contrariedades, uma semente de esclarecimento moral presente na natureza de cada um, põe Kant em um patamar único na história da filosofia, patamar este que leva o homem a uma completude no seu propósito de esclarecimento e sua destinação moral. CONCLUSÃO Diante de tudo que até aqui tratamos, podemos nos perguntar até que ponto o homem avançou, estagnou ou retrocedeu no seu ideal de esclarecimento. Por certo, constata-se na história que muito se progrediu com relação à civilidade e polidez do homem, o próprio Kant já observava isso em sua época. Entretanto, com relação ao avanço moral há controvérsias. 34 HERRERO, J. Religião e história em Kant, 1991, p. 135. 35 KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes, 2005, p. 59.
  • 15. 15 Em Kant se lançou as bases para quem ousar sair de seu marasmo confortável de cada- dia e pôr-se a caminho para progredir rumo à sua moralização. Se isso será possível, só o fim da nossa espécie nos dirá ou aos nossos sucessores. O que nos é relevante, portanto, é que Kant, apesar dos limites de sua época, legou ao homem a possibilidade de evoluir não somente nos avanços científicos e culturais, mas sobretudo moral. A legitimidade do empenho de seu projeto de esclarecimento é válido até os nossos dias, senão como propósito individual de cada um em querer sair de sua condição de menoridade para a autonomia, mas como um ideal que quis resgatar a dignidade do homem a ponto de criar uma proposta tão complexa e ousada que garantia a identidade do homem ante os desafios de sua epocalidade. Conclui-se, portanto que, Kant nos legou a possibilidade de nos superarmos enquanto indivíduos por meio do uso livre de nossa razão e da necessidade de sempre agirmos moralmente para o nosso bem e da humanidade. Se assim vamos agir ou, se hoje tal proposta não se sustenta mais, a verdade é que as bases para o esclarecimento foram lançadas e a história demonstra que se quisermos, poderemos, pelo menos, alcançar a polidez na nossa vida em sociedade. Pergunta-se, por fim, se o projeto da Aufklärung Kantiana se sustenta atualmente ou é apenas mais um castelo de elucubrações teóricas desses que na história da filosofia se construiu muitos? Por certo haveria respostas controversas, o que em nada minimiza o rigor do projeto filosófico de Kant. Uma vez destinados a sermos morais, como pensou Kant, e que tal destinação se cumpre na espécie no desdobramento da história, nesta se desvelará a moralidade da humanidade e, por conseguinte, do próprio homem. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHÂTELET, F. Uma história da razão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. HERRERO, J. Religião e história em Kant. São Paulo: Loyola, 1991. KANT, I. A metafísica dos costumes. 1.ed. Bauru: Edipro, 2003. _______. Antropologia de um ponto de vista pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006. _______ . Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Luso Sofia:press, s/d _______. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 2005.
  • 16. 16 _______. Resposta a pergunta: o que é esclarecimento? In: Textos seletos. 2. Ed. Petrópolis, Vozes, 1985 LACROIX, J. Kant e o kantismo. Porto-Portugal: RES-Editora, s/d. SAMPAIO, R. G. Metafísica e modernidade; método e estrutura, temas e sistema em Henrique Cláudio de Lima Vaz. São Paulo: Edições Loyola, 2006. WEBER, T. Ética e filosofia política, Hegel e o formalismo kantiano. Porto Alegre: Edipucrs, 1999.g