Decisão proferida em ação de reintegração de posse onde foi determinada a tentativa de identificação pessoal dos ocupantes, em respeito ao Pacto de San José da Costa Rica e dos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
1. Estado do Paraná
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Autos n.º:
D E C I S Ã O
Vistos,
1. FRANCISCO BUBA JUNIOR e MYRIAM IRENE JACOBS
BUBA, formulam pedido de reconsideração da decisão do mov. 348 que deferiu
o pedido da Defensoria Pública do Estado do Paraná de suspensão do feito para
a identificação de os ocupantes e sua posterior citação pessoal. Afirma a
necessidade de citação por edital posto que o pedido da defensoria não pode
ser acolhida ante a possibilidade na jurisprudência de citação editalícia na
hipótese de vários invasores.
2. A Defensoria Pública do Estado do Paraná manifestou-se pela
manutenção da decisão tendo em vista que está em avançados trabalhos em
cooperação com a UNILA – Universidade da Integração Latino-americana para
a identificação dos ocupantes, o que, é sua função institucional na forma da Lei
Complementar 80/1994.
3. É o breve relato.
4. Decido.
5. O pedido de reconsideração formulado pelo requerente não
pode ser acolhido, na medida em que não traz qualquer novo elemento aos
autos, não tendo densidade suficiente para afastar a decisão tomada,
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devidamente fundamentada, no sentido da densificação do acesso à jurisdição
e, principalmente, à ordem jurídica justa, por parte dos ocupantes do imóvel.
6. Como discorre Kazuo Watanabe1:
O princípio de acesso à justiça, inscrito
no n. XXXV do art. 5º, da Constituição Federal, não
assegura apenas acesso formal aos órgãos judiciários,
e sim um acesso qualificado que propicie aos indivíduos
o acesso à ordem jurídica justa, no sentido de que cabe
a todos que tenham qualquer problema jurídico, não
necessariamente um conflito de interesses, uma
atenção por parte do Poder Público, em especial do
Poder Judiciário.
8. A questão envolvendo conflitos fundiários transborda o mero
formalismo do processo, ainda mais quando, em grande escala, se está diante
de não mais uma simples ocupação, não se está em verdade, somente pela
ilusão do processo, discutindo a posse, se está nos autos discutindo o direito
social à moradia, cabendo ao poder judiciário não se limitar ao papel de condutor
do processo, mas de agente de concretização dos direitos fundamentais, entre
eles, e especialmente na decisão a que se busca a reconsideração, do direito de
buscarem os ocupantes a sua defesa e terem plena ciência, não só em eventual
cumprimento da ordem, do pedido do autor.
9. O conceito de "conflito fundiário" tem como base a definição
trazida pelo "Relatório Preliminar sobre a Situação dos Conflitos Fundiários
Rurais no Brasil"2 do CNJ, que se utilizando da conceituação feita pela Comissão
Pastoral da Terra conceitua os conceitua como:
1
Política Pública do Poder Judiciário Nacional para tratamento adequado dos conflitos de
interesses. Disponível em http://goo.gl/mf0WmP , acesso em 25/08/2015
2
"Relatório preliminar sobre a situação dos conflitos fundiários rurais no Brasil". Departamento de
Pesquisas Judiciárias – Diretoria de Projetos. CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Brasília: 2009.
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“Ações de resistência e enfrentamento
pela posse, uso e propriedade da terra e pelo acesso a
seringais, babaçuais ou castanhais, quando envolvem
posseiros, assentados, remanescentes de quilombos,
parceleiros, pequenos arrendatários, pequenos
proprietários, ocupantes, sem-terra, seringueiros,
quebradeiras de coco babaçu, castanheiros,
faxinalenses, etc”
10. A citação por edital, sem o esgotamento das possibilidade
de identificação e posterior citação pessoal dos ocupantes, não condiz com o
Sistema Interamericano de Direitos Humanos, no qual, expressamente o Pacto
Interamericano de Direitos Humanos (PIDH) garante o direito da parte em ser
ouvida pelo Juiz:
Art. 8º. Toda pessoa tem direito a ser
ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo
razoável, por um juiz ou tribunal competente,
independente e imparcial, estabelecido anteriormente por
lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada
contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou
obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de
qualquer outra natureza.
11. Sobre a garantia de ser ouvido em juízo como direito humano
a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) no Caso Loayza
Tamayo vc Perú3 assim se manifestou:
Disponível em: <http://wwwh.cnj.jus.br/portalcnj/images/relatpreliminar%20%20conflitos%20fundirios.pdf>.
Acesso em: 25/08/2015.
3
Sentença de reparações de 27 de novembro de 1998, par. 169; Caso Velásquez Rodríguez, Fairén Garbi
e Solís Corrales e Godínez Cruz, Exceções Preliminares, par. 91, 90 e 93
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“[o] artigo 25, em relação com o artigo 1.1
da Convenção Americana, obriga o Estado a garantir a
toda pessoa o acesso à administração de justiça e, em
particular, a um recurso rápido e simples para
conseguir, entre outros resultados, que os responsáveis
pelas violações dos direitos humanos sejam julgados, e
para obter uma reparação pelo dano sofrido. O artigo 25
“constitui um dos pilares básicos, não somente da
Convenção Americana, mas do próprio Estado de direito
em uma sociedade democrática.”. Esse artigo guarda
relação direta com o artigo 8.1 (… )que consagra o
direito de toda pessoa a ser ouvida com as devidas
garantias (...)Para a determinação de seus direitos de
qualquer natureza”
12. Aliás, justamente por violação do direito de acesso ao
judiciário, o Estado brasileiro, em caso envolvendo conflito agrário no nosso
Estado do Paraná, foi responsabilizado perante a Corte Interamericana de
Direitos Humanos4, momento em que afirmou a responsabilidade do Estado
brasileiro por violação dos artigos 8º e 25 do Pacto IDH:
“Os Estados Partes têm, por
conseguinte, a obrigação de tomar todo tipo de
providência para que ninguém seja privado da proteção
judicial e do exercício do direito a um recurso simples e
eficaz.”5
13. O argumento de que com a citação por edital serão os
invasores defendidos por curador especial também se mostra inadequado, posto
4
Caso Sebastião Camargo Filho Vs Brasil, sentença de 19 de março de 2009
5
http://cidh.oas.org/annualrep/2009port/Brasil12310port.htm#_ftnref58
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que viola a garantia judicial de escolha do próprio defensor (Pacto IDH, art. 8.2,
item “d”), conforme decidido pela Corte IDH na sentença de 17/07/2005 no Caso
Comunidade Indígena Yakye Axa vs Paraguai6, quando afirmou a Corte:
“Os recursos efetivos que os Estados
devem oferecer em conformidade com o artigo 25 da
Convenção Americana devem ser fundamentados de
acordo com as regras do devido processo legal (artigo
8 da Convenção), tudo isso dentro da obrigação geral
dos mesmos Estados de garantir o livre e pleno
exercício dos direitos reconhecidos pela Convenção a
toda pessoa que se encontre sob sua jurisdição. Nesse
sentido, a Corte considerou que o devido processo legal
deve ser respeitado no procedimento administrativo e
em qualquer outro procedimento cuja decisão possa
afetar os direitos das pessoas.” (traduzimos)
14. Tenho, portanto, que a decisão que determinou a preliminar
tentativa de identificação dos ocupantes e posterior citação pessoal é a que mais
garante a efetivação no caso concreto das garantias processuais decorrente do
Pacto de San José da Costa Rica, especialmente seu art. 8º7, garantindo-se aos
6
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_125_esp.pdf
7
Artigo 8º - Garantias judiciais:
1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por
um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na
apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e
obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for
legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às
seguintes garantias mínimas:
a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda
ou não fale a língua do juízo ou tribunal;
b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;
c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa;
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requeridos o acesso prévio à imputação do autor e evitando-se a formula de que
os invasores, na maioria das vezes, somente tomam conhecimento do processo
quando arrancados de seus barracos pelo Estado, ou seja, primeiro cumpre-se
a decisão e, somente nesse momento o requerido, atingido em sua esfera
jurídica toma conhecimento dos fatos a ele imputados.
15. Não por outra razão no Caso Barreto Leiva vs Venezuela8,
em sentença datada de 17/11/2009 a Corte IDH entendeu que o art. 8.2 do Pacto
IDH garante o direito ao acusado (não havendo diferença ontológica entre o
acusado penal e o civil) o direito de contar com tempo e meios adequados para
preparar a sua defesa (Art. 8.2, “c”), bem como o direito de conhecer as
acusações (Art. 8.2 “b”) e poder escolher o seu defensor (Art. 8.2 “d”). Na
sentença foi dito:
“Um desses direitos fundamentais é o direito
de contar com tempo os meios adequados para preparar a
defesa, previsto no artigo 8.2.c da Convenção, que obriga o
Estado a permitir o acesso ao acusado do conhecimento do
o processo instaurado contra ele. Deve também ser
respeitado o princípio do contraditório, garantindo que a
intervenção na análise da prova.
d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e
de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;
e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não,
segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do
prazo estabelecido pela lei;
f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como
testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;
g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; e
h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior.
3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.
4. O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo
pelos mesmos fatos.
5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça.
8
http://d2kefwu52uvymq.cloudfront.net/uploads/2011/12/seriec_206_esp1.pdf
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Se o Estado pretende limitar este direito,
deve respeitar o princípio da legalidade, e arguir de maneira
fundamentada qual é o fim legítimo que pretende conseguir
e demonstrar qual o médio utilizado para chegar a esse fim
idôneo. Caso contrário, a restrição do direito de defesa do
indivíduo contraria a esta Convenção.” (traduzimos)
16. A decisão a que se busca a reconsideração está fundada no
controle de convencionalidade do direito, que implica dizer que, segundo o
entendimento preconizado no Recurso Extraordinário 466.3439, os tratados
internacionais que disponham sobre Direitos Humanos têm natureza
infraconstitucional e supralegal, devendo o Julgador formular a sua aplicação e
a interpretação das normas internas à luz dos postulados das normas
internacionais. Nas palavras de Mazzuoli10:
“Ora, se as normas constitucionais (normas do próprio texto
constitucional) ou aquelas que lhe são niveladas (normas
previstas nos tratados de direitos humanos ratificados pelo
Estado) são fundamento para o que se chama de controle de
constitucionalidade/convencionalidade, é lógico admitir que
as normas supralegais também são fundamento de algum
controle. Qual Controle? Evidentemente, o de
supralegalidade.”
17. No caso, não se está declarando a (in)convencionalidade do
art. 231 do CPC/73, mas sim firmando a interpretação, à luz do art. 8º do Pacto
9
EMENTA: PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida
coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas
subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da
Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido.
Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de
depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. (STF, RE 466343, Relator(a): Min.
CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008)
10
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Controle Jurisdicional da Convencionalidade das Leis (Coleção
Direito e Ciências Afins V.4./coordenação Alice Bianchini, Luiz Flávio Gomes, Willian Terra de Oliveira). São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 130
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de San José de que nos conflitos fundiário, quando possível, a identificação dos
ocupantes, se deve garantir a materialização das garantias judiciais de acesso
ao poder judiciário, de ampla defesa e do contraditório. O que se está realizando
é a compatibilização do direito interno com o direito internacional, harmonizando-
se as várias fontes de direito para a ampliação das garantias do homem.
Novamente Mazzuoli11:
“À medida que os tratados forem sendo
incorporados ao direito pátrio, os tribunais locais – estando
tais tratados em vigor no plano internacional – podem,
desde já e independentemente de qualquer condição
ulterior, compatibilizar as leis domésticas com o conteúdo
dos tratados (de direitos humanos ou comuns) vigentes no
país.
Em outras palavras, os tratados
internacionais incorporados ao direito brasileiro passam a
ter eficácia paralisante (para além de derrogatória) das
demais espécies normativas domésticas, cabendo ao juiz
coordenar essas fontes (internacionais e internas) e escutar
o que elas dizem.”
18. No mesmo sentido o Juiz da Corte IDH Sergio García
Ramírez, em voto apartado no julgamento do Caso dos Trabalhadores demitidos
do Congresso vs Peru12 (sentença de 30/11/2007):
“Se houver essa conexão clara e
inequívoca - ou pelo menos o suficiente, inteligível, não
11
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro.
In Revista de Informação Legislativa , . 181 jan./mar. 2009, p. 129, disponível em
http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/194897/000861730.pdf?sequence=3, acesso em
25/08/2015
12
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_174_esp.pdf
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perdeu em incertezas ou diferentes interpretações - e em
virtude dos instrumentos internacionais são
imediatamente aplicáveis internamente, os tribunais
nacionais podem e devem desempenhar o seu próprio
"controle de convencionalidade”. Assim fizeram vários
órgãos de justiça interna, abrindo o horizonte estava
nublado , inaugurando uma nova era de uma melhor
proteção dos seres humanos e creditando a ideia -
Tenho reiterado - que a grande batalha pelos direitos
humanos ganhar internamente , que é adjunto ou
complementar, mas não substituir , o internacional.”
(Traduzimos)
19. Se, eventualmente, a Defensoria Pública do Estado, no
prazo que lhe foi concedido, não conseguir realizar esta identificação, para fins
do decidido no Caso Barreto Leiva vs Venezuela, se terá a possibilidade de
citação por edital posto que, nesse momento, se estará diante do único fim
possível para a materialização do direito que tem autor de acesso ao Poder
Judiciário, que, assim como o dos réus, não pode ser suprimido, mas antes
desse momento, a citação por edital sobreleva seu direito e sonega o dos
ocupantes, afastando-se da pretensão universalista dos direitos humanos.
20. Ante todo o exposto, INDEFIRO o pedido de reconsideração,
mantendo na íntegra, a decisão lançada no mov. 348.
21. Aguarde-se o decurso do prazo deferido. Após, voltem.
Foz do Iguaçu, 25 de agosto de 2015.
ROGERIO DE VIDAL CUNHA
Juiz de Direito Substituto