O documento descreve a evolução lenta dos espaços urbanos públicos no Brasil, de predominantemente sagrados para profanos. Inicialmente, o conceito, uso, âmbito e tratamento desses espaços eram religiosos, mas ao longo do tempo tornaram-se seculares, como resultado da influência diminuída da Igreja e do aumento da importância dos aspectos mundanos da vida urbana. Esse processo ocorreu lentamente e teve maiores consequências no Brasil do que em outros países americanos.
3. Reitor
Vice· reitor
led~
Diretor-presitle111e
UNIVERSIDADE DE siO PAULO
Adolpha Jose Melfi
1-li!lio Nogueira da Cruz
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO
Plinio Martins Filho
COMISSAO EDJTORIAL
Preside111e Jose Mindlin
Vke-pre,,·idente Oswaldo Paulo Forattini
Brasflio Joao Sallum Jtinior
Carlos Alberto 13arbosa Dantas
Guilherme Leite da Silva Dias
Laura de Mello c Souza
Murillo Marx
Plinio Martins Filho
Diretom Editorial Silvana Biral
Diretora Comercial Eliana Urabayashi
Diretora Admi11istmti1•a Angela Maria Concei9au Torres
Editora-msi.Hente Marilcna Yizentin
FoToGRAFIAS
Cristiano Mascaro
led:;.
5. -INTRODU~AO
0 espa<;;o urbano publico no Brasil evoluiu lentamente
do sagrado ao profano. Atraves das mudan<;;as em seu con-
ceito, uso, ambito e trato, e possfvel acompanhar a passagem
da predominancia religiosa, em seus prim6rdios, para a se-
cular, nos dias atuais, processo que ocorreu tambem em to-
do o mundo europeu nos tempos modernos e particularmente
no seculo XIX, mas foi de maiores conseqiiencias urbanfsti-
cas aqui do que nos demais paises americanos de coloniza-
<;;ao iberica.
0 conceito inicial predominantemente religioso foi se
transformando, ate tornar-se quase absolutamente mundano,
como ocorre hoje. As normas decorrentes sofreram uma im-
portante transforma<;;ao: as eclesiasticas, bern precisadas de
inicio e por longo tempo, cairam, nao subsistindo qualquer
interferencia mais significativa de sua parte; as civis, muito
difusas e casuisticas ate recentemente, sao agora unicas, po-
rem nero sempre prestigiadas. Dai o usual desrespeito por nos-
sas areas comuns.
0 uso era, ate bern pouco tempo, direta ou indiretamen-
te, de cunho ritual, atento aos eventos liturgicos que se im-
punham perante urn cotidiano pobre que s6 muito vagarosa-
mente foi crescendo em proporr,;oes. As festas cat61icas e as
manifestac;;oes que elas ensejavam constituiam quase que os
iinicos momentos de anima<;;ao maior, momentos excepcio-
nais, num palco de atividades muito mediocres. Estas cres-
ceram e passaram a predominar, mas, ainda agora, pelo por-
te e pela variedade, tornam muito tenue e limitada a utiliza-
<;;ao de nossos espac;;os por todos.
7
6. 0 ambito das areas comuns, por outro lado, era bastan-
te indefinido e referenciado sobretudo por determinados Io-
cais considerados sagrados ou a eles referidos. 0 alinhamen-
to entre o chao de todos e o privado demorou a ser bern es-
tabelecido, e os pontos focais eram quase que somente adros
de igrejas e ruas privilegiadas por onde passavam as procis-
s6es. Assirn, tem-se hoje urn circuito de solo publico tacanho
e sua freqiiente desconsidera~ao com a invasao das superfi-
cies que contem e define. Estreitas as ruas, poucos os largos
e jardins.
0 trato, reduzido asua minima expressao, consistia em
raros elementos da simbologia crista e em sumarias provid~n
cias que privilegiavam as ocasi6es rituais. Cruzes e nichos com
imagens animavam sozinhos a cena citadina e as ruas e lar-
gos mereciam alguma atenc;;ao de limpeza do mato e rudirnen-
tar conservac;;ao antes das festividades. Demoraram o enri-
quecimento das vias com outros simbolos, o aparecimento
de outras exigencias e a resposta correspondente. Compre-
ende-se a sua atual pobreza e desleixo...
Considerada segundo estes quatro aspectos, eminente-
mente arquitetonicos, essa demorada mas decidida laicizac;ao
ajuda-nos a compreender nossas areas de dominio e uso co-
mum em sua habitual mazela. 0 freqiiente desrespeito que
sofrem por parte do publico e dos responsaveis diretos, o tf-
mido usufruto a que estao habituadas, ainda que em plena
escala metropolitana, sua reduzida superficie geral e as aca-
nhadas proporc;6es da vasta maioria dos logradouros, bern
como o equipamento grosseiro e escasso, merecedor da mais
desatenciosa manutenc;ao se explicam, em boa parte, pores-
sa evolu<;;ao. 0 sacro quase desaparecido, o mundano mal-
nascido.
0 estudo do surgirnento e das transformac;;oes de nossos
logradouros piiblicos, e a interpretac;;ao de suas caracteristi-
cas arquitetonicas - e hi tantas outras dignas de reflexao -
podem auxiliar nao somente no conhecimento maior de nos-
sas formac;oes urbanas como na elaborac;;ao de futuras pro-
postas para sua melhoria. Eles se apresentam aqui por urn pris-
ma particular, numa tentativa de interpretac;;ao que se baseia
no que os registros relativos ao espa<;;o fisico tern a oferecer,
que infelizmente nao sao os de se esperar, ou seja, os icono-
grificos.
Tal analise segue urn roteiro de preocupac;;oes, pesqui-
sas e avaliac;;oes relativas acidade em terras brasileiras, anos-
sa cidade em geral. Para isso, porem, o percorrer das ruas,
8
pra~as e jardins, ora pretendido, abarca toda a existencia de
apenas uma aglomera~ao, desta vez a cidade de Sao Paulo,
porque e das mais antigas entre n6s, porque sua excepciona-
lidade nao a exclui do conjunto das outras nem a retira do
pano defundo comum, porque de todas e hoje a maior, e
porque e a nossa, que conhecemos urn pouco mais e a dese-
jamos muito melhor, a que reline para o pesquisador nao ape-
nas uma consideravel massa de dados e registros de todo ti-
po, como tambem ji pode oferecer urn apreciavel conjunto
de interpreta~6es. Como campo de trabalho, a capital pau-
lista fica bern definida e permanece farto manancial de infor-
ma~oes e de indagac;oes, urn guia auxiliar generoso para seu
pr6prio desnudamento, assim como de suas irmas de todo
o pais. Seu destino, absolutamente excepcional entre as de-
mais, e as propor~6es que alcan<;;ou tornam rnais evidentes
determinados fenomenos, comuns a todas.
Diante da forte evid~ncia de profundos reflexos devidos
a secularizac;;ao ocorrida no seculo passado, formulou-se a
proposic;;ao inicial e induziram-se as conseqiiencias para ca-
da urn dos quatro aspectos arquitetonicos. Estes foram orde-
nados segundo seu papel relativo a urn fato de arquitetura
como e urn espac;;o urbano - a ideia que dele se faz, o pro-
grama funcional a que responde, a abrangencia fisica dispo-
nivel, seus componentes de todo tipo.
A marcha da mundanizac;ao foi imaginada para cada urn
destes aspectos e pareceu, a priori, corresponder a sua evo-
luc;;ao particular e poder constituir urn instrumento para sua
melhor compreensao: a progressiva mudanc;;a da concepc;;ao
das ruas e prac;as, atraves do revelado pela legislac;;ao perti-
nente; o despontar Iento mas seguro de novos usos, mais fre-
qiientes e condizentes com uma vida urbana do que os tradi-
cionais eventos litiirgicos ou votivos; a tardia definic;;ao do
circuito dos logradouros de diferente qualidade eo desapa-
recimento de certas prerrogativas dos adros de igreja, alem
do surgimento de algo novo como os jardins; o crescente cui-
dado com os revestirnentos e com os elementos funcionais
que arrematam ou decoram os espac;os de todos, para nao
falar do aparecimento de novos simbolos e monumentos.
Esse evoluir esta apresentado apenas por meio de alguns
dos informes que pareceram mais significativos tanto do de-
cair da influencia eclesiastica quanto do prosperar da impo-
sic;ao civil. Assim, cada uma das quatro faces eleitas do pro-
blema se mostra segundo dois compassos. Primeiro, aquele
que se atem ao esmorecer das caractedsticas pr6prias dum
9
7. mundo dominado pelo sagrado, pelo ritual, pela festa. De-
pois, o que busca acompanhar o despontar ou o adensamen-
to das peculiaridades de nossos tempos mais atentos ao mun-
dano, ao negocio, ao cotidiano. Isto implica urn certo movi-
mento de vaivem que, com o risco de se tornar confuso e
redundante, aspira a acompanhar com mais detalhe a forc;a
inicial dos canones em nossos estabelecimentos coloniais e
sua persistencia ate bern pouco tempo, e o predominio atual
quase absoluto das leis e costumes civis em nossas mais anti-
gas e mais recentes formac;oes urbanas.
Seguiu-se a comparac;ao, sempre segundo os quatro as-
pectos eleitos, entre o que se passou por aqui e em outras
colonias portuguesas e no proprio Portugal, entre nossa ex-
periencia de urbanizac;ao e a tao proxima - e tao flagrante-
mente distinta em suas diretrizes - dos espanh6is em seu vas-
to imperio. Essas analogias permitiram perceber algumas se-
melhanc;as e constrastes inesperados e, em geral, mais bern
delinear outros previsiveis, corrigindo e reforc;ando os mo-
delos parciais concebidos. 0 proprio caso tornado como o
principal da pesquisa, o de Sao Paulo, quando comparado
com tantas outras fundac;oes brasileiras, lanc;ou sobre elas mais
clareza, especialmente sobre dados de outra forma incom-
preensiveis ou de dificil entendimento. Dai a pouca impor-
tancia que atribuimos ao mais especifico e eventual do exem-
plo paulistano e a preferencia decidida por seus pontos co-
muns, com uma feic;ao urbana generalizada e que nao tinha
nada de aleat6ria em sua informalidade habitual e tantas ve-
zes denunciada pelos estudiosos. Nao era a antiga Piratinin-
ga o alvo de nosso trabalho, mas a cidade brasileira, perscru-
tada atraves daquela.
0 levantamento exaustivo de determinadas fontes de in-
formac;ao e a deduc;ao do que revelam foram os instrumen-
tos para a correc;ao do modelo geral e dos parciais, das hip6-
teses que carregavam. Foram, finalmente, as armas para afe-
ric;ao das teses levantadas: a principal, que da titulo ao estu-
do, e as secundarias, que correspondem a seus capitulos. A
selec;ao dos dados obtidos, seu ordenamento segundo o as-
pecto que podiam melhor esclarecer - aspecto urbanistico -,
sua anilise paulatina foram precisando as proposic;oes inicial-
mente feitas, os modelos entao sugeridos, e apontando para
a forma final de apresentac;ao.
A pesquisa orientou-se para suprir uma grande deficH~n
cia documental e grave para a area da evoluc;ao urbana ou
da hist6ria das cidades. Deficiencia especialmente sentida no
10
caso paulistano por sua propria evolw;ao peculiar, de gran-
de pobreza a sensivel riqueza: a quase absoluta falta de fon-
tes iconogrificas ate o advento da independencia e mesmo
ate o surgimento da prosperidade economica meio seculo de-
pois. Apartir de entao passam a ser numerosas ou ate expres-
sivas as vistas, as plantas cartograficas, as fotos de todo o ti-
po, que ilustram bern, se nao fartamente, a cidade contem-
poranea que surgiu de e sobre a tradicional, num outro im-
pulso e noutra escala, porem nao permitem a analise compa-
rativa, tao necessaria e rica de sugestoes para quem tenta com-
preender melhor as transformac;oes do ambiente.
Sendo assim, procuraram-se aqueles registros escritos
que, ou suprissem a falta da imagem preciosa, ou ao menos
esboc;assem uma ideia do panorama que uma vez existiu e foi
sendo substituido. Basicamente tais registros foram de tres
tipos. Os textos legais que, por certo nao inteiramente cum-
prides ou muito tardos em fazer face a realidade, indicam sem
contestac;ao o tipo de mentalidade dominante e de institui-
c;oes decorrentes. Os assentamentos oficiais que correspon-
dem as varias esferas de administrac;ao civil - tanto as atas
da municipalidade quanto os atos do governo da capitania,
provincia e depois estado, assim como os do governo-geral,
metropolitano e do pais independente. Por fim, as utilissi-
mas cronicas dos viajantes que, nos mais distintos periodos
de nosso percurso hist6rico, revelam diferentes interesses,
tipos de observac;ao e de preconceito, sempre fornecendo
uma ideia da vida social e, as vezes, uma imagem de seu qua-
dro fisico, das cidades e suas ruas, largos e jardins.
Alem destas tres ordens de documentos, tornados como
fontes primarias, outras foram utilizadas quando existiam e
podiam complementar a visao sobre uma determinada epo-
ca ou a informac;ao para certo problema: diferentes papeis
da Curia Metropolitana, em que, a par da riqueza do acervo
de seu arquivo, fica o desalento por sua incipiente classifica-
c;ao e conseqiiente dificuldade de acesso; mem6rias e alguns
trechos de ficc;ao; documentos analogos relativos a outras ur-
bes brasileiras; algumas contribuic;oes basilares de juristas e
historiadores do direito civil e eclesiistico.
Nao foram poucas as dificuldades para se obter o leque
dos registros oficiais julgados de utilidade. A primeira, men-
cionada acima, e tantas outras atinentes as entradas para as-
sunto tao pouco vasculhado. Preferimos, por isso, apenas de-
clarar que se optou por fontes que pareciam fornecer , e o fi-
zeram em insuspeitada profusao, elementos necessarios e su-
11
8. ficientes para o que nos interessava. Dentre eles destacam-se
as atas da edilidade, tao parcas de indices - o que faz valer
uma justa menc;;ao ao elaborado por Sergio Milliet, muito util
para urn varrer inicial; os assentos diversos da dimara, so-
bretudo os de avisos e posturas, quase sempre manuscritos
e Ade~isivos para os aspectos legais; as ordens e correspon-
dencta dos governantes, algum relatorio, pouca mas precio-
sa jurisprudencia, onde se mostra capital a contribuic;;ao de
Candido Mendes de Almeida.
Contribuic;;ao que atinge tambem, a despeito de sua pos-
tur~ fr~ncamente conservadora, a legislac;;ao eclesiastica, que
mutto tmporta aqui, sendo mesmo central para o prisma es-
colhido. Neste sentido, foram primaciais as notaveis Consti-
tui~oens primeyras do arcebispado da Bahia, outras cons-
tituic;oes sinodais do mundo portugues, anteriores ou coeta-
neas, alem de pastorais coletivas mais recentes. Esses diferen-
tes instrumentos do direito canonico, na verdade, sao os do-
.cume_ntos centrais pela importancia, pretendemos ressaltar,
que ttveram para a caracterizac;;ao de nosso desenho urbano
tradicional e para sua evoluc,;ao posterior, a qual nao deixa-
~am d~ condicionar de forma indireta. Importancia que cresce
a medtda que se faz o cotejo com a legislac;;ao civil, tao me-
nos precisa e menos codificada, em seu trajeto lento e inse-
guro, mormente no que diz respeito as questoes municipais
e a definic;;ao dos trac,;os fisionomicos citadinos.
Uns conjuntos de fontes se encontram manuscritos ou-
tros, publicados, quando facilitaram enormemente a pe~qui
sa. Particularmente as edic;;oes contemporaneas das atas da
c~ar~ paulistana e dos Documentos interessantes para a
h~st6rza e costumes de Sao Paulo, bern como as antigas edi-
c;;oes dos textos eclesiasticos mencionados, algumas primo-
rosas, foram de molde a entusiasmar na consulta e a suavizar
a empresa. Destaque-se, ai, a quarta e ultima edic;;ao das Cons-
titui~oes da Bahia, de 1853, cuja atualizac;ao relativa as leis
do imperio e cuja introduc;ao admiravel por Ildefonso Xavier
Ferreira constituiram em si uma ajuda sempre esclarecedora
e a~aliz:da~ N~o foram, no entanto, suficientes essas publi-
cac,;oes tao utets, tendo sido vasculhado material manuscrito
em arquivos diferentes, numa busca por fundos variados e
urn tanto as cegas em vista das entradas usuais utilizadas p~la
historiografia, que tern desprezado essa participac;;ao tao mar-
c:~ me e ainda tao recente da norma e da organizac;;ao ecle-
siastica entre nos, principalmente para materia tao espedfi-
ca c aparcntemente delas tao distante quanto o urbanismo...
12
A estas fontes primarias que, contra nossa vontade, mas
segundo nossa certeira previsao, foram as mais vasculhadas,
juntaram-se as grificas em fatal modesta contribuic,;ao para
o assunto: as plantas do seculo xrx, editadas no IV centena-
rio de Sao Paulo; uma ou outra dos novecentos como o ex-
celente levantamento SARA de 1930; os desenhos e gravuras
da cidade dos fins dos tempos coloniais; as fotografias que
fixaram o ocaso do imperio eo comec,;o da republica. Por suas
insuficH~ncias localizadas, por haver grande divulgac,;ao da-
quelas mais expressivas, por logicamente particularizarem a
cidade que retratam, decidiu-se utilizar tais elementos icono-
gr:ificos, ou qualquer outro, como ilustrac,;ao, ensejando a as-
sociac;;ao dos topicos considerados com a realidade pregres-
sa ou nao de outras concentrac;;oes urbanas do pais. E con-
centrar a atenc;;ao sobre os aspectos, as mudanc,;as e os meca-
nismos que se ensaia analisar e interpretar. Enfim, foote pri-
mariaprimordial revelou-se o transfigurado centro da mega-
lopole em si - centro historico e geogrifico que, percorri-
do, levantou questoes, sugeriu as hipoteses e forneceu algu-
mas respostas.
Ainda e pouco o que existe sobre a historia da cidade no
Brasil e, mais ainda, sobre a evoluc;;ao de seus logradouros.
Mais restrito fica o rol dos estudos existentes, se o prisma al-
mejado for o da interpretac;;ao eminentemente arquitetonica
de sua configurac,;ao geral, de suas massas construidas e de
seus espac,;os vazios. Os trabalhos mais abalizados com esta
especie de analise mais passam do que se detem no assunto.
E, quando tal acontece, sua contribuic,;ao redunda menos no
esclarecimento, ainda que inicial, do que na sugestao, pre-
ciosa, duma direc;;ao para aprofundamento ulterior.
As obras referidas a seguir constituiram as principais fon-
tes secundarias atinentes a area central deste trabalho e espe-
lham como vemos o estudo atento ao espac;;o urbano, a con-
figurac,;ao citadina e a suas articulac;;oes fisicas internas. Re-
fletem ainda o estado da questao entre nos e o auxilio que
tais abordagens estrangeiras podem oferecer para o conheci-
mento mais fundamentado de nossa cidade a partir de ou-
tros pontos de observac;;ao e objetos de pesquisa.
Nosso prisma atenta para a correlac;;ao entre as institui-
c;;oes e as diretrizes para o despontar e o transformar-se dos
estabelecimentos urbanos no Brasil. Voltou-se para uma pre-
senc;;a poderosa e prolongada, a da Igreja, ate bern pouco tem-
po unida ao Estado. Perquiriu qual o efeito dessa uniao em
diferentes momentos e sob diferentes maneiras sobre o con-
13
9. trole de nossos aglomerados humanos e, finalmente, sobre
sua configurac;ao.
Se fatal tern sido a comparac;ao entre nossa experiencia colo-
nial, no que tange a conformac;ao de seus estabelecimentos, com
a dos espanh6is em suas colonias, buscamos aferir tambem
o relacionamento Igreja-Estado em Portugal como que seve-
rificava em Castela, aferic;ao que se ateve e deteve nas ques-
toes normativas que diziam respeito, de alguma forma, ao go-
verna das cidades. A atenc;ao maior ao quadro institucional,
portanto, se restringe as normas e procedimentos, aos cano-
nes e leis, ao ritualliturgico e oficial. Enfoque restrito, sem
duvida, porem que promete lanc;ar uma outra luz sobre a ideia
que se fazia de nossas povoac;oes, sobre a utilizac;ao de seus
espac;os comuns, quanto ao circuito dos mesmos e o trata-
mento decorrente. Nao se trata, contudo, duma interpreta-
c;ao da legislac;ao que incidiu sobre nossa cidade, considerando
OS dois brac;;os do poder, temporal e espiritual. Ambos sao
considerados em func;ao de determinados trac;os de nossa pai-
sagem urbana, atinentes a seus vazios de interesse de todos
- trac;os arquitetonicos ou espaciais que solicitam atenc;ao,
em primeiro lugar, do arquiteto e do estudioso da cidade.
0 acompanhamento da evoluc;ao de nossas ruas, prac;as
e jardins, orientado pela trajet6ria hist6rica da cidade de Sao
Paulo, nao pode se valer, como seria desejavel e como era
previsto, da interpretac;ao dum material iconogrifico eluci-
dador. Conquanto existente e relativamente rico, o e para de-
terminado perfodo, a partir de tempos mais recentes. A pes-
quisa se voltou, por isso, para o acervo da documentac;ao ofi-
cial e eclesiastica, esta sim profusa e em grande parte acessf-
vel no caso paulistano. Tal prejuizo, parece-nos, foi compen-
sado pela possibilidade que tais registros ofereciam de apro-
fundar elos e articulac;oes entre o institucional e o urbanfsti-
co, que nao se restringiam e nao se restringem a capital pau-
lista. Pelo contririo, parecia de inkio e se confirmou plena-
mente, tais influxos institucionais, tao marcados pela Igreja,
revelam seus reflexos concretes em nosso quadro intra-
urbana por todo o pais. E isto inclui tambem sua superac;ao,
bastante recente, o que nos levou a percorrer todo o proces-
so, a perseguir aquela marcha lenta, tardia e firme da laiciza-
c;ao de nossos logradouros. Levou-nos a procurar na secula-
rizac;ao dos espac;os de todos os cidadaos as razoes do atual
e renitentc estado de pouca valorizac;;ao, pobre proveito, des-
respeito e descuido de nossas areas citadinas de dominio e
uso comum do povo.
14
SUA_,
RAZAO
DE
SER
10. UFAL
BlBL!OTECA CE ~,!TRAL
1. 0 CONCEITO
A ideia sobre o chao comum em nossas cidades evoluiu
no sentido duma crescente seculariza~ao. Esta evolu~ao po-
de ser acompanhada pelo progresso das normas legais que
incidiram sobre as diferentes areas coletivas. Tal acompanha-
mento, por certo, nao e 0 unico possivel e talvez nao seja
o mais completo ou aprofundado. Alem de constituir urn as-
pecto parcial, de superestrutura, a legislac;ao tende a nao ser
rigorosamente cumprida, bern como costuma auscultar no-
vos reclamos com muito atraso. Apesar disso, ou por isso rues-
roo, o arcabouc;o legal ret1ete muito bern a mentalidade que
domina ou que ainda nao foi extirpada ou superada plena-
mente por outra. Eo faz incidindo sobre questoes de ordem
pritica se nao candentes. Alei, cumprida ou burlada, arcaica
ou reajustada, incide sobre o convivio dos cidadaos, sobre-
tudo em seu meio mais denso e significativo - a cidade. Re-
gula, de diversas maneiras e para diferentes conflitos, os es-
pa~os comuns urbanos.
A progressiva laiciza~ao dos regulamentos incidentes so-
bre as areas de dominio e uso comum do povo interfere di-
retamente sobre os demais aspectos e, por isso, o legale o
primeiro aqui tratado. E, tambem, aquele em que, de manei-
ra mais nitida, se di a transforma~ao dum mundo marcado
pela ideia do sagrado, para uma visao calcada em motivac;oes
profanas, como em nosso tempo. As mudanc;as ocorridas,
quando observadas pela face legal, tornam-se bern definidas,
nao apenas por uma 6bvia que::stao de letra, mas antes pur-
que houve, de inicio e por seculos, dois tipos de normas
atuantes sobre os vazios que nos interessam, assim como so-
17
11. bre as concentrac;oes humanas em geral: a norma espiritual
ao lado da norma temporal. Podem-se acompanhar as altera-
~,;oes de cada uma, bern como detectar o momenta em que
uma delas surge ou simplesmente desaparece.
As determinac;oes eclesiisticas, em nossos primeiros tem-
pos, tern a possibilidade de se imporem com facilidade e mes-
mo de prevalecer. Isto se di nas questoes de organizac;ao do
espa~o fisico citadino menos por confronto, o que nao po-
deria acontecer, do que por lacuna e omissao da legislac;ao
especifica portuguesa. As orientac;oes canonicas, retempera-
das pela Contra-Reforma, expressaram-se com maior abran-
gencia nas constituic;oes sinodais dos varios bispados e arce-
bispados, que, em virios de seus titulos, atentam para pro-
blemas que podem interessar aos predios e aos vazios urba-
nos, como sua localizac;ao, utilidade e caracteristicas de
composic;ao.
Acobertadas pela Coroa, tais constituic;oes ganharam for-
~,;a de lei e terminaram por influir mais do que a lei nos inci-
pientes estabelecimentos coloniais lusitanos, simplesmente
porque eram acatadas e estavam muito bern estipuladas. Dian-
te de normas civis muito gerais se impuseram com maior ri-
gor e eficicia.
Os instrumentos legais, de sua parte, em sua usual gene-
ralidade e por SJ.ta transposic;ao praticamente automatica dum
continente a outro, dum mundo a outro, chegaram para urn
cumprimento relativo e, talvez, seus eventuais aplicadores ti-
vessem disso plena consciencia ou convicc;ao. Portugal nao
criou nunca urn corpo de legisla~,;ao especial para suas colo-
nias; preferiu transferir sua legisla~ao e sua jurisprudencia.
0 resultado foi eloqiiente no que diz respeito a paisagem ur-
bana, que foi semeando pelos quatro cantos do mundo e que
se disseminou, mais do que em nenhuma outra parte, nas
Americas. Ao ecoar a paisagem urbana da metr6pole euro-
peia, as fundac;oes brasileiras de quase todo o periodo colo-
nial atestavam com impressionante precisao a persistencia de
costumes. Dentro das exigencias fundamentais, deixava-se fa-
zer como de praxe, passar como no reino...
Transpostas pela metr6pole e completadas de forma ca-
suistica, as leis lusas foram muito lentamente se adaptando
para fazer frente a uma nova realidade. As mais gerais, como
as relativas a questao fundiaria, incidiram sem detalhamento
sabre o quadro urbanfstico; as mais especificas avanc;ararn ti-
midamente com as posturas municipais. Com a independen-
cia, as primeiras atingirarn letalmente a for~a das constitui-
18
~,;oes do arcebispado da Bahia, vigorando havia mais de uma
centuria. Com a republica, as segundas ganharam seu plena
dominia e mundaniza~,;ao.
As conseqiiencias desse processo se mostram hoje pal-
paveis num pais ji eminentemente urbanizado. Particularmen-
te quanta agestio dos logradouros publicos, 0 que se assiste
sabidamente e a defasagem das leis municipais em rela~,;ao a
urn quadro geralmente muito dinamico da realidade e sua im-
potencia em rela~ao a este. De vir a reboque das imposi~oes
canonicas, a lei passou a correr atris das pressoes do dia-a-
dia; impos-se finalmente alegislac;ao eclesiistica que derru-
bou, porem nao correspondeu ainda as necessidades mais gri-
tantes de nossas ruas, prac;as e jardins.
19
1;;:;::;~~------------------~----------------------------------------------~~~---------------------------------- --- -- -- -- ---1 - - - -- -- --- -
12. A
canones
Ligados a lgreja, OS dais Estados ibericos passaram com
sua expansao ultramarina a deter amplos poderes sobre as
quest6es eclesiasticas. A maneira de regular o convivio entre
o poder temporal e o espiritual, como dais brac;os do trona,
deu-se atraves de inumeras concordatas par toda a parte, em-
bora de maneira muito distinta entre Portugal e Espanha. Nes-
ta ultima, quando se formulou uma legislac;ao espedfica pa-
ra seu imperio colonial, tais acertos mereceram a atenc;ao em
primeiro Iugar. Quando na mesma codificac;ao se estipulou
determinado urbanismo para vicejar em outros continentes,
estava pressuposto e bern definido o papel dos dois tipos de
instituic;6es decorrentes. Tal nao se deu em Portugal, que
transferiu sua legislac;ao e dela se serviu em outras terras. As
normas da Igreja, por toda a parte em suas co!Onias, foram
seguidas mais fielmente que as do Estado. 0 resultado dese-
nhou doutra·maneira, muito distinta, a cidade que promo-
veu entre nos.
Urn artigo de concordia estabelecida por D. Sebastiao,
que diz respeito precisamente a determinado espac;o tambem
urbano, 0 adro, fbi 0 unico que subsistiu por todo 0 periodo
colonial. Nada, como codificac;ao normativa do ambito ci-
vil, que se pudesse comparar as notaveis Constitui(:oenspri-
meyras do arcebispado da Bahia, que regeram urn seculo
da vida colonial e, em linhas gerais, a imperial. No que tange
as aglomerac;6es urbanas de todo nivel, os ecos da seculari-
zac;ao no desabrochar do mundo contemporaneo mal se fi-
zeram sentir no seculo das luzes entre nos; foram significati-
vos, mas circunscritos durante o processo de estruturac;ao do
imperio, acentuados em sua segunda metade e decisivos ape-
nas com o advento da republica e de nossa centuria. Tom-
bou par fim, porem muito tarde, a forc;a dos canones, e seu
peculiar efeito em nossa paisagem citadina, tradicional ou
nao.
"... tenhao mao sempre com sua jurdisao nao deixando a
justisa ecolleziatiqua meterse nella... "
Esta foi uma das ordens passadas pelo ouvidor-geral aos
vereadores paulistanos e registrada na ata da camara de 8 de
20
abril de 1628. Anos antes, ja aparecem, nos assentos da edili-
dade, conflitos entre a jurisdic;ao eclesiastica e a secular por
diferentes motivos, como a descida da serra por gente envoi-
vida em questoes de terra para responder perante juizes ecle-
siasticos, ou as conhecidas pendencias relativas a entradas ao
sertao e cac;a ao indio (Aetas, v. 2, p. 322 e 407). E perduram
tais atritos entre as duas jurisdic;oes ao longo de decadas e
seculos nao soda historia da vila e depois cidade de Sao Pau-
lo, como de toda a colonia portuguesa no continente ameri-
cana. Tais conflitos vern de Ionge, tern aver com a uniao da
Igreja com o Estado e se fizeram refletir sobre a paisagem ur-
bana brasileira.
Mais ainda, a maneira como se deu e formalizou a uniao
da Mitra com a Coroa torna-se expressa em muitas das pecu-
liaridades da conformac;ao urbanistica de nossos aglomera-
dos humanos e, particularmente, nas caracteristicas de seus
espac;os publicos. A comparac;ao com o imperio espanhol vi-
zinho, coetaneo e concorrente, mais uma vez se faz U.til e fi-
ca ilustrada de forma cabal pelas fundac;oes urbanas dum e
doutro !ado da linha de Tordesilhas. Enquanto Castela pro-
jetou seu derecho para os demais reinos sob seu jugo e for-
mulou uma imensa e abrangente legislac;ao para suas colOnias
d'alem-mar, Portugal, que muito cedo tratara de definir suas
proprias "ordenac;oes do reino", adotou-as, como regra ge-
ral, no ultramar. A relac;ao Estado-Igreja e objeto do primei-
ro livro dos nove que compoem a Recopilaci6n de /eyes de
los reynos de lndias... espanhola, enquanto apenas vai sen-
do regulada ao Iongo das "ordenac;6es" e atraves de dezeno-
ve concordatas entre a monarquia lusa e o papado.
Dessas concordias, o primeiro artigo da de 1578 foi o
(mica que sobreviveu as diversas alterac;6es da legislac;ao lu-
sitana e a progressiva secularizac;ao das normas legais em to-
do o mundo, como ressalta Candido Mendes de Almeida em
seu Codigo philipino (p. 426). A tal artigo retornaremos, pois
diz respeito diretamente a questao do espac;o publico; porem
as outras concordatas, por via indireta, importam igualmen-
te para 0 espac;o da cidade, sobretudo as atinentes a imuni-
dade, a preeminencia e a simbologia ecoam sobre o cenario
urbano. Para o historiador portugues Gama Barros, o direito
que regulava as relac;6es entre a Igreja e o Estado continuava
no fim do seculo xv a ser "incerto ou mal definido" (Olivei-
ra, p.l43). Busquemos nesta incerteza e indefinic;ao, aliada
a forte presenc;a da Igreja, respaldo para a compreensao de
incertas e mal-definidas linhas de nossas povoac;6es e, assim,
21
13. conhecer urnpouc~ mais de sua inquestionavellogica propria.
. . Porque _e prectso ter presente que, por via da legislac;ao
ctvtl e das dtversas e circunstanciais concordias com 0 Vati-
cano, os canones ou as regras do direito eclesiastico tambem
presidir.~m a vida nos primeiros seculos de nossa evoluc;ao.
Consequentemente, tambem se irnpuseram, ainda que de for-
ma nern sempre flagrante, na configurac;ao ou no delineamen-
to de nossas _c~ncentrac;oes humanas e de seus espac;os co-
muns. Sem_d_nvtda aquelas e estes nao surgiram ao deus-dari;
pel? contrano, foram dados e expressoes igualrnente dos ri-
tuats e dum culto determinado, oficializado e legitimante dos
poderes t,~mpo~ais_. ~ernbra o padre Miguel de Oliveira (p.
17~) que as lets ctvts reconheciarn o direito canonico e ate
o tmharn como subsidiario". E este veio reformado e clarifi-
cado pelas orientac;oes do Concilio de Trento para estas ban-
das da America. Veio, portanto, cunhado pela Contra-
R_eforrna de uma Igrej~ que pretendia a universalidade, po-
rem tolerava as pecultandades existentes.
Est:s _duas juri~~ic;oes, que conviviam e presidiam a vida
das colon:as europetas, se refletirarn na organizac;ao espacial
de seus nu_cl~os urbanos. As amplas prerrogativas concedi-
das pela ~~na _R?mana aos rnonarcas ibericos para a irnensa
tarefa mtsstonana _ern outros continentes reforc;;aram 0 pa-
droado real, ou seJa, o poder dos reis espanhol e portugues
como chefes das respectivas Igrejas. Sob o manto real, entre-
tanto, tentavam se acomodar o brac;;o eclesiastico e 0 secu-
l~r. Ta.l ac~rnodac;ao nao era facil na pratica como na institu-
c:onaltzac;ao. E esta variou segundo as necessidades, as tradi-
c;;oes e os pendores dos dois estados peninsulares. Regulamen-
tando su~ gerencia colonial, a Espanha elabora ao Iongo de
pou:~s decadas uma vasta legislac;ao especifica, mais tarde
c~dtftcada como Recopilaci6n de teyes de los reynos de fn-
dt~,.que, co~ poucas alterac;oes (Mundigo e Crouch, p. 267),
vat ~~gor~ ate a independencia de suas colonias. Pois nesta
c?~tftcac;ao a coordenac;ao dos dois brac;os do poder - 0 es-
pmtual e o ~emporal - merece a primeira parte, todo o li-
vro I, e segmdas recorrencias e detalharnentos, como nos li-
vros III e IX. Como que desdobrando o esforc;o de estruturar
sua recente he~emonia no Estado espanhol, Castela clarifica
as normas e ObJetivos coloniais e, de saida, a convivencia en-
tre clerigos e colonos.
_ Estad.o ~ai~ a~tigo e homogeneo, Portugal projeta tarn-
be:n; suas mstttmc;oes para as colonias, porem de forma auto-
mattca e, portanto, diferente. Oferece suas ordenac;oes, pre-
22
cocernente (Almeida) cornpiladas como as Ordenac;oes Afon-
sinas, rnais tarde revistas como Manuelinas e depois Filipi-
nas. Ordenac;oes do reino que serao aplicadas acolonia ame-
ricana de forma casuistica e atravessarao a independencia, a
rnonarquia e atingirao a republica, o seculo xx (Lima, 1954).
Casuisticarnente tarnbern se sucederarn e continuarao a se su-
ceder os acertos de Sua Majestade Fidellssirna corn o bispo
de Rorna - a sequencia das dezenove concordias estabeleci-
das e seu conteudo o confirrnarn. ·
Estas duas forrnas de institucionalizac;ao das relac;oes en-
tre Igreja e Estado resultararn ern rnaneiras diferentes de dis-
por as respectivas referencias nos assentamentos coloniais es-
panhois e portugueses. E, dado que tais referencias eram as
pr6prias insignias do poder metropolitano, toda a disposic;ao
fisica das novas povoac;oes ganhou trac;os distintos e pecu-
liares. Ambas as forrnas de ordenar espacialmente os instru-
mentos de controle social revelam - e as excec;oes num ca-
so e outro acentuam - a existencia duma logica. Mas urna
logica propria em cada urna. Egrande o paralelisrno da ern-
presa colonial, de seu pretexto espiritual, das tradic;oes cul-
turais e institucionais (Rarna, p. 38); e distinta, contudo, a con-
vivencia formalizada entre o brac;o espiritual e o brac;o tem-
poral de cada Coroa. Esta convivencia diferente se express_a
do ponto de vista urbanistico logicarnente de uma deterrnt-
nada forma ern cada caso.
Nao se trata de haver planejamento num caso, o espa-
nhol, ao contririo do outro, o portugues. Ja se observou -
Sergio Buarque de Hollanda e tantos mais - que se trata de
projetos coloniais distintos, filhos de necessidades e aspira-
c;oes peculiares, mas destas fluem para o desenho urbano, com
que se cornec;ou a moldar uma nova paisagem humana, prin-
cipalrnente nas Americas, opc;oes fundamentals de ordem so-
cial, politica e econornica que dizern respeito adistribuic;ao
das novas terras, ao convivio das terras distribuidas com as
da Coroa ou das comunidades municipais, aconcorrencia efi-
caz dos instrurnentos oficiais de poder. Este ultimo aspecto,
que nao e 0 unico e nem 0 prirnacial, foi no entanto impor-
tante e se fez plasmar de rnaneira mais flagrante na confor-
rnac;ao dos estabelecimentos coloniais. Tao flagrante que se
nos passa despercebido como corriqueiro e cbvio. Muito tern
a revelar quanta adisposic;;ao urbana de nossos nucleos e, ern
especial, quanto a seus pulrnoes e arterias de todo ti~o, e seus
logradouros coletivos. Vale a pena acornpanhar por tsso a len-
ta secularizac;ao de seu conceito.
23
14. "He. esta povoa(:iio grande, & muyto popuiosa, c das mais
anttga~ do_ Estado do Brasil, & he hoje o Emporio de todas
as ~ts Vtllas da serra, para sima; porque aqui residem as
]ustt~ mayores, Ecclesiasticas, & Seculares, & Governador. "
l_'alvez generosa, a apresenta~ao da ja cidade de Sao Pau-
lo, fetta e~ 1.723 (Santa ~a~ia, v. 10, p.l49), destaca a pre-
sen~a de dtgmdades eclestasttcas, embora nao se contasse ain-
da com urn bispo. Na correic;;ao geral de 21 de novembro de
1646, a ca~ara da vila de Sao Paulo registwu em ata que nao
se consenttsse que prelados e vigarios condenassem Ieigos por
~azerem amor com pagas no sertao "no q uzurpavam mani-
festamte a jurisdisao Reale quebravam as leis de sua mages-
tade co~o longamente se declara na ordenac;;am do livro se-
gundo tttu!o pro § treze''. 0 controle dos costumes, como
se ve era dtsputado entao no planalto de Piratininga reagin-
do o poder civil na defesa de suas prerrogativas. Ai~da que
em tal questao, e te~do de apelar para a legislas;ao do reino.
Quarenta anos depots, a mesma dimara, no ent::>!lto, decide
quanto a ~utra materia capital que o encarregado de cortar
carne ~a v~la tenha ~ois talhos ''hum p~ o secular e outro p~
o ecleztasttco por evttar alguas pendencias e Ruinas" (Acta
v.~, ~· 341~. Ji no seculo xrx, ao verificar estarem muitos d;~
predtos relt~wsos de Sao Paulo desocupados, urn banqueiro
mgles (~adft~ld, 1868, ~· 201) os considera "totalmente des-
proporcwn~ts aos ~;ovaveis anseios da populas;ao na epoca
do seu ergutmento , populac;;ao que, quando de sua passa-
gem, tanto tempo depois, nao tinha o clero em muita estima
na America do Sui.
O~a, t:oden;-se discutir as aspiras;oes e estimas do povo
nos pnmetros seculos de colonizas;ao, porem nao as rigidas
normas institucionais a que estava submetido. E nestas se in-
ci_uem nao so as do brac;;o secular das metropoles como tam-
?em as do espiritual. "As instituis;oes da metropole af foram
t~plant~d.as de.cabo a rabo. Assim, desde a origem, a reli-
gta? catohca fot n? Brasil a religiao do Estado, ou, para ser
mats ~xato, uma let fundamental e constitucional do Estado"
(Burmchon: P: 179). ~'J:?o exposto ate aqui !'~.:.:.tlta que para
estudar o dtretto canoruco americana e necessaria conside-
r~ a.legislas;ao.civil. N~nhum de nossos canonistas pode pres-
cmdtr do C6dtgo de Indias" (Hoyos, p. 58).
As observac;oes destes dois eruditos membros do clero
de nosso secul~ a~udam a frisar de forma concisa a presenc;a
de normas canomcas e sua imbrica(,;ao com as civis no con-
24
trole da vida pregressa de nosso continent:, pais e _?o caso
paulistano considerado. Essas normas ou ca~o~es tern_uma
longa historia e sofrem uma profunda rea~ah_ac;;ao no sec~lo
xvr, durante o esforc;o de reac;ao da Igrep a Reforma. ~
Concilio de Trento, que se poderia chamar d_e a grande let
organica da catolicidade" (Pradt, p. 240), ser~ portanto de-
cisivo na regulamenta(,;aO da vida ibero-amencana. .
Como sera tambem para a vida urbana do contmente.
Lembra Richard M. Morse (Bethell, v. 2, p. 70) que, no fim
da Idade Media, o ideal de cidade iberica assentava e~ fon-
tes clissicas e cristas, que vinham sendo fundidas e remter-
pretadas. E que e preciso colocar essa "idea ofa city" numa
relac;ao dialetica com as condis;oes de vida no Novo Mt~ndo .
Morse esta considerando os meios de compreender a ctdade
hispano-americana e nos apontando rumos para o enten~i
mento da luso-americana tambem, se nao perdermos de vts-
ta uma outra tradic;ao - a portuguesa - , outras c~ndic;oes
_as do oriente da linha de Tordesilhas - , e as d1ferentes
aplicac;oes do recomendado no grande concilio da Contra-
Reforma entre 1546 e 1563. Quanto aconquista espanhola,
]osep Ba~nadas considera provado ~~e o C~ncflio d~ T~ento
teve urn papel que se mostrou dectstvo, dueta ou t.ndtreta-
mente. Conquanto nenhuma deliberac;ao ad_otada vtsa~se as
condic;oes americanas, seu espirito e percepttvel na Igrep en-
tao organizada nas colonias espanholas (apud Bethell, v. ~ ·
p. 516). E observa que "o Condlio de Trento merece o cre-
dito pela tradic;ao conciliar e sinodal que se desenv_~lveu na
America" (p. 517), com a realizac;ao de ooze concthos pro-
vinciais entre 1551 e 1629 e de 25 sinodos entre 1555 e 1631.
Se adicionarmos a estes os dados relativos afundac;ao de dio-
ceses, temos 31 para o primeiro seculo, e~quanto apenas urn
no Brasil. ,
Apresenc;a episcopal ou a do clero secu:ar foi muito d~s
tinta entre nos, e isto parece merecer mats nossa atenc;ao
quando analisamos nossa ~rdenac;a?_ur.bana. "0 bisp~ set?~~
nou a pedra angular da vtda eclestasttca em .cada d10c~s.e
(p. 516). Isto no imperio espanhol. Como se ftca na Amen~a
portuguesa? A presenc;;a das ordens relig~osas se fazia senttr
talvez ainda mais, como aponta o propno Barnadas quanto
aos beneditinos no Brasil, com urn significativo trabalho cul-
tural educacional e pastoral (p. 520). Ja em pleno seculo
xvm,' a expulsao dos jesuitas provoca quatro condlios em ter-
ras coloniais espanholas. Nas portuguesas, em que a expul-
sao foi anterior, quantos? Hi diferenc;as significativas na or-
25
15. ganiz~<;~o- nao so do Estado como da Igreja das duas metro-
poles ~bencas, ~m suas provaveis conseqiiencias no dominio
colontal e, parttcularmente, num de seus instrumentos maio-
res (Rama, p. 23-30) que foram os niicleos urbanos. E ai ain-
da_assim,_e_preciso ~onsiderar as normas codiflcadas e~isco
pats, dect?tdas em smodos especiJicos, para perseguir sua in-
terferencta sabre a organizac;ao tambem do espac;o urbana.
, Percorrendo algumas dessas sinodais do mundo portu-
gues, c?nst~ta-se um grande esfor<;o de adaptac;ao as novas
determmac;oes do _c~n~ilio de Trento para os fins dos qui-
nhentos. As ConstttUzf(oes synodaes do bispado de Coimbra
de 1591 sao feitas "para se adaptar a tais normas e moder-
~os pontifi~es''. Seu titulo 21 diz como se devem fundar igre-
Jas e mostetros, e nao tern equivalente nas coetaneas mas re-
pete com outra linguagem, no 27, o cuidado com a~ imuni-
dades da ~greja, capital na convivencia com o poder tempo-
ral e prectoso para se compreenderem determinadas facetas
de nosso meio urbana. No pr6logo das Constituif(6es do his-
pad? do Funchal se pedem desculpas par terem sido fcitas
tardt~~~te, e~ 1597, para atender ao "Sagrado Concilio Tri-
de~ttno . Elas mcluem entre seus titulos a questao da vene-
~a~ao da Sa~ta Cruz, das festas e imagens, das procissoes, que
mteressam a vida urbana e que marcam seu cenario brasilei-
ro. Ao bispado de Funchal, lembre-se, pertenceu o Brasil en-
tre 1514 e 1551 , antes pais dessas renovac;oes da Contra-
Reforma. Hi que considerar, entretanto, os costumes neste
e nos outros bispados portugueses, do reino e de seu ultra-
mar, para avaliar sua modernizac;ao, os pontos comuns e as
provaveis sem~lhanc;as com as normas adotadas aqui, ate mes-
m?por an~logta e em decorrencia das principais dioceses do
remo. Da tmportantissima questao das imunidades decorre
o direito de asilo, no qual vamos nos deter oportunamente
por se~ ca~ater ~itidamente espaciaL Alem dos pontos relati-
vo~ a ntuats e stmbolos litiirgicos, destaque-se a localizac;ao
est~pulada para edificios religiosos como influencias signifi-
cattvas para o uso e a disposic;ao das vias urbanas (Andrade,
p. 86-90).
A crucial questao das imunidades da Igreja se apresen-
tou por_roda pa:te e ao Iongo dos seculos. Mais perto e na
mesma epoca, sao abundantes as tens6es nas colonias espa-
nholas; Uma representac;ao do bispo de Chiapa, o famoso Bar-
Lolomc de las Casas, <::m 1545, a "Audiencia de los Confines"
c.:~l_re varia:' s~licita<;oes_ c?rajosas como a de que passem 0~
d•z•mados mdtos para o Jmzo eclesiastico, enquanto pede "el
26
auxilio del brazo real" para agir contra delinqiientes "as! se-
glares como eclesiasticos'', traz queixa de infcio ''porque mi
iglesia esta opresa y mi jurisdicion eclesiastica empedida y
ocupada" (Colleccion, v. 1 p. 173). 0 arcebispo mexicano
manda carta ao imperador em 1555, aprovada pelo concilio
do Mexico, suplicando que determine as varias autoridades
civis coloniais para "que favorescan y acaten a los Prelados
de las iglesias y a los Ministros dellas" (p. 109).
0 mesmo arcebispo, urn ana depois, escreve ao " Con-
ccjo Real" sabre problemas entre clerigos e religiosos, ou se-
ja, no proprio seio da Igreja, o clero secular e as ordens reli-
giosas disputam o predominio nas novas terras. Nesta carta
hi referencias aexperiencia do recem-tomado reino de Gra-
nada, o que sugere urn paralelo entre o amplo ordenamento
colonial, que se delineava nesscs anos, e o esfon;o de unifi-
ca~ao da Espanha recem-concluido. Tal paralelo ji foi levan-
tado para tentar explicar seu urbanismo colonial (Smith, 1955)
que fazia parte explicita daquele ordenamento. Ora, tal ex-
periencia espedfica deve ter valido tambem para as colonias
em materia tao importante como o relacionamento
Estado-Igreja.
E na America portuguesa? ]a vimos que a estruturac;ao
da propria Igreja foi diferente; seu lado secular mais fraco e
as ordens religiosas mais fortes , como alias nossa paisagem
construfda colonial atesta. Comparem-se nossas matrizes e ses
com igrejas e capelas de religiosos ou d<:: confrarias; compare-
se aquelas com as congeneres hispano-americanas. A corro-
borar isso e a afirma<;ao de Eduardo Hoonaert de que no Brasil
a organizac;ao das dioceses e paroquias foi lenta e sua influen-
cia minima (Bethell, v. 1, p. 550), esta, do outro lado do mun-
do portugues, o fato de que a diocese de Macau permaneceu
vaga a maior parte dos seiscentos (Boxer, 1942, p. 29). ~sta
situac;ao, no seio do bra<;o espiritual do poder metropohta-
no, por certo nao deixava de estar ligada tambem ao convf-
vio com seu bra<;o temporal. Para o jesuita frances que nos
visita neste seculo (Burnichon, p. 180): "0 padroado portu-
gues, menos definido que urn texto concordatario, devia mes-
mo facilitar mais os avan<;os do poder civil sabre o dominio
eclesiastico". Assim, neste dificil casamento das instituic;oes
mundanas e sacras da metropole deve residir muita informa-
c;ao sabre nossa vida e paisagem urbana peculiar, mormente
quando comparadas com as das colonias vizinhas. Prec~os~
documento para se fazer essa incursao e essa comparac;ao e
27
16. urn texto primoroso que nos governou ate ha pouco tempo
no espiritual, ou seja, as Constituiroens primeyras do arce-
bispado da Bahia.
"... fizemos, & ordenamos novas Constituif6ens, & Regimen-
to do nosso Auditorio, & dos O.fficiaes de nossajustifa, por
ser muyto necessariapam boa expedifao dos negocios, & de-
cisao das causas, que nelle se houverem de tratar, conjerindo-
as compessoas doutas em sciencia, & versadas na practica
do foro, & governo Ecclesiastico. "
Assim D. Sebastiao Monteiro da Vide, quarto arcebispo
da Bahia e, portanto, a autoridade maxima do clero nas ter-
ras luso-americanas, apresenta a codificac;ao extensa, abran-
gente e cuidada que mandou fazer em 1707. "A obra era su-
perior ao tempo (por isso se projetou no tempo). Como as
Ordenaroes do Reino, dividem-se as Constituic;oes Primeiras
em cinco livros" (Calmon, 1970, v. 1, p. 63). E duraram, com
algumas alterac;oes, duzentos anos. Essas normas para reger
em varios aspectos a vida da Igreja na colonia portuguesa sao
relativamente tardias e efetivamente as primeiras a serem pu-
blicadas, em 1719. Outras existiram, como as do quarto bis-
po da Bahia, feitas em 1605, que "como se nao imprimiC:io,
andavao viciadas, e se nao tinhao posto em observancia, e
por esta causa estavao esquecidas, e quasi derogadas'' (Cons-
titui~oens, p. 511). Pertencera o Brasil ao bispado de Fun-
chal antes da cria~ao do da Bahia, em 15'51, mas era tao inci-
picnte o povoamento que, para o que aqui interessa - a con-
figurac;ao urbana - pouca influencia poderiam ter tido as si-
nodais da ilha da Madeira. Apesar disso, vale lembrar que es-
ta e outras dioceses da metr6pole, das ilhas adjacentes e das
outras colonias, como em todo o mundo cat6lico, sofreram
a partir de entao urn vasto processo de ajuste as determina-
c;oes do Concilio de Trento, adaptando suas normas regio-
nais pelo fim dos quinhentos. Para tal, reuniu-se em Lisboa
o Slnodo de 1567, do qual provieram as novas sinodais lusas.
Entre as diversas licenc;as civis e religiosas que autorizam
a edic;ao das Constituiroens primeyras do arcebispado da
Bahia, o "Protesto do Procurador da Coroa" sentencia: " nao
consinto, nem approvo nenhuma determinac;ao, que nestas
Constitui<;oes se ache offensiva da Jurisdixc;ao Real. .. para que
sempre fique salvo, & illeso o direyto da Coroa, assim como
era, & cstava antes destas Constituil;oens...'' A de numero 641
do titulo 1, por sinal e de sua parte, determina que se cuide
''da jurisdi~ao, liberdade, & immunidade Ecclesiastica... mas
28
Frontispicio da primeira edic,:ao de 1719 (Bib!. M. M. cle A.).
PRiitfEI'i~A.S c;:ON STlTUI<;.:6E S
D o A!'ccbtspado. da B<1hia
c or,lonrrda.r p do .'7/:"'' c r/{;'."' ../:·"·0 . ,!CI)(ls/iaa . ,ffnntci ro
.',;. Ai-c:chi.spo da l3ah.in,rlo Conscllw cf,. J~ .A•l';9''s·tadc .
17. de tal.m~d~ '!ue nao usurpem, nem impidao em cousa algu-
ma a JU1'1Sdt~ao secular, antes no que for possivel & licito
a ajudem' '. Convivio dificil; nao foi facil. '
De fato, em 1722, o governador Meneses pede um pre-
lado para controlar os eclesiasticos que vivem no maior es-
candalo, "fazendo continuam~ ludibrio do bra~o secular"
(~o~u_men~os, v. 32, p. 37). Em 1729, o rei sente que sua ju-
nsdtc;ao fot usurpada e censura o vigario condenando-o por
ter agido contra o carcereiro "q' tenha entendido, q' se co-
meter outro semelhante excesso uzarei com elle do meu real
poder'', em resposta a uma representac;ao dos oficiais da ca.-
mara de Sao Paulo (v. 18, p. 269). Dois anos mais tarde 0
rei escreveu ao governador Pimentel para que nao concede~se
sesmarias aos clerigos e religiosos ''porque sao izentos do vas-
so castigo" (v. 24, p. 65). Muito tempo depois, o governa-
dor morgado de Mateus escreveu ao bispo da entao ji cida-
d~, dia~~e de conflitos de limites territoriais com a regiao das
mmas, pela parte que toea o interesse do seo Bispado quei-
ra V. Ex., cooperar junto comigo e prestar os seos bons Offi-
cios para que S. Magestade atendendo ao socego de huma e
outra Jurisdi~ao Ecclesiastica e secular queira tamar a rezo-
lu~ao" (v. 12, p. 200), em 1772. Apesar dessas situac;oes con-
flitivas, ainda em 1761, ao dar coma do progresso do arraial
de Sao ]oao de Atibaia, a edilidade paulistana afirma haver
al~ '_'Igreja Parochial provida com abup.dancia para o Culto
Dtvm~, Baze fm~damental das Povoac;oes" (v. 34, p. 157).
D. Jose I determmou, em 1775, que se erigissem vilas con-
gregando os disperses ''para morarem Civil mente, ministran-
docelhes os Sacramentos" (v. 4, p. 113). Ja em 1796, no fim
dos setecentos, Maria I solicita varias informa~oes sabre a ca-
pitania e "u~a relac;ao muito circunstanciada de tudo o q'
os Povos pagao nessa Capitania, seja p~ a Igreja, e Culto Pu-
blico da mesma, seja p~ as Despezas administrativas de cada
Iugar" (v. 25, p. 163).
Neste quadro institucional, em que o espiritual tinha tais
prerrogativas, o brac;o secular tambem esbarrava em limita-
c;oes no que tange aos neg6cios especificamente urbanisticos.
0 titulo 8 das Constitui~6es primeiras do arcebispado da
Bahia contem a 659, que reza: "E quando houver para obras
publica~, cujo uso he commum aos Clerigos, & aos leygos,
como sao fontes, pontes, repara~ao dos muros, & das ruas,
& lugares em que vivem, ou concorrer outra causa publica,
a que seja justa acudirem tambem os Clerigos' ', que se recor-
resse ao arcebispo ou ao proprio pontffice para que os ecle-
30
..i:ist icos concorressem "a remediar as taes necessidades pu-
hlicas, sem serem fintados, nem tributados por secul~r:s, con-
Ira a prohibic;ao dos Sagrados Canones''. As co?stltmc;oe~ ~83
c <>84, respectivamente, por outro lado, pro~bem a edtf~~a
c,;:IO ou reedificac;ao e a entrada em uso sem hc.enc;a eclestas-
1ica de qualquer igreja, ermida, capel~, ~osteJro, ~~nvento
ou colcgio. Ora, enquanto se torna dtfictl e no mmtmo de-
Ill<>rado o concurso dos membros do clero para ~~n~ as obr~s
p(1blicas, depende-se da diocese - e de seus cntenos e e_xt-
gcncias pr6prias - para o estabelecimento .cl~ const~uc;oes
qu{;, por seculos, serao OS principais refere~cta~ da patsagem
mbana. Basta considerar a questao da locahza~ao destes mar-
' os... Em meados de seu governo, o morgado de Mateus es-
t IT~e ao paroco do Iguatemi para que cesse de taxar os.~o
radores da nova povoac;ao (Documentos, v. 6, p . 190): An-
It'S q'as cousas cheguem a mayor clamor e que p~ssa re~ultar
('lllre os Povos algum excesso..." . Excesso de tnbutac;ao ou
1-ravame na freguesia recem-criada por petic;a~ d.o~ morad.o-
ITS " para a poderem erigir na forma da ~~n.stttm~.ao do,~ts
pado", e que mereceu deferimento do vtgano capitular pa-
ra poderem erigir Igreja na forma expressada, em Iugar de-
tTnte e na forma da constituic;ao" (p. 153), em 1 77~.
As imposic;oes variadas, reunidas e ordenad~s no smodo
,1c Salvador, em 1707, consusbstanciaram urn u;strumento
, :monico primoroso de tal forma que, para o conego Ilde-
lonso Xavier Ferreira (Constituic;oes, p. V), "po~:as..obra~ ,
,·m seu genera, tern sido escriptas com tanta erudtc;ao . A dt-
' l'l'sidade dos temas abordados e disciplinados portal texto,
de outra parte, atingiu em distintos aspectos o panorama ur-
llano e ate mesmo, a realidacle de seus espac;os comuns. Co-
mo se 'viu, a existencia do foro privilegiado para_o ~lero
~omava-se ainda sua prerrogativa de conceder ou nao hcen-
c,;a para o erguimento e a freqiiencia dos templos de toda es-
pccie. Como estes constitufam o ponto alto dum: rua, du~
.,ctor, representavam a casa comum de congregac;?es.d~.re~t
)-liosos ou de irmandades de leigos ou eram a propna, ma-
lriz" duma freguesia ou par6quia, torna-se compr~enstAvel_a
lnfluencia que tiveram sabre o tccido ur~ano - mflu~ncta
dos criterios para a concessao de determmada categona ao
povoaclo, para a localizac;ao das capelas, igrejas~ e ~lausuras,
para definir a orientac;ao dos te~plo~ ea. abrangencta de se~s
.1dros. Somente estes aspectos tmphcanam um fort.e conclt-
t ionamento do espa~o urbano, porem outros constderados
pdas sinodais da Bahia tambem condicionariam o uso eo tra-
3 1
18. to de nossas ruas e largos. Foi o caso do estrito controle so-
bre as datas, os horarios, a dura~ao e as maneiras detalhadas
para se organizarem e fazerem as procissoes, ou do cuidado
revelado com o emprego das imagens dos santos e, sobretu-
do, da cruz. Indiretamente, iniimeras passagens das Consti-
tuit;;oens primeyras do arcebispado da Bahia, das quais nos
deteremos em algumas, igualmente tiveram seu papel por urn
longo periodo. A ideia, o circuito, a utiliza~ao eo tratamen-
to de nosso chao nao puderam escapar a elas. Pode-se bern
imaginar sua demorada ascendencia au·aves da leitura deste
trecho da sua constitui~ao 640, titulo 1, livro IV: ''E assim
esperamos da Augusta, & Catholica Magestade del Rey nosso
Senhor, como Defensor, & Protector que he da Igreja, que
nao s6mente lhe conserve a sua immunidade, como tao ze-
losa, & louvavelmente faz, mas ainda ruanda ver, examinar,
& reformar tudo, o que oeste Estado do Brasil houver contra
ella: & que com Ministros, & Vassallos a nao offendao, an-
tes, como sao obrigados, a estimem, & venerem".
A longa persistencia das normas eclesiasticas em geral fica
bern ilustrada pelos Estatutos da santa igreja cathedral e ca-
pella real do Rio dejaneiro, publicados em 1811. Conside-
rando que os antigos estatutos da cateclral, agora estabeleci-
da na igreja do Carmo e servindo acone, eram de 1733, que
se os respeitasse " acommodando-os quanto fosse possivel nas
actuaes circunstancias com os costumes, ~ estilos cla Igreja
patriarchal de Lisboa" (p. 6). Certa questao "determinada pe-
los antigos Canones da Igreja, e ultimamente confirmada, e
vindicada pelo Sacrosanto Concilio tridentino" (p. 40)! Tais
estatutos, adaptados em circunstancias tao especiais, foram
aprovados pelo "Alvara com for~a de Lei" de 27 de setem-
bro de 1810. Esta persistencia e for~a legal das normas ecle-
siasticas se revela tambem no caso das pr6prias constitui~oes
da Bahia, ja entao com mais de 150 anos, em pleno ambito
municipal. No artigo primeiro de resolu~ao de 1836 propos-
ta pela camara paulistana, 0 toque dos sinos devido aos de-
funtos sera feito segundo "a parte dos §§ 828 do Tit. 48 Liv.
4~ da Constitui<;ao do Arcebispado da Bahia a baixo trans-
cripto", sob pena de multa e prisao para o "sachristao, the-
soureiro, ou sineiro das Igrejas d'este municipio, ou qualquer
outra pessoa a cujo cargo estiverem os Sinos" (Colle<;ao). Po-
rem os tempos sao outros e outras as exigencias da vida. As-
sim como na Proposta de C6digo de Posturas da Camara Mu-
nicipal da Imperial Cidade de Sao Paulo, de 1862, os mes-
mos paragrafos 828 e 829 "devem ser religiosamente cum-
32
hm 1707 n:t cidade de Salvador, sao definidas em concilio sinodal pro~ovi
do pelo ilustrado o. SebastHio Mont.eiro da Vide as Con;tituico_ens Prtr;':ey-
rtts do arcebispado da Bahia, publicadas em 17_19. Alem de consutuuem
a carta basica eclesial de quase todo o Brasil da epoca, constderavam a ex-
pcriencia anterior, calcada tamb~~ nas ~ormas canOnic~s; ,nos usos e cos_tu·
mes da Igreja em Portugal e de esta tao dtvers_a R~gtao . Exerceram sob
inCm1eros aspectos influencia sobre a conforma<;ao cttadma e ~obre a dtspo-
'i<;ao de suas areas coletivas, como nos sugeriu m~ns.et~horJat~tl N_asstfAbtb.
lnlluencia menos direta ou mais, como ada consutut<;ao de numcw 683 que
proihia edificar ou reedificar igrejas, casas religiosas ou colegios sem a devt-
da licen<;a episcopal.
19. pridos sob apena menci~nada'' (um real e um dia de prisao).
Trat~-se do ~ttulo 18, arttgo 70, sabre o repicar sinos por mais
de cmco mmutos, salvo nas solenidades da se.
''!o_u~prit~_il~ge portant exemption ou attribution de la ju-
rzdzctzon epzscopale est aboli. "
A concordata do ano IX, estabelecida entre a republica
francesa eo l?a?ado, foi drastica com a imunidade da Igreja
e com a tradtc;ao_ do foro especial do clero. Outros artigos
r~vogava~. tambem costumes e procedimemos que interfe-
nam ~radtciOnalmente na vida das concemrac;oes urbanas e,
e~pe~talmente, de seus espac;os coletivos. Apesar da perma-
nencta _das normas eclesiasticas entre n6s e de seu peso so-
b_re ~ _v1d~ do novo_pais, a independencia trouxe mudanc;as
stgmftcattvas tambem para os aspectos eminentemente cita-
dinos. Toda a laicizac;ao ocorrida na Europa, durante o secu-
lo das luzes, nao podia deixar de se fazer sentir, assim como
os reflexos da revoluc;ao francesa em todo o mundo e parti-
cularmente no portugues, tao peculiarmente atingido com a
transferencia da corte para uma sua colOnia.
. "~ perda do foro, privilegio, que data da mais remota
anttgutdade, e que sempre foi garantido ao Clero, como man-
tenedor da sua dignidade, e da considerac;ao, com que os po-
vo~ o~ devem olhar, tambem nao contribuio pouco para o
amqmlamento da Ordem Sacerdotal. Oh! se os altos Poderes
~o Estad~'' ~Ca~t~, p. II) pudessem ao tempo da regencia ava-
h~r o suttl Stgmftcado dessa transformac;ao para a configura-
c;ao de no.ss_as cidades. Sutil apenas, porque, como se viu, ou-
tras cond~c~onantes permaneciam de pe. 0 responsavel pela
quarta edt<;ao das Constitui~oes da Bahia, o conego preben-
?a~o.e lente .?e teologia dogmatica, um regalista, comenta
a pagma 159 .qu~ acabando com os Privilegios, e reduzindo
o Foro Ecc~est~sttco a casas meramente espirituaes, nao p6-
d~m ter mats v1gor entre n6s as disposic;oes do Direito Cano-
mco na p~rte temporal". Caem os poderes para impor mul-
t~s, fazer Julgamentos e muitas outras prerrogativas do clero
ftcando restrita_a ac;ao da Igreja praticamente aos usos e, por~
tanto, a determmados evemos que interessam acena urbana.
Ildefonso Xavier Ferreira lembra que ''ja na epocha da In-
del?ende~cia Brasileira, innumeraveis de suas disposic;oes ti-
~a~ caht?? em desuso. Apenas porem appareceo a Consti-
tmc;ao Pohttca do Imperio muitas caducarao nao obstante se-
rem fundadas em Direito Canonico" (p.v). E que duas linhas
34
U FA ~
;_;:;DUOTE.CA CENTRAL
do C6digo do Processo, de 1832, aboliram o privileg~o d_o
foro (p. vi), o que eliminou a imunidade dos adros de •?reJa
c, conseqiientemente, alterou a jurisdic;ao de incontavets lo-
gradouros.
Ja em 1789, o capitao Watkin Tench (p. 12) percebe que
o poder da Igreja comec;a a ser abalado nas co!onias. Logo
ap6s a independencia, Schlichthorst (p. 108), aftrmando que
a religiao cat6lica e a oficial do imperio diz ~uc as ''outras
sao simplesmente toleradas" . Em meados do sec~lo passad~,
0 jurista Jose Carlos Rodrigues, consideran_do na? ser poss_t-
vel que a " Constituic;ao do Brasil, o qual ~m_ha stdo c_oloma
de Portugal ... deixasse de consagrar a rehgtao cathohca co-
mo a do Estado; mas o legislador constituinte, reconhecen-
do como uma medida politica de alta conveniencia, a tole-
rancia religiosa; reconhecendo mesmo a tendencia do secu-
lo para essa tolerancia" nao desconheccu " que o Imperio pre-
cisa, sabre tudo depois da cxtin<;ao do trafico de escravos,
de colonos" (p. 9). No fim da monarquia, o depoimento dum
americana, entre tantos outros semelhantes, e de que " a li-
herdade de credo esta expressa na Constitui<;ao, e existe na
pratica nas principais cidades" (Andre;':'s, p. 5~)-_Na mesma
epoca, diz Louis Couty (1884, p. 407): 0 Brastl e tolerante,
tolerante em religiao ...''. E que, apesar de serem poucos os
cremes e praticamente faltarem os faniticos , "a importanci_a
das ideias ou dos homens da Igreja tem permaneodo const-
deravel ate estes ultimos tempos" (Couty, 1881, p . 75). 0 re-
gistro no diario do segundo Imperador de sua chegada em
Salvador o confirma, no que tange aos aspectos protocola-
res e simb6licos: " Havia muito entusiasmo no desembarque
e o arcebispo esperava-mc, dando-me o crucifixo a beijar pou-
co adiante do Arsenal da Marinha" . Urn " imperium in impe-
rio" para William Hadfield (1854, P: 236) que, mai~ r_arde,
ao recomendar o exemplo de Guzman Blanco aos vtZmhos
da Venezuela, cita o jornal ing_les The Bt·azif and River Pla~e
Mail (1877, p. 244): " o confhto entre IgreJa e Estado conti-
nua indeciso na ultima monarquia sui-americana, assim co-
mo em muitas das republicas circunzinhas" .
As repiiblicas vizinhas, evcrdade, conquanto repiiblicas,
nem sempre separaram a Igreja do Estado ou deixaram de ofi-
cializar o catolicismo. A pro pria " acta de independencia de
Centro America, firmada en la ciudad de Guatemala el 15 de
septiembre de 1821" , estipula que " Ia Religion catolica, q.
hemos profesado en los siglos anteriores, y profesaremos en
lo successive, se conserve pura c inalterable.. ." . Depois, um
35
20. P!O!eto_de conc~rdata do Mexico com o papado preve a ofi-
ctahzac;;ao, que fmda apenas por emenda constitucional em
1857. Na segunda metade do seculo XIX, impressiona o nu-
m~ro de paises que ainda aliam o Estado aIgreja- as repu-
bhcas c~ntro-ameri~anas, o Peru eo Equador, o Uruguai e
a Argentm~ - ou cuJas cartas maiores ainda ostentam expres-
sas exclusoes de outras profissoes de fe ou cultos piiblicos
co~o n.os ca~os do Chile e da Venezuela. Impressionam pela
mawr hberahdade ou independencia uns poucos paises co-
mo o Haiti e a Colombia (Heredia). Isto no continente, por-
que no Velho Mundo as coisas nao se passam muito diferen-
teme.nte. Para ilustrar, o Congresso de Viena em 1815 que,
constderando o caso especial da cidade de Cracovia, man-
tern a religiao catolica e considera livres todos os cultos cris-
taos (Actes, p. 126); os casos das monarquias ibericas em que
tal religiao e a do Estado, sendo que, enquanto a c~nstitui
<;;ao portuguesa de 1826 tern os mesmos termos que a nossa
d~ 1824, a de 1 ~22, depois de estabelecer a " Religiao daNa-
<;;ao Portuguesa , reza em seu titulo 2, artigo 25: "Permitta-
se contudo aos extrangeiros o exercicio particular de seus res-
pectivos cultos"; o caso do imperio russo em que a religiao
ortodoxa ocupa o primeiro Iugar e tem no tzar seu chefe em
cont:aposic;;ao aampla liberdade de culto entao do imp,erio
aust~taco (Heredia). Assim nao estava sozinho o Imperio do
Brasil, nem mal quanto a questao da tolerancia
Estes paralelos e a questao da tolerancia religiosa so ca-
bem aqui por urn motivo muito forte e diretamente relacio-
nad_o com o cenario urbano e com sua freqi.iencia: sea laici-
za<;;ao crescente das leis do novo Estado independente afeta
como se ~er~, a extensao e a definic;;ao do ambito dos logra~
douro~ ~u?ltcos, a forma de tolerancia religiosa prescrita lo-
go no tructo da ConstituifiiO politica do Imperio do Brazil
condiciona seu uso e trato, atraves da exclusividade preser-
vada dos rituais e dos simbolos catolicos a ceu aberto. A reli-
giao o~ic!al fica determinada e a tolerancia propugnada, com
a restn<;;ao de que a paisagem - e portanto a urbana - nao
seja afetada ou denuncie a existencia ou o exercicio de ou-
t~os cultos. Na interpreta<;;ao de 1857 do jurista.Jose Antonio
Ptmenta Bueno (p. 23), tal postura e sabia pois o culto inte-. ,,.... . . '
nor e um acto pnvattvo de sua consciencia; a liberdade desta
e um dos direitos dos mais inviolaveis da humanidade, nem
urn poder politico tern accesso, e menos imperio dentro des-
se sanctuario"; porem, o culto externo "quando nao se trata
rnais somente da liberdade da consciencia e sim da liberdade
36
do culto, entao tern Iugar a intervenc;;ao do legitimo e indis-
putavel direito do poder social". 0 "poder social" determi-
na pois o palco de seu exerdcio, sobretudo a cidade. Qual-
quer religiao sera permitida "em casas para isso destinada~ ,
sem forma alguma exterior de templo' ', declara logo nas pn-
meiras linhas nossa primeira constituic;;ao. Surpreende mes-
mo urn simples dado arquitetonico com tal precedencia so-
bre tantas questoes capitais numa constituic;;ao. Sem duvida,
a religiao e uma delas, se nao for a primeira, pois na forma
de juramenta constitucional do imperador antes de ser acla-
mado, estipulada em seu artigo 103, a religiao precede a tu-
do o mais, qual seja a integridade e indivisibilidade do impe-
rio, as leis da na<;;ao e o bern geral. E o faz de imediato
referindo-se a uma questao de arquitetura!
" Arrigo 179. A inviolabilidade dos direitos civis e politi-
cos dos cidadaos brazileiros... e garantida pela constitui<;;ao
do imperio pela maneira seguinte: ...5? Ninguem pode ser
perseguido por motivo de religiao, uma vez que respeite a
do Estado e nao offenda a moral publica". "Pelo que toea
ao culto externo, quando se torna publico, pode a lei restringi-
lo segundo as considera<;;oes de ordem politica" (p. 397). "E
fora de duvida que o Estado tem direito de exercer sua poli-
cia sobre os cultos", de impedir "que as sociedades religio-
sas se apresentem em forma collectiva, usurpando existen-
cia propria, pretendendo exercer direitos de predicas ou pro-
cissoes publicas" (p. 398). E conclui o jurista: ''Nossa dispo-
sic;;ao constitucional nao so garantio uma justa tolerancia, mas
concedeu a liberdade essencial, o culto nao so domestico, mas
mesmo em edificios apropriados e para isso destinados, nao
devendo somente ter formas exteriores de templos" . Tal aten-
c;;ao para com as aparencias, para com os aspectos exteriores
do " poder social", pode surpreender-nos ou levar-nos ao jul-
gamento de cinismo nao fosse todo o uso que se fez e ainda
se faz de nossos espac;;os urbanos, como se observara adian-
te, ou nao constassem estas seguintes passagens, escritas e pu-
blicadas em tempos de Contra-Reforma no primeiro livro em
portugues editado na America, o Luzeiro evangelico. 0 fra-
de, seu autor, depois de mencionar o dossel que se poe so-
bre a imagem do rei e com que se o honra, defende a mesma
"a<;;ao, ou costume: logo podemos na mesma forma por a Ima-
gem de JESUS Chr. nas Igrejas, que sao OS lugares publicos
destinados para exercitar as fun<;;oes publicas de Religiao: &
ningue que nao seja falto de juizo dira, que se deshore aJ.C.
por isso" (p. 422). Ou, citando Mateus (p. 39): "A Igreja he
37
21. Cidade fabricada sobre o monte, patente a todos: he candea
posta sobre o castif;al, que alumea a todos" .
''La ville ancienne a conserve le cachet colonial ou portu-
gais, qu'on mepermettra de trouverfrancbement abomina-
ble."
Alfred Marc (v. 2, p. 152) prossegue em sua crftica arrasa-
dora do centro velho de Sao Paulo, comparando-o com ou-
tras aglomerac;oes tradicionais nossas que, a seu ver, tambem
atentavam contra "o born gosto, o sentimento estetico, o eli-
rna, o quadro natural". No ano da proclamac;ao dum novo
regime, deseja, "comemplando este desafio lanc;ado ao born
senso por esses rotineiros sem inteligencia", urn cataclisma
qualquer que ''arrasasse radicalmente esses montoes de cons-
truc;;oes insalubres, incomodas, cujo jugo pesa tanto sobre a
higiene das cidades brasileiras..." . Com o advento da repu-
blica - e somente com ele- desfaz-se a uniao da Igreja com
o Estado. A secularizac;ao, iniciada ainda no seculo das luzcs
e tornada palpavel em aspectos importantes na estruturac;ao
jurfdica do imperio, se completa finalmente. Nao havera mais
religiao oficial nem determinados usos cerimoniais que com-
pulsoriamente afetem a vida urbana. Para as questoes da ci-
dade, a alterac;ao sera pouca, apesar da laicizac;ao do Estado
e do carater mais do que laico das ideias e teorias urbanfsti-
cas vindas do hemisferio norte.
AWis, mesmo no plano geral, a pr6pria persistencia de
costumes mantem muito do que era ate entao seguido e pra-
ticado. Eo que percebe o relator da camara dos deputados
franceses (Briand, p. 214-7) que, vasculhando legislac;oes es-
trangeiras em 1905, afirma do Brasil que a teoria separava
a Igreja do Estado; a pratica nao, por sera nac;ao muito cat6-
lica e a republica nao querer ser anticlerical, mas somente de-
sejar estender a liberdac!e de cultos. Entretanto, com a sepa-
rac;ao, algumas materias se impuseram " devastac!oramente"
para Cirne Lima (p. 11), entre elas a laicizac;ao dos cemite-
rios que interessam diretamente i cidade. Tanto que as cons-
tituic;oes federais de 1934 e 1946 restabelecem os cemiterios
eclesiasticos, a par dos municipais, como acrescenta o mes-
mo jurista, alem de outros recuos como a imunidade tributa-
ria para templos, estabelecimentos de ensino e obras pias.
Porem, por alterac;oes que passam a ocorrer no pr6prio
ambito eclesiastico, a mundanizac;ao vai se completar. Aim-
portance convocac;ao do Concilio Plenario Latino-americano
38
• I 4 " 0 ladrilhador eo semeador" de Sergio Buarque de Hollanda
11 t.tpllu o · ' · · ··al no pres-
R - d Brasil p·trece-nos nao apcnas urn marco mtCJ,
'111 ":u aJz es
0
' ' b' bano tradicional como
'outar as caracteristicas ffsicas de nosso :. .'e~~: ~nda tem muito ~ara ser
:·~::~~~~{~=e~~~n~~~~r~~aq:~~~~~~~~it~s~~~~ t~a~os intra-urbanos, ou ar-
. · · de nossos estabelecimemos colomaJs.((lll CIOlllCOS ,
22. em 1899 traz uma serie de inova~oes e extingue a longa vi-
gencia das constitui~oes da Bahia. Trata-se de amplo esfon;o
do Vaticano para a atualizac,;ao das normas e procedimentos
adotados pela Igreja em todo o mundo, ora tao mudado. 0
Concilio Plenario vai dispor de amplos poderes e utiliza-los·
vai influenciar e uniformizar todo o continente. E provoca;
uma serie de concflios plenarios dos bispos brasileiros em que
se destaca o de 1915. Uma serie de pastorais coletivas decor-
rentes divulgam suas decisoes e vern carregadas de novas en-
toques e orientac,;oes que pressupoem urn ambiente ja mun-
danizado.
A pastoral coletiva dos bispos do sul do pais, comuni-
cando o resultado de suas conferencias em 1910, por exem-
plo, no que tange aconstrw;ao de igrejas, mantem em linhas
gerais as normas para sua localizac,;ao relativa, sitio elevado
e terreno desembara~ado. Contudo, a clausula 7~ do mesmo
artigo 30 se mostra significativa. "Nos centros mais populo-
sos, onde seja difficil a acquisic,;ao de terreno apropriado, con-
forme o § 3, a Autoridade Ecclesiastica dispora o que lhe pa-
recer conveniente". Clausula significativa, porque possibili-
ta o ajuste entre o que pretende a Igreja para seus templos
e 0 que e factivel nao tanto em nucleos maiores e mais aden-
sados, mas num pais onde sua personalidade juridica e reco-
nhecida e, em contrapartida, o poder publico esta acima e
fora de qualquer interven~ao. Ou seja, a capela ou igreja se
far~ onde der, onde as diferentes condic,;oes permitirem; nao
mats onde se quiser, onde a tradic,;ao e o recomendado pela
Igreja indicarem. Trata-se dum mundo novo, onde ate mes-
mo a ordenar;;ao prescrita no artigo 666 para as procissoes
s6 tera valor para os fieis praticantes.
. _ Essas mudan~as se podem acompanhar com maior pre-
ctsao e detalhe na Pastoral Coletiva de 1915. Inumeros arti-
gos anunci2m sua ideia sobre as ruas e as prac,;as em que sua
utilizac,;ao ritual nao pode mais ser obrigat6ria, em que seu
circuito esta definitivamente submetido ajurisdi~ao tempo-
ral conquanto se reaja ainda a respeito dos cemiterios, em
que seu tratamento se resume a urn artigo sobre imagens sa-
eras. Essa Pastoral precede a realizac,;ao do Concilio Plenario
Brasileiro e a publicar;;ao do C6digo Canonico em 19 17. Por
sinal, nessa vasta primeira codificac,;ao, de interesse para to..
da a Igreja, notam-se profundas transforma~oes na estrutura
geral, nos titulos e na reda~ao das normas eclesiasticas. Nada
a respeito do sitio, das construc,;oes religiosas, dos adros...
40
leis
A aplica~ao das pr6prias leis do reino em sua colonia aj~dou
a transposic,;ao dum certo tipo de desenho urbana atraves do
Atlantica. Por certo, o costume e uma tradic;ao alicerc,;ada na
idade media estiveram presentes nessa reproduc,;ao de carac-
teristicas urbanisticas tao forte e seguidamente repetidas. Porem
urn quadro legal atinente a questoes basicas e em que se am-
parava o arcabouc;o normativo da cidade foi a causa mais di-
reta desse fenomeno. E, muito especialmente, os reflexos da
uniao Igreja-Estado lusitana. Pois em cada fundac,;ao colonial
entidades do poder civil e do clero se estabeleciam e expres-
savam atraves de suas sedes respectivas uma func;ao particu-
lar e a imagem da metr6pole. Seu concerto configurou a ci-
dade, cada uma representava o que de melhor dispunha. Ora,
enquanto as instituic,;oes eclesiasticas faziam valer seu cunho
de agentes da religiao oficial e se instalavam segundo suas normas
bern formuladas e fiscalizadas, outro era o quadro para as en-
tidades civicas, ainda que do maior prestigio.
Aos efeitos da simples e duradoura transposi~ao para uma
realidade tao diversa, sem adaptac,;oes maiores que as mais 6bvias
e inevitaveis, juntaram-se caracteristicas pr6prias das Orde-
na~oes do Reino, que nao se detiveram muito nas diferentes
menc;oes a problemas municipais e urbanisticos nem as apro-
fundavam em geral. 0 adensamento da vida urbana e a mul-
tiplica~ao de seus nucleos acabaram cobrando outra atenc;ao
e outras posturas. Estas vieram devagar, contudo, e de for-
ma muito preciria. A propria Sao Paulo, conquanto sede de
capitania, depois dum bispado passando de vila a cidade, nao
dispunha e nunca dispos, em toda a fase colonial, dum cadi-
go de posturas. Ainda que com os avanc;os legislativos atinent~s
aadministrac,;ao municipal e talvez devido aos recuos de atn-
bui~ao , ocorridos ambos principalmente a partir de 1828, a
capital paulista s6 conhece uma codifica~ao de suas posturas
nas vesperas da republica. Ficil avaliar as dificuldades d.e for-
mula~ao e de acatamento de seus atos e normas postenores!
"V. A. deve de dar u cuidado destas epresas e obras de Lis-
boa a que as enteda se escasseza e que se preze deltas; f:lSSi
como fezerao os antiguos Imperadores, dando o seu cutda-
do e officio a grades pessoas. "
41
23. Enquamo os instmmentos normativos do "brac;o espiritual"
da monarquia portuguesa foram perdendo sua forc;a, lentamente
tambern foi o ''brac;o temporal'', expressando cada vez mais
a sua atraves de uma ac;ao mais especificada e objetiva, urba-
nisticamente, como sugere o conselho de Francisco de Olan-
da (p. 11) ao rei. Enquanto as normas eclesiasticas, igualmente
validas para regimento da vida dos rein6is e colonos, foram
sendo ultrapassadas pelas normas do poder civil, estas com
muito vagar ou tardiamente foram se definindo e ganhando
efic:icia. Enquanto as determinac;ocs da Igreja cram claras e
categ6ricas sabre alguns temas pr6prios da vida e da paisa-
gem urbana, as imposic;oes das varias instancias do governo
coloniallusitano se mostravam ora tfmidas, ora inexistentcs.
Assim, se era clara o estipulado para se implantar urn templo
ou uma nova casa religiosa, em rela~ao atopografia, aos con-
gcneres preexistentes e ao casario circundante, nao o era o
plano citadino em geral, seu arruamento e sobretudo o par-
cclamento do solo. Das ordenac;oes do "reino", e das medi-
das de car:iter casulstico baixadas atraves de cartas regias, al-
varas e decretos, passou-se diretamente alegisla<;ao imperial,
sem se conhecer por seculos urn c6digo especial para a colonia.
Da convivencia atabalhoada entre as varias esferas de poder, na
corte, no governo-geral ou nas capitanias, nas comarcas ou
nos termos municipais, passou-se a urn vaivem na busca de
definic;oes ap6s a independencia. E mesmo ap6s a republica
estabelecida... Imagine-se como foi sendo o governo das cidades.
As primeiras ordenac;oes do reino portugues foram fei-
tas por Afonso v, no seculo xv, e aproveitadas para as Or-
dena<;oes Manuelinas, em 1521. Arevisao destas, com a con-
tribuic;ao de varios jurisconsultos reconhecidos, como leis
pr6prias do reino de Portugal baixadas em 1603, quando da
uniao com Espanha, consubstancia as Ordenac;oes Filipinas
que acabaram tendo grande durac;ao e alcance. Porque vie-
ram quase ate n6s e em muitos aspectos ate bern entrada o
seculo xx, e o regime republicano, cujo C6digo Civil (nosso
primeiro) data de 1917. Porque foram elas que nos governa-
ram na America e nas mais distantes col6nias africanas ou asia-
ticas de Portugal. Essas ordenac;oes nao ignoram as anteces-
soras nem as Leis Extravagantes ja fartas nas Manuelinas. Se
bern que interessem para questoes relacionadas ainstancia
municipal, nao apresentam muito sobre a ordenac;ao urbana
(Andrade, p. 27). E foram sendo complementadas na pratica
por medidas espedficas baixadas pelo monarca ou em seu no-
me para aplicac;ao no ultramar portugues. Essas cartas-regias
42
24. e decretos visavam normalmente nao mais do que uma cida-
de em foco e, nesta, alguns aspectos gerais. Nao desciam as
me~hore~ i_n~tr~~6es a detalhes que pudessem constranger
muuo a mtctattva da autoridade colonial, regional ou local
executora, nem que nos ajudem a compreender melhor o de-
senho urbano resultante.
~este quadro o que aqui interessa e urn aspecto muito
parctal, mas que parece elucidativo duma ccrta tendencia: a
progressiva seculariza~ao dessas normas e das que depois se
segui;am, ja brasileir~s. Para Paulo F. Santos: "A diferen~a
de metodos do Urbamsmo Colonial portugues em rela~ao ao
espanhol, ~om~~~ pela legisla~ao" (p. 38). Os suportes legais
foram mmto dtstmtos de fato; porem cabe ressaltar urn as-
pecto restri!o e aparentemente secundario em que tal dife-
re?c;~ tambem,s~ denuncia. As questoes de religiao e moral
c:tsta, e de prattcas e convivencias com us eclesiasticos es-
tao em ambos os casas presentes, mas tais cuidados sao dife-
rentemen~~ va~o~izados pelos respectivos corpos de leis. Fi-
ca,_<_:omo Ja fat dtto, _no ~ivro 1 das Leyes de Indias (Recopi-
lactOn), toda a comptla~ao das normas de convivio entre se-
culares e eclesiasticos nas col6nias espanholas. Ficam nao tao
compilad~s as mesmas n01·mas lusas que, repetimos, valerao
para o remo como para seus dominios.
0 que importa isso para o desenhar-se das cidades entre
n6s? Importa muito, pois, se nao havia normas codificadas
e detalhadas para a lei civil atinente a configurac;ao da cida-
de e recebendo esta o impacto perfeitamente normal enUio
de outra l~g~sla~ao- a can6nica --, nao estipulado claramen-
te o convtvto das duas, o resultado deve ter sido bern outro.
O!a o padre Miguel de Oliveira afirma que, com as ordena-
~?~S manuelin~s, ''nao houve mudan~,;a digna de nome; as leis
ctvts reconhectam o direito can6nico e ate o tinham como
su~sidiario" (p ~72). Mas lembra que os documentos ponti-
fictOs para questoes concernentes aos missionarios nao eram
expressos no caso do padroado portugues, sendo-o quamo
ao padroado espanhol. "Atribui-se a diferen~a ao diverso sis-
tema _de coloniza~ao s~guido por Espanha e Portugal" (p 154).
lmagm_e-se nas questoes municipais ou intra-urbanas! "Em-
bora nao apres~ntasse: o ~rasil, instituic;oes locais a aprovei-
tar, _as o:dena~oes reats nao cogitaram explicitamente da or-
g~ntza~ao da :ida civ~l e ~rbana em seu territ6rio; a legisla-
~,;ao metropohtana fot aphcada sem alterac;ocs, completada
contudo, pelas leis ordinarias" (Andrade, p. 33).
. Duas descri~6es quinhentistas constantes do Livro das
czdades, ejortalezas que a Coroa de Portugal tern naspar-
44
tes da India... ilustram bern essa projec;ao do arcabow;o le-
gal reinol no ultramar. Na pr6pria India, quanto a Cochim:
" A qual he da nossa jurisdic;ao, governada pellas leis e orde-
na~,;oes de portugal, como cada hiia das cidades delle" (p. 71).
Quanto a Macau, na China, em que seus moradores "as quaes
posto que a terra seja del Rey sao governados pellas leis e or-
denac;oes deste Reyno de Portugal" (p. 106). " Embora esca-
passe as guerras de religiao, Portugal sofreu a influencia do
direito publico que se foi elaborando no sentido de procla-
mar a supremacia do poder civil" (Oliveira, p. 252). Supre-
macia, talvez, mas proclamada de forma peculiar pela orga-
niza~ao espacial em seus estabelecimentos coloniais.
"... suplicamos a V.M. munde asu Visorey y aesta su Real
Audiencia y alas otras]usticias y Gobernudores, quefavo-
rescan y acaten alos Pre/ados de las iglesias y a los Minis-
tros deltas, pues lenemos tan lejos el socorro pa~'! quejar-
mos a V. M. , cuando fueremos desfavorecidos...
Esta carta, aprovada no condlio do Mexico de 1555 e
assinada por seu arcebispo, da conta a Carlos V dos proble-
mas entre as jurisdi~6es eclesiasticas e secular agw;ados pela
distancia das novas frentes de coloniza~,;ao (Colecci6n, v. 3.
p. 522). A Recopilaci6n de leyes de los reynos de las Indias,
que ordenou a vida do vasto imperio espanhol, ainda insisti-
mos de seus nove livros dedicou fora outros titulos todo o
Livr~ 1 para as quest6es eclesiasticas, que, assim como e jun-
tamente com as leis civis, se explicitaram para todas as col6-
nias e cada urn dos seus estabelecimentos ao Iongo de secu-
los. Transfere, e verdade, os costumes metropolitanos pre-
dominantes "de la inmunidade de las iglesias y monasterios,
y que en esta razon se guarde el derecho de los Reynos de
Castilla'', no seu titulo 5. Everdade tambern, como lembra
Alemparte (p. 48), que muitas de tais disposi~6es , como tan-
tas e tantas leis espanholas ou hispano-americanas, ficaram
no papel, como signos de boas inten~oes.
Nem tanto, pois a essa grande codifica~,;ao legal, outros
cuidados castelhanos se juntaram, como atesta um amplo in-
querito sobre "todas las ciudades, villas y lugares de espaiio-
les, y pueblos de naturales", publicado na integra na Colec-
ci6n de documentos ineditos del Archivo de Indias (v. 9. p .
58-79), e que reune nada mais nada menos do que 355 itens
de interesse sobre as povoa~6es coloniais, incluindo algumas
sobre urbanismo de extrema modernidade. Esse documento
provocou inumeros outros em resposta, que sao preciosfssi-
4 5
25. mas descri~6es de cidades, vilas e aldeamentos indlgenas dos
primeiros anos dos seiscentos, onde se pode avaliar o grau
de aplica~ao efetiva dos ordenamentos urbanisticos recomen-
dados para as funda~6es, bem como o peso da Igreja e de suas
jurisdi~oes no governo das novas terras. Diego Velasquez con-
trap6e as cidades coloniais da America do Norte as castelha-
nas: ''As primeiras foram terreno fertil para uma nova ordem
economica e legal; as segundas foram instrumentos para uma
ordem imperial estabelecida" (Bethell, v. 2, p. 90). "A uni-
dade urbana constituiu um microcosmo duma ordem impe-
rial e eclesiastica maior" para Richard Morse (p. 71).
Na transposi~ao das ordena~oes do reino lusitano, poe-
tanto, vemos espelhada outra maneira de colonizar as novas
terras descobertas. Outra maneira em que a legisla~ao vern,
como que por direito consuetudinario, transferindo as prati-
cas da metr6pole para suas mais distantes e distintas colonias
e feitorias. Ora, nessa transferencia nos interessam, princi-
palmente, a questao fundiaria, o desenho urbano e o conv1-
vio como mundo eclesiastico. Algumas normas lusas sobre
os dois primeiros aspectos nao se comparam ao conteudo dos
tltulos 5 e 7 do livro IV das leis coloniais espanholas, nem
as diversas coloca~6es constantes das Ordena~6es Filipinas,
a preeminencia e aextensao do contido no livro 1 daquelas
"leyes de los reynos de las Indias". (Recopilaci6n). 0 que se
prop6e e haver urn paralelo entre uma coisa e outra, que ao
grau de explicita~ao maior da convivencia dos lados espiri-
tual e temporal do poder metropolitano corresponde uma
conseqiiente explicita~ao maior do poder publico e de sua
rela~ao com o ambito privado no delineamento urbano das
funda~6es castelhanas coloniais. Se de inkio deu-se melhor
cste delineamento - e em seu bojo aquele entre o publico
sacro eo publico profano -, como passar do tempo e a pro-
gressiva seculariza~ao dos conceitos e leis sobre a ordem ur-
bana, a maneira como se definiu e distinguiu o espa<;o publi-
co foi fatalmente diferente. Diferente no que tange a seu con-
vivio com os espa~os sagrados e sobretudo com os espa<;os
concedidos a particulates. Por outras palavras, em processos
institucionais onde tinha tanto peso a Igreja, no caso espa-
nhol, de sa!da estava bern definido o limite entre urn tipo de
espa<;;o e outro; no caso portugues nao, donde uma laiciza-
<;;ao posterior mais sentida e radical nas cidades.
Ao regulamentar logo a maneira de fundar seus niicleos
coloniais, e mais tarde codificar essa ampla regulamenta~ao,
os espanh6is, antes de fazerem uma op~ao de desenho urba-
46
26. no, buscavam nesta, que afinal foi feita de forma cristalina
urn instrumento claro de ordenamento social sob a batuta d~
Co~oa de Castela. Dentro dos mesmos conceitos juridicos,
esttp_ulavam bern mais precisamente que os portugueses a con-
cessao de terras e o convivio entre os varios colonos e o co-
letivo. E ai tambem as importantes- as maiores - glebas
urbanas concedidas a congrega~oes religiosas. 0 apelo a urn
Vitruvio (Mundigo e Crouch, p. 259), recuperado seu trata-
do da antiguidade, a tratados e experH~ncias tardomedievais
(Guidoni, p. 200) ou aos te6ricos italianos renascentistas s6
se co~preende pela vontade de disciplinar a distribuit;ao, a
reten~ao e o uso da terra urbana pelos colonos tanto entre
si como em rela~ao ao poder publico. Dai a opt;ao pelo pla-
no em grelha (Zawisza, p. 92-6).
E nessa distribui~ao cuidada o poder publico tambem nao
descurava de seus dois "bra~os": o secular eo religioso, co-
mo veremos no capitulo 3. Ora, no mundo portugues, sem
as correspondentes explicita~oes em detalhe do regime para
a distribui~ao da terra urbana, como de resto da rural nem
as dos limites ou fronteiras entre a eclesiastica e a civil: tudo
d:pendeu mui_5o mais da vivencia e evolu~ao das povoat;oes.
Nao estav~m tao claras a abrangencia e as prerrogativas quan-
do, espectalmente a partir do seculo xvm, comet;ou a secu-
larizat;ao mais acentuada. Nosso desenho urbano era outro
de origem; foi se tornando ainda mais distinto com a laiciza-
~ao comum.
"Poder-se-ia dizer, sem grande exagero, que uma cidade
hispano-~mericana e umaplaza mayor envolvida por ruas e
casas, mats do que urn conjunto de casas e ruas avolta de uma
plaza mayo!." Ass~ Robert Ricard (p. 436) sintetiza magistral-
mente o carater das ctdades hispanicas na America, a ordena~ao
decidida do conjunto urbano em torno do nucleo oficial -
civi~ e eclesi~stico - e, enfim, o cumprimento do estipulado
~o hvro IV, titulo 7, ley 1 das Leyes de lndias (Recopilaci6n):
cuando hagan la planta del Lugar, repartanlo por sus pla-
zas, calles y solares a cordel y regla, comenzando desde Ia
plaza mayor...". "Portugal e Brasil a ignoram" (p. 438). Ig-
noram essaplaza mayorque, para o mesmo Ricard (p. 437),
enq__ua~to era na Espa~~a uma place municipale, era em suas
colomas uma place d Etat. Em decorrencia, talvez, para Ri-
chard M. Morse (1975, p. 9): "A municipalidade do Brasil-
c.olonia era mais livre em relac,;ao ao Estado do que a da Ame-
nca espanhola, mas, formalmente falando, era ate menos ino-
vadora em rela~ao ao prot6tipo oferecido pela metropole".
48
Acrescente-se a esse raciodnio o fato de que a rela~ao
entre as virias instancias de poder, da metr6pole ao local,
passando pelo governo-geral da colonia e por suas se~oes re-
gionais, nao estava claramente estipulada e, na pritica, leva-
va a constantes sobreposit;6es (Avelar, p. 50). Nao havendo
uma planta oficial e uniforme a ser repetida, mas procedimen-
tos tacitos e costumeiros a serem aplicados, o processo de
aplicat;io de gerenciamento, sendo frouxo, levou a urn grau
de op~oes maior, de solu~oes mais variadas... pitorescas ate
(Smith, 1955; Borah, 1973 e Hardoy, 1975). Nestas, o q~e
aqui nos interessa e o papel da visao religiosa na cond~c;ao
- e vigorosa conduc;ao- desse processo. 0 resultado tmha
de ser outro, eo foi, nao apenas de inkio, mas como fruto
de urn Iongo evoluir. A seculariza~ao agiu nos dois casos, mas
teve urn espa~o de manobra e conseqi.iencias maiores no mun-
do portugues.
"N'esta Provincia a Religiao, ou a Allianf(a Religiosa que
deve existir entre os homens... erepresentada, e authentica-
da pelo culto Publico... "
Virias passagens e afirma~oes semelhantes se encontram
no precioso Ensaio d'um quadro estatistico da provincia
de s. Paulo do marechal Daniel Pedro Muller (p. 115) de
1838. Na epoca em que se estruturava o arcabout;o legale
juridico do novo pais, tais coloca~oes dum homem bastante
preparado nos recorclam o peso duma tradic;ao fortemente
marcada pela present;a da Igreja e daquela que "continuari
a ser a religiao do imperio" (Constituic;ao politica do Impe-
rio do Brazil, titulo 1, artigo 5?). "Nao era possivel que a
Constitui~ao do Brazil, o qual tinha sido colonia de Portu-
gal,... deixasse de consagrar a religiao catholica como a do
Estado" (Rodrigues, p. 9). Entretanto, como se viu, o C6di-
go do Processo de 1832, em seu artigo 8?, apenas tolerou
os "Juizos Ecclesiasticos em materias puramente espirituaes"
A jurisdic;ao da Igreja ficava de entao em diante circunscrita
e profundamente abalada sua imunidade e foro privilegiado,
alterac,;ao que marcava urn decidido fortalecimento de lei ci-
vil com implicac;oes diretas tambem sobre o espa~o publico.
A carta de lei de 1? de outubro de 1828 e urn documen-
to capital no prosseguimento da trajet6ria dos municipios en-
tre nos e, conseqi.ientemente, eta evolut;ao no trato das ques-
t6es urbanas. Baixada por Pedro I, seu objetivo foi regula-
mentar e padronizar o funcionamento das camaras ate entao
49
27. ainda apoiadas nas antigas ordena~oes do reino lusitano (An-
drade, p. 154). Seu artigo 24: "As camaras sao corporac;;oes
exclusivamente administrativas, e nao exercerao jurisdicc;;ao
alguma contenciosa' ', representa uma poderosa restric,;ao de
suas atribuic;;oes, perdida agora a judiciaria. Isto implica que
as pendencias entre a jurisdic;ao temporal e a espiritual pas-
sarao a outras esferas e, provavelmente, maier atenc,;ao pas-
sarao ter os assuntos seculares. Neste sentido, e importante
o artigo 9: "Ficam revogadas todas as Leis, Alvaras, Decre-
tos e mais Rezoluc;oes, que dao as camaras outras atribuic;oes,
ou lhes imp6em obrigac,;oes diversas das declarac;;oes na pre-
sente Lei, e todas as que estiverem em contradic;ao apresen-
te". Realmente, o artigo 66 reza que ficarao a cargo das ca-
maras tudo a respeito da ''Policia e Economia das Povoac;oes
e seus termos'', cujo paragrafo 1? arrola uma serie de mate-
rias de sua responsabilidade e que dizem respeito agestao do
chao publico. Em primeiro Iugar, cita a questao do alinha-
mento, aqual voltaremos, da limpeza "e dezempachamento
das ruas, Caes, e pra~,;as", da conservac;;ao e reparos de edifi-
cios publicos, "calc;adas, pontes, fonte, aqueductos, chafari-
zes, p6c;os, tanques, e quaesquer outras construcc;oes em be-
neficia commum dos habitantes, ou para dec6ro, e ornamen-
to das Povoac;oes' '. 0 paragrafo 2?, ao tratar dos cemiterios,
diz que as camaras devem faze-lo "conferindo com a princi-
pal Authoridade Ecclesiastica do Logar''. Ve-se que sao pou-
cas as normas especificamente de ordenac;;ao espacial, entre
as mais de uma dezena de atribuic;oes das camaras determi-
nadas por seu regimento imperial. E, ainda assim, desponta
a obrigac;ao atinente a urn convivio urbano com prerrogati-
vas especiais da Igreja. Seu "§ 10?. Proverao igualmente so-
bre a commodidade das feiras, e mercados, abastan~a, e sa-
lubridade de todos os mantimentos, e outros objectos expos-
tos a venda publica'', apresenta forte relac;ao com o artigo
223 da Constituifaopolitica da monarchiaportuguesa, de
1822.
Bern mais tarde, ]oaquim de Oliveira Machado, em seu
0 manual dos vereadores, lembra que, nos primeiros anos
da independencia, o "codigo de leis ainda erao as compila-
c;;oes philipinas". "A lei de 1? de outubro de 1828, nessa epo-
ca promulgada, e ainda hoje o regimento das camaras, parti-
cipou dos defeitos physiologicos e vicios de estrutura pro-
pries do emperramento exclusivista e cemralisador, de que
custarao se desarraigar nossos primeiros legisladores'' (p. 13).
''Eis porque em seu contexte ainda se observao a mesma lin-
50
~uagem, redacc;ao, incoherencia, accumulac;;ao de varies a~
sumptos debaixo de urn s6 capitulo ou artigo, e falta de um-
t'ormidade que o governo europeo costumava empregar nas
suas instrucc;oes e mais actos oficiaes". Enquanto clama para
que se tire "a tutela rigorosa irnposta as camaras pelo acto
adicional" (p. 14). . . _
Alem dessa tutela que restringia a autonomta dos mumct-
pios em inumeros aspectos tambern relatives a''Policia e Eco-
nomia das Povoac;oes e seus termos' ', constata-se ainda algu-
mas limitac;oes de ordem eclesHistica, como no caso dos ce-
miterios. Entre a sujeic;;ao acentuada aos governos e legislati-
vos provinciais e a prerrogativas da Igreja, ~ue se enfr~que
ciam mas continuavam em parte reconhectdas pela let, e o
desejo de avanc;;ar rumo a novas soluc;oes para ~s pro~lem~~
urbanos e de aproveitar os recentes avanc,;os do urbamsmo
no mundo europeu, nao restavam a este- se mais forte nu-
ma mentalidade em geral acanhada- muitas oportunidades.
As preocupac;oes de ordem sanitaria e estetica: q~e ia~
remodelando as cidades do velho continente e cujas tmph-
cac;;oes foram tao bern abordadas por Franc;oise Boudon e por
Olivier Zunz entre outros, por certo nao foram ignoradas.
Contudo, nao puderam se consubstanciar em novas atitud~s
ou soluc;oes diante de inumeras dificuldades, entre as quats
merece destaque a expropriar,;ao por interesse publico. c_o-
mo mostram os estudos de Michel Lacave, tal desapropna-
c,;ao, com vistas arenovac;ao urbana, en~rent_a~a tambem na
Europa, e mesmo na Franc,;a do segundo 1mpeno, uma pede-
rosa oposi~ao. Foi naquele pais defendida por estratos d_uma
sociedade muito diferente da nossa. Muito tempo havena de
passar em que outra composic;ao social motivasse entre_n6s
algum avanc;o do direito nessa materia. Algum avanc;o, amda
que restrito aantiga e sempre crucial questao do alinhamen-
to. Quanto aconvivencia com a Igreja, a sucessao ~as cons-
tituic;oes republicanas parece por vezes apontar mats recuos
do que avanc;os por parte do poder publico, no que d~z- r~s
peito a templos, estabelecimentos escolare~ e cem~tenos
(Scampini, 1978). 0 municipio, e com ele a c1dade, nao po-
deriam deixar de sentir seus efeitos.
"Niio s6 pella grande falta q'.. ha r:esta Cidade de l~trad~~·
mas por serem os ]uizes Ordtnarws totalmente letgos...
Este informe do governador Rodrigo Cesar de Meneses
ao rei, de 1726 (Documentos, v. 32, p. 140), em que pede
51