3. UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Reitor
Ricardo Vieiralves de Castro
Vice-reitor
Paulo Roberto Volpato Dias
EDITORA DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Conselho Editorial
Antonio Augusto Passos Videira
Erick Felinto de Oliveira
Flora Süssekind
ltalo Moriconi (presidente)
Ivo Barbieri
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves
Jean-Marc Besse
O gosto do Illundo
Exercícios de paisagem
Tradução
Annie Cambe
Rio de Janeiro
2014
5. Prólogo
A paisagem constitui uma perspectiva nova para as ques- <-
tões ligadas ao projeto urbano e à concepção da cidade, de forma
geral. Num contexto que deixou de ser o da cidade histórica e
passou a ser muito mais o da "cidade difusa'', da "cidade explo-
dida", ou da "cidade espraiada", a paisagem é hoje considerada
por muitos (inclusive pelos mestres.de obra) como um recurso
para o urbanismo, ou, de forma mais geral, para as estratégias de
ordenamento do espaço em diferentes escalas. O cuidado com a
paisagem ocupa, na atualidade, um lugar crucial nas preocupações
sociais e políticas pela qualidade dos quadros de vida oferecidos
às populações, em relação aos questionamentos sobre a identida-
de dos lugares, sobre a governança dos territórios ou, ainda, sobre
a proteção dos meios naturais.
Paralelamente, observa-se que um verdadeiro campo de
pesquisa se constituiu no que se refere à questão da paisagem,
onde se encontram várias disciplinas e várias profissões (ciências
sociais, história e teoria das artes e da literatura, filosofia, ecologia,
geografia, arquitetura e urbanismo, agronomia). O surgimento de
carreiras universitárias, a criação de novas escolas, o desenvol-
vimento quantitativo das publicações e, por fim, a formulação
de novos dispositivos jurídicos e institucionais - tanto em escala
nacional como europeia (Lei Paisagem, de 1993, na França, Con- Cff
vênio europeu sobre a paisagem, de 2000) - levam a formular a
hipótese de uma nova cultura da paisagem; uma nova cultura que
6. n O 11mtn do mundo: [ xcrclclos de paisagem
l <llTt:sponde, sem dúvida, a novas formas de experiência do espa-
~·o, da sociedade e da natureza e, no mínimo, a novas aspirações
cole1ivas relativas ao meio ambiente.
Mas este tipo de coincidência que se observa entre o de-
senvolvimento da pesquisa e um contexto social e político, que
também se tornou mais atento aos desafios paisagísticos, faz surgir
horizontes inéditos, tanto para as práticas profissionais dos urba-
nistas e dos paisagistas quanto para as teorias paisagísticas. Hoje,
já surgem novas perguntas a respeito da paisagem e, em particular,
novas exigências teóricas e práticas são feitas a seu respeito.
Efetivamente, durante muito tempo, foi considerada satis-
fatória a definição que considerava a paisagem como um panora-
ma natural, geralmente descoberto a partir de um ponto elevado,
permitindo, assim, que o espectador obtivesse um tipo de domí-
nio visual sobre o território. Tal espetáculo devia, supostamente,
provocar nos indivíduos o surgimento de um prazer estético ou
de uma edificação moral e, no mínimo, de uma emoção sensível
inigualável no gênero.
Esse conceito pitoresco ou ornamental da paisagem (que,
aliás, continua bem vivo, especialmente nas suas expressões co-
merciais) está hoje em crise ou, pelo menos, é motivo de inúmeras
críticas, tanto no plano das representações e das percepções quan-
co no das realidades e dos projetos. A relação com as paisagens
ficou mais complexa e menos "naturaJ" que antes.
"'- Assim, as paisagens são hoje tratadas no âmbito de uma
reflexão mais geral sobre as cidades e a extensão suburbana, so-
bre os locais industriais e sua ocupação territorial, sobre as áreas
industriais devolutas, sobre o impacto das instalações técnicas de-
dicadas ao transporte dos homens e das m ercadorias ou, ainda, à
produção e à circulação da energia.
Daí a interrogação: quais serão as consequências dessa am-
pliação do campo dos objetos paisagísticos não só sobre a legibi-
Prólogo 9
!idade das paisagens, mas também sobre o próprio conteúdo do !
conceito de paisagem e sobre as práticas paisagísticas? 1·
Além disso, foram levantadas outras questões quanto às re-
lações entre as paisagens e o poder, político ou econômico. As
paisagens não são, de certa forma, os instrumentos da dissimula-
ção de realidades sociais e econômicas bastante inglórias, como a
da exclusão socioespacial, por exemplo? Qual é o teor ideológico
de uma paisagem? D e modo mais geral, quais significações e quais
valores uma paisagem pode propor hoje? A paisagem tornou-se
um tecido ético, de certa forma.
No que diz respeito aos modos de acesso às paisagens, a
questão surge, por exemplo, no que se refere a saber se a vista ain-
da pode ser considerada a condição e a principal forma da relação
com as paisagens. Fala-se, atualmente, das paisagens sonoras, mas
também da paisagem dos sabores, ou até das paisagens tácteis, no
âmbito de uma reflexão geral que insiste na dimensão de polissen-
sorialidade própria das experiências paisagísticas.
Na mesma ordem de ideias, o desenvolvimento de mídia
- como a fotografia e o cinema - e o das técnicas digitais de gra-
vação, de fabricação e de reprodução dos sons e das imagens leva-
ram a considerar outros tipos de paisagens, que se avizinham dos
universos da imaterialidade e da virtualidade e que, de qualquer
forma, vão além das tradicionais referências à picturalidade. A in-
clusão dessas inovações técnicas tem, aliás, efeitos historiográficos:
assim, fala-se muito hoje da interação entre a história das formas
da sensibilidade paisagística e a dos tipos de dispositivos técnicos
(da perspectiva ao auromó;el) que as sociedades modernas inter-
puseram entre si e o mundo.
Do inventário, mesmo rápido, dessas pistas de pesquisa,
evidencia-se, consequentemente, que um dos desafios do ques-
tionamento contemporâneo sobre as paisagens e sua compreensão
reside na ampliação e na reformulação dos conceitos, das repre-
7. 1O O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
sentações e das práticas. É nessa perspectiva que o presente livro
pretende situar-se.
Os ensaios que compõem esta obra são o desdobramento e
a reformulação de alguns textos já publicados, bem como de con-
ferências e cursos que tive a oportunidade de propor a públicos
variados nos últimos anos. 1
Quero aproveitar o ensejo para agradecer aos colegas, ami-
gos e estudantes que, nessas diversas circunstâncias, acompanha-
ram o desenvolvimento das minhas análises, tanto na École Na-
tionale Supérieure du Paysage - ENSP, de Versalhes, no Instituto
de Arquitetura da Universidade de Genebra, na École Nacionale
Supérieure en Architecture et Paysagc - ENSAP, de Lille, nos Car-
nets du Paysage, quanto na equipe EHG02 do Centre National de
la Recherche Scientifique - CNRS. Este livro também é o teste-
munho de uma parceria intelectual e profissional com Gilles A.
Tiberghien, a quem dirijo meus agradecimentos especiais.
1
Uma nota sobre a origem dos textos foi inserida no final do volu me.
Équipe Paris-EHGO, Inreraction Spatiale, Épistémologie er Histoire de la Géo-
graphie (N. da R.).
1. As cinco portas da paisagem - ensaio de
uma cartografia das problemáticas
paisagísticas contemporâneas
O que é a "paisagem" nas culturas espaciais modernas e
contemporâneas? Qual "realidade" é indicada com esse nome,
quais são as práticas e os valores que correspondem a esse nome,
e quais são os objetos que resultam dele? Na verdade, é muito
difícil responder a essas perguntas.1
O historiador da cultura está
confrontado com uma conjuntura teórica e historiográfica com-
plexa, ambígua. Efetivamente, existem, atualmente, uma polis-
semia e uma mobilidade essenciais do conceito. de paisagem, e
essa situação teórica deve-se, em parte, àatomização profissional e
acadêmica das diferentes "disciplinas" que fazem dela seu campo
de estudos e de intervenções. Sabemos que a paisagem é um obje-
to não apenas para o paisagista, o arquiteto ou o jardineiro, mas
também para a sociologia, a antropologia, a geografia, a ecologia,
a teoria literária, a filosofia etc. E nada garante que essas d iversas
disciplinas, quando confrontadas à questão da paisagem, pensem
na mesma coisa e mobilizem as mesmas referências intelectuais.
1
Enconrramos uma perplexidade análoga no início do ensaio de Cario Tosco, 11
paesaggi.o come storia (Bolonha: II Mulino, 2007), que propõe, entretanto, uma
rentativa de reconstrução histórica do conceito. Ver também: Wylie, J. Land-
scape. London and New York: Routledge, 2007; bem como: Delue, R. e Elkins,
J. (ed.). Landscape The01y. London and New York: Roucledge, 2008.
8. 12 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
, . "Podemo~; entretanto, perc~ber hoje, de forma geral, cinco pos-
s1ve1~ entradas nessa questão, cinco problemáticas paisagísticas que
coexistem no pensamento contemporâneo e que não se superpõem
exatamente, é verdade, embora possam ser, às vezes, articuladas umas
às outras. Assim, a paisagem é considerada como uma representação
cultural(principalmente informada pela pintura), como um território
pr~duzidopelas sociedades na sua história, como um complexo sistêmico
articulando os elementos naturais e culturais numa totalidade objeti-
va, como um espaço de experiências sensíveis arredias às diversas formas
possíveis de objetivação, e como, enfim, um local ou um contexto de
projeto. Cada uma dessas posições é sustentada de forma privilegiada,
embora não exclusiva, por uma "profissão" ou um grupo de profis-
sões, ou até por uma formação ou uma corporação acadêmicas. Por
e~em~lo, os defensores da primeira concepção são, principalmente,
histonadores e filósofos da arte, enquamo a noção de "sistema pai-
sagístico" é mais utilizada por ecologistas ou alguns geógrafos, e a
d~ "projeto" é característica do vocabulário dos paisagistas. Essas
diversas concepções ou posições convivem na "cultura paisagística"
contemporânea, conferindo, dessa forma, à análise dessa cultura uma
verdadeira riqueza e uma real complexidade. Na atualidade, trabalhar
de u~ pomo .de vista teórico sobre a questão da paisagem supõe que
~e aceite. considerar, pelo menos provisoriamente e como hipótese, a
JUStapos1ção e a superposição desordenada desses diferentes discursos
e pontos de vista sobre a paisagem.
A paisagem é uma representaÇão cultural e social
A paisagem: uma realidade mental
Uma primeira abordagem da paisagem consiste em defini-la
c?mo um ponto ~e vista, um modo de pensar e de perceber, prin-
cipalmente como uma dimensão da vida mental do ser humano. A
paisagem não existe, obfetivamente, nem em si; então, ela é relativa
As cinco portas da paisagem... 13
.lll que os homens pensam dela, ao que percebem dela e ao que di-
l l'lll dela. Ela é um tipo de grade (retícula) mental, um véu mental
q11l' o ser humano coloca entre ele mesmo e o mundo, produzindo,
, llm essa operação, a paisagem propriamente dita. ''.Antes mesmo de
,n o descanso dos sentidos, a paisagem é a obra da mente", segundo
1111011 Schama.2 A paisagem é uma _imerpret~Çã'!; uma "leitura"
(tlain Corbin) ou, ainda, a expressão de certo tipo de linguagem3
•
Não existe em si, mas na relação com um sujeito individual ou co-
1·tivo que a faz existir como uma dimertsão da apropriação cultural
1lo ~undo. A paisagem fala-nos dos homens, dos seus olhares e dos
l'LIS valor~s, e não propriamente do mundo exterior. Na realidade,
~<'> haveria paisagens interiores, mesmo se essa interiori<la<le se tra-
duz e se inscreve "no exterior", no mundo.
Tal concepção da paisagem implica uma teoria inrelecru-
;ilista da percepção, como confirma, em certo sentido, o próprio
filósofo Alain, para quem é necessário distanciar-se da "ideia in-
[!;ênua da percepção", que nos leva a crer que "[...] a paisagem
.1presenta-se a nós como um objeto ao qual não podemos mudar
d ' b ,, 4na a, e so temos que rece era sua marca .
Segundo ele, é preciso olhar mais de perto e perceber a pre-
sença de um ato de interpretação no cerne da própria percepção.
É preciso observar o efeito de um julgamento naquilo que é visto
como horizonte longínquo, confusão dos detalhes, distâncias, re-
levos, cores, sombras. Assim, conclui Alain:
,. Schama, S. Le Paysage et la mémoire. Paris: Le Seuil, 1999, p. 13. O cenário da
paisagem, prossegue, "consrrói-se canto a partir dos·cstraros da memória quanto !
daqueles dos rochedos".
l Ver, por exemplo, Augustin Berque, que distingue quatro ripas de representação
como condições instauradoras da paisagem: represemações linguagciras, literá-
rias, picturais, jardineiras. Cf. Berque, A. Les raisons du paysage. Paris: Hazan,
1995, p. 34.
~ Alain. Eléments de philosophie. Paris: Gallimard, 1940, p. 21.
9. 14 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
[...] a distância do horizonte não é uma coisa entre as coisas,
mas sim uma relação das coisas comigo, uma relação pensada,
concluída [...]. O que faz aparecer a importante distinção que
deve ser feita entre a forma e a matéria do nosso conhecimento.
Essa ordem e essas relações que sustentam a paisagem e qual-
quer objeto, que a determinam, que fazem dela algo real, sólido,
verdadeiro, essas relações e essa ordem são relativas à forma e)
definem a função pensamento (1940, p. 21).5
-· ~ Nessa perspectiva, o estudo de uma paisagem, real ou ape-
nas representada, costuma ser identificado com o estudo de uma
forma de pensamento ou de percepção "subjetiva" e, mais geral-
mente, uma expressão humana informada por códigos culturais
~eteri:iina~os (discursos, valores etc.). É preciso retornar, por as-
sim dizer, ir aquém da própria paisagem, para enxergar nela as
razões de ser, na cultura e na vida social, de que é, de alguma
forma, a encarnação. A análise da paisagem consiste numa aná-
lise de categorias, de discursos, de sistemas filosóficos, estéticos,
morais, que a paisagem deve pretensamente prolongar e refletir.
Não cabe diferenciar, a este respeito, a paisagem real da paisagem
representada (em imagem ou em texto). ln situou in visu, a na-
tureza da paisagem não muda fundamentalmente. Ela é sempre,
p~r essê~ci~, ~ma expressão humana, um discurso, uma imagem,
sep ela md1v1dual ou coletiva, seja ela encarnada numa tela, em
papel ou no solo. E, nesse sentido, metodologicamente falando, é
perfeitamente legítimo imaginar uma "iconografia da paisagem",
ou seja, a aplicação àpaisagem das categorias e dos processos acio-
nados por Aby Warburg e Erwin Panofsky na interpretação das
obras de arte.6
5
lbid., p. 23.
6
Cosgrove, D. and D~niels, S. (eds.). The !conography ofLandscape. Essa)'S on the
Symboltc Representat1on, Design. and Use o.fPast Environments. Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1988, pp. 1-10.
As cinco portas da paisagem... 15
Entretamo, a própria noção de representação paisagística
110de ser entendida de forma mais ou menos restritiva, levando
1'1tláo a questionamentos bastante diferentes.
l~lisagem e modelos pictóricos
Assim, muitas vezes, a paisagem foi estudada e designada,
.1nces de tudo, como representação artística, principalmente in-
f(nmada pelos modelos da pintura. A invenção histórica da pai-
sagem foi relacionada com a invenção do quadro em pintura, no
Renascimento, mas também, no próprio quadro, com a invenção
da "janela": a paisagem seria, portanto, o mundo tal como é visto
desde uma janela, seja essa janela apenas parte do quadro, ou con-
fundida com o próprio quadro com um todo. A paisagem seria
uma vista emoldurada e, em todo caso, uma invenção artística.
A janela, escreve Victor Stoichita, desempenha um "papel cata-
1isador" na invenção deste novo gênero pictural do Renascimen-
to, que é a paisagem. "É o retângulo da janela", acrescenta, "que
transforma o lado de fora em paisagem"7
, pois ativa uma dialética
do interior e do exterior, isto é, instaura uma condição indispen-
sável da paisagem na história da pintura: a distância.
É nessa perspectiva que a história da arte passou a conside-
rar o problema do "nascimento" da paisagem na Europa Ociden-
tal do século XVI, na prolongação das famosas análises de Ernst
Gombrich.8 Gombrich destacou várias dimensões no aconteci-
7 Sroichira, V. L'lnstauration du tableau.Geneve: Droz, 1999, p. 58. Anne Cauquelin
desenvolve um ponto de vista análogo em L'lnvention du paysage. Paris: Plon,
1989, PP· 121 e seg. Ver também: Wajcman, G. Fmêtres. Paris: Verdier, 2004: ~ -
"Pas de paysage sans fenêtre. [...]La fenêrre esr lc lieu du paysage" (pp. 240: 259).
Idêntico argumento em: Roger, Alain. Court traité du paysage. Pans: Galhmard,
1997. A ideia já está presente na Philosophie du paysage, de Georg Simmel.
Gombrich, E. "La rhéorie artistique de la Renaissancc cr l'essor du paysage'',
evocado em l'Ecologie des images. Paris: Flammarion, 1983, PP· 15-43. O artigo
10. 16 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
mento desse nascimento. Primeiramente, insistiu sobre o papel
desempenhado pela demanda do público, isto é, pelo mercado,
no desenvolvimento dessa "instituição"9 que a pintura de paisa-
gem. passou a ser no século XVI. Mas, sobretudo, mostrou que o
surgimento da paisagem como gênero artístico e sua autonomi-
zação progressiva na esfera da arre deviam ser entendidos como
o produto do encontro entre a atividade dos pintores do Norte
e as categorias estéticas do humanismo italiano. Foi o humanis-
mo filosófico italiano que conferiu o estatuto de "divertimento
1 ' . "10 ' .
egmmo a paisagem, que antes só era considerada como um
parergon da pintura.11
Afinal de contas, a paisagem é pensada, descrita, falada, an-
tes de ser vista e representada, como fica patente no episódio de
Norgate narrado por Gombrich12
: o pintor reproduz o que Jhe
coma o viajante e não o que ele próprio poderia ter visto direta-
mente, mas, ao mesmo tempo, o viajante elabora a sua descrição
em função do que julga ser pitoresco. Este envolvimento recí-
foi publicado pela primeira vez em 1953 em La Gazette des Beaux-Arts. Para
essa questão hisroriográfica, ver: Mitchell, W. ]. T "Gombrich and the Rise of
Landscape''. Tn Bermingham, A. & Brewer, ]. (eds.). The Consumption ofCu!ture,
1600-1800: lmage, Object, 7ext. London and New York: Routledge, l 995, pp.
103-18; e, ag~ra: Brunon, H. ''Cessor artisrique ec la fabrique culcurelle du pay-
sage à la Rcnatssance. Réílexions à propos de recherches récences". Studiofo,
11
. 4,
2006, PP· 261-90. ~tese de um nascimento moderno da paisagem é comesrada,
entretanto, por M1chel Baridon em Naissance et renaissance d11 paysage (Arles:
Acces Sud, 2006).
9
Gombrich, E. "La Théorie arrisrique de la Renaissance". Op. cir., p. 17.10
Ibid., p. 26.
11
Esses parerga representam, escreve Paolo Giovio, "rochedos despedaçados, arvo-
redos verde1antes, as margens firmes dos grandes rios que atravessam os países,
os florescenr_es trabalhos dos campos, o duro e alegre labor dos camponeses e
tamh:m as vistas longínquas de uma região ou do mar, as frotas de navios, a caça
aos pass.~ros, a ca?a a cavalo: e tudo o que pertence a esse gênero tão agradável de
se olhar (crtado 1n Gornbnch, E., ibid., p. 25). Reconhecemos aí aquilo que vai
se tornar o vocabulário básico da pinmra de paisagem.
•i Gombrich, E. Tbid., pp. 29-30.
As cinco portas da paisagem... 17
11wco da vista e do código estético é próprio da exper'.ênci~ da
11.usagem, prossegue Gombrich. A paisagem é, por asslffi ,di:zer,
,l rnnsequência da extensão e da aplicação dos mo~elos ~m,sncos
1lo Renascimento italiano, mais precisamente os p1Cturais, a per-
1 <'Jlção do mundo real. A pintura dá ao sentimento da paisage1:1
.1~ua forma (tanto quanto a sua expressão): "A descoberta da pa1-
,,1gcm alpestre" - conclui Gombrich - "não precede, mas sim se
,L·gue à difusão das gravuras e pinturas que retratam panoramas
dl' montanha". 13
Afinal, só existiria vista paisagística se "enquadrada",
. l (( d ".10 mesmo tempo, no sentido, técnico da pa avra qua ro , e
porque a paisagem pressuporia a existência de um "es~a~,º de
1 ultura [...] a partir do qual se contempla um exterior (V.
LOichita).
Temos, hoje, inúmeros artigos e livros sobre a "invenção"
l'Stética da montanha, da floresta, dos litorais marinhos, do cam-
po, vistos como paisagens, em que o papel de uma ou outra re-
ferência pictural é apresentado como determinante. A árvore, o
prado, mas também o bulevar parisiense, entre outros, foram ane-
xados pela história da arte.
Paisagem e representações sociais
Entretanto, a noção de paisagem também pode ser vista,
de forma mais abrangente, como representação cultural coletiva
dou individual. Sem rejeitar o ponto de vista estético, ao qual
continuam dando um lugar importante, às vezes até constitutivo,
os antropólogos, historiadores, geógrafos ou sociólogos contribu-
íram, ao adotar um procedimento culturalisca, para recolocar_ (o
que também quer dizer: deslocar) a paisagem dentro de uma tn-
11
Ibid., p. 33.
11. 18 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
terrogação geral sobre a sociedade.14 Foi possível mostrar que as
determinações da construção paisagística também são econômi-
cas, religiosas, filosóficas, cienríficas e técnicas, políticas, até psi-
canalíticas15 etc. Elas podem, é claro, ser estéticas, mas, nesse caso,
14
Cf. entre outros: Barrell, J. The Dark Side ofthe Landscape: the Rural Poor in
English Painting 1130-1840. Cambridge: Cambridge University Press, 1980;
Cosgrove, D. Social Formation and Symbolic Landscape. London: Croom Hclm,
1984; Lugin bühl, Y. Paysages. Textes et représentations du paysage du Siecle des
Lumieres à nos jours. Lyon: L1. Manufacture, 1989; Cosgrove, D. The Palladian
Landscape. Geographical Change and its Cu/tum/ Representations in Sixteenth-
Century ltaly. The Pennsylvania State Universiry Press, 1993; Voisenac, C. (dir.).
Paysage au pluriel. Pour une approche ethnologique des paysnges. Paris: Maison des
Sciences de l'Homme, 1995; Olwig, K. R. Landscape, Natttre and the Body Poli-
tic. From Britain's Renaissance to America's New World. Madison: The University
ofWisconsin Press, 2002; Bender, B. & Winer, M. Comested Landscapes: Move-
ment, Exile and Place. Oxford: Berg Publishers, 2001; Micchell, W. J. T. (ed.).
Landscape and Power. 2. ed. Chicago: Universicy of Chicago Press, 1994, 2002;
Desporres, M. Paysages en mouvement. Transports etperception de !'espace, XVIII-
)()(< siecle. Paris: Gallimard, 2005.
15
A questão da paisagem é abordada por Freud dentro das suas reflexões sobre a
figuração simbólica na interpretação dos sonhos: "É fácil reconhecer que, no
sonho, muitas paisagens, particularmente as que apresentam pontes ou montan-
has arborizadas, são descrições de órgãos genitais. Marcinowski reuniu uma série
de exemplos em que os sonhadores explicam os sonhos por desenhos que devem
representar as paisagens e os locais onde acontece o sonho. Esses desenhos mos-
tram bem claramente a diferença entre o sentido aparenrc e o sentido oculto do
sonho. À primeira vista, são plantas, mapas etc., mas um exame mais detalhado
reconhece neles representações do corpo humano, dos órgãos genitais etc.; pode-
se então entender o sonho[...]." (L7nterprétation des rêves. Paris: PUF, 1967, p.
306; ver também as páginas 314 e 342-343.) A perspectiva de uma "psicanálise
da paisagem" ainda é pouco comum. Citemos, entreranto, Guillaumin, J. "Le
paysage dans le regard d'un psychanalyste; rencontre avec les géographes". Bulle-
tin du Centre de Recherche sur l'Envimnnement Géographique et Social (CREGS).
Universidade de Lyon-II, n. 3, 1975, pp. 12-33; e id., Le Moi sublimé. Psycha-
nalyse de la créativité. Paris: Dunod, 1998, especialmente as páginas 123-125,
nas quais Jean Guillaumin parte da hipótese de que a paisagem desempenha um
papel "substancialmente análogo à função de sustentação que Freud reconhece
nas 'pulsões do cu' em relação à libido de objeto" (p. 123). Ver também: Collot,
M. La Poésie moderne et la structure d'horizon. Paris: PUF, 1989, segunda parte:
As cinco portas da paisagem... 19
1 própria estética é questionada do ponto de vista do seu valor ou
1l 1,ua função dentro da cultura. A própria história da arte se be-
1ufo.:ia dessa abordagem social e cultural, que a leva a enriquecer
.ilgumas de suas problemáticas. Assim, foi possível, por exemplo,
1e l.1cionar o desenvolvimento da representação piccural da paisa-
I'·' 111 nos Países Baixos dos séculos XVI e XVII com as transforma-
1,ucs concomitantes, nessa parte da Europa, da vida científica, mas
1.1111bém da vida religiosa e política.16
Da mesma forma, foram
n 111<ladas as relações entre a experiência estética da natureza e a
lorrnação de uma identidade burguesa metropolitana na França
do século XIX,17ou entre a pintura de paisagem e o acionamento
,k uma cultura geológica no romantismo alemão.18
Enfim, muitas obras estabeleceram de que forma a história
11.1 paisagem europeia devia integrar as dimensões ideológicas da
'"ª construção como referente imaginário da identidade nacio-
11.tl. Há uma codificação nacional e política do olhar paisagístico,
, omo mostrou François Walter, que lembra, depois de Benedict
/nderson,t9 que a nação existe em grande parte nas construções
ao mesmo tempo imaginárias e materiais - que lhe dão uma
.1parência apreensível para os olhos dos membros da comunidade
que reúne, como aos olhos daqueles que rejeita no exterior e que
"Pour une psychanalyse de l'horizon", e especialmente as páginas 141-144, nas
quais é discutida a análise de Guillaumin.
" Alpers, S. l'Art de dépeind1·e. Paris: Gallimard, 1983. . .
Green, N. The Spectacle ofNature. Landscape and Bourgeois Culture m Nzne-
teenth-Century France, Manchester: Manchester Universicy Press, 1992.
Mitchell, T M. Art and Scimce in German Landscape Painting 1770-1840. Ox-
ford: Clarendon Press, 1993. Convém mencionar também o livro de Claude
Reichler, La découverte des Alpes et la question du paysage (Geneve: Georg, 2002),
que mostra em detalhes como se articulam narrações de viagem, análises cientí-
ficas, meditações religiosas e poéticas na formação de uma sensibilidade pais-
agística propriamente alpestre durance os séculos XVIIJ e XlX.
i•J Anderson, B. L'lmaginaire national. Réflexions sur !'origine et l'essor du nationa-
lisme. Paris: La Découverre, 2002 [1983].
12. 20 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
designa como estrangeiros. Assim, por exemplo, na França, as fes-
tas da Federação, no início da Revolução Francesa, foram precisa-
mente, escreve Michelet, momentos extraordinários de descober-
ta da paisagem e da natureza, que se tornaram, simbolicamente,
as encarnações da ideia republicana:
Os locais abertos, os campos, os vales imensos onde, geralmente,
aconteciam essas festas pareciam abrir ainda os corações. O ho-
mem não apenas tinha se reconquistado, estava tomando posse
da natureza. Várias dessas narrativas dão testemunhos das emo-
ções que o seu país, visto pela primeira vez, deu a esses pobres...
coisa estranha! Esses rios, essas montanhas, essas paisagens gran-
diosas, que atravessavam todos os dias, foram descobertos na-
quele dia; nunca os haviam visto (Michelet, J., 1952, p. 411).20
As paisagens, mais exatamente alguns smos escolhidos
pelo valor histórico, memorial e/ou natural, vêm, então, concre-
tamente, concentrar neles, como num apanhado do território, a
consciência do pertencimemo nacional. A montanha suíça, mas
também a floresta alemã, a planície húngara, a landa escandinava
ou o campo romano, seja em forma de representações picturais
e literárias ou de instalações concretas, tais como jardins e par-
ques, apresentam-se como os estereótipos vivos da comunidade
nacional.
21
No mesmo tipo de perspectiva, a noção de "paisagem
20
Michelet, ]. Histoire de la Révolutionfrançaise. Paris: Gallimard, 1952, r. 1, p.
41 1 (Bibliotheque de la Pléiade). Ver o comentário que faz Marc Richir em: Du
sublime en politique. Paris: Payor, 1991, pp. 13-83.
21
Walter, E Les Figures paysageres de la nation. Territoire etpaysage en Europe (XV!'-
XX' siede). Paris: Edirions de l'EHESS, 2004. A literatura dedicada às relações
entre olhar paisagístico e fabricação das representações nacionais é hoje extre-
mamente rica, especialmente no mundo anglófono. Entre as obras mais estimu-
lantes: Thompson, R. (ed.). Framing France. lhe Representation ofLandscape in
France, 1870-1314. Manchester: Manchester Univcrsiry Prcss, 1998; Lekan, T.
M. lmagining the Nation in Nature: LandscapePreservation and German ldentit;
As cinco portas da paisagem... 21
1111pcrial" foi desenvolvida para dar conta das múltiplas maneiras
,111110 as representações paisagísticas foram integradas à constru-
~ .10 dos imaginários coloniais.22
Poderíamos, assim, multiplicar
lww os exemplos ligados a esse tipo de estudo.
A bem da verdade, de um ponto de vista estritamente
111t·Lodológico, a ampliação do espectro das disciplinas inte-
1l'ssadas pela paisagem não significa um questionamento da
l'l<'>pria noção de paisagem como imagem, como construção fi-
l'.mativa de origem humana, quer in visu, quer in situ. A abor-
il.1gcm iconográfica vale tanto como uma concepção estética
1l.1 representação quanto como uma concepção cultural mais
.1lirangente. A ideia que se impõe, em todos os casos, é que a
p.1 isagern é como um texto humano a ser decifrado, como um
,1gno ou um conjunto de signos mais ou menos sistematica-
111cnte ordenado, como um pensamento oculto a ser achado
1H>r trás dos objetos, das palavras e dos olhares. Como escreve
1)avid Lowenthal, a paisagem
[...] é não apenas um lugar imediatamente presente, mas tam-
bém um lugar de memória. [...]Tanto nos lugares como nas pes-
1885-1945. Cambridge, Mass., and London: H arvard Universiry Press, 2004;
Corbett, D. P.; Holt, Y. and Russell, F. (ed.). The Geographies o/Englishnm: Land-
•capeandthe NationalPast J880-1340. London and New H_aven: Yale .U~iversiry
l'ress, 2003; Ely, C. ThisMeager Nature. Landscape andNationalldentity m impe-
rial Russia. DeKalb: Norrhern Illinois Universiry Press, 2004. Ver o relatório de
Brice, Carherinc. "Building Nations, Transforming Landscapcs". Contemporary
European History, v. 16, n. 1, 2007, pp. 109-19. . . .
· Cf., enrre outros: Ryan, J. R. Pictun'ng Empire: photography and the vrsualtzation
ofthe B1·itish Empire. Chicago: Universiry of Chicago Press, 1998; Mitchell, W.
J. T. "Imperial Landscape". ln Mitchell, W. ]. T. (ed.). Landscape and Power.
Op. cit., pp. 5-34; Sluyrer, A. Cownialism andLandscape. Postcolonial Theory.and
Applications. L1nham/Oxford: Rowman & Litclcfield Publisher~, 2002; Driver,
E and Cilbert, O. Imperial Cities: Landscape, Display and Identzty. Manchester:
Manchester Universiry Press, 2003; Casid, ]. H. Sowing Empire: Landscape and
Colonization. Minneapolls: University of Minnesota Press, 2005.
13. 22 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
soas, o olhar da mente percebe um palimpsesto construído na
base de todas as nossas experiências passadas, de nossas hipóteses
passadas e atuais sobre a história da paisagem (Lowenthal, D.,
2008, p. 14).23
Uma abordagem hermenêutica das representações paisagís-
ticas é, nesse caso, perfeiramenre legítima.
A invenção de novaspaisagens
Entre as muitas perspectivas de pesquisa abertas por essa
abordagem, a mais promissora é, sem dúvida, a que se preocupa
em fazer diretamente a pergunta a respeito das relações, a diferen-
tes épocas da cultura, entre, por um lado, o surgimento de novos
objetospaisagísticos e, por outro, a definição de novos valores e nor-
maspaisagísticos. "Cada paisagem tem sua própria linguagem", es-
creve Alain Roger, de forma muito justa.24 Se a linguagem do idí-
lio e da Arcádia e a pintura de paisagem clássica (a de Claude, por
exemplo) dialogam, elas fracassam, entretanto, quando se trata
de expressar novas categorias estéticas e de incluir outros objetos
paisagísticos. Sabemos, por exemplo, que o discurso do sublime
se desenvolveu correlativamente ao aparecimento de dois novos
objetos, que assumiram, então, um valor paisagístico: o mar e a
montanha.25
:: Lowcnrhal: D. Passage ~i~ temps sur!epaY_sage. Gollion, Infolio, 2008, p. J4.
Roger, Alam. Court traite du paysage. Paris: Gallimard, 1997, p. 10 J.
25
Cf..Corbin, A. Le Territoire du vide. L'Occident et le désir du rivage, 1750-1840.
Pans: Aub1er, 1988; Saint Girons, B. (dir.). LePaysage et la Question du sublime.
Catálogo da exposição do Museu de V.1.lence. Paris: RiVIN, 1997; Reichler, C. La
D~couverte des Alpes. Op. cir., 2002. Sobre a questão do sublime na pintura de
p~1sagem, ver também: Nau, C. le Temps du sublime. longin et !epaysagepoussi-
men. Rennes: PUR, 2005.
As cinco portas da paisagem... 23
Multiplicam-se as pergunras a esse respeito. D~ que f~r.ma
11odcmos falar da paisagem das grandes metrópoles mdusma1s e
1
1m industriais que se desenvolveram com os séculos XIX e XX?
"b 1 " "h . ,,,1levemos continuar falando em termos de e eza e armoma ·
, vategoria do "pitoresco" ainda tem um significado, e qual?26
Em
iJlll' "língua" essas paisagens devem ser faladas, des~rit~s, narradas?
t 'orno pensar, por exemplo, e representar a emergenc1a dos n~vos
11hjctos paisagísticos que são hoje os espaços urbanos, os .eq~1p~-
111t·ntos industriais, os sistemas de armazenamento e de d1stnbu1-
11,10 da energia, as autoestradas, os artefatos diversos lig~dos ~vida
, onremporânea, que põem em jogo os valores da func1onahd~de,
il.1 intensidade, da velocidade, da mobilidade? Como, além disso,
lrvar em conta a renovação das formas e dos ritmos plásticos que
111Tpassou a arte desde os primórdios d~ ~é~ulo XX?.Co~.ªajuda
dl' que instrumentos formais? Que sens1b1hdades pa1sag1st1cas no-
~.1s vemos aparecer? .
Hoje, muitos são os artistas que, prolongando o impulso
d.i<lo por Michael Heizer, Robert Smithson, Richard Long, ou,
l'lll outro registro, Christo e Jeanne-Claude, Andy Goldsworthy,
l'lltre outros, procuram, de uma forma ou de outra, ultrapassar o
1 ,1mpo tradicional do exercício da arte para interrogar, de forma
111ais ampla, as relações que a obra mantém com o real, o espa-
1,o, 0 tempo, a matéria e, mais geralmente ainda, os q~adros ? er-
1 qJtivos e simbólicos da experiência do .mundo. M.UitoS amst~s
, ontemporâneos escolheram deixar o universo restnto da galena
(ou pelo menos relativizar o seu papel), para instalar suas obras
'" Ver a forma como Roberr Smithson revisita as categorias do pitoresco e da ruína,
na narrativa da sua visita dos "monumemos" de Passaic (Smithson, R. ''A_ Tour
0 f rhe Monuments of Passaic, New Jersey". ln Fiam, J. (ed.). Robert Smithson:
rhe Collected Writings. Berkeley: University of California Pre_ss, L996, _PP: 68·
74); e 0 comentário feito por S. Marot em 'Tare de la mémoHe, l~ te'.moue et
l'architecture" (Le Visiteur, n . 4, 1999, pp. 114-76). Cf. também: Cnqu1, J.·P Un
irou dans la vie. Essaís sur l'art depuis 1960. Paris: Desclée de Brouwer, 2002.
14. l
24 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
nos territórios abertos da cidade e da natureza, a céu aberto.27 A
arte tomou uma dimensão verdadeiramente geográfica nesse caso,
uma dimensão paisagística no sentido direto e literal do termo:
está preenchendo o espaço da paisagem, transformando, afinal de
contas, o próprio espaço num campo de experimentação artística.
Finalmente, foram as próprias práticas artísticas que, ao transfor-
mar a noção de obra de arte para integrar não apenas as formas,
mas também as atitudes e as situações e, mais geralmente, os da-
dos usuais da experiência do mundo revelaram que a noção de
uma artialização paisagística devia ser repensada do zero,28 e, em
todo caso, fora dos quadros restritos da pintura. Uma atividade
artística desse tipo pode ser considerada, afinal de contas, dentro
do quadro mais geral de uma interrogação sobre a fabricação con-
temporânea das territorialidades.29
Para seguir no mesmo sentido, o de uma reflexão sobre a
necessária ampliação dos horizontes da sensibilidade paisagística,
é possível assinalar em que os valores e as normas paisagísticas são
estéticos, sim, mas não unicamente. Têm também uma dimensão
material e técnica. Cada um pode medir o quanto não apenas a
27
Tomo emprestada a expressão de Domino, Christophe. A ciel01.tvert. Paris: Scala,
1999. A melhor introdução a esse conjunco de impulsos arrísticos é a de Tiber-
ghien, G. A. Landart. Paris: Carré, 1993. Ver também, do mesmo autor: Nature,
art, paysage. Arles/Versailles: Acres Sud/ENSP, 200l , bem corno Penders, A. F. En
chemin, le land art. Bruxellcs: La Leme Volée, l 999.
28
Lembremos que, para Alain Roger, um país não é "naruralmente" uma paisagem.
1orna-se paisagem quando é tornado paisagem, isco é, "arrializado", integrado
a uma visão estética, que também pode evoluir no tempo como acabamos de
dizer: "Existem 'país' e paisagens, assim como existem nudez e nus. A natureza é
indeterminada e s<Í recebe as suas determinações da arte. [...] O país é, de alguma
forma, o grau zero da paisagem, o que antecede a sua arcialização, seja ela direta
(in súu) ou indireta (in visu)". (Court traité du paysage. Op. cit., pp. 17-8.)
29
Pensamos, em particular, a esse rcspeiw, no rrabalho <lo casal Christo/Jeanne-
-Claude, ral como foi escudado por A. Volvey na sua tese, Art et spatialités: ceuvre
d'art, objetd'art, et expérience esthétique d'apres l'a:uvre in sicu de Christo etJeanne-
-Claude (Universidade Paris-1, 2003).
As cinco portas da paisagem... 25
l111ugrafia, o cinema, as imagens de vídeo, mas também o trem,
11 .1111omóvel, o avião deslocaram o problema da representação da
1· 11 ~.1gcm, e questionam, hoje, a herança da linguagem pictural
1•111 meio da qual tal representação, vez por outra, ainda é pen-
' 1il.1. l~ preciso, portanto, levar em conta o papel desempenhado
1•111 1.·sses diferentes dispositivos e suportes concrews nos quais são
11 ,1lizadas as percepções e produzidas as imagens: os sistemas téc-
1111 ns contribuem para definir tanto objetos paisagísticos quanto
tl1·1os de um tipo peculiar.~o
É difícil, na verdade, identificar as paisagens que estão apa-
1n rndo hoje. Talvez por ausência de distanciamento e pela falta
ili .málise e, mais certamente, pela falta de palavras e de conceitos.
~ 1.1 ~ está claro que se faz necessária uma nova linguagem.
Alain Roger, em seu Court traité du paysage, retoma a ima-
1•1 111 do "artista oculista" de Marcel Proust. O pintor original
(llrnoir) detém esse poder mágico não só de modificar nossos
11ll1.1res, mas de mudar o mundo em que vivemos:31
Mulheres estão passando na rua, diferentes daquelas de outrora,
já que são Renoir, os mesmos Renoir .nos quais nos negávamos
antigamente a ver mulheres. Os canos também são uns Renoir,
e a água, e o céu (Roger, A., op. cit., pp. 14-5).
O artista é instaurador de novos mundos, universos perecí-
1Ti'> e provisórios, acrescenta Proust, que durarão até "[...] a pró-
" Ver as observações sobre a vista aérea e o fururismo no capírulo seguinte. A res-
1wilo do cinema, ver: Morrer,]. (dir.). les Paysages du cinéma. Seyssel: Champ
v,11lon, 1999; Costa, A. (dir.). "Le paysage au cinéma". Cinémas, V. 12, 11. ],
'.OOJ; Narali, M. L1mage-Paysage. lconoÚJgie et cinéma. Sainc-Oenis: Presses Uni-
vnsitaires de Vincennes, 1996.
" Rogcr, AJain. Court traité du paysage. Op. cit., pp. 14-5. Alain Roger cita Le Côté
rlf' Guermantes. ln A la recherche du temps perdu. Paris: Gallimard, 1953, v. 2, p.
127 (Bibliorheque de la Pléiade).
15. 24 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
nos territórios abertos da cidade e da natureza, a céu aberto.27 A
arte to~ou uma dimensão verdadeiramente geográfica nesse caso,
uma dimensão paisagística no sentido direto e literal do termo·
está preenchendo o espaço da paisagem, transformando, afinal d~
c~ntas, o próprio espaço num campo de experimentação artística.
Fmalmente, foram as próprias práticas artísticas que, ao transfor-
mar a noção de obra de arte para integrar não apenas as formas,
mas tam~ém as atitudes e as situações e, mais geralmente, os da-
dos usu~1s. da experiência do mundo revelaram que a noção de
uma amal1zação paisagística devia ser repensada do zero,2H e, em
todo caso, fora dos quadros restritos da pintura. Uma atividade
artística desse tipo pode ser considerada, afinal ele contas, dentro
do quadro mais geral de uma interrogação sobre a fabricação con-
temporânea das territorialidades.29
Para seguir no mesmo sentido, o de uma reflexão sobre a
~ecess~ria a~pliação dos horizontes da sensibilidade paisagística,
e po~sivel ~ssmalar em que os valores e as normas paisagísticas são
estéucos, sim, mas não unicamente. Têm também uma dimensão
material e técnica. Cada um pode medir o quanto não apenas a
27
Tomo emprestad~ a expressão de Domino, C hristophe. A cie/ ouvert. P~ris: Scala,
19?9· A melhor 1nrrodução a esse conjunto de impulsos artísticos é a de: 't'iber-
ghien, G. A land art. ~aris: Caué, 1993. Ver também, do mesmo allCor: Nrrture,
art, P~ysage. Arles/Vcrsa1lles: Actes Sud/ENSl~ 200 t, bem como Pcndcrs, A. f•'. En
chemrn, !e lrmdart. Bruxelles: La Letrre Volée 1999
28
Lembremos ue ar AJ · ' : • " . ,,.q ' P a am Roger, um pais nao e naruralmenre uma paisagem.
Torna-se. ~a1sag~m quando é ramado paisagem, isto é, "artializado", integrado
a.uma" visao esr~nca, que também pode evoluir no tempo como acab~ mos de
~1zer: E~1stem país' e paisagens, assim como exisrem nudez e nus. A natureza é
1ndctermtnada e só recebe as suas determinações da arre [ J O pais' é de . 1
{; . • . ... , a gurna
~rma, o gr~u ~ro da. pai~ag;m, o que antecede a ~ua arrialização, seja ela direta
29
<:n sttu) ou mducca.(m vzsu) . (Court tra1té du paysage. Op. cit., PP· 17-8.)
I ensamos, em parn~ular, a esse respeito, no trabalho do casal C bristo/Jeannc-
-~lau<le'. tal ~orno fo1escudado por A. Volvcy na sua tese, Art et spatialités: fntvre
d art, ob;etd~rt, ~texpérience esthétique d'r.tpres l'a!uvre in siru de Christo etj eanne-
-Gaude (Un1vcrs1dade Paris-I, 2003).
As cinco portas da paisagem... 25
(orografia, 0 cinema, as imagens de vídeo, mas também o :rem,
0 automóvel, 0 avião deslocaram o problema da representa~ao da
paisagem, e questionam, hoje, a herança da linguag~m p1,ctural
por meio da qual tal representação, vez por outra, amda e pen-
sada. t, preciso, portanto, levar em conta o papel desempen~a~o
por esses diferentes dispositivos e supone.s concretos n?s quais s~o
n:alizadas as percepções e produzidas as 1magen~: o~ s~stemas tec-
11 icos contribuem para definir tanto objetos pa1sag1sucos quanto
;1fet0s de um tipo peCLiliar.30
É difícil, na verdade, identificar as paisagens que estão apa-
recendo hoje. Talvez por ausência de distanciamento e pela ~alta
de análise e, mais certamente, pela falta de palavras e de conce1t0s.
Mas está claro que se faz necessária uma nova linguagem. .
Alain Roger, em seu Court traité du paysage, retomaª.1i:ia-
gem do "artista oculista" de Marcel Proust. O pi~tor ongmal
(Renoir) detém esse poder mágico não só de modificar nossos
d
. 31
olhares, mas de mudar o mun o em que vivemos:
Mulheres estão passando na rua, diferentes daquelas de outrora,
já que são Renoir, os mesmos Renoir nos quais nos negávam~s
antigamente a ver mulheres. Os carros também são uns Renoir,
e a água, e o céu (Roger, A., op. cit., PP· 14-5).
O artista é instaurador de novos mundos, universos perecí-
d ~ , "[ ] ,
veis e provisórios, acrescenta Proust, que urarao ate ... a pro-
.10 Ver as observações sobre a vista aérea e o futurismo no capítulo seguinte. A res-
peico do cinema, ver: Mottet, J."(dir.). Les J>aysa~es du ~mé~ta. Seyssel: Champ
Vallon, 1999; Costa, A. (dir.). Le paysage au cméma '. Cmém~s, v. 12, n. ~·
2001; Nacali, M. L'lmage-Paysage. !conologie et cinéma. Samr-Dents: Presses Um-
versiraires de Vincenncs, 1996. . ~ ,
li Roger, Alain. Court traité du PªJ'Srige. Op. cit., PP· 14.-5. Ala'.n Roger cm Le Cote
de Guermantes. ln A la recherche du temps perdu. Pans: Gall1mard, 1953, v. 2, P·
327 ('Bibliotheque de la Pléiade).
16. 26 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
xima catástrofe geológica desencadeada por novo pintor ou novo
escritor original".
O que podemos concluir a não ser certa forma de confian-
ça? É do lado dos artistas e nas linguagens novas que eles propõem
que, talvez, possamos aprender a ler e a apreciar as paisagens nas
quais a organização da vida contemporânea nos levou a viver.
A paisagem é um território fabricado e habitado (leitura de
John BrinckerhoffJackson)
No entanto, até onde podemos sustentar uma posição te-
órica que reduzisse a paisagem a ser apenas um discurso, uma
imagem, um olhar, ou urna representação? Corno dar conta, por
exemplo, nessa perspectiva, dos objetos, das atividades, ou das re-
alizações artísticas, como as que acabam de ser evocadas, que se
desenvolvem em escala territorial?
A escolha de uma escala sempre é, como se sabe, ao mes-
mo tempo, a escolha de um tipo de problema; e, à medida que
cresce a escala do estudo (do quadro de pintura ao jardim e ao
território), o conceito de paisagem modifica-se inevitavelmente,
bem como o questionário ao qual é submetido. É possível, por
conseguinte, introduzir algumas nuances a uma abordagem pura-
mente "representacional" da paisagem, ou até procurar enriquecê-
' -la, mostrando que uma interrogação sobre a construção cultural
das paisagens também deve levar em conta a dimensão de obje-
tividade prática da paisagem, isto é, a sua parte irredutivelmente
. material e, sobretudo, espacial.
O exemplo da história dos jardins apresenta-se aqui como
uma objeç~o a um intelectualismo restritivo nas concepções pai-
sagísticas. E bem verdade que é preciso ligar essas realizações con-
cretas que são os jardins a sistemas de ideias e de representações
dos quais são as expressões visíveis, mas a escala de espaço à qual
vão se desdobrando leva a deslocar o problema, conferindo-lhe
As cinco porcas da paisagem... 27
simplesmente outra dimensão, pois ela põe em contato a esfera da
produção artística, propriamente dita, com outras determinações,
outros atores, outros desafios. E, sobretudo, a própria existência
dessas realizações impede que se faça delas representações mentais
ou verbais puras e simples. Essa artialização in situ que é um jar-
dim é, ao mesmo tempo, um lugar real, um espaço frequentado,
uma porção de território, mesmo reduzida. Em outras palavras, 1
embora possa ser considerado, com razão, ;.im veículo do imaginá-
rio ou a expressão concentrada de um conjunto de afetos, embora
tr~duza de forma acordada um sistem; de ideias ou de desejos, o
jardim também é um espaço desenhado, produzido, cuidado. A
sua apreensão exige, consequentemente, a adoção de uma pers-
pectiva teórica suplementar, que leve em conta a dimensão das
práticas de fabricação e dos usos do espaço, isto é, colocando-se
na perspectiva de uma reflexão sobre as formas concretas da habi-
tação do espaço. _
Seguindo essa outra abordagem, a paisagem pode ser definida
como um território produzido e pratiêado pelas sociedades huma-
nas, por motivos que são, ao mesmo tempo, econômicos, políticos e
culrnrais] A distinção entre país e paisagem, que fundamenta a pró- -
pria existência da paisagem como tal, segundo Alain Roger, é então
consideravelmente atenuada e, no mínimo, redefinida. Efetivamente,
~
nessa perspectiva, o valor paisagístico de um lugar não é considerado
unicamente do ponto de vista estético (embora também o seja), é
considerado mais em relação com a soma das experimentações, dos
costumes, das práticas desenvolvidos por um grupo humano nesse_
lugar. Muitos já. assinalaram o parentesco da paisagem, do pagus e
da pagina, no registro comum da inscrição, do marco plantado e da .
fundação do sentido.32 A paisagem seria como um tipo de geografia
~2
Ver, por exemplo, Michel Serres: "Não pergumem mais como se vê uma paisa-
gem, pergunta de criança mimada que nunca trabalhou, procurem saber como
foi desenhada pelo jardineiro; como vem sendo composta lentamente pelo agri-
17. 28 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
objetiva, uma escrita na superfície da Terra, produto nem sempre
consciente nem intencional (mas também pode ser) das atividades
humanas. Escrita, agricultura: os dois termos parecem dialogar numa
alusão comum ao ato de cavar, gravar, talhar, sulcar e traçar formas
de modo durável num suporte mais ou menos macio, mais ou menos
resistente. A consideração dessa "escrita paisagística" implica, afinal
de contas, certo afrouxamento da distinção entre a esfera artística
propriamente elita e as €sferas sociais e cul~urais) .
Para explorar essa outra perspectiva, podem servir de base
as reflexões de um dos principais representantes do pensamento
contemporâneo da paisagem nos Estados Unidos: o historiador e
teórico John BrinckerhoffJackson (1909-1996), fundador da re-
vista Landscape (em 1951), que lecionou durante muiros anos nos
departamentos de arquitetura da paisagem em Harvard e Berke-
ley, e cuja obra continua sendo uma referência imprescindível
no mundo anglo-saxônico.33
A teoria jacksoniana da paisagem,
cunhada num diálogo constante com a geografia humana e as ci-
cultor, há milênios [...J. Ele a compôs pagus por pagus. Ora, essa mesma palavra
latina, de velh.a língua agrária, assim como o verbo pango nos ditam ou dão
a página, página que, esta manhã, estou lavrando com sulcos regulares, com a
relha elo estilo, pequeno recorte onde se ftxa, se planta, se estabelece a existência
de quem escreve, onde é canrada." (les Cinq Sens. Paris: Grasset, 1985, p. 260.)
Mesma analogia entre paisagem e escrita encontrada em Tilley, C. A Phenomeno-
logy ofLandscape. Places, Paths, and Monuments. Oxford: 13erg Publishcrs, l994
(especialmente no capítulo l).
33
Para uma introdução à vida e obra de J. B. Jackson, ver a compilação realizada por:
Horowitz, Helen Lefkowirz. landscape in Sighi. Looking at America. Ncw Haven
and London: Yale University Press, 1997. Dois livros deJackson foram traduzidos
em francês: A la découverte du paysage vernaculaire. Arles/Versailles: Actcs Sud/
ENSP, 2003, e De la nécessitédes ruines etautressujets. Paris: Le Linteau, 2005. Para
medir o impacro do pensamento de Jackson nos Estados Unidos, em particular,
ver: Meining, D. W. (ed.). The fnterpretation ofOrdinary Landscapes. Geogrttphical
Essays. Oxford University Press, 1979; Groth, P. & Bressi, T. W. (ed.). Undm1r111d-
ing Ordinary landscapes. New Haven and London: Yale Universiry Press, 1997;
Wilson, C. e Grorh, P. (ed.). Everyda)'America. Cultitral Landscape Studies after}.
B. Jackson. Berkeley: University ofCalifornia Press, 2003.
As cinco porcas da paisagem... 29
ências sociais da sua época, articula-se a partir de dois enunciados
mais importantes, principalmente: apaisagem é um espaço organi-l
zado, isto é, composto e desenhado pelos homens na superfície da
Terra; a paisagem é uma obra coletiva das sociedades que transfor-
mam o substrato natural.
Antes de voltar em detalhe a esses dois pontos, cabe uma
observação: essa abordagem teórica concebe a paisagem como
uma p.!_odução cultural) mas considera a cultura nos níveis ma-
terial e espacial, isto é, a cultura encarnada em _erática~ obras e
produções de todo o tipo. Sobretudo, Jackson toma distância de
uma concepção que fosse puramente "estética" da paisagem. Não
vemos mais a paisagem, escreve,
[...) como separada da nossa vida cotidiana e, na realidade, acredita-
mos hoje que fazer parte de uma paisagem, dela tirar a nossa iden-
tidade, é uma condição determinante do nosso estar no mundo,
no sentido mais solene da palavra Qackson, J. B., 2003, p. 262).
34
Portanto, conclui, não é "apenas em função do seu perten-
cimento ou da sua conformidade com tal ou tal ideal esté_tico" que -
devemos considerar as paisagens, mas também pelo modo como
satisfazem algumas necessidades "existenciais" do ser human.5?
(necessidades existenciais, aliás, que são, sobretudo, necessidades
afetivas e sociais).
A paisagem é um espaço organizado
A paisagem não é simplesmente uma representação men-
tal. É "um espaço na superfície da Terra", afirma Jackson, que
acrescenta: "[...] sabemos instintivamente que se trata de um es-
Ji Jackson, J.B. A ia découverte du paysage vernaculaire. Arles/Versailles: Actes Sud/
ENSP, 2003, p. 262.
18. 30 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
paço com certo grau de permanência, com seu caráter exclusivo,
topográfico ou cultural, e, sobretudo, de um espaço comum a um
grupo humano".35
É verdade que a paisagem também é uma maneira de
ver e imaginar o mundo. Mas é primeiramente uma realidade
objetivai, material, produzida pelos homensLToda paisagem é
cultural, não essencialmente por ser vista por uma cultura, mas
...
essencialinente por ter sido produzida dentro de um conjunto
de práticas (econômicas, políticas, sociais), e segundo valores
que, de certa forma, ela simboliza. Jackson adota aqui o mes-
mo ponto de vista sustentado por Eric DardeJ, em L'Homme et
la Terre: "[...] a paisagem não é, na sua essência, feita para ser
olhada, mas sim inserção do homem no mundo, lugar de luta
pela vida, manifestação do seu ser com os outros, base do seu
ser social".36
A própria história da palavra landscape (mas também da
palavra paisagem), tal como Jackson a reconstrói no primeiro ca-
pítulo de A la découverte du paysage vernaculaire, defende a sua
posição. Landscape é composto de land escape. 'A.té na etimolo-
gia mais remota, land sempre designou um espaço definido, com
fronteiras, mas não necessariamente cercas ou muros."37
A palavra landdesigna, primeiramente, o que os camponeses
chamam de "terra", isto é, um espaço que é, ao mesmo tempo,
fechado e faz pane de um espaço mais amplo, que é aberto. A
forma scape, assinala Jackson, remete a uma família de termos que
designam "aspectos coletivos do meio ambience": sheaf,shape. ship.
Nesse sentido, remete a noções de conjunto, de coleção, de sistema.
35 lbid., p. 51.
16
Dardcl, E. L'Homme et la Terre. Paris: CTHS, 1990 [l952], p. 44. A rcspl'ÍIO da
concepção dardeliana da paisagem, ver: Besse, J.-M. Voir la Terre. Six 1•.1.1r1i.1 wr /e
paysage et la géographie. Arles/Versailles: Actes Sud/ENSP, 2000, pp. 125-lili.
37
Jackson,]. B. A la découverte du paysage vernaculrlire. Arles/Vcrs~i llcs: At:ll.'~ S11d/
ENSP, 2003, p. 53.
As cinco portas da paisagem... 3 1
Podemos fazer o mesmo tipo de observações a respeito da palavra
.demã Landschaft (de onde deriva na realidade landscape) e da
palavra francesa paysage. Alguns historiadores notaram a ligação
entre -schaft e as noções de conformação, organização, comidas
110 verbo schaffen, que se encontra, por exemplo, em Gemeinschaft
(comunidade). Da mesma forma, em francês,38
-age remete ao
mesmo tempo à ideia de uma ação (graças à qual algo é realizado
ou produzido,jardinage) e à ideia de uma coleção, de um conjunto
(feui!lage). De qualquer forma, para Jackson, a consequência é
clara: a paisagem é "uma composição de espaços criados pelo
homem no solo". Há um milênio, acrescenta, a palavra "não tinha
- - d "39nada a ver com a encenaçao ou a evocaçao o teatro .
Por conseguinte, o primeiro objeto que deve preocupar
<lquele que estuda as paisagens é a forma como o espaço foi or-
ganizado pela comunidade. Ler a paisagem é perceber modos ~e
organização do espaço. Estudar a organização do espaço quer di-
zer, por exemplo, responder às seguintes perguntas: como a co-
munidade traça uma fronteira, reparte as terras entre as famílias,
constrói estradas e um local para as reuni6es públicas, e reserva
terra para o uso rnunicipal?40~ paisagem é um espaço sociall ~~n
vém interessar-se, de forma mais geral, pelas formas espac1a1s e
sua diversidade, pelos elementos estruturantes e pelas dinâmicas,
morfologias e fluxos que as atravessam e as transformam, pelas
descontinuidades do espaço e pelas circulações, pois todos esses
traços permitem caracterizar uma paisagem: o ponto de vista me-
todológico de Jackson, que ele procura pôr a serviço da arquitetu-
ra da paisagem, é o de u~eógrafo. .
A organização espacial da paisagem traduz, amda, uma
forma de organização da sociedade, bem como as representa-
JS Também é o caso em português: jardinagem, folhagem [N . do T.].
39 Ibid., p. 55.
40
Ibid., pp. 114-6.
19. 32 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
ções e os valores culturais que amam nessa sociedade. A paisa-
gem é uma forma de os homens darem uma medida e um senti-
do à superfície da Terra. Toda paisagem, de um modo que lhe é
próprio, é relativa a um projeto social, mesmo que esse projeto
não seja "consciente", mesmo se for a tradução inconsciente
da organização de uma vida social. Consequentemente, aquele
que pretende estudar as paisagens tem como tarefa primeira e'
essencial ler e interpretar as formas e as dinâmicas paisagísticas
para aprender nelas algo do projeto da sociedade que produziu
essas paisagens.41
Num artigo publicado em 1969 na revista Landscape, Jack-
son destacou essa dimensão projetual de toda paisagem, em geral,
convocando uma analogia interessante com a cartografia:
Uma forma útil de definir a geografia cultural é dizer que é 0 es-
tudo da organização do espaço, o estudo dos motivos aleatórios
(random patterns) que impomos na superfície da Terra pela nos-
sa vida, nosso trabalho, e nossos deslocamentos. Segundo essa
definição, a paisagem pode ser vista como um mapa vivo, uma
composição de linhas e de espaços não muito diferente daquela
11
Na ~onclus~o do seu livro sobre a história dos arvoredos da França do Oeste,
Anme Amorne converge com as intuições de Jackson: "O aspecto dos campos
e o dos espaços mculros são manifestações da forma como o espaço é utilizado
e.pensado pelos agricultores. [...)A paisagem aparece como o revelador do fun-
cwnamento de _uma sociedad~ em dado momento. [...] Interrogar a paisagem
em termos de h1stonador consiste, por exemplo, em observar como se rraduzem
no so~o a variedade das parcelas, a das propriedades e a das técn icas agdrias. Da
duraçao das ro~ações culturais, dos métodos de construç.'ío e de manutenção das
cercas, d_as técnicas de lavoura e de trabalho do solo depende obviamente 0 aspec-
ro da pa1sage:11,rural". (Le Paysage de L'historien. Archéologiedes bocage> d<' l'Ouest
de la France a l'époque moderne. Rennes: Presses Universitaircs de Ren1H:s. 2000,
PP· 229-30.) Ann ie Antoine não despreza, por outro lado, o papel das represen-
tações na construção histórica da paisagem de arvoredos.
As cinco portas da paisagem... 33
que produzem o arquiteto ou o planiflcador, embora em maior
escala (Jackson, J. B., 1969, p. 33).42
Nesse sentido, as distinções que costumam ser feitas entre
.1 paisagem comum, que seria produzida inconscientemente por
11 ma coletividade humana, e a paisagem intencional, que seria
rnnscientemente projetada pelos profissionais, assim como as dis-
tinções entre a construção civil e a arquitetura de paisagem, são
disrinções que deixam de ser tão rígidas: pois, em todos os casos,
e em todos os níveis, o objetivo é a organização de um espaço que
possa responder a necessidades humanas.
li paisagem é uma obra coletiva das sociedades
O aspecto "morfológico" da paisagem é, na realidade, a ex-
pressão de uma relação mais profunda, "vertical", entre o homem
e a superfície da Terra, uma relação ativa e prática pela qual o
homem transforma o seu meio natural. As atividades humanas
inscrevem-se no solo e o transformam. A paisagem não é, portan- ·
to, um simples conjunto de espaços organizados coletivamente
pelos homens. É também uma sucessão de rastros, de pegadas que
se superpõem no solo e constituem, por assim dizer, sua espessura
tanto simbólica quanto material. A paisagem também é um lugar
de memória, no sentido que dá ao termo Mamice Halbwachs: "O
local ocupado por um grupo não é como um quadro negro sobre
o qual se podem escrever e apagar números e figuras. [...] [Ele]
recebeu a marca do grupo, e reciprocamente".43
4
' Jackson, J. B. "A New Kind ofSpace". Landscape, v. 18, n. 1, 1969, p. 33.
" Halbwachs, M. La Mémoire collective. Paris: Albin Michel, 1997 [1950], p.
196. A paisagem não é como um quadro-negro, mas sim como um palimp-
sesto: conserva nela as marcas das camadas de escrita que foram raspadas e
apagadas. Sobre essa questão da memória, ver Marot, S. "L'art Je la mémoire,
le rerritoire et l'architecture". Op. cit. (Hoje reromado em Sub-urbanism and
20. 1
34 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
A paisagem, nesse sentido, é como uma obra, e a terra, o
solo, os elementos naturais são como materiais aos quais os ho-
mens dão forma segundo valores culturais que também evoluem
no tempo e no espaço. A paisagem é uma maneira de os homens
inscreverem seu meio terrestre dentro de uma duração ou de uma
durabilidade que não se confundem com os ritmos naturais,
transformando assim esse meio em mundo histórico.44
Nesse ponto, Jackson passa a herdeiro de uma época do
pensamento geográfico francês ao qual, aliás, faz referência ex-
plícita. Podemos citar aqui Jean Brunhes, que foi um dos seus
principais representantes no início do século XX. Para ele, a
atividade humana, "[...] traduz-se em obras 'visíveis e tangí-
veis', em estradas e em canais, em casas e em cidades, em des-
moitas e em cultivas. [...] Há no solo uma marca contínua do
homem".45
O objetivo do geógrafo, nesse sentido, será, antes de tudo, a
análise e a decifração da "obra paisagística do homem'', na expres-
são de Pierre Deffontaines.
Daí, chegaremos à seguinte consequência: convém lembrar
sempre que a paisagem não é a natureza, mas o mundo humano
tal como ficou inscrito na natureza ao transformá-la. Um mundo
misto, híbrido, nesse sentido, nem totalmente natural, nem to-
talmente humano, mas ao mesmo tempo natural e humano. Na-
tureza humanizada, humanidade naturalizada: a paisagem é uma
realidade ontológica de um gênero próprio, dotado de um espaço
e de um tempo que lhe são próprios. Jackson destaca esse ponto
em vários trechos:
theArt ofMemory, "Architecturc Landscape Urbanism", n. 8. Londres: Archi-
tectural Association, 2003.
11
Cf. Arendt, H. la Condition de L'homme modenze. Paris: Calmann-Lévy, 1968.
45
Brunhes, J. La Géographie humaine. Paris: F. Alcan, 1912, p. 41.
As cinco portas da paisagem... 35
Uma paisagem não é um elemenro natural do meio ambiente,
mas um espaço sintético, um sistema artificial de espaços super-
postos na superfície daTerra, que funciona e evolui, não segundo
leis naturais, mas para servir uma comunidade[...). Assim, uma
paisagem é um espaço criado proposicalmence para acelerar ou
para colher o processo natural. [...] Representa o homem assu-
mindo o papel do tempo Qackson, J. B., 2003, p. 55).
46
Em outras palavras: a paisagem faz entrar a natureza no
tt.:mpo histórico.
A "obra paisagística" não é, entretanto, uniforme na su-
perfície do globo, indica Jackson. É necessário levar em conta as
diferenças de potências e de orientações, que intervêm na relação
que os homens mantêm com o "material" terrestre. Da China à
Europa Ocidental, como em todas as outras partes do mundo,
os homens tornam-se gravadores, escultores ou modeladores. Mal
tocam a terra ou, ao contrário, transformam-na radicalmente, em
função das possibilidades de um material natural que é mais ou
menos favorável, mais ou menos "plástico", mas também em fun-
ção dos seus modos de produção e dos ideais espirituais e morais
que acalentam. A aparência da paisagem traduz ~ssa atitud~ cul-
tural variável da humanidade em relação aos meios naturais nos
quais lhe coube viver. A • •
Mas podemos também deduzir outra consequenc1a, relattva
ao sentido da paisagem. Qualquer que seja o projeto que veicula,
a paisagem é a expressão de uma indagação a respeito do bem-
-estar ou da "boa convivência" das comunidades humanas, encar-
na uma indagação sobre os valores que podem fundamentar essa
"boa convivência", bem como sobre o quadro espacial e material
real dentro do qual essa "boa convivência" pode ser realizada.
4<> Jackson, J. B. A la découverte du paysage vernaculaire. Op. cit., p. 55.
21. 36 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
Pois, como escreve Jackson, foi assim que as paisagens fo-
ram formadas, sempre; não apenas por decisão topográfica ou po-
lítica, mas pela organização das pessoas no local e pelo desenvol-
vimento de espaços a serviço da comunidade: trabalho lucrativo,
lazer, contatos humanos, contatos com a natureza, com o mundo
exterior. De uma forma ou de outra, esses são os objetivos a que
tendem todas as paisagens...47
A noção de paisagem adquire aqui, portanto, como se vê,
uma significação muito abrangente: a paisagem é um espaço
político, e talvez um espaço mais social e cultural que político.
Observação decisiva, pois permite relativizar, ao mesmo tem-
po, a concepção estetizante (ou pitoresca) da paisagem e a con-
cepção determinista. A tese está claramente enunciada num ar-
tigo publicado em Landscape, durante o inverno de 1963-1964
(volume 13, nº 2), a respeito da conservação das paisagens:
nele, podemos ler que, entre todas as razões que se pode ter
para preservar um fragmento de paisagem, a razão estética é
certamente a mais pobre. Temos que achar novos critérios para
L avaliar as paisagens, existentes ou futuras. Para tanto, é preciso
__;.. abandonar o ponto de vista do ~p~ctâêfõr e se questionar sobre
....o interesse que o ser huma~o teria de enessas paisagens. As
perguntas que devem ser feitas não são primeiramente estéticas,
mas sim as seguintes: quais possibilidades oferece a paisagem
para o ser humano viver, para ser livre, para estabelecer re-
lações sensatas com os outros homens e a própria paisagem?
Qual é a contribuição da paisagem para a realização pessoal e
a mudança social? A resposta de]. B. Jackson a essas pergun-
tas é inapelável: nunca se deve mexer na paisagem sem pensar
naqueles que vivem nela. Afinal de contas, se a paisagem tem
um sentido e, sobretudo, se o projeto de paisagem pode ter um
sentido, é porque o desafio é tornar o mundo habitável para
' -
17
Ibid., p. 277.
As cinco portas da paisagem... 37
0 homem. O eixo central da reflexão está aí: a paisagem é a l(
expressão de um esforço humano, sempre frágil e a ser recome- •.
çado, para habitar o mundo.48
A paisagem é o meio ambiente material e vivo das sociedades
humanas
O ecúmeno
Das análises acima, podemos concluir que a paisagem não
é apenas uma vista, uma imagem ou um pensamento. Também é
um mundo vivido, fabricado e habitado por sociedades humanas
em constante mudança. Ou seja, a paisagem identifica-se com o
ecúmeno humano.
Essa noção de ecúmeno nos leva a fazer novas perguntas.
Lembremos efetivamente que, para os geógrafos, durante muito
tempo, o ecúmeno só representou uma parte (cerca de um quar-
to) da superfície do globo terrestre. E, a bem da verdade, os dois
espaços, o do ecúmeno e o do globo, permaneceram muito tem-
po distintos nas representações dos pensadores europeus. Todo
um imaginário da descoberta, da aventura, do encontro das ter-
ras virgens infiltrou-se e ainda se infiltra nesse interstício. Só
foi mesmo no Renascimento, quando da descoberta dos novos
mundos e da remodelação da imagem da Terra, que deslanchou
o processo de fusão dessas duas superfícies.49
Hoje não temos
mais nenhuma dificuldade em pensar a Terra como um planeta
totalmente humanizado.
•~ Essa dimensão ética da paisagem encontra-se também em Perriolo, M. Venturi.
Etiche deipaesaggio. IIprogetto dei mondo umano. Roma: Edii:ori Riuniri, 2002.
·i9 Cf. Besse, J.-M. Les Grandeurs de la Terre. Aspects du savoir géographique à la
Renaissrmce. Lyon: ENS Édirions, 2003.
22. l
38 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
Entretanto, essa distinção intelectual enrre o ecúmeno e o
planeta traz consequência para a compreensão do tipo de realida-
de ao qual corresponde a _paisagem. Na verdade, não se sabe ao
cerro s~ essa distinção desapareceu mesmo, embora seja provável
que hoJe outra formulação teórica deva ser proposta.
Efetivamente, uma diferença subsiste, muito embora te-
nha se tornado tênue na realidade contemporânea, entre 0 ecú-
meno e uma base terrestre "natural" que não se limita ao mun-
do humano, seja nos seus ritmos temporais ou nas suas formas
espaciais. As catástrofes ditas "naturais" são como um lembrete
disso. Ou seja, a noção de ecúmeno pressupõe o encontro entre
um território humanizado e um meio ambiente ou uma base
não ,h~manos, seja essa base chamada de natureza, planeta ou
materza. A tomada ou apoderação do solo pelo humano, a "obra
pa.isaAgís~ica" (i~to é, a criação de territorialidades) pressupõem a
e:1stencia p1~év1a de um "substrato'', qualquer que seja a defini-
çao que se da desse substrato. Julien Gracq encontra essa base ou
esse substrato no norte da Europa:
O mais impressionante na paisagem da Suécia e da Noruega: a
rocha, a couraça geológica da península, o escudo escandinavo
[.:.] sempre presente. Não o rochedo: a rocha; rudo o que po-
dia ser arrancado, extraído, arrasado, o gelo arrancou, extraiu,
arrasou do esqueleto raspado, escovado, desbastado até 0 osso.
Só resta o núcleo profundo, trazido à tona, a rocha-mãe intacta,
inalterada (Gracq, J., 1974, p. 231).50
_t'J'ão podemos esquecer: os seres humanos que produzem
e praticam os seus mundos e paisagens são terráqueos, eles têm
um solo, uma base, diz Lévinas,51
são seres terrestres. Em resumo,
50
Gracq, J. Lettrines 2. Paris: José Corti, 1974, p. 231.
51
Levinas, E. De l'existence à l'existant. Paris: Vrin, 2002 [l947], p. 120.
As cinco portas da paisagem... 39
('xiste um "aval ontológico" às operações de artialização e de ter-
1 i1orialização.52
Foi nessa "distância" metafísica entre terra humana e terra
natural, entre o ecúmeno e o planeta, que uma ciência da paisa-
~cm procurou desenvolver-se. Mesmo se a paisagem contém, ob-
viamente, um valor relativo à percepção e à representação, mesmo
se pode ser considerada como o efeito de um conjunto de ações,
11ma terceira abordagem teórica (que chamaremos de "realista")
nos convida a considerar que a realidade da paisagem excede es-
sas meras significações subjetivas ou sociais. A paisagem possui
uma substancialidade e uma espessura intrínsecas: é um conjunto
complexo e articulado de objetos ou, pelo menos, um campo da
realidade material, mais amplo e mais profundo que as represen-
tações que a acompanham.53 A paisagem também é o vento, a
chuva, a água, o calor, o clima, as rochas, o mundo vivo, tudo o
que cerca os seres humanos: resumindo, rodo um meio ambiente
cujas evoluções, na verdade, são afetadas, mais ou menos direta-
mente, pela ação, a emoção e o pensamento humanos; mas, afinal
de contas, esse meio ambiente - somos também forçados a reco-
nhecer - existe e se desenvolve sem o ser humano, estava aí antes
dele e sobreviverá a ele de uma forma ou de outra.
Essa concepção "realista" da paisagem atravessa todo o es-
pectro das ciências da natureza e das ciências do homem. Está
presente em particular, e há muito tempo, nas ciências da Terra e
~2 Uciliw a expressão "répondam omologique" [aval oncológico] de Jacques Dewit-
te, que a usa na sua crítica da artialização de Alain Roger: " [...] a teoria da aniali-
zação deve, evcncualmcme contra ela mesma, isto é, contrasua própria tendência
'arcificialistà, reconhecer a existência de um real cujas determinações não resul-
tam simplesmeme do seu próprio ato constituinte. Ou seja, se quiser permanecer
fiel à sua vocação transcendental, ela precisa reconhecer a existência do que eu
gostaria de chamar um aval ontológico:..~ ("I.:artialisation et son autre". Critique,
n. 613-614, juin-juillet 1998, p. 356.)
1.1 Cf. Olwig, K. R. "Recovering the Substantive Nacure of Landscape". Annals of
theAssociation ofA merican Geographers, n. 86, v. 4, 1996, PP· 630-53.
23. l
40 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
nas ciências do meio ambiente, mas não unicamente. A geologia,
a geomorfologia, a pedologia, mas também a climatologia, a bo-
tânica, ou a ecologia etc. apontam precisamente a paisagem como
um dos seus temas fundamentais. Até certo pomo, este tema é es-
tudado por essas disciplinas como uma realidade independente do
homem, do seu pensamento e da sua ação, uma realidade que se
desenvolve segundo leis que lhe são próprias e que a ciência tenta
descrever, explicar, ou até reproduzir, simulando-as.
Paisagem e natureza
Quer dizer que a paisagem é "natural", ou então que exis-
tem paisagens "naturais"? É a posição sustentada por alguns geó-
grafos físicos, que se valem de um tipo de "naturalismo".54 A bem
da verdade, a distinção entre paisagem como dado natural e a pai-
sagem como produto social, vindo a segunda somar-se à primeira
(paisagem natural + paisagem cultural), é hoje considerada como
artificial por outros geógrafos, que desenvolvem as perspectivas
de uma "geografia híbrida".55
Seria mera distinção intelectual. A
paisagem seria, na realidade, uma articulação da natureza e da
sociedade, uma integração dos dados naturais e dos projetos hu-
manos, uma realidade sintética, como vimos em Jackson. Nesse
sentido, deve ser entendida como uma totalidade específica que
não se limita aos elementos naturais e humanos cujas combina-
ções a constituem. Georges Bertrand diz isso de outra forma:
54
"Ances mesmo de o homem modelar novas paisagens, e em regiões do mundo
onde a sua inrervençáo não modificou em nada as ações combinadas dos grandes
atores do sistema Terra, as paisagens existem. Até nos meios fortemente antropi-
zados, as paisagens conservam suas dimensões físicas." (Mercier, Denis. Le Com-
mentaire de pa)1
sages en géographiephysique. Paris: Armand Colin, 2004, p. 6.)
55
Wharmore, S. Hybrid Geographies. Natures, Cultures, Spaces. Lonclon: SAGE,
2002.
As cinco portas da paisagem... 41
A enumeração e a análise em separado dos elememos constitu-
tivos e das diferentes características espaciais, psicológicas, eco-
nômicas, ecológicas etc., não permitem dominar a totalidade.
A complexidade da paisagem é ao mesmo tempo morfológica
(forma), constitucional (estrutura) e funcional, e não devemos
tentar reduzi-la pela divisão. A paisagem é um sistema que cobre
tanto o natural quanto o social (Bertrand, G., 1978).56
De forma mais geral, o naturalismo deve enfrentar atual-
mente sérias críticas, tanto no plano da filosofia quanto no da
antropologia. Na sequência dos estudos recentes de Philippe Des-
cola e Bruno Latour,57
a tendência hoje é de falar de uma su-
peração do dualismo homem/natureza, típico do natu~alismo do
pensamento moderno. No sentido oposto desse dualismo, para
pensar a paisagem, recorre-se hoje às noções de hibridação e de as-
sociação do humano e do não humano, associações que podem, é
bem verdade, assumir aparências variáveis em função das culturas
e das épocas. A paisagem aparece cada vez mais como uma enti- o
dade relacional, e o que devemos pensar é essa "relacionalidade".
Convém destacar, a esse respeito, a importância do conceiro de
meio ou, mais precisamente, de mediança proposto por Augus-
tin Berque para dar conta da totalidade das relaç~es constit~tivas
das realidades paisagísticas: a paisagem é uma enndade medial. A
paisagem é ao mesmo tempo, e essencialmente, totalmente natural
e totalmente cultural. É o elemento onde a humanidade se natu-
56 Bertrand, G. "Le paysage entre la narure et la société". &vue Céographique, Je_s
Pyrénées et du Sud-Ouest, n. 49, 1978, evocado in Reger, A. (d1r.). La Theorze
du paysage en Franu (1974-1994). Seysscl: ~hamp V~Jlon',19~5, p. 99. V~r, de
forma geral: Bertrand, C. e G. Une géographie travemere. lenv1rormement a tra-
vers territoires et temporalités. Paris: Argumems, 2002.
1
7
Latour, B. Politiques de la nature. Paris: La Découverte, 2004 (1999]; Descola, ~
Par-delà ia nature et ia culture. Paris: Gallimard, 2005. Ver também: Cosmopolt-
tiques, n. 1, jun. 2002: "La nature n'esr plus cc qu'clle érait".
24. 42 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
~aliz~ e onde a natureza se humaniza (e se simboliza). E é o que
mval1da, no fundo, por princípio, qualquer abordagem unilateral
da paisagem, seja ela "antropocentrada" ou "naturalista": a paisa-
gem deve ser definida, mais rigorosamente, como meio.ss
Afinal das contas, percebemos que é possível considerar teo-
ricame'n~e a pais~gem com.o uma realidade autônoma, sem que seja
necessano reduzir essa realidade a uma pura e simples realidade "na-
tural" no sentido clássico do termo. A posição "realista" não pode
ser confundida com o "naturalismo", tratando-se da paisagem.
~as, sobretudo, o ponto essencial é o seguinte: qualquer
que sep a valência ontológica particular que se atribui à paisa-
gem (natural, cultural, híbrida), é possível concebê-la como uma
realidade em parte (e numa medida que pode ser grande) inde-
?endente das representações e das ações humanas (o que nem por
isso fa~ d~la uma pura e simples "realidade natural", vale repetir).
Constitui uma ordem de realidade específica. É um ser próprio.
O que quer dizer, também, que se desenvolve segundo uma racio-
nalidade própria. Mas, então, se a paisagem possui tal realidade
substancial e se apresenta, pelo menos a título de presunção, como
uma totalidade suigeneris, não é ilegítimo, nem talvez impossível,
procurar analisar os diferentes componentes e determinar as rela-
ções que são constitutivas dessa realidade. Em outros termos, não
é ilegítimo procurar caracterizar as dinâmicas de racionalidade
entre as próprias aparências paisagísticas. O conceito de sistema,
utilizado por Georges Bertrand e pelos ecólogos da paisagem, for-
nece hoje um dos suportes lógicos dessa tentativa, e permite, no
fundo, propor explicações e modelizações quanto ao funcionamen-
to específico das realidades paisagísticas.59
58
"."er, para um desenvolvimento dessa perspecciva: Berque, A. Médiance. De mi-
/Jeux en paysages. Mompellier: GIP Redus, 1990; e, sobretudo: Ecoumene. fntro-
duction à l'étude des milieux humains. Paris: Belin, 2000.
59
A melhor introdução geral, em língua francesa, à ecologia da paisagem continua
sendo: Burel, F. e Baudry, J. Ecologie du paysage. Concepts, méthodes et applica-
As cinco portas da paisagem... 43
O sistema da paisagem
Mas, então, o que é a paisagem, concretamente, nessa pers-
pectiva? De que é composta a realidade paisagística? Encontramos
nela, é verdade, topografia, geologia, formações vegetais e gru-
pamentos de animais, condições climáticas, hidrográficas, pedo-
lógicas etc. Entretanto, encontramos também prédios, reunidos
de forma mais ou menos densa e servindo a usos muito diversos
(habitação, culto, comércio), vias de comunicação, estradas, fer-
rovias, instalações agrícolas, mas também industriais, que afetam
de forma mais ou menos profunda o solo que os sustenta (extra-
ção, evacuação dos resíduos, simples posição sobre uma superfí-
cie etc.). Esses diversos elementos interagem constantemente uns
com os outros. O que significa que uma paisagem é, antes de
tudo, uma totalidade dinâmica, evolutiva, atravessada por fluxos
de natureza, intensidade e direção bastante variáveis e, por isso,
lhe é atribuída uma temporalidade própria.
Além disso, esses fluxos de matéria e de energia, essas tro-
cas de informações, esses jogos de forças entre os diferentes ele-
mentos que compõem a realidade paisagística se fazem dentro de
morfologias espaciais determinadas: as estradas, as unidades de
povoação, as estruturas parcelares e fundiárias, os limites frontei-
riços, a totalidade, enfim, dos recortes territoriais e das descon-
tinuidades espaciais, todos constituem quadros dentro dos quais
e com os quais a temporalidade própria do sistema paisagístico
deve lidar. Mais ainda, por intermédio dessas distâncias, desses
dimensionamentos e desses recorres, dão algo como uma "medi-
da", mais exatamente uma escala e uma ordem de grandeza. As
tions. Paris: TEC & DOC, 1999. Ver também: Clergeau, P. Une écologie du pay-
sage urbain. Rcnnes: Apogée, 2007. O livro de V. Berdoulay e M. Phipps (dir.),
Paysage etsysteme. De l'organisation écologiqueà l'organisation visuelle, edica<lo pela
Universidade de Ottawa, 1985, é sempre útil.
25. 1
44 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
formas espaciais objetivas são partes interessadas da evolução dos
processos paisagísticos.60
A paisagem apresenta-se então, neste caso, como uma mor-
fologia dinâmica, mais precisamente como uma totalidade atra-
vessada por dialéticas internas e externas que se desdobram entre
texturas, formas espaciais e temporais, fluxos, matérias desloca-
das e transportadas, e funções mais, ou menos, perfeitamente
preenchidas. Essas dialéticas, na verdade, constituem a paisagem
como tal na sua realidade concreta. Mais globalmente talvez, é
essa dialética entre, por um lado, certa estabilidade das formas e,
por outro, a renovação das funções, a reorientação dos fluxos e a
modificação da sua intensidade, enfim a substituição das matérias,
que faz, pode-se dizer, a história da paisagem. Talvez possamos ir
mais longe nesse ponto, e considerar a ideia de uma história da
paisagem que fosse articulada em torno de uma dinâmica inerente
às próprias formas paisagísticas, uma dinâmica que se desdobras-
se, aliás, segundo modalidades temporais não lineares.61 Às vezes,
a forma paisagística é "morfógena",62
ela dá eixos à história futura
do espaço, e isso de forma autônoma.
60
Ver: Pinchemel, P. e G. La Face de la Terre. Paris: Armand Colin, 1988, pp. 373-
90; e, em pamcular, a figura 88 (p. 381 ), que propõe uma "formatação sistêmica
do conceito de paisagem".
61 A . , d
qu1, so po emos remeter aos trabalhos de Gérard Chouquer. Ver, em particu-
lar: L'Etudedespaysages. Essais sur leursformes et leur histoire. Paris: Errance, 2000.
J?estacaremos, principalmeme, a distinção feita por Chouquer enrre quatro moda-
lidades espaç~-ternporais atuando na história das formas paisagísticas: a sincronia,
a h1sterecrorna, a diacronia, a ucronia (pp.125-27). Ver também: C houguer G.
"Laplace de l'analyse des systemes spatiaux dans l'~tude dcs paysages du passe:'. ln
C~ouquer, G. (ed.), Les Formes du paysage. Paris: Errance, 1997, t. III, pp. 14-24;
assim como, do mesmo auror: Quelsscénariospourl'histoiredupaysage?Orientations
de recherchepour L'archéogéographie. Coimbra-Porco: CEAUCP, 2007.
62
O termo (proposto por F. Favory) aplica-se à totalidade dos elememos paisagísti-
cos que exercem uma influência sobre as formas "muito além da época de criação
e de funcionamento" (Chouquer, G. "Laplace de l'analyse des systcmes spatiaux
[...]". Op. cit., p. 21).
As cinco portas da paisagem... 45
Como vemos, a paisagem em questão não é vista aqui uni-
camente como a tradução de um valor ou de uma decisão hu-
manos: embora estes intervenham, até certo ponto, no processo
paisagístico, devem ser mediados pela totalidade dos elementos
do sistema com os quais lidam inevitavelmente. Podemos até
dizer que a sua realidade (enquanto valor, pensamento ou ação)
dd-se nessas mediações. Tal como concebida aqui, a paisagem,
nas suas espacialidades como nas suas temporalidades, não de-
pende apenas do humano, embora este ocupe uma posição às
vezes determinante. Mas deve ser entendida como o ponto de
encontro entre as decisões humanas e o conjunto das condições
materiais (naturais, sociais, históricas, espaciais etc.) nas quais
surge e tenta formular-se. Mais ainda, nessa perspectiva, a paisa-
gem pode ser definida como uma realidade material, espaçotem-
poral, organizada em certo sentido, com a qual os seres humanos
vão ter de se explicar.
A paisagem é uma experiência fenomenológica
Assim, vamos aprendendo, progressivamente, que a pai-
sagem não é apenas uma representação mental ou uma obra da
cultura. Possui uma realidade que pode ser objeto das inves-
tigações da ciência. Mais imediatamente ainda, essa realidade
paisagística apresenta-se ao ser humano num encontro con-
creto, d iversamente modulado nos seus conteúdos e formas.
Ou seja, a paisagem é o atestado da existência de um "fora",
de um "outro".
Mas como referir-se a essa realidade, a essa exterioridade
da paisagem? Duas vias são possíveis: a ciência, como acabamos
de ver, e outra coisa, que vamos chamar aqui de experiência. A '
ciência não é a única maneira de se referir à paisagem, nem mes-
mo talvez a primeira: a paisagem é primeiramente sensível, uma
abertura às qualidades sensíveis do mundo.
26. 46 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
A noção de experiência
A sociologia, a antropologia e a história das sensibilidades
(Pierre Sansot, Alain Corbin), mas rambém a história da estética fi-
losófica (Ernst Cassirer, Joachim Ritter), bem como muitos estudos
sobre os meios urbanos demonstraram em que a paisagem assumia
uma dimensão da relação humana com o mundo e a natureza que
a ciência moderna, por princípio, havia descartado: a relação direta,
imediata, física, com os elementos sensíveis do mundo terrestre. A
água, o ar, a luz, a terra: todos, aspectos do mundo que estão abertos
aos cinco sentidos, à emoção, a um tipo de geografia afetiva que
repercute os poderes de ressonância que possuem os lugares sobre
. . -
63
C B b B d "[ ] ·a 1magmaçao. · orno escreve ar ara en er, ... as paisagens
não são apenas 'vistas', mas sim encontros pessoais. Não são apenas
enxergadas, mas sim experimentadas com todos os sencidos".64
63
Corbin,A. LeMiasme etlaJonqui!Le. L'odoratetl'imaginairesocial. Paris: Flamma-
rion, 1986; ___. Les Cloches de la terre. Paisagem sonore et culture senJibk au
XIXsiecle. Paris: Flammarion, 1990; Sansot, P. La Francesensibíe. Seyssel: Champ
Vallon, 1985 (reed. Payot, 1995); ___. Variations paysageres. Paris: Klindc-
sieck, 1983; Ritter, J. Paysage. Fonction de l'esthétique dans la société modeme.
Besançon: Limprimeur, 1997; Rodaway, P. Sensuous Geographies. Body, Senseand
Place. London: Rourledge, 1994; Zardini, M. (dir.), Sensations urbaines. Une ap-
prochediflérente de L'ttrbanisme. Montreal: CCA/Lars Müller Publishers, 2005. A
questão da inclusão das culturas sensoriais é hoje bem estabelecida no campo dos
estudos paisagísticos. Cf, por exemplo, os trabalhos de Jean-FrançoisAugoyard,
de Pascal Amphoux, da equipe do CRESSON (Grenoble), assim como os de
David Howcs (Empires ofthe Senses: The Sensual Cu!ture Reader. Oxford: Berg,
2004) e de David Le Breton (La Saveur du monde. Une anthropologie des sem.
Paris: Métailié, 2006). Para uma inrrodução geral à noção de "culcura sensível'',
ver: Anthropologie et Sociétés, v. 30, n. 3, 2006. Não abordarei, por enquanto, a
questão da sucessão das "conformações" hiscóricas e antropológicas da experiên-
cia fenomenológica.
64
Bender, B. "L1ndscapes and Politics". ln Buchli, V (dir.). The Material Culture
Reader. Oxford: Berg, 2002, p. 136. Ver também: Tilley, C. A Phenomenology of
Landscape. Places, Paths andMonuments. Op. cit.
As cinco porcas da paisagem... 47
As paisagens são ambientes, meios, atmosferas, ames de ser
objetos a serem contemplados.
65
• ~
Segundo essa quarta perspectiva, a pais~gem pode, entao,
ser compreendida e definida como o acontecimento do encontro
concreto entre o homem e o mundo que o cerca. A paisagem é,
nesse caso antes de tudo, uma experiência. Mas, no sentido geral,
essa expe;iência paisagística ou, melhor dizendo, essa paisagem
que se apresenta como experiência só remete, para o ser humano,
a certa maneira de estar no mundo e ser atravessado por ele.
Efetivamente, não se trata apenas de detectar e destacar a
existência de um "fora" em relação às representações mentais, psi-
cológicas, isto é, de uma "realidade". Não é só isso. É a própri~ no-
ção de experiência, quando se trata ~a paisagem, ~u: é ~eavaliada:
a experiência deve ser entendida aqm como uma sa1da no. real e,
mais precisamente ainda, como uma exposição ao real. A paisagem
é 0 nome dado a essa presença do corpo e ao fato de ele ser afetado,
tocado fisicamente pelo mundo ao redor, suas texturas, estruturas
e espacialidades: há nisso algo como um ac~ntecime~to. ,Trata-
-se efetivamente de uma desobjetivação: a paisagem nao e tanto
um objeto apreensível pelo pensamento quan.to um ~ert~ modo
de estar no mundo, um ambiente, certa mane1ra, muno smgular,
de participar do movimento do mundo em de~erminado lugar. A
paisagem é primeiramente vivenciada e depois'. talvez, falada, a
palavra buscando, sobretudo aqui, prolongar a vida, ou melhor, o
vivo que faz da paisagem uma experiência. Estamos pensando em
Merleau-Ponty, comentando Husserl: a tarefa da p~lavra é tra.zer
a experiência muda à expressão do seu próprio sent1.d.o.
66
A paisa-
gem é 0 quadro ou, melhor dizendo, o nome que sena dado a uma
65 Para a história dessas noções, ver, principalmente: Spitzer, L. "Milieu an_d Am-
biance: An Essay in Hiscorical Semancic". Philosophy and Phenomenological Re-
search, v. 3, n. l, 1942, pp. 1-42; e também o n. 2, pp._169-2~8.
66 Merleau-Ponry, M. Phénoménologie de la perception. Pans: Galhmard, 1945, P· X.
27. 48 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
intensificação particular da vida psíquica em momento e luO'ar
d:rermina~os. E, na verdade, dizer nesse caso "a paisagem", j~ é
dizer demais, é perder o próprio momento do "há paisagem" que
nos arrebata e nos transporta.
A caminhada poderia constituir um exemplo fundamental
dessa experiência da paisagem: e, mais precisamente, esse momen-
to particular que é o cansaço na caminhada, cansaço que não é
n~~ esgotamento, nem lassidão, mas que restitui a sua disponi-
bilidade ao corpo e, como diz Nicolas Bouvier, a sua porosidade
em relação ao mundo,67
que lhe restitui a sua capacidade de ser
afetado pelos dados sensíveis do mundo.
O cansaço [escreve Julien Gracq] age como o fixador da impres-
são fotográfica; a mente, que vai perdendo, uma a uma, suas de-
fesas, suavemente estupefata, suavemente rompida pelo choque
do passo monótono, a mente vagueia, apaixona-se por um ritmo
que a obceca, uma iluminação que a seduziu, o sumo inestimável
da hora presente (Gracq, J., 1995, p. 280).68
Na caminhada, no âmago do meu cansaço, faço aparecer 0
mundo tanto quanto faço aparecer a mim mesmo, num espaço
poroso e comum que é o espaço da paisagem.
Como gostei [continua Gracq], ao longo de uma jornada can-
sativa de marcha, guardar nos ouvidos somente a modulaç..1.o do
canto do mundo, ver somente o sol subir e descer sobre a Terra,
67 "O d · 1 d~nsaço a ca1~11111a a, escreve Nicolas Bouvier ao chegar ao monascério
Hac-111-sa, na Core.ia, torna poroso, aberro à Linguagem de um lugar: impossível
atravessar essa sole1ra sem se sentir aliviado, lavado de algo" ("Lcs chcmins du
68
f'.alla-san". lnfournaíd'Aranetd'autmíieux. Paris: Payoc, 2001, p. 126).
G1.acq, J. Lettrmes 2. ln CEuvres completes. Paris: Callimard, 1995, t. li., . 280.
(Biblioth~que de la Pléiade). P
As cinco porcas da paisagem... 49
e os passinhos de homem, longinquamenLe amigáveis, ininteligí-
veis, mexerem-se sobre ela, de leve, como formigas! (Id., ibid.).
69
, flém do objeto e do sujeito
A experiência da caminhada nos indica que essa "vida" de
que falamos aqui, essa "experiência vivida" não se identifica com a
vida interior ou a subjetividade pessoal. Na paisagem, a vida sub-
jcl iva se desenrola à beira das coisas. Na verdade, à desobjetivação
responde uma dessubjetivação. Se há experiência, há exposição da
subjetividade a algo como um "fora" que a conduz e a empurra,
:is vezes violentamente, fora dos seus limites. Nesse sentido, a pai-
:-.agem é, literalmente, "isso" que põe o sujeito fora de si mesmo.
Mas não é para afundá-lo no objeto pois, justamente, também
não há objeto, no sentido da ciência e da consciência representa-
liva, diante desse sujeito que perde qualquer estabilidade. A prova
sensual, escreve Henri Maldiney, "ultrapassa a qualidade sensí-
vel.7º A experiência radical da paisagem é um sujeito fora e um
fora sem objeto. É uma derrota comum do sujeito e do objeto.
Não se deve dizer, por conseguinte, que a paisagem é concebida
como uma experiência. Ela é mais este acontecimento, singular e
sempre diferente, da exterioridade como ral, à qual a experiência
expõe aqueles que se arriscam, numa confusão e uma tensão entre
si e o mundo que, propriamente, arrebatam. O estranhamento é a
condição da paisagem, escreve Jean-François Lyotard,7
1
e por isso
a paisagem não é um lugar: ela é "indestinada", ela escapa, e esta
escapada é a sua "razão" de ser.
A palavra "horizonte" já foi muito utilizada para nomear o
tipo de experiência de que se trata aqui. A paisagem é o evento do
G~ Ibid.
;o Maldincy, H . Regard, parole, espace. Lausanne: I.:Age d'Hommc, 1994, P· 99.
71 Lyotard, J.-F. "Scapeland". Revue des Sciences Humaines, n. 209, 1988-1, P· 40.