1. Homilia de Dom Sebastião Armando no Culto Ecumênico de abertura da Campanha da
Fraternidade 2010
Recife, 20 de Fevereiro
“Este e o dia que o Senhor fez, exultemos e alegremo-nos nele”!
Este e o dia que o Senhor fez para nós. Não deixa de ser altamente significativo
que a assembleia plenária da Arquidiocese Católica Romana de Olinda e Recife escolha
ser concluída com o lançamento oficial da Campanha da Fraternidade Ecumênica, como
que transbordando em assembléia litúrgica e ecumênica.
Depois de marchas e contramarchas na história recente da Igreja, com desistências,
tristezas e até decepções e lamentáveis rupturas, é como se aqui nos sentíssemos de volta
ao clima entusiasmante do Concilio Vaticano II, quando a Igreja, para além das fronteiras
de instituição e organização, se redescobria Povo de Deus peregrino nos caminhos da
humanidade pluralista, misterioso Corpo de Cristo, de inumeráveis membros e plúrimas
funções. Povo de Deus solidário com as alegrias e dores da humanidade sofredora,
projetando-se em dimensões que ultrapassam seus limites visíveis.
E aí dois imensos holofotes se acenderam como referências maiores da
peregrinação: antes de tudo, a Missão, como participação na missão de Deus, Deus
triúno, fonte e modelo da vida humana em comunhão, a Trindade como ícone e
dinamismo profundo da construção da sociedade com um jeito novo de ser, uma
sociedade humana com jeito divino. Já não bastava manter a Igreja, já não bastava
preservar a religião ou a cultura cristã. Via-se com mais clareza que a Missão é anunciar a
boa-nova da nova prática de Jesus, anúncio que só se dá, de verdade, quando assumimos
em nossos próprios corpos as marcas de Jesus: Jesus restaurador da obra de Deus, que é o
mundo, a criação, a humanidade, as relações e as estruturas humanas de convivência.
Para assombro dos poderes mundanos e para alegria dos pobres, o Evangelho se
revelava em toda a sua capacidade explosiva de libertação política e cultural. A Igreja se
tornava ainda mais militante e por isso perseguida. O seguimento e o testemunho de
Cristo brilharam com mais nitidez aos olhos da sociedade que se torna sempre mais
idólatra. A nossos olhos de crentes avivou-se a sublime imagem do Ressuscitado – Jesus
vivo, vencedor da morte, triunfante sobre o injusto julgamento dos poderes do dinheiro,
do Estado e da religião, como se o véu se abrisse e fôssemos introduzidos à maravilhosa
liturgia celebrada nos céus, revelada pelo Apocalipse. A Igreja fortalecida na coragem do
martírio – o século XX foi o século dos mártires – para que se estabeleça a justiça de
Deus.
Se, na perspectiva do Concilio Vaticano II, o que interessa acima de tudo não são as
instituições eclesiásticas e religiosas, mas a vida do Povo de Deus e o triunfo da justiça,
acendia-se, naturalmente, o segundo holofote: se o foco, o padrão central de referência, é
2. a Missão, então, a Unidade do povo cristão aparece como critério básico de fidelidade à
aliança com Deus. Num mundo idólatra todo o Povo de Deus tem de estar unido na
proclamação de Seu Nome e na defesa de Sua honra. A divisão só dá motivos para que
“seja blasfemado o Nome de Deus entre as nações”. A justiça do Reino brilha como a
questão maior, tudo o mais tem menos importância. Se não é assim, persistimos como
grave motivo de escândalo.
Quem sabe, é o momento adequado para evocar a saudosa figura de Dom Helder,
o amado e eterno Arcebispo de Olinda e Recife. Durante o Concílio, em entrevista a
queima roupa no aeroporto de Paris, perguntado sobre o que pensava do Ecumenismo,
prontamente respondeu: “Quando nós, as Igrejas cristãs, resolvermos assumir realmente
as preocupações de Deus, que são as questões da vida de Seu povo, então haveremos de
ter vergonha de nossas divisões, que nos aparecerão coisa tão pequenina”. Síntese
perfeita de Missão e Unidade, síntese que ele mesmo viveu em sua própria vida, com o
testemunho de ser, como gostava de dizer, uma criatura humana, e acrescentamos, uma
criatura humana para além de todas as fronteiras.
Dom Fernando, ajude-nos a fazer renascer no Recife o “espaço fraterno”, de
pessoas de diferentes denominações cristãs, onde possamos vivenciar novas relações de
amizade, partilhar desafios missionários, dialogar sobre nossas diferentes tradições e ter
condições de colaborar em iniciativas comuns a favor da vida de nosso povo tão sofrido,
com tamanhas maiorias, agora já não só à margem da estrada, mas literalmente excluídas
do banquete da vida. Se não o fizermos, este dia que o Senhor fez para nós corre o risco
de degradar-se a fato episódico a ser recordado no folclore religioso da cidade. Este dia
tem de ecoar a nossos ouvidos como clamor de Deus convocando-nos a prosseguir nos
caminhos da Unidade.
Irmãos e irmãs, quando nos reunimos para o louvor de Deus e para avivar a
experiência de Sua presença em nosso meio, costumamos ler a Bíblia. E os antigos
textos, no contexto de nossa vida hoje, têm o admirável poder de fazer ressoar em perene
atualidade a Palavra de Deus, seu terrível julgamento e a boa noticia de que é possível
sermos mais felizes. A Bíblia nos ajuda a perceber o sentido do que estamos a fazer aqui.
Recitamos o Salmo 1º. Sabemos que os Salmos 1º e 2º são como o pórtico de
entrada no saltério. No Salmo 2º se revelam a figura e a tarefa do Messias, de estabelecer
a paz entre as nações mediante a vitória sobre os poderes que conspiram contra Deus. No
Salmo 1º apresentam-se os justos, o cortejo do Messias, aqueles e aquelas com quem
Deus pode contar para realizar seus propósitos na história.
Curioso, a liturgia nos faz tomar como oração o elogio que o Espírito Santo nos
faz: “Feliz quem não anda no projeto dos perversos e no caminho dos pecadores não se
detém e na roda dos escarnecedores não se assenta”. O corpo dos seguidores de Cristo,
em todos os seus movimentos, nada tem em comum com o corpo dos inimigos de Deus, e
seu mundo interior é habitado pela Lei do Senhor, nela está o seu prazer, é ela seu
alimento constante, ruminação dia e noite. São como árvore, sólida, enraizada, bonita e
fecunda em folhas e frutos. Os perversos não passam de palha arrebatada pelo vendaval.
3. Não resistirão ao juízo, enquanto aos justos, Deus os “conhece” intimamente, de
intimidade matrimonial.
E qual é o núcleo da vontade de Deus? É o que nos diz a lição de Deuteronômio, o
Livro da Aliança, nascido dos ambientes proféticos. Quando lemos a Bíblia, vemos com
clareza que o centro da revelação e da prática da fé é a liberdade. Deus revela o Seu
Nome ao inspirar Moisés à obra de libertação do povo. A Lei da Aliança é dada para
garantir, pela igualdade e o respeito, a liberdade. O Apóstolo S. Paulo resume na
liberdade toda a obra de Cristo: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou.” É na
experiência de ser livre que fazemos a experiência de Deus como dimensão transcendente
e humanizadora da vida. “Deus” é o nome teológico, “Liberdade” é o nome
antropológico da experiência de ser plenamente pessoa humana. Fora da liberdade,
qualquer religião é engano e alienação. Porque liberdade é sinônimo de amor e amor é
sinônimo de serviço e dom da própria vida
No texto de Deuteronômio, toma-se como exemplo a libertação do escravo.
Quando falamos de temas como liberdade, igualdade, justiça, fraternidade, facilmente
cai-nos a acusação de românticos idealistas. Ao contrário, ao mencionar a libertação da
servidão, a Bíblia é tremendamente realista. O suporte da liberdade é estabelecer uma
economia que forneça os meios materiais para que a pessoa adquira autonomia: “Quando
o deixares ir em liberdade, não o despeças de mãos vazias ... Dá-lhe conforme a benção
que o Senhor teu Deus te houver concedido”. Declarar livres as pessoas nas Constituições
e leis não basta, se não lhes garante a base econômica (material) para o exercício da
liberdade (espiritual).
Estamos no Ano de Joaquim Nabuco, um dos maiores homens de visão na história
do país. Um rico que fez opção pelos pobres, um senhor que se bateu, intelectual e
politicamente, pela abolição da escravatura. Para ele, porém, sabiamente, não bastava
conceder liberdade aos escravos. As bases da liberdade teriam de ser a posse da terra e a
educação. A história lhe deu sobejamente razão. Da abolição sem reforma agrária e sem
reforma da educação, nasceu o povo das favelas, da marginalização e da exclusão. Não é
acaso que a maioria da pobreza seja de gente negra, para vergonha moral da cruel elite
brasileira que ainda hoje define sua identidade pelo “ethos” do “senhor de engenho”,
dono da terra e das gentes.
As lições bíblicas atingem seu ápice na liturgia de hoje com o trecho de São
Mateus, capítulo 6º, o texto clássico da Quaresma, tirado do Sermão do Monte. Jesus fala
dos três exercícios que caracterizam este longo retiro de preparação da Páscoa:
Esmola – esmola no sentido profundo de “elemosina”, isto é, misericórdia, sentir
a dor dos miseráveis, solidariedade para restaurar a justiça;
Oração – encontrar-se com Deus como segredo intimo de nossa vida, fonte
secreta de valores, critérios, atitudes e comportamentos, programar a vida pela Oração do
Senhor, “Pai nosso, “ pão nosso”;
Jejum – privar-se, contentar-se com o necessário, não por desprezo pelos bens da
vida que são criaturas e dons de Deus, mas por amor a quem necessita, privar-se,
economizar para poder partilhar. Esmola e jejum são apelo à partilha, são a maneira de
4. sermos generosos, semelhantes a Deus. Partilha de bens e partilha de perdão são o jeito
de parecer com Deus.
Finalmente, as palavras de Jesus se concluem com o texto que acabamos de ouvir:
“Não podeis servir a Deus e o dinheiro. Por isso não vos preocupeis...” e vem o texto
famoso que exorta a ser como flores do campo e aves do céu, confiantes na bondosa
providência divina.
Acusam a Jesus e a nós também de românticos idealistas. Como viver sem pôr
confiança no dinheiro, não seria irresponsável? Longe de ser idealista ingênuo, Jesus
insinua claramente a importância da Economia. Por que podemos viver sem a angústia do
amanhã, por que podemos confiar na vida e no futuro? Não se trata de ser irresponsável,
trata-se, antes, de vencer a angústia e, assim, não se deixar prender na cadeia do dinheiro
e do afan pelos bens materiais. É que a proposta de Jesus é a comunidade, e a base
econômica, realista da vida em comunidade, isto é, de igualdade, de solidariedade e de
justiça, é uma economia de partilha e não de apropriação por parte de poucos. Na
comunidade temos apoio nas necessidades, podemos confiar uns nos outros. Acabam a
incerteza e a angústia.
Muitas pessoas se espantam quando a Igreja fala de Economia ou critica sistemas
econômicos injustos. Dizem, a tarefa da Igreja se dá no campo das realidades espirituais.
O que são, porém, as realidades espirituais? Supremamente espiritual é a pessoa, e esta é
“espírito encarnado”. Espírito é nosso corpo capaz de conhecer e de projetar o futuro,
capaz de amar e por isso dialogar. O espírito atua e se revela em nossas relações com as
pessoas e as coisas, que são sempre materiais. É enquanto seres materiais que somos
pessoas, imagem e semelhança de Deus. Nossa vida espiritual atravessa as duas
dimensões fundamentais de nosso corpo: a erótica (o prazer de viver) e a econômica (a
conquista dos meios de vida). Nas relações com as pessoas (erotismo) e nas relações com
as coisas (economia) é que se revela de que espírito somos. A Economia tem de ter
espírito, estar a serviço do propósito de Deus para a vida das pessoas. Uma “economia de
comunhão”, uma economia de partilha é manifestação evidente do Espírito. Dualismo
corpo-alma, matéria-espírito, Igreja-mundo, espiritualidade-política, oração-dinheiro, o
dualismo é degradação do Evangelho. O espiritualismo é traição ao Espírito.
É significativo: na última viagem à Cidade Santa, no caminho com seus
discípulos, Jesus toma o tempo para instruí-los a respeito do Reino de Deus. E qual é o
conteúdo da instrução? Ele poderia ter falado de inúmeros temas, de como devia
organizar-se a Igreja, por ex. No entanto, só fala de dois assuntos: poder e dinheiro.
Insiste sobre os dois sentimentos mais profundos que afetam todas as relações: o desejo
de tudo dominar, inclusive as pessoas; o desejo de tudo possuir, inclusive as pessoas -- e
isso é destrutivo da comunidade. Para Jesus, portanto, nas relações políticas (poder) e nas
relações econômicas, (posse) é que se dá o grande conflito entre o Deus vivo e os
ídolos:ou servimos o Deus vivo pelo serviço às pessoas vivas, ou servimos os ídolos do
poder, cuja imagem está gravada nas moedas, e as imagens são símbolos narcisistas de
nossas carências e autocomplacência. Ou servimos a Deus ou o dinheiro. Ou
compreendemos a vida como comunhão mediante relações fraternas e partilha dos bens,
5. ou buscamos desesperadamente apropriar-nos das coisas e das pessoas a nosso serviço,
para preencher o vazio de insegurança infantil que nos devora.
Eis, irmãos e irmãs, a mensagem desta Campanha da Fraternidade Ecumênica:
Economia em favor da vida. Mas a visão de fé não admite compromissos, pois os dois
campos são opostos, ou servimos a Deus ou o dinheiro. Para a Bíblia o dinheiro deixa de
ser meio e se torna ídolo que adoramos na medida em que nele se reflete nossa carência
de poder sobre as pessoas e sobre as coisas. Buscamos salvar-nos agarrando-nos às
“obras de nossas mãos”, tão vazias quanto nós...
O chamamento da Quaresma é claro: de que lado estamos? Até que ponto temos
condições de interpelar a sociedade que destroi o meio ambiente, que priva os pobres do
alimento, que se compraz no desperdício, que almeja o conforto e a inovação tecnológica
sem limites, que não se importa de esgotar no curso de poucas gerações os recursos do
planeta... até que ponto temos condições de interpelar a sociedade se assimilamos sua
mentalidade, se já não nos sentimos diferentes? Hoje já não só as Igrejas, mas também os
cientistas nos chamam à conversão e ao juízo: ou mudamos de vida, ou perecemos com o
planeta. Mais do que nunca a conversão nos aparece como uma questão, além de
religiosa, essencialmente politicosocial. E a fé cristã, a fé bíblica, se revela em toda a sua
atualidade: deixar-se atrair pelo brilho dos ídolos é correr atrás de ilusões e do vazio.
Nunca talvez como hoje se revela tão claro que, se seguir a Jesus tem alto custo, custo
ainda maior é não segui-Lo. Basta olhar em redor e ver o preço que pagamos por desviar-
nos da vontade de Deus – no próprio pecado social nos sobrevém o castigo:
desagregação, exclusão, fome, medo, violência, guerras, confiança na pedagogia do
terror...
Estamos realmente disponíveis a Deus para lutar por uma economia em favor da
vida? Ou ainda pensamos que essa não é tarefa central da fé e da Igreja? Ainda julgamos
que a transformação econômica e política da sociedade não tem de estar no coração da
Igreja? Está em jogo a obra de Deus, o mundo é a obra de Deus. Julgamos, porventura,
que a união das Igrejas não é urgente por não se tratar de assunto de religião ou de
negócio eclesiástico? Seremos tão irresponsáveis a ponto de abandonar o mundo ao poder
das trevas?
Seria terrível dizer: que posso fazer, eu que sou pequeno e pobre? Só os
poderosos têm como resolver tão graves problemas. Ora, são justamente os poderosos a
causa principal do problema. Nunca como hoje a sorte da vida dependeu tanto das
pessoas comuns, de gente como nós. Os ricos e poderosos não querem mudanças
profundas, os governos também não as querem ou já não podem. A sorte do mundo está
incrivelmente em nossas mãos, nas mãos das pessoas comuns. A tragédia é, tudo
indica, que ainda não temos maturidade para enfrentar tão imenso desafio ético, que
começa em nosso quotidiano, das pequenas coisas, no uso que fazemos dos bens que
possuímos, nas decisões que tomamos, particularmente, em relação a nosso consumo.
Começa no dia a dia de nossa casa, amplia-se nas organizações e movimentos da
sociedade civil, alarga-se às nações e aos Estados.
6. É nossa decisão assumir a militância de Cristo para que seja feita a obra de Deus,
mediante a restauração das pessoas e a preservação da criação? Estamos com a firme
decisão de rever nosso consumo, de encarar uma vida sóbria e de partilha para que haja
vida para todas as pessoas, de colaborar com uma Economia em favor da vida?
Se assim é, que Deus nos abençoe! Se assim ainda não é, que Deus transforme
nossos corações e nos converta a Sua aliança!