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On Women in Brazilian Popular Music: Permanencies? Discontinuances?
A-cerca da Mulher na Música Popular Brasileira: Permanências e Descontinuidades
Anderson de Souza Sant’Anna
Núcleo de Desenvolvimento de Pessoas e Liderança
Programa de Mestrado Profissional em Administração
Fundação Dom Cabral
Laura Ferolla Siqueira Campos
Núcleo de Desenvolvimento de Pessoas e Liderança
Fundação Dom Cabral
Marcella de Assis Ribeiro Batista
Núcleo de Desenvolvimento de Pessoas e Liderança
Fundação Dom Cabral
Resumo: Sob uma perspectiva relacional, segundo a qual a arte não somente reproduz o status
quo, mas também antecipa e corrobora transformações por meio de sua capacidade de propagar
novos discursos e práticas discursivas, articulando múltiplos agentes sociais, o presente artigo
utiliza de achados de estudo de casos sobre a representação da mulher na música popular
brasileira, ao longo do período 1880-1970, para explorar o papel relacional engendrado a partir
das composições musicais investigadas. Para tal foi pesquisado de que forma tais composições,
seus compositores e interpretes se engajam em ações relacionais vis-à-vis às transformações
vivenciadas junto aos contextos societais em que se inserem, bem como tais ações resultaram
em ‘descontinuidades’ - assim como em ‘permanências’ - nas formas de representação da
mulher nas letras analisadas. Os achados foram agrupados em três fatores - ‘Imprevisibilidade’,
‘Objetificidade’ e ‘Idealidade’ - sustentados pela oscilação das representações face aos
diferentes momentos históricos em que emergem - ‘República Nova’, ‘Estado-Novo’, ‘Pós-
guerra’, ‘Regime Militar’ - e agentes protagônicos. Isto, tendo como pano de fundo a transição
da primeira para a segunda onda do movimento feminista. Como resultado foi possível
apreender o protagonismo – individual e coletivo - e a construção de ‘espaços de fala’ como
cruciais às estratégias de ‘descontinuidades’ e ao estabelecimento de ‘agendas discursivas’.
Palavras-chave: Mulher; Música Popular Brasileira; Representação Social; Mudanças
Disruptivas; Descontinuidades.
Introdução
As transformações que a segunda metade do século XX aportam para o papel social da mulher
e suas condições de gênero são evidentes. No entanto, se a mulher que deflagra a primeira onda
do movimento feminista tem sua atuação restrita ao espaço do lar, onde na condição de ‘rainha’,
encarna como principais atribuições o cuidar do marido e dos filhos, não raro na condição de
intelectualmente menos dotada, aquela que inaugura a segunda onda do movimento se depara
com novas questões e, consequentemente, novos desafios (Alonso, Breyton, Albuquerque,
2008).
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Nesse cenário, a abertura de espaços no mercado de trabalho e na polis implicam na demanda
por ‘espaços de fala’, discursos e dispositivos de poder outros, capazes de viabilizar e sustentar
novas conquistas. Em torno de tal problemática configura-se significativo investigar de que
forma as transformações que marcam o deslocamento da primeira para a segunda onda do
feminismo evidenciam rupturas também nas formas de representação social da mulher.
Aderente a esse propósito e tendo por base a premissa de que a arte não somente reproduz, mas
em grande parte antecipa e corrobora transformações, quer no nível discursivo, quer nos níveis
político, social e comportamental, o objetivo deste artigo consiste em apresentar resultados de
pesquisa destinada a investigar o papel da música popular brasileira na disseminação de formas
distintas de representação social da mulher e suas implicações na dinâmica de transição da
primeira para a segunda onda do movimento feminista, no país.
Em sua essência poder-se-ia definir a primeira onda - ou primeira geração - do feminismo como
o período que compreende o surgimento do movimento feminista, que nasce como campanha
liberal de luta das mulheres pela igualdade de direitos civis, políticos e educativos, direitos
reservados exclusivamente aos homens. O movimento sufragista, que se estrutura na Inglaterra,
na França, nos Estados Unidos e na Espanha, tendo papel fundamental nessa fase, cuja tônica
centra-se na luta contra a discriminação das mulheres e na garantia de direitos, inclusive do
direito ao voto. Tem-se nessa primeira fase a denúncia da opressão à mulher imposta pelo
patriarcado (Narvaz & Koller, 2006; Meyer, 2004).
Já em sua segunda onda - ou segunda geração - emergente nas décadas de 1960 e 1970, tem-se,
nos Estados Unidos, ênfase na denúncia da opressão masculina e na busca da igualdade;
enquanto, na França, postula-se a necessidade de valorização das diferenças entre homens e
mulheres, repercutindo, em particular, a especificidade da experiência feminina, geralmente
relegada a segundo plano, senão meramente ignorada. As propostas irão caracterizar-se por
posições que enfatizam a igualdade e a singularidade da subjetividade feminina (Narvaz &
Koller, 2006; Meyer, 2004).
Paralelamente, o estudo visa evidenciar dubiedades e contradições nos modos de representação
da mulher nas manifestações musicais investigadas, superando lacunas de pesquisas abertas
pela pouca ênfase na compreensão mais aprofundada de processos por meio dos quais a música
pode ser aplicada na explicitação de ‘descontinuidades’ - assim como de ‘permanências’ - na
representação da mulher. Assim sendo, por meio de seus achados visa-se contribuir com a
literatura existente de três maneiras principais. Em primeiro lugar, oferecendo uma perspectiva
mais dinâmica da representação da mulher, tendo em vista a análise do imaginário construído
em relação à mesma em diferentes momentos históricos da sociedade brasileira - em particular
no processo de transição da primeira e segunda ondas do feminismo no país - e suas implicações
sobre a construção do imaginário em torno da mulher. Em segundo lugar, ao procurar superar
análises puramente historiográficas, incorporando a busca por uma investigação mais
sistemática de tais ‘continuidades’ e, em particular, de ‘descontinuidades’ ou tentativas mais
disruptivas na representação social da mulher, a partir de abordagem inspirada na
‘arqueogenealogia’ foucaultiana (Foucault, 1999, 1997). Em terceiro lugar, ao indicar como
discursos - e práticas discursivas - inseridas no cotidiano da sociedade, em seus níveis mais
microfísicos e capilares - como é o caso da música popular - podem operar na manutenção e ou
na catalisação de transformações sociais.
Fundamentação Teórica
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Não são poucos os trabalhos que demonstram como o modelo tradicional a que se recorre para
pensar a diferença entre os sexos compreende um modelo historicamente construído nos séculos
XVIII e XIX, fundado na primazia da heterossexualidade e da dominação masculina (Prata,
2010; Arán, 2006). Em decorrência, conforme observa Arán (2006), levar em conta a
historicidade do sexual é uma questão não apenas ética e política, mas sobretudo teórica, da
maior importância. Se há um território sexual ‘fora’ ou ‘excluído’ do simbólico, em relação ao
qual o próprio simbólico se constitui, é fundamental reconhecer de que modo contingências
históricas e políticas podem promover deslocamentos subjetivos nesse mesmo território,
ampliando as possibilidades de vida (Prata, 2010; Arán, 2006).
Igualmente, com base na ideia da arte como processo coletivo (Becker, 1982), número cada vez
maior de acadêmicos tem direcionado seus interesses do estudo de características individuais
de seus sujeitos de investigação para suas ligações interpessoais e coletivas (Montanari,
Scapolan, Gianecchini, 2016). Tais estudos compartilham o princípio chave de que a produção
de subjetividades e modos distintos de vida se processam nas tessituras e interstícios dos
discursos que fluem pelas redes de relações interpessoais e sociais (Ilari, 2006).
No entanto, debate-se de que modo as manifestações artísticas podem deliberada e efetivamente
ser mobilizadas no suporte a processos e movimentos destinados a rupturas e descontinuidades,
que resultem em formas diferenciadas de subjetivação. A utilização da arte como dispositivo
de poder, mas também de dominação ideológica e política, assim como instrumento de
manutenção do status-quo já constituem temáticas amplamente estudadas. Novos estudos,
porém, parecem requeridos no sentido de uma compreensão mais sistemática - que, inclusive,
supere descrições de cunho tipicamente historiológico - possibilitando uma apreensão mais
ampla da gênese das dinâmicas e práticas subjacentes à produção de novos discursos e, em
particular dos processos associados à sua difusão e legitimação (Montanari, Scapolan,
Gianecchini, 2016; Foucault, 1999, 1997).
Especificamente em relação ao movimento feminista - e mais diretamente à construção do
significante ‘mulher’ que o fundamenta - cabe, conforme questiona Butler (2014), melhor
delimitar a configuração de poder que constrói o ‘sujeito’ e o ‘Outro’, essa relação binária que
envolve ‘homens’ e ‘mulheres’, bem como a estabilidade interna desses termos. Em outros
termos, ‘a melhor maneira de problematizar as categorias de gênero que sustentam a hierarquia
dos gêneros e a heterossexualidade compulsória’ (Butler, 2014, p. 8).
Ainda de acordo com Butler (2014, p. 9), ‘explicar as categorias fundacionais de sexo, gênero
e desejo como efeitos de uma formação específica de poder supõe uma forma de investigação
crítica, a qual Foucault (1997), reformulando Nietzsche, chamou de genealogia’, a qual se
direciona à investigação das apostas políticas, indicando ‘como origem e causa categorias de
identidade que, na verdade, são efeitos de instituições, práticas e discursos cujos pontos de
origem são múltiplos e difusos’. Ao tomar como foco o gênero e a análise relacional - conforme
sugerida por Foucault (1997) - Butler (2014) acentua as possibilidades de compreensão da
‘mulher’ - e, por extensão, do ‘feminino’ - não como categoria estável, mas, ao contrário,
reconhecendo seu caráter problemático e errático. Isto, na medida em que adquire tais
significados apenas em termos relacionais.
Sob tal perspectiva, a heterossexualidade compulsória e o falocentrismo constituem regimes de
discurso-poder com formas comumente divergentes de responder a questões centrais do
discurso de gênero, tais como: ‘De que forma a linguagem constrói as categorias de sexo? [...]
Onde e como convergem heterossexualidade compulsória e falocentrismo? Onde estão os
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pontos de ruptura entre eles? Como a linguagem produz a construção fictícia de sexo que
sustenta esses vários regimes de poder?’ (Butler, 2014, p. 10).
Embora estudos anteriores tenham aberto caminho para um melhor entendimento de como a
arte - e, no caso particular deste estudo, a música - pode afetar os regimes de discurso-poder,
nossa compreensão do fenômeno permanece incompleta em dois aspectos muito importantes.
Em primeiro lugar, os estudos exploram insuficientemente o ‘processo’ por meio do qual
emergem ‘descontinuidades’ ou ‘mudanças disruptivas’, ao longo do tempo - criando novos
regimes de poder, fortalecendo relações de poder já existentes etc. Mesmo estudos que adotam
uma perspectiva mais longitudinal acabam por explorar principalmente o ‘o quê’, em uma série
de momentos, com ênfase em diferentes características estruturais ou contextuais que levam a
diferentes resultados, sem, todavia, levar em consideração sua ‘gênese’ (Montanari, Scapolan,
Gianecchini, 2016).
Em seu cerne, a teoria feminista tem presumido a existência de uma identidade definida,
compreendida pela categoria de mulheres (Butler, 2004). Compreende, também, que o sujeito
próprio das mulheres não é mais abarcado em termos estáveis ou estáticos. Porém, ainda não
há concordância quanto ao que constitui, ou deveria constituir, a categoria das mulheres (Butler,
2004). Além disso, como observa Foucault (1997), os sistemas instituídos de poder produzem
os sujeitos que eles próprios passam a representar. Dessa ausência de consenso, apresenta-se
relevante novos estudos que visem investigar a maneira como relações discursivas operando
em contextos históricos específicos afetam a criação e reprodução de novos discursos,
superando ou reforçando categorias hegemônicas. Até onde conseguimos revisar, nenhum
estudo aprofundou como esse tipo de relacionamento se processa por meio da música popular
brasileira.
O presente artigo oferece, portanto, três principais contribuições à literatura sobre o tema. A
primeira consiste evidenciar as contribuições da produção artística e cultural - no caso a música
popular brasileira – nas dinâmicas orientadas à superação de formas tradicionais de poder e
dominação. A segunda, relaciona-se à evidenciação da relevância da construção e ou acesso a
‘espaços de fala’ como cruciais às estratégias desenvolvidas pelos movimentos sociais e defesa
de minorias quanto à disseminação de novas ‘agendas discursivas’. Finalmente, suas
contribuições aos estudos que se destinam à análise de descontinuidades, sob um enfoque
relacional. Acredita-se que abordagens de caráter mais relacional possam oferecer novos pontos
de vista. Isto, na medida em que no mundo das artes o ‘sucesso’ repousa sobre fontes de apoio
que um artista é capaz de mobilizar, mais que sobre o valor intrínseco de suas obras (Becker,
1982). Desse modo, o respaldo público associado ao protagonismo em suas iniciativas artísticas
e o alcance de suas metas profissionais (Jones, 1996; Svejenova, 2005), moldam, ao longo do
tempo, relacionamentos com diferentes agentes sociais, contribuindo para a emergência e ou
ampliação da capacidade de influência quer própria, quer das produções protagonizadas
(Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016).
Métodos da Pesquisa
Seguindo trilhamentos abertos por Montanari, Scapolan, Gianecchini (2016), para fins desta
pesquisa optou-se pela adoção de método baseado em casos (Yin, 2009). Os estudos de caso
são relatados como ‘particularmente bem adaptados a novas áreas de pesquisa’ (Eisenhardt,
1989, p. 548), assim como à geração de novas teorias, ao propiciarem pontos de vista úteis a
respostas a questões do tipo ‘como’ e ‘por quê’ (Yin, 2009, p. 9). Mais especificamente, a
perspectiva aqui adotada se baseia em estudo de casos múltiplos (Yin, 2009), conduzidos em
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torno de composições musicais emblemáticas da música popular brasileira que trazem
referência à categoria ‘Mulher’, visando identificar ‘permanências’ e ‘descontinuidades’ em
suas formas de representação na transição que marca o deslocamento da primeira para a
segunda onda do movimento feminista, no Brasil (Prata, 2010; Arán, 2006).
Tendo por base tal interesse da pesquisa buscou-se, como anteriormente salientado, investigar
de que forma a mulher se vê abordada na música popular brasileira durante o período que se
estende de fins do século XIX a meados do século XX. A opção pela análise da categoria
‘mulher’, a partir de composições musicais associa-se diretamente à relevância das mesmas
como forma de manifestação cultural de ampla capilaridade e capacidade de produzir - bem
como reproduzir - discursos, comportamentos e práticas sociais. Como as demais artes, a
música não deixa de se constituir como antecipadora de movimentos e tendências, simbolizando
por meio da poesia inerente a diversas de suas letras, o imaginário de diferentes grupamentos
sociais, senão da sociedade como um todo. Além desse caráter, a música se apresenta como
dispositivo par excellence de expressão e manifestação de anseios, problemas e questões que
marcam a humanidade e as relações entre seus diferentes agentes. Seja como expressão do belo,
como forma de entretenimento ou relaxamento, seja como arte engajada, de protesto ou de
mobilização social, o certo é que a música constituiu singular gramática estética e de
conversação com outras formas de arte - teatro, dança, cinema - permitindo-lhe amplo
potencial, senão de apropriação com vistas à perpetuação do status quo, mas também de
influência e transformação (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016).
Interagindo com demais artistas - escritores, poetas, dançarinos, coreógrafos, cineastas, atores
etc. - no desenvolvimento, refinamento, amplificação e implementação de suas ideias (Harrison
& Rouse, 2014), a música ‘rizomaticamente’ se difunde no contexto social (Deleuze & Guattari,
1995). Além disso, compositores mais vanguardistas, em busca de fontes de inovação e
superação dos estilos reificados pelo mainstream, deslocam-se para as periferias e áreas
‘marginais’, com vistas a evidenciar outros modos de vida e de viver. Assim, a música propicia
um ambiente significativo para a observação do fenômeno em relação ao qual estamos
interessados (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016).
No caso da música popular brasileira, ela historicamente assume papel de relevo nos principais
movimentos sociais, políticos, culturais e comportamentais, tanto na denúncia a processos de
injustiça e exploração social e no trabalho, quanto na defesa de princípios orientadores de
políticas e práticas mais humanas e igualitárias.
Nesse papel, a música popular brasileira se faz notar, desde seus primórdios, na denúncia e
sátira a mandos e desmandos políticos, na crítica ácida e irônica a governantes, ditadores,
‘coronéis’ e ‘empresários’, bem como aos modos de vida e de comportamento das ‘elites’,
incluindo seus descasos quanto às condições de vida da grande massa de cidadãos e
trabalhadores. Nas décadas de 1960-1970, por exemplo, desnecessário se faz tecer maiores
detalhamentos quanto ao seu papel na denúncia e luta em torno das grandes questões e
transformações sociais em curso. Seguindo trilhas abertas pelos movimentos em torno dos
direitos civis, os movimentos pela democracia e direito à afirmação dos povos, as lutas em torno
da qualidade de vida no trabalho colocarão em evidência, também no Brasil, roqueiros
eternizados por Woodstock; punks e seus comportamentos ‘desviantes’ e ‘transviados’,
imortalizados por músicas e letras de grupos de jovens contestadores, como o inglês Sex Pistols;
a contestação dos preconceitos raciais, encarnada pela Black Music, sendo um ícone o Black
Panthers ; além de movimentos em defesa dos direitos dos homossexuais, marcados por
músicas e hinos universais.
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Nessa direção, não se pode, igualmente, ignorar, o papel histórico desempenhado por diversos
segmentos da música popular brasileira, eternizados por meio de letras de compositores como
Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, dentre outros tantos interpretes e grupos musicais
- Novos Baianos, Doces Bárbaros -, mobilizados, em particular em festivais universitários e nas
músicas de protesto, contra o regime totalitário e de exceção instaurado no país, em 1964
(Cabral, 2016; Severiano & Homem de Mello, 2015; Homem de Mello, 2003; Napolitano,
2007; Tinhorão, 1998). Nos grandes festivais, inclusive, tem-se a emergência de novas
compositoras como Tuca, Rosinha de Valença e Joyce (Brazil, 2015).
Nesse particular, e quanto às relações entre a música popular brasileira e os movimentos
feministas? Em outros termos, retomando nossa questão central: Como a categoria ‘Mulher’ se
vê representada pela MPB, notadamente no período que marca a transição da primeira onda do
movimento feminista (que se desenrola de meados do século XIX a meados do século XX) e a
segunda onda do movimento, segundo diversos autores, iniciada na década de 1960?
Tendo como orientação tal questão, a pesquisa que subsidiou os resultados deste artigo tem
como foco o estudo de casos múltiplos (Yin, 2009), compreendendo a análise de 132
composições selecionadas dentre 304 letras de músicas constantes da primeira edição da
‘Coleção História da Música Popular Brasileira’, produzida e distribuída pela Editora Abril
Cultural, por meio de fascículos quinzenais, contendo parte editorial, textos críticos, biografias,
e fonografias com os registros das canções com intérpretes brasileiros representativos da música
popular brasileira das décadas de 1880 a 1970.
Para composição da coletânea, segundo Milani (2014), a Abril Cultural contou com o
assessoramento de críticos musicais, músicos, jornalistas e pesquisadores da música popular
brasileira como Tárik de Souza (crítico musical), Sérgio Cabral (jornalista e crítico literário),
Zuza Homem de Mello (produtor, crítico musical e pesquisador), José Ramos Tinhorão
(jornalista e pesquisador); Maurício Kubrusly (jornalista e crítico musical), Paulinho da Viola
(cantor e compositor), Aracy de Almeida (cantora) e Almirante (cantor e compositor).
Coleta de Dados
Os trabalhos de seleção, tratamento e análise das composições se desenvolveram no período
entre fevereiro de 2014 e setembro de 2016, utilizando-se além de técnicas manuais a aplicação
do software de tratamento qualitativo de dados Nvivo 9.0.
A partir da análise das letras das músicas da coletânea foram selecionadas aquelas com
significantes diretamente associados ao significante ‘mulher’. Cabe salientar como ponto de
partida para o tratamento e análise dos dados, a inserção das composições musicais e
informações a elas associadas em planilha Excel, especificando-se, desse modo, o número do
disco e da faixa musical; o nome da composição, do compositor e do interprete; seu ano de
criação; a letra da música; os trechos com referências à mulher, incluindo expressões e
significantes correlatos; e o histórico da música. Cabe salientar que tal procedimento, aplicado
às 304 composições presentes na coletânea, resultou na identificação dos 132 casos (43%),
contemplando 977 significantes com referência à noção de ‘mulher’. O Quadro 1 traz o exemplo
dos dados registrados para cada um dos 132 casos estudados.
Análise dos Dados
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A análise dos dados seguiu a sequência proposta por Langley (1999) e Montanari, Scapolan,
Gianecchini (2016). Assim, o estágio inicial da análise envolveu a construção de ‘narrativas’
associadas às composições selecionadas, com o fim de identificar o que cada significante
referente à noção de mulher visava explicitar, em que contexto se inseria e por quais possíveis
interesses teriam sido aplicados (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016; Garud & Rappa,
1994). Para tal, procedeu-se a análise indutiva de cada um dos 132 casos. Seguindo o processo
interativo recomendado por Strauss e Corbin (1990), as informações associadas a cada uma das
composições e seus criadores - inseridas no conteúdo da coletânea - serviram de base para o
delineamento final das ‘narrativas’ subjacentes aos significantes elencados.
Nesse sentido e a fim de se desenvolver uma compreensão mais fidedigna dos casos, cada um
dos três autores procedeu a leituras independentes das letras. Em vários momentos, à medida
em que compartilhavam as análises individualmente realizadas, discutia-se as interpretações e
representações emergentes. Nessas discussões não se objetivou medir as convergências. Ao
invés disso, as impressões e interpretações individuais foram livremente compartidas e
debatidas até se alcançar um entendimento entre os autores. Por esse procedimento logo foram
emergindo temas mais gerais. De fato, o aprofundamento na aplicação da ‘microanálise’
indicada por Strauss e Corbin (1990), paulatinamente, propiciou uma maior imersão nos dados,
a emergência de categorias para agrupamento dos significantes obtidos, bem como maior
precisão quanto às características distintivas entre elas (Montanari, Scapolan, Gianecchini,
2016).
Categorias como ‘Imprevisibilidade’, ‘Objetificidade’, ‘Idealidade’, ‘Domesticidade’,
‘Corporeidade’, ‘Afetividade’, ‘Temporalidade’ e ‘Espacialidade’ foram intuitivamente
emergindo e refinadas em sucessivas alternâncias entre a discussão de dados emergentes das
letras e a teoria.
Visando delinear os sentidos atribuídos aos termos aplicados à nomeação das categorias
emergentes, vale precisar que o termo ‘Imprevisibilidade’ foi adotado para se referir à extensão
em que a mulher se apresenta associada a dúvida, dissimulação, mistério, desordem,
irracionalidade e loucura. Já ‘Objetificidade’ foi aplicado para fazer menção elementos de
dominação e submissão ao poder viril masculino.
‘Domesticidade’, por seu turno, agrupa o conjunto de termos que atribui à mulher o espaço
restrito da casa, em contraposição ao espaço da rua, tipicamente masculino (Ericeira, 2012;
DaMatta, 1994). Importante salientar que quando cabe à mulher espaços outros que não o de
‘dona de casa’ ou ‘rainha do lar’, os mesmos são pejorativamente retratados como o espaço da
orgia, da prostituição, do ‘bar mal afamado’.
Já sob o rótulo de ‘Espacialidade’ agrupam-se também referências a espaços ambíguos e
indeterminados, como ‘mulher do mundo’, ‘mulher da vida’ ou da ‘malandragem’, os quais
extrapolam seu ‘lugar’ para arriscar no espaço dos homens.
Afetos como ‘crueldade’, ‘insensibilidade’, ‘interesse’, ‘maldade’, também se apresentaram
bastante recorrentes nas composições estudadas, sendo a ‘afetuosidade’ da mulher comumente
associada à sua ausência de coração e de afeto sincero em relação a um homem que ama sem
ser correspondido. Fazendo par a essa categoria, tem-se reiteradamente a manifestação de uma
“Idealidade” inalcançável. A mulher, neste sentido, sendo por diversas vezes associada à figura
materna, a santidade, pureza e musa platônica inacessível.
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Paradoxalmente, tais traços angelicais se contrapõem a uma mulher dos espaços outros, uma
mulher cuja ‘corporeidade’ encarna a provocação, a sedução e luxúria, retirando o homem de
seu caminho racional e profissional, remetendo aos espaços de ‘esbornia’ e de ‘perdição”, a
‘descaminhos’. O Quadro 2 sintetiza significantes associados a cada uma das categorias
emergentes na primeira etapa da análise, manualmente conduzida.
Visando verificar a consistência dos fatores acima, manualmente obtidos, procedeu-se a nova
análise, desta vez tendo-se os casos submetidos a tratamento com o auxílio do N-vivo 9.0. Como
resultado da análise das frequências absolutas e de fatorações abrangendo os 132 casos
pesquisados foi possível reagrupá-los em quatro fatores: ‘Imprevisibilidade’, ‘Objetificidade’,
‘Idealidade’ e ‘Domesticidade’ (Quadro 3).
Quadro 2. Análise semântico-comparativa: exemplificação de significantes por categoria
Categoria Fatores Principais Variáveis Observáveis
Mulher
Imprevisibilidade
Feitiço, conquista, mistério, dubiedade, traição, ilusão,
desconfiança, indecisão, inconstância, loucura, idealismo,
desordem, engano, infidelidade, superficialidade, dissimulação,
falsidade, subjetividade, fragilidade, instabilidade
Objetificidade Dominação, submissão, servidão, posse
Idealidade
Santa, luz, angélica, mãe, perfeita, amor, ideal, carinho, divino,
amor, musa
Domesticidade Doméstica, casa, lar, casamento, filhos
Corporeidade
Sensualidade, luxuria, vaidade, beleza, sedução, provocação,
sorriso, olhos, cabelo, braços, beijo, tango, samba, música,
morena, mulata
Afetuosidade
Saudade, morte, carinho, sofrimento, choro, maldade, felicidade,
tristeza, dor, alegria, solidão, crueldade, sentimentalismo,
ingratidão, insensibilidade, ciúme, compreensiva
Espacialidade Orgia, mundo, Brasil, praia, bar
Fonte: Dados da pesquisa.
Quadro 3. Categorização qualitativa de significantes por categoria
Categoria Fatores Principais Variáveis Observáveis
Mulher
Imprevisibilidade
Abandono, acaso, paixão, risco, ruína, ausência, brincadeira,
capricho, incerteza, coração, desconfiança, desespero,
desordem, destino, dissimulada, dubiedade, emoção, engano,
esquecimento, falta, feitiço, feitiço, fingimento, fragilidade,
ilusão, inconstância, indecisão, infidelidade, ingratidão,
insensibilidade, loucura, luxúria, mágoas, menina, mistério,
morte, mundo, noite, olhar, outro, passado, perda, prantos,
promessa, provocação, desrazão, remorso, saudade, sedução,
sensualidade, sentimentalidade, separação, sofrimento, solidão,
superficialidade, tormento, traição, tristeza, vaidade, vingança
alucinação
Objetificidade
Amante, boneca, cabocla, cabrocha, cigana, colombina, corpo,
dança, desejo, dinheiro, dominação, favor, materialismo,
morena, mulata, orgia, pernas, posse, prazer, sabor, servir,
sombra, sorriso, submissão, substituição, torturante, trabalho,
vantagem
Idealidade
Adoração, sonho, calma, afeto, amor, anjo, paixão, beleza,
bênção, carinho, casamento, cinderela, ciúmes, compreensão,
criança, divino, dolente, donzela, encanto, enfeite, estrela,
fraqueza, fragilidade, ideal, inocência, luz, madame, mãe,
mãezinha, musa, musical, namorada, oração, pequena, perfeita,
perfume, prece, querida, santa, sonho, sorriso, versos
Domesticidade
Casa, Cozinha, Doméstica, Favela, Favor, Filhos, Marido,
Trabalho, Criança, Babá, Vizinhança
Fonte: Dados da pesquisa.
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Quadro 1. Itens contemplados na análise de cada uma das composições musicais trabalhadas: caso ilustrativo
Disco Faixa Título Compositor(a) Intérprete Ano Letra
Representação
da ‘Mulher’
Significantes-
Chave
Histórico
da Composição
7 7 ‘Você vai
se quiser’
Noel Rosa Noel Rosa e
Marília Batista
1937 Você vai se quiser
Pois a mulher
Não se deve obrigar a
trabalhar
Mas não vá dizer depois
Que você não tem vestido
Que o jantar não dá pra dois!
Todo cargo masculino
Seja grande ou pequenino
Hoje em dia é pra mulher...
E por causa dos palhaços
Ela esquece que tem braços:
Nem cozinhar ela quer!
Os direitos são iguais...
Mas até nos tribunais
A mulher faz o que quer...
Cada qual que cave o seu
Pois o homem já nasceu
Dando a costela à mulher!
Sim
Mulher,
trabalho,
vestido,
cozinha
‘Você vai se quiser’ foi o
único samba de Noel para
sua esposa, Lindaura.
Preocupada com as
dificuldades pelas quais
passavam, ela se propôs a
ir trabalhar fora. Do nada
feminista Noel, recebeu
essa irônica resposta: ‘Ela
esquece que tem braços, /
Nem cozinhar ela quer’.
...
Fonte: Dados da pesquisa
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Em nova rodada de análises, desta vez visando articular os achados obtidos manualmente e por
meio do N-Vivo 9.0, os dados obtidos foram confrontados com a teoria. Como produto foi
possível uma composição final dos significantes em três fatores principais: ‘Imprevisibilidade’,
contemplando 111 significantes (46%); ‘Objetificidade’, abrangendo 64 significantes (27%) e
‘Idealidade’, igualmente, abrangendo 66 significantes (27%), conforme ilustrado no Quadro 4.
Quadro 4. Categorização qualitativa de palavras por categoria
Categoria Fatores Principais Variáveis Observáveis
Mulher
Imprevisibilidade
Acaso, anormalidade, paixão, risco, ruína, brincadeira,
capricho, incerteza, ciúme, conquista, consolo,
coração, crueldade, desconfiança, desespero,
desordem, desprezo, destino, dissabor, dissimulação,
dubiedade, emoção, engano, esquecimento, falta,
feitiço, fingimento, flerte, fragilidade, fuga, ilusão,
inconstância, indecisão, infidelidade, ingratidão,
insensibilidade, lágrima, loucura, luxúria, madrugada,
mágoa, maldade, malícia, menina, mistério, perigo,
morte, mundo, noite, olhar, outro, passado, perda,
pranto, promessa, provocação, desrazão, remorso,
saudade, sedução, sensualidade, sentimentalidade,
subjetividade, sofrimento, solidão, superficialidade,
tormento, traição, tristeza, vaidade, vingança
Objetificidade
Amante, baiana, boneca, bonitinha, braços, cabocla,
cabrocha, casa, cigana, colombina, corpo, cozinha,
dança, desejo, dinheiro, doméstica, dominação, favor,
filhos, ginga, lábios, loira, loirinha, machismo, macia,
marido, materialista, minha, morena, moreninha,
mulata, orgia, pernas, posse, prazer, servir, sombra,
submissão, substituível, trabalho, vantagem, vestido,
vizinha
Idealidade
Calma, crença, adoração, afeto, amada, amor,
angelical, beleza, bênção, carinho, casamento,
cinderela, compreensão, criança, divino, dolente,
donzela, encanto, enfeite, estrela, fragilidade, ideal,
luz, madame, mãe, musa, música, namoro, olhos,
oração, pequena, perfeição, prece, querida, santa,
sereia, sonho, sorriso, verso
Fonte: Dados da pesquisa.
Cabe registrar que tal reagrupamento envolveu a exclusão de 5 significantes e a agregação,
junto ao fator ‘Objetificidade’ de 16 dos 21 originalmente constantes do fator ‘Domesticidade’.
Como critérios para os agrupamentos adotou-se os princípios da parcimônia, semelhança e
analogia (Flick, 2009).
Além de identificar tais fatores, agregando os principais significantes associados à categoria
‘Mulher’, foi possível verificar diversas contradições inerentes às variáveis observáveis neles
inseridos, incluindo alternâncias entre características, reconhecidas nos contextos sociais
vigentes como ‘positivas’, simultaneamente a referências ‘pejorativas’.
O fator ‘Imprevisibilidade’, por exemplo, ao mesmo tempo que poderia denotar maior
habilidade das mulheres em lidar com a dimensão da subjetividade - e, enfim, com aspectos
que extrapolam a instância da racionalidade puramente instrumental, masculina - inserem-se
em narrativas que acabam por desqualificar tais habilidades, transformando-as em tributárias
de ‘irracionalidade’, ‘desrazão’, ‘dubiedade’ e ‘indecisão’. Em outros termos os vinculam a
11
incapacidades de ‘tomada de decisões racionais’, marcando o distanciamento da mulher do
universo e intuições ‘masculinas’, do ‘poder’.
Igualmente, contradições se fazem evidenciar em relação à dimensão ‘Objetificidade’,
notadamente ao retratar mulher de forma ambígua. Ora no sentido de ‘objeto sexual’ (‘mulata’,
‘morena’, ‘prazer’, ‘orgia’), ora como ‘objeto de trabalho’, a serviço e ou como fonte de
sustentação financeira do ‘patrão’, do ‘esposo’, do ‘amante’, do ‘malandro’ ou do ‘cafetão’
(‘serva’, ‘doméstica’), ora como objeto de ‘ostentação masculina’ (‘joia’, ‘vestido’, ‘beleza’).
Para capturar mudanças decorrentes de transformações econômicas e sociais vivenciadas pela
sociedade brasileira ao longo do período em análise (1880-1970), objetivando o ‘lançamento
de algo novo no campo’ (Castañer e Campos, 2002, p. 31), parte da construção da teoria
focalizou a análise dos dados por estágios. A ‘hipótese’ adotada é que diferentes momentos
históricos exibem variações nas narrativas e características atribuídas à mulher. Mais
precisamente interessou-nos, a partir da noção de ‘descontinuidade’ (Foucault, 1997),
investigar a extensão em os significantes aportados à ‘mulher’ se desviaram de convenções
dominantes na transição entre a primeira e segunda ondas do movimento feminista, no Brasil.
Além do ‘o quê’ abarcado pelos fatores propostos - características associadas aos fatores de
‘Imprevisibilidade’, ‘Objetificidade’ e ‘Idealidade’) - objetivou-se, portanto, considerar
questões de ‘como’, ‘quando’, ‘onde’, e ‘por quê’ (Whetten, 1989).
Finalmente, vale salientar a utilização de ‘códigos seletivos’ para integrar e refinar a teoria
emergente, tendo o processo analítico se concluído quando da percepção de que ocorrera
‘saturação teórica’ (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016; Strauss & Corbin, 1990).
Estudo dos Casos e Achados
Nesta seção apresentamos os principais significantes utilizados para caracterização da mulher
junto às composições musicais constantes da ‘Coleção História da Música Popular Brasileira’,
abrangendo o período compreendido entre os anos de 1880 a 1970. Nesse intervalo temporal se
modela, precisamente no plano internacional, mas também no Brasil, significativas
transformações culturais, sociais e comportamentais, com reflexos marcantes na luta pelos
direitos civis das ‘minorias’ e, em particular nas batalhas travadas pelo movimento feminista.
Conforme indicam diversos autores, o movimento feminista vivenciará neste período a
intensificação e expansão de suas iniciativas, instaurando um novo estágio de seu
desenvolvimento. Para eles, esse estágio se estenderá de meados do século XIX a meados do
século XX. Nesse longo período, um intenso trabalho de conscientização e envolvimento das
mulheres propiciou conquistas importantes na luta por direitos - ‘voto’, ‘divórcio’, ‘regulação
trabalhista’. No entanto, será a partir dos anos 1960 que o movimento feminista ganhará novos
contornos e maior amplitude, aportando novas agendas e pautas de luta. Nesse segundo estágio,
marcado pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, a busca por relações mais
horizontalizadas, esperam-se significantes associados a novas formas de luta (Arán, 2006).
Por meio dos casos analisados na pesquisa que subsidiou a produção deste artigo buscou-se
evidências dessas transformações. Isto envolveu a analise, década a década, de ‘permanências’
e ‘descontinuidades’ (Foucault, 1997) - nas representações da mulher subjacentes às
composições musicais objeto do estudo.
12
Para tal, novos procedimentos de análise foram incorporados ao estudo. Em linhas gerais, os
significantes obtidos dos 132 casos investigados foram novamente transpostos e
horizontalmente alinhados em uma planilha Excel com o objetivo de proporcionar melhor
visualização de sua presença, em cada década, conforme exemplificado no Quadro 5.
Quadro 5. Alinhamento de significantes por década (Exemplificação)
1880 -1909 1910 -1919 1920 -1929 1930 -1939 1940 -1949 1950 -1959 1960 -1969 1970
Amor Amor Amor
Briga
Dinheiro Dinheiro Dinheiro Dinheiro
Mulata Mulata Mulata
Mundo Mundo Mundo Mundo Mundo
Coração Coração Coração Coração Coração Coração Coração
Alegria Alegria Alegria Alegria Alegria Alegria Alegria
…
Fonte: Dados da pesquisa
Igualmente, com o objetivo de verificar, para cada década estudada, a representatividade dos
fatores produzidos das rodadas de análises anteriores - ‘Imprevisibilidade’, ‘Objetificidade’ e
‘Idealidade’ - considerou-se, a partir do N-vivo 9.0, o número de repetições de cada significante
referente à noção de mulher. A Tabela 1 ilustra os resultados.
Tabela 1. Análise quantitativa dos significantes por década
Nota: A tabela considera o número de vezes que aparecem palavras mesmo que repetidas relacionadas aos fatores
obtidos, por década.
Visando articular os significantes às narrativas típicas dos momentos históricos típicos de cada
período recorremos, uma vez mais, à teoria. Como resultante foi possível, a partir da
categorização proposta por Tinhorão (1998), reagrupá-los em quatro estágios narrativos:
‘Brasil República’ (BR), ‘Estado Novo’ (EM), ‘Pós-guerra’ (PG) e ‘Regime Militar’ (RM),
conforme explicitado na Tabela 2.
Tabela 2. Análise quantitativa dos significantes por década
Nota: A tabela considera o número de vezes que aparecem palavras mesmo que repetidas relacionadas aos fatores
obtidos, por estágio.
Décadas Imprevisibilidade % Objetificidade % Idealidade % TOTAL
1880-1909 2 22,0 7 77,8 - - 9
1910-1919 22 48,9 13 28,9 10 22,2 45
1920-1929 17 53,1 7 21,9 8 25 32
1930-1939 193 52,4 112 30,4 63 17,2 368
1940-1949 76 49,0 54 34,8 25 16,2 155
1950-1959 77 46,1 35 21,0 55 32,9 167
1960-1970 82 40,7 61 30,3 58 28,9 201
Estágios Imprevisibilidade % Objetificidade % Idealidade % TOTAL
BR 24 44,4 20 37,0 10 18,6 54
EN 210 52,5 119 29,8 71 17,7 400
PG 153 47,5 89 27,6 80 24,9 322
RM 82 40,8 61 30,3 58 28,9 201
TOTAL 469 48,0 289 30,0 219 22,0 977
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Finalmente, além dos recortes temporais procurou-se também articular os fatores emergentes
da pesquisa às ondas do Movimento Feminista que perpassaram o período em análise (1880-
1970). As caracterizações de cada estágio vis-à-vis aos dados obtidos desta pesquisa são
discutidas a seguir.
Estágio 1 (1880-1919): Brasil República
A ‘Coleção História da Música Popular Brasileira’ contempla para o período que se estende de
1880 a 1919, 54 composições com referência à categoria ‘Mulher’, correspondendo a 5,5% do
total de casos analisados. Poder-se-ia aventar que o reduzido número de letras inseridas junto à
coletânea no período em questão reproduzisse um baixo interesse quanto à temática da mulher
nos hits e gostos da audiência vigente. Essa hipótese, todavia, não se sustenta quando se leva
em conta análise mais ampla dos ‘clássicos’ musicais do período. Ao contrário, a teoria sugere
ampla gama de composições, neste período, alusiva à mulher (Ericeira, 2012; Tinhorão, 1998;
Souza, 2001; Diniz, 1999; Moraes, 1958).
Para a compreensão de seu teor vale, de início, ter em mente que a música popular brasileira
dessa época se direcionava sobretudo à classe média, cujo desejo de modernidade e superação
da realidade ‘agrária’ e do ‘ancien regime’, aproxima-a de sua equivalente nos países
desenvolvidos. Entendida, portanto, como artigo de consumo de uma sociedade urbana em
expansão, a música popular brasileira e seus novos gêneros não chegarão a atingir as camadas
populares. Isto, considerando, dentre outros fatores, os elevados preços das novas técnicas de
divulgação musical - equipamentos de rádio, discos e gramofones (Souza, 2001).
Nesse contexto, as comunidades baianas migradas para o Rio de Janeiro - alheias às novidades
importadas - serão responsáveis, neste período pós proclamação da República (1889), pelas
‘duas maiores criações coletivas do povo miúdo no Brasil: o carnaval de rua dos ranchos e suas
marchas e o ritmo do samba’ (Tinhorão, 1998, p. 263).
Sob uma perspectiva sociológica, para DaMatta (1994), as marchinhas e, posteriormente, as
músicas de Carnaval, apresentam-se exemplares para se pensar o Brasil. Isto, na medida em
que, primeiramente marginais, ganham paulatinamente espaço difundindo-se em todas as
camadas sociais, superando barreiras econômicas, etárias e sexuais, constituindo-se em
‘instrumentos simbólicos pelas quais a sociedade brasileira encontra meios para dramatizar seus
valores sociais, para pensar suas relações de poder, bem como para aludir a questões referentes
ao relacionamento entre homens e mulheres no país’ (Ericeira, 2012, p. 85).
Em levantamentos sobre a música popular brasileira desse período Ericeira (2012) faz menção
a três aspectos relevantes: em primeiro lugar, ao fato de a quase totalidade das canções serem
de autoria masculina; segundo, à predominância de compositores ligados às camadas médias
cariocas; e, terceiro, corroborando nossa hipótese, a presença de grande número de músicas
contemplando temas relacionados à mulher, com destaque para sua aparência física, sua honra
e comportamento.
Segundo historiadores da música popular brasileira até o final do século XIX não se tem registro
de músicas específicas para o Carnaval. Os grupos carnavalescos saiam pelas ruas ao som de
maxixes, habaneras, modinhas, valsas e polcas. Será somente em 1899, curiosamente pelas
mãos de uma mulher, a maestrina Chiquinha Gonzaga, que se compõe a marcha-rancho ‘Ó
Abre-Alas’, sob encomenda do cordão carnavalesco Rosa de Ouro (Diniz, 1999). Será, no
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entanto, somente a partir da segunda década do século XX que as músicas de Carnaval se verão
difundidas em larga escala (Moraes, 1958).
Quanto aos campos semânticos identificados para este período em relação à mulher, os dados
desta pesquisa corroboram achados anteriores que apontam para a busca de ‘[...] definição da
mulher por meio de algum aspecto físico ou natural, assim como às percepções das diferentes
formas de relacionamento entre homens e mulheres’ (Ericeira, 2012, p. 91), com destaque para
características associadas ao fator ‘Idealidade’ e, em particular, às ênfases em relação a dotes
estéticos e à beleza feminina.
Nessa direção, os casos estudados são ilustrativos da atenção dispensada ao tom da pele ou
etnia da mulher. Nesse sentido, é interessante como o ‘cabelo’ coloca-se como ‘uma espécie de
metonímia das mulheres’, elegendo-se a morena como a cor da mulher brasileira e a loira como
representante de territórios alhures (Ericeira, 2012, p. 93).
Em relação ao fator ‘Objetificação’, a mulher é comumente retratada de modo a reiterar seu
‘ser biológico’ e, portanto, objeto de prazer e ou de reprodução da espécie; e ‘[...] não como ser
social dotado de capacidade intelectual ou de aptidão para o trabalho’ e para a política (Ericeira,
2012, p. 93).
Curiosamente, as narrativas musicais analisadas neste contexto histórico fazem emergir a noção
de ‘mulher-dominante”, a qual ‘contrariamente à dominação masculina que faz uso da
agressividade e da gerência dos bens materiais para subjugar a mulher, recorre aos seus
atributos físicos e à economia afetiva para exercer o controle sobre os sentimentos e
comportamentos masculinos’, dando a entender uma inversão do sentido da dominação, ‘posto
ser a mulher que exerce o controle da relação, fazendo com que o homem solicite seu amor e
sua atenção’ (Ericeira, 2012, p. 94).
Assim sendo, ‘Objetificação’ e ‘Imprevisibilidade’ - este último menos pronunciado nas
composições analisadas neste período - parece se enodar. Isto, na medida em que ‘embora
encontrando mecanismos para se proteger contra os seus feitiços, o homem sucumbe, pedindo
anistia, perante o que denomina de ‘olhar fuzilante’ da mulher-dominante (Ericeira, 2012, p.
94). ‘Nessa relação desigual entre senhora e escravo, é este que deve implorar a Deus que sua
senhora se apiede, concedendo-lhe um beijo’. Cabe, todavia, observar que essa visão da mulher
como ocupante do papel dominante se vê reduzida ao domínio dos afetos, passando ao largo do
mundo da razão e do trabalho, propriedades inerentes e restritas ao universo masculino
(Ericeira, 2012; Bourdieu, 1999).
Além disso, tem-se uma atitude dúbia também diante da mulher-parceira - objeto idealizado-
odiado - que se desvela, por exemplo, no trato com a relação financeira: ‘ao mesmo tempo em
que a dependência econômica da mulher é um elemento a mais na posse, ela é apontada como
um risco de falsidade’. Retratando o cenário da precariedade das condições econômicas das
classes populares, o conflito doméstico, em que a mulher - ‘esposa’, ‘nêga’, ‘teúda’ e
‘manteúda’ -, objeto possuído, adquire, não raro, o estereótipo da ‘falsa interesseira’ (Costa,
2006). O Quadro 6 ilustra os principais significantes associados à mulher nas canções estudadas
referentes ao período 1880-1919.
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Quadro 6. Principais Significantes por Fatores (1880-1919)
Período Imprevisibilidade Objetificidade Idealidade
1880-1919 Paixão, noite, mundo, briga
Mulata, dinheiro, ardor,
calor, desejo, sabor,
donzela, fragilidade
Santidade, amor,
divindade, beleza,
alegria, prece, sonho
Fonte: Dados da pesquisa
A emergência do Estado Novo - com a tomada do poder por Getúlio Vargas -, a maior presença
da mulher no mercado de trabalho e a emergência do movimento modernista nas artes e na
cultura brasileira irá, todavia, sugerir um novo estágio.
Estágio 2 (1920-39): Estado Novo
O avanço da música popular brasileira dos morros cariocas para os recintos das médias e altas
do país será lenta e não sem perseguições, preconceitos e sobressaltos, tendo somente em 1920
se registrado o primeiro sucesso nacional de uma marchinha carnavalesca: ‘Pé de Anjo’,
composta por Sinhô. Tal abertura terá como pano de fundo uma cidade do Rio do Janeiro -
então capital federal - na efervescência do cinema, da ‘era do rádio’ e do ‘teatro de revista’. Isto
não obstante a ditadura do presidente Getúlio Vargas (1937-1945) que restringe a liberdade de
expressão, ao mesmo tempo que fomenta manifestações culturais de cunho patriótico e ufanista.
Igualmente, assiste-se à busca por apropriação da cultura popular e pela valorização de
produções ‘mestiças’, tendo-se as discussões em torno das relações de gênero maior presença
no cotidiano da cidade.
Não obstante as conquistas sociais obtidas pelas mulheres durante este período - como o direito
ao voto e à inserção em algumas atividades profissionais - prevalecem discursos conservadores,
cerceadores do direito de expressão e de circulação da mulher nos espaços públicos, ainda
reservados ao universo masculino. Conforme observa (Paranhos, 2013, p. 135): ‘Que não se
pense que o presente sepultara de vez o passado. Este se atualizava sob diversos aspectos e se
insinuava em muitos discursos, práticas e normas legais’. Sob as normas de uma estrutura ainda
fortemente patriarcal, as mulheres permanecem condenadas ao trabalho doméstico e
reprodutivo, não obstante o crescimento de sua participação na força de trabalho remunerada.
Análise dos significantes utilizados com referência à mulher nas composições musicais
produzidas nessa época reiteram-na, uma vez mais, como ideal de bela e juventude, capaz de
despertar e dominar o interesse sexual masculino; mas, ao mesmo tempo, a ele submissa e fiel.
A dimensão da dominação masculina - permeada pela noção de objetificação - impõe, por
exemplo, às mulheres que ousassem sair desacompanhadas à noite ou que cometessem algum
ato de desagrado ao pai ou ao marido duas opções: a ‘difamação’ ou ‘agressão física’.
Relevante considerar que submetidas à censura prévia do Departamento de Imprensa e
Propaganda – DIP, as composições musicais dessa época se veem sob intenso patrulhamento
visando sua conformidade aos códigos de comportamento destinados a assegurar uma ‘boa
sociedade’. Particularmente a partir de 1940, a vigilância do DIP se intensificará em torno das
figuras do ‘malandro’ e da ‘malandragem’. Como resposta, as letras comumente produzidas por
homens - e interpretadas por mulheres - terão uma torrente de canções destinadas a expressar,
em particular, a insatisfação das mulheres com companheiros ‘malandros’ e ‘sanguessugas’,
que dão as costas ao trabalho.
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Igualmente, serão comuns letras destinadas a expressar as ‘dores de amor’ sentidas pelos
homens; bem como de mudanças no comportamento feminino, que passam a trocar a reclusão
nos ambientes domésticos pela ‘gandaia’ (‘orgia’), regada a samba e batucada. Em certa
medida, decisão responsável pela alegria ou pelo sofrimento psicológico masculino.
A repressão do DIP fomenta também o emprego pelos compositores de então de figuras
retóricas para o enaltecimento de aspectos da ‘natureza brasileira’ e, nesse contexto, da beleza
física das mulheres. Nesse âmbito, os casos analisados nesta pesquisa, assim como a literatura
sobre o período, apontam, uma vez mais, para número significativo de letras com referência ao
tom da pele. No entanto, até então utilizadas como razão do atraso intelectual e econômico do
país, na década de 1930, o pensamento sociológico nacional busca reformulá-la como elemento
de alteridade da identidade brasileira (Ericeira, 2012; Freyre, 1981).
Esse mercado da música fomentado por gêneros locais e populares alcançará seu limite, no pós-
guerra, em particular com a mudança de postura política dos Estados Unidos em relação à
América Latina. Como efeito, após a segunda grande guerra mundial, os investimentos na
difusão do ‘American Way of Life’ colocarão termo ao estágio do Estado Novo (Souza, 2001).
Estágio 3 (1940-1959): Pós-Guerra
Em relação a este estágio identifica-se o segundo maior número de composições com a alusão
à categoria ‘Mulher’: 523 casos; sendo 153 classificados junto ao fator ‘Imprevisibilidade’, 89
no fator ‘Objetificidade’ e 80 em ‘Idealidade’ (Quadro 7).
Quadro 7. Principais Significantes por Fatores – 1940-1959
Período Imprevisibilidade Objetificidade Idealidade
1940-1959
Mundo, coração, noite,
morte, anormal, aflição
ausência, feitiço, flerte,
solidão, esquecimento, falta,
lágrima, olhar, passado,
perda, desrazão, outro,
saudade, emoção, paixão,
ruína, fingimento, remorso,
vingança, loucura,
madrugada, tormento, ilusão,
desespero, malícia
Posse, beijo, beijinhos,
lábios, ardor, desejo,
capacho, filhos, favor,
necessidade, trabalho,
vestido, morena, braços,
corpo, cozinha, criança,
agradar, boêmia, favor
Beleza, sonho, carinho,
madame, vaidade,
maternidade, prece,
sonho, alegria, carinho,
alegria, musical,
namoro, oração, versos,
pequena
Fonte: Dados da pesquisa
Em termos das narrativas presentes nas composições analisadas é significativo no cenário da
música nacional deste período, em especial com a retomada do país ao regime democrático, a
crescente influência do modelo norte-americano, com respectiva perda de espaço dos estilos
até então dominantes na música popular brasileira. Igualmente, assiste-se a um grupo de jovens
da classe média carioca, saturados pela avalanche de músicas estrangerias, a movimentos de
‘atualização’ da música brasileira. Inicialmente, com referências na música clássica e no jazz,
bem como posteriormente retomando-se o interesse pelos compositores populares forjam-se as
bases para a Bossa Nova.
O movimento bossanovista terá como pano de fundo o clima de otimismo e de modernização
vivenciado pelo país durante o governo de Juscelino Kubitschek (1954-1960). A inauguração
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de Brasília, a expansão dos processos de industrialização e de urbanização do país irão compor
o cenário para novos comportamentos e modos de vida.
Na música, tal clima se fará refletir na exaltação das paisagens da cidade do Rio de Janeiro, na
intimidade com o mar e com a praia. Nesse cenário, a mulher é retratada como parte do
cotidiano de uma classe média-alta, tendo como cenário favorito o bairro carioca de
Copacabana. Vale observar, no primeiro momento, uma participação da mulher eminentemente
como intérprete – com exceção de Dalva de Oliveira, em parceria com Tom Jobim, um dos
grandes nomes do movimento.
Tendo como pano de fundo as referências às paisagens fluminenses os relacionamentos serão
indiscutivelmente os temas centrais do gênero musical em questão. Nessa direção, as
composições evidenciam, uma vez mais, resquícios da mulher como ser idealizado, como
‘musa’ a que todo amor será dado, expressando a ideia de amor perfeito, ideal. Apesar de maior
horizontalidade das relações e de tímido posicionamento rumo a igualdade, a relação de
dominação masculina não sofrerá grandes mudanças, tendo a mulher se perpetuado como
‘auxiliadora’ e ‘apêndice’ do homem. Ao contrário das músicas de décadas anteriores, a
linguagem adotada para expressar os sentimentos apresenta-se, no entanto, mais leve e menos
dramática - comparativamente ao samba canção, por exemplo.
As músicas ainda se verão geralmente escritas no masculino, constatando-se não-raro o
pronome “ela” nos repertórios, aludindo à mulher uma posição secundária, comumente
associada a letras que retratam as instâncias do sentimento e/ou da relação amorosa homem-
mulher. No entanto, se por um lado algumas músicas mantêm postura de profunda
contemplação em relação à mulher em outras a vemos como agente ativo, porém em contextos
em que os discursos associados à ação feminina são frequentemente positivos. Mesmo quando
os relacionamentos acabam e emerge a saudade a mulher não é vista como ingrata, malévola,
mas ainda como ‘objeto desejado’.
Ao compararmos os achados deste período com o de períodos anteriores constata-se que apesar
de nuances à ‘igualdade’, o discurso permanece restrito ao masculino, perpetuando a condição
secundarizada do feminino, bem como a direção do ‘olhar’ ainda significativamente orientado
para o outro, no caso o homem. A condição da mulher nesse contexto, uma vez mais, marcada
pelo paradoxo: se por um lado ela é protagonista no sentido de participar da ação, consentindo
ou não o relacionamento, permanece como coadjuvante, isto, na medida em que o sentimento
se apresenta como pivô central das composições.
Enfim, apesar da emancipação de algumas mulheres, até fins da década de 1950 não se
registram mobilizações consideráveis dos movimentos feministas junto à música popular
brasileira, nem tampouco reivindicações mais sistemáticas em prol de uma causa. Apesar de
grande número de temas e questões retratados pela música popular brasileira do período terem
como substrato o cotidiano feminino, não se verifica um esforço organizado em prol de
mudanças na condição em que se vê retrata. Lamentavelmente até este período pode-se dizer
que a mulher não se reconhece como grupo e não tem história própria nos grandes hits da
música popular brasileira. Coincidentemente, o movimento feminista apesar de existir desde o
século XIX, no período abordado não será tema de grandes discussões no país. Será preciso
aguardar as grandes transformações no feminismo mundial, com a transição para sua segunda
geração, para novos movimentos.
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Estágio 4 (1960-1970): Regime militar
Com a promulgação, em 1969, do Ato Institucional n. 5, pelo governo militar alçado ao poder
pelo golpe de 1964, ampliam-se radicalmente os poderes do regime e sua força repressiva.
Como efeitos tem-se uma interrupção abrupta das experiências musicais registradas nas duas
décadas anteriores. A partir de então, as músicas de protesto ao regime e o movimento
tropicalista - movimento cultural que emerge sob a influência de correntes artísticas de
vanguarda e da cultura pop nacional e estrangeira, mesclando manifestações tradicionais da
cultura brasileira a inovações estéticas e comportamentais - irão se dedicar a formas de
resistência ao endurecimento da censura e ao avanço da ideologia do projeto econômico
proposto pelo regime militar: ‘a conquista da modernidade pelo [...] alinhamento às
características do modelo importador de pacotes tecnológicos prontos para serem montados no
país’ (Tinhorão, 1998, p. 325).
Nesse estágio, como contraposição a estilos musicais ‘alienados’ - como a Jovem Guarda, por
exemplo - a ‘Música Popular Brasileira – MPB’ se afirma como sigla síntese da busca por novas
formas musicais capazes de expressar os ideais de um país que se almeja democrático e
influenciado por uma ideologia popular nacionalista. Nesse sentido temas como ‘modernidade’,
‘liberdade’, ‘justiça social’ se evidenciam como marcas registradas da MPB, em particular nos
momentos mais autoritários do regime militar, entre os anos 1969-76.
Nesse período os ouvintes mais assíduos da MPB serão os jovens, de classe média, de nível
escolar médio e universitário, os quais lhe conferem a reputação de ‘bom gosto’ e ‘qualidade
musical’. Não se pode, igualmente, ignorar os reflexos, também no Brasil, dos movimentos
estudantis, pelos direitos civis e feministas, protagonizados no continente europeu e nos Estados
Unidos. Os festivais universitários, organizados pelas principais emissoras de televisão da
época, também desempenharão papel importante no reforço aos traços e à consolidação da
hegemonia da MPB junto ao público jovem mais intelectualizado e politicamente mais
engajado.
Aproveitando a crise mundial do petróleo e o enfraquecimento do governo, com a derrocada do
‘milagre econômico brasileiro’, os jovens ganham as ruas, exilados começam a retornar ao país
e o governo a ceder a uma redemocratização ‘lenta e gradual’, impulsionando cada vez mais os
jovens e as classes populares a lutarem por seus direitos. Como resultado, o processo de
distensão do regime militar, pós 1977, irá abrir espaço para um novo boom criativo e comercial
da música popular brasileira. Já por volta de 1978, a MPB já compreendia em todas as suas
esferas estilísticas e de influência social, o segmento mais dinâmico da indústria fonográfica
brasileira. Ao mesmo tempo constata-se sua penetração junto a novos públicos, fora dos
extratos mais intelectualizados e universitários da classe média. Esse auge se estenderá até o
início dos anos 1980, quando o cenário musical nacional irá se voltar para o rock nacional.
Nesse contexto de enfrentamento ao regime militar irá ressurgir, principalmente por meio de
exilados que tiveram contato com as ideias feministas na Europa e nos Estados Unidos, bem
como da participação ativa de mulheres nas organizações eclesiais de base e de combate à
ditadura, registram-se as primeiras manifestações contrárias a violência contra a mulher.
Ampliando seus espaços de fala e de expressão, um aliado importante será a decretação do ano
de 1975 como “Ano Internacional da Mulher”.
Tal cenário estimula a militância feminista que se alastra para outros espaços - sindicatos,
partidos políticos, universidades - na defesa de temas como o direito de ter ou não filhos, a
19
punição aos assassinos de mulheres, o aborto, a sexualidade, a violência doméstica, os quais
foram posteriormente incorporados a diversos programas de partidos políticos de esquerda
(Henkin & Rodrigues, 2014; Soares, 1998).
Enquanto o feminismo da ‘primeira onda’, no final do século XIX, centra-se em reivindicações
dos direitos políticos (direito ao voto), trabalhistas e econômicos das mulheres, o da ‘segunda
onda’, ampliado no Brasil deste período, abraça temas de caráter mais subjetivos, priorizando
as lutas pelo corpo, o direito ao prazer e ao livre exercício da sexualidade (Gomes da Silva,
2014). Conforme observa Faour (2011, p. 16), ‘só a partir dos anos 70 a mulher e o gay
passaram a ser tratados com maior dignidade por nossos letristas’. O Quadro 8 apresenta os
principais significantes associados à representação da mulher nos fatores obtidos, no período
1960-1970.
Quadro 8. Principais Significantes por Fatores – 1960-1970
Década Imprevisibilidade Objetificação Idealização
1960- 1970
Coração, flerte, fingimento,
esquecimento, capricho, emoção,
esperança, alucinação, crença,
paixão, mundo, noite, desprezo,
dissabor, razão, mágoa, saudade,
pranto, perfume
Posse, dinheiro, beijo,
calor, amante,
necessidade, braços,
corpo, casamento,
maciez, joia
Amor, carinho, beleza,
estrela, bênção,
cinderela, alegria,
adoração, calma, amor
Fonte: Dados da pesquisa
Não obstante, a prevalência do modelo masculino registra-se uma crescente expansão da
participação da mulher na composição musical. É, de fato, inegável as conquistas,
questionamentos e denúncias às formas tradicionais de dominação masculina e aos
micropoderes que as capilarisa e as naturaliza, abrindo novos ‘espaços de fala’ e, por
conseguinte, novas possibilidades de reinvenção do feminino.
Esses quatro estágios - inovação proximal, inovação difusa, inovação estabelecida e inovação
mantida – descrevem a evolução da MPB e a representação da mulher conforme os ícones
musicais constantes da ‘Coleção História da Música Popular Brasileira’. Conforme procurou-
se evidenciar acima, para cada estágio constatam-se permanências e descontinuidades em torno
do imaginário da mulher. Muito embora de forma dúbia e permeada pelo ‘eterno feminino’ e
pela marca de objeto sexual, a mulher vai conquistando novas representações MPB, refletindo
o próprio movimento em prol de melhoria de suas condições no seio da sociedade brasileira.
Síntese das Discussões e Conclusões
Este estudo ao investigar como a mulher é retratada na música popular brasileira no período
compreendido entre os anos de 1880-1970, aponta para ‘permanências’, bem como sinaliza
para ‘descontinuidades’ em relação à forma de sua representação social. Mais especificamente,
os achados sugerem a possibilidade de agrupamento do universo dos significantes em três
fatores principais - ‘Imprevisibilidade’, ‘Objetificidade’ e ‘Idealidade’- recorrentes ao longo
do conjunto dos estágios que caracterizam a produção da música popular brasileira, conforme
propostos por Tinhorão (1998): ‘República Nova’, ‘Estado Novo’, ‘Pós-guerra’ e ‘Regime
Militar’.
20
Concomitantemente, as mudanças na representação da mulher em cada um desses estágios
apontam para a influência direta de mudanças contextuais - socioeconômicas, culturais,
políticas e comportamentais - bem como suas relações e repercussões nas agendas de lutas e
conquistas dos movimentos feministas (Arán, 2006). Não obstante, convém ressaltar a
prevalência de composições musicais que retêm, ao longo do tempo, formas tradicionais de
dominação masculina (Bourdieu, 1999). De fato, os achados deste estudo apontam para o
caráter hegemônico e recorrente de representações da mulher que reiteradamente a vincula a
pares binários, tais como ‘natureza-cultura’ (biológico-corporal versus cultural-discursivo),
‘objetividade-subjetividade’ (imprevisibilidade-irracionalidade versus objetividade-
racionalidade), ‘sujeito-objeto’ (satisfação-prazer versus produção-realização). Pares esses,
reforçados por significantes que a restringem aos espaços privados e domésticos, não raro sob
justificativas que enfatizam seu frágil e instável caráter, bem como a naturalidade de seus
instintos maternos.
Recorrendo, uma vez mais à teoria, ampliamos nossa análise sobre a representação da mulher
a outros campos das artes - literatura, artes plásticas, teatro, dança -, o que permitiu constatar a
prevalência das representações obtidas por meio do estudo no contexto da música popular
brasileira. As influências patriarcais, patrimonialistas e falocêntricas se fazem igualmente
constatar também nessas outras manifestações culturais desde, inclusive, temporalidades ainda
mais remotas (Colling, 2014; Gardiner, 2005; Heilborn, 2002; Lipovetsky 2000; Perrot, 1995;
Laqueur, 1994; Stoller, 1968; Mead, 1949), conforme ilustrado no Quadro 9.
Igualmente, os achados contribuem com estudos anteriores que chamam a atenção para a
relevância da implicação pessoal do artista, como parte interessada na causa por ele defendida.
No entanto, o que reforçamos nessa discussão é a importância desses agentes na abertura e
construção de ‘espaços de fala’. Nesse sentido, acrescentamos à ênfase no papel da ação
individual (Boari & Riboldazzi, 2014), a importância de papeis sociais e relacionais, por meio
dos quais discursos alternativos possam se lançar, manipulando algum aspecto do contexto
social (Phillips & Lawrence, 2010). Desse modo, defende-se que os artistas desempenham
papel significativo ao se engajarem em trabalho relacional com o objetivo de produzir espaços
e ou abrir fissuras em que novas agendas discursivas possam penetrar e se fixar (Montanari,
Scapolan, Gianecchini, 2016). De fato, nossos achados apontam, a partir do conjunto dos
estágios estudados, possibilidades concretas de ‘descontinuidades’, somente a partir do
momento (e.g. do estágio descrito como ‘Regime Militar’), em que maior número de mulheres
assumem a tarefa de produção das próprias composições musicais.
Com base em Montanari, Scapolan, Gianecchini (2016) compreende-se o trabalho relacional
como o processo que ‘inclui o estabelecimento de ligações sociais, sua manutenção, sua
reformulação, sua distinção das outras relações e, às vezes, seu término’ (Bandelj, 2012, pág.
176). Não se trata, portanto, da proposição de formas simplistas de ação e engajamento, mas,
ao contrário, de ações ‘conceituantes’, inseridas nas estruturas sociais que se busca modelar.
Nessa direção, nossos achados contribuem para uma melhor compreensão do lado
‘microscópico’ da capacidade de disruptiva aportada pela artística e, assim, complementa e
amplia resultados de pesquisas centradas na estrutura (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016;
Cattani, Ferriani, Allison, 2014; Zaheer & Soda, 2009).
Assim sendo, ao salientar o papel desempenhado pelo trabalho relacional de um artista,
ampliamos a necessidade de olhares mais atentos à microteoria da ação criativa, que sustenta
que a inovação artística é o resultado da ação individual por meio da qual os indivíduos agem
como ‘empreendedores institucionais’ (DiMaggio, 1998), por exemplo, ao desenvolverem
21
parcerias e grupos que apoiam suas empreitadas artísticas (Montanari, Scapolan, Gianecchini,
2016). O estudo, desse modo, amplia a compreensão do processo por meio do qual um artista
se engaja em diferentes interações com sociais, por exemplo, por intermédio de sua ligação com
outros compositores, parceiros, interpretes, festivais e ou a movimentos, os quais possam
propiciar acesso a espaços e a recursos necessários à difusão de suas ideias e causas. Inspirados,
uma vez mais, em contribuições aportadas por Montanari, Scapolan e Gianecchini (2016),
ilustramos, na Figura 1, o modelo analítico-teórico aplicado para fins deste estudo.
Figura 1. Modelo Analítico-teórico de ‘Descontínuidades’ por ação/protagonismo relacional.
Nota 1. Considerada a análise das narrativas das composições musicais, do contexto social e dos significantes
constantes dos fatores identificados na pesquisa: ‘Imprevisibilidade’, ‘Objetificidade’ e ‘Idealidade’.
Fonte: Dados da pesquisa.
Embora este estudo se debruce sobre a análise de período de tempo (1880-1970),
provavelmente sua maior contribuição esteja assentada no estágio mais recente das
composições musicais estudadas. Análise futura sobre o período pós-1970 poderá expandir os
atuais achados. Certamente, uma extensão do estudo para a transição entre a segunda e terceira
ondas do feminismo - ou ainda da terceira para a quarta onda, sugerida por alguns autores -
permitirão corroborar nossos achados acerca da importância de papeis mais protagônicos da
mulher - em particular como compositoras - na construção de ‘espaços de fala’ e de posturas
diferenciadas nas relações com os demais agentes sociais e instituições envolvidos no ‘campo’
Tempo
ProtagonismodaMulhernasRelações
Trabalho
Relacional
Estágio
Representação
Social da
Mulher (1)
República Nova
(1880-1920)
Estado Novo
(1930-1940)
Pós-guerra
(1940-1950)
Regime Militar
(1960-1970)
Domínio masculino
das composições.
Poucas mulheres no
meio. Quando
presentes, atuantes
como interpretes. No
máximo, como
compositoras de
músicas
instrumentais.
Radicalmente
Conservadora
Fortemente
Conservadora
Domínio masculino
das composições.
Ampliação da
participação das
mulheres como
interpretes de projeção
nacional, via
penetração do Rádio e
Teatro de Revista
Conservadora
Domínio masculino
das composições.
Mulheres como
interpretes ou em
dupla com homens.
Espaços sendo
abertos no Rádio, sob
interveniência
masculina
Predomínio masculino das
composições. Mulheres
começam a ocupar
espaços, por meio da
televisão, movimentos
coletivos e ou festivais
Abertura de espaços de fala e de
poder. Mudanças, porém,
incrementais. Construção de relações
com potenciais ‘disruptivos’ (futuro)
Mulher
Homem
Mulher
Rádio
Homem
Rádio
Homem
Mulher
RádioHomem
TV
Festivais
Movimentos
Movimento Feminista: Primeira Onda Movimento Feminista: Segunda Onda
(Transição)
Mulher
Baixo
Alto
22
(Bourdieu, 2009) musical - e.g. outras compositoras, parceiras, interpretes, bandas, grupos,
festivais e movimentos musicais. Acreditamos que tais ações relacionais, levadas a cabo nos
anos 1970, por um maior número não apenas de interpretes, mas também de compositoras
mulheres - e.g. Sueli Costa, Marlui Miranda, Luli e Lucina, Kátia de França, Angela Roro, Zelia
Duncan, Vange Leonel, Paula Toller, Marina Lima (Brazil, 2015) -, mas também bandas e
grupos musicais capiteados por mulheres abriram novos ‘espaços de fala’ e ‘novos dialógos’
ampliando as potencialidades de criação de novos significantes e rupturas com o mainstream.
Estudo conduzido por Henkin e Rodrigues (2014), envolvendo análise do discurso feminista
(Pêcheux, 1997) em três letras de músicas de três diferentes ‘estilos’ (Possenti, 2001) musicais:
Rock, MPB e Funk, produzidas a partir dos anos 1980, ‘período em que o movimento feminista
conquista vários direitos para as mulheres’ (Henkin e Rodrigues, 2004, p. 8), as autores
identificam que ‘o discurso feminista aparece como afirmação da igualdade entre homens e
mulheres, como crítica ao pensamento machista e como confirmação de um novo
posicionamento das mulheres em suas relações com os homens, com os espaços de produção
e reprodução do sistema, com os espaços de poder’. Ainda segundo elas ‘os discursos musicais
analisados aparecem as mulheres que exercem seus direitos e que rejeitam a dominação sexista,
mostrando a sua força e o seu protagonismo’. Muito embora o reduzido número de casos
investigados, Henkin e Rodrigues (2004, p. 17) concluem salientando que o ‘feminismo, como
acontecimento, destaca mulheres que conquistaram seu lugar no mercado de trabalho, em que
pese a dominação/exploração capitalista, que disputam, mesmo que não em condição de
igualdade, os espaços de poder, destacando fatos discursivos que revelam uma nova chave
histórica, rompendo com a concepção de naturalidade da desigualdade entre homens e
mulheres’.
Nesse sentido, possíveis retardos na incorporação da agenda de discussões da segunda onda do
feminismo, no Brasil, podem limitar a generalização dos resultados, bem como a própria opção
pelo estudo do conjunto das músicas inseridas na ‘Coleção História da Música Popular
Brasileira’ (1880-1970). Ademais, como produto comercial, os artistas, intérpretes e canções
não foram selecionadas ao acaso, mas, ao contrário, tendo por base interesses mercadológicos
e financeiros. Não obstante, conforme observa Milani (2014), evidenciarem-se, pelos
descritores das músicas e mesmo nas escolhas dos compositores, ideais de defesa da música
ligada a raízes e tradições, e não somente ao mercado.
Não obstante as limitações, importante contribuição deste estudo é sinalizar para o papel das
perspectivas relacionais, corroborando abordagens, que muito embora sob distintas matrizes
epistemologias e diferentes correntes teóricas, sugerem a relevância do estabelecimento de
redes de relacionamento, simultaneamente ao papel de agentes individuais, na construção de
posições de protagonismo nas ações e causas mobilizadas (Montanari, Scapolan, Gianecchini,
2016; Cattani , Ferriani, Allison, 2014; Bandelj, 2012; Zaheer & Soda, 2009). Assim, conforme
bem sintetiza Miranda (2014), quer por meio de um poder disciplinar que atribui poder
simbólico sobre os corpos, diferenciando e distinguindo-os em termos de valor e prestígio
(Bourdieu, 1999); quer no destaque aos agentes que fazem parte de relações de dominação e se
agregam por ter as mesmas orientações culturais e lutarem por elas (Touraine, 1985, 1984),
quer na ênfase aos modos de ação que envolvem, de um lado, as formas como os indivíduos
agem para constituir uma coletividade e, de outro, o método pelo qual eles confrontam isso com
o mundo externo e seus oponentes (Claus Offe, 1985); quer na análise de como se articulam
em uma ‘sociedade civil global’ (Alvarez, 2000) ou em um ‘enredo de redes’ (León, 1994); o
que se evidência, por meio de nossos achados, é que ‘permanências’ ou ‘descontinuidades’
derivam de um entrelaçamento de indivíduos, organizações e movimentos atuando em rede
23
(Castells, 1999), sendo o protagonismo dos agentes na construção de ‘espaços de fala’ fator
chave às ‘dinâmicas disruptivas’.
24
Quadro 9. A “mulher’ na antiguidade, na modernidade e no contemporâneo: significantes recorrentes
Temporalidades/
Fatores
Antiguidade Modernidade Contemporaneidade
Imprevisibilidade
Sedução, emoção, astúcia, perigo, inferioridade,
desrazarão, natureza, pandora, sofrimento, pecado,
proibido, bruxa, feminilidade, dissimulação,
luxúria, ambição, infidelidade
Vaidade, histeria, loucura, nervosismo,
incapacidade, inferioridade, desgoverno,
inveja, risco
Sensibilidade, incompetência, sentimentalismo,
ingenuidade, intuição, inveja, criatividade, risco
Objetificidade
Doméstica, invisibilidade, fertilidade, punição,
sexualidade, lar
Docilidade, submissão, obediência,
paciência, passividade, fraqueza, fragilidade,
subalternidade, conselheira, biológico
Fragilidade, fraqueza, dependência, submissão
Idealidade
Anjo, rainha, mãe, deusa, sensibilidade
Amor, castidade, pureza, comedimento,
delicadeza, beleza, sensualidade,
maternidade
Cuidado, gentileza, polidez, compreensão,
empatia
Fonte: Dados de pesquisa
25
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A representação da mulher na música popular brasileira

  • 1. 1 On Women in Brazilian Popular Music: Permanencies? Discontinuances? A-cerca da Mulher na Música Popular Brasileira: Permanências e Descontinuidades Anderson de Souza Sant’Anna Núcleo de Desenvolvimento de Pessoas e Liderança Programa de Mestrado Profissional em Administração Fundação Dom Cabral Laura Ferolla Siqueira Campos Núcleo de Desenvolvimento de Pessoas e Liderança Fundação Dom Cabral Marcella de Assis Ribeiro Batista Núcleo de Desenvolvimento de Pessoas e Liderança Fundação Dom Cabral Resumo: Sob uma perspectiva relacional, segundo a qual a arte não somente reproduz o status quo, mas também antecipa e corrobora transformações por meio de sua capacidade de propagar novos discursos e práticas discursivas, articulando múltiplos agentes sociais, o presente artigo utiliza de achados de estudo de casos sobre a representação da mulher na música popular brasileira, ao longo do período 1880-1970, para explorar o papel relacional engendrado a partir das composições musicais investigadas. Para tal foi pesquisado de que forma tais composições, seus compositores e interpretes se engajam em ações relacionais vis-à-vis às transformações vivenciadas junto aos contextos societais em que se inserem, bem como tais ações resultaram em ‘descontinuidades’ - assim como em ‘permanências’ - nas formas de representação da mulher nas letras analisadas. Os achados foram agrupados em três fatores - ‘Imprevisibilidade’, ‘Objetificidade’ e ‘Idealidade’ - sustentados pela oscilação das representações face aos diferentes momentos históricos em que emergem - ‘República Nova’, ‘Estado-Novo’, ‘Pós- guerra’, ‘Regime Militar’ - e agentes protagônicos. Isto, tendo como pano de fundo a transição da primeira para a segunda onda do movimento feminista. Como resultado foi possível apreender o protagonismo – individual e coletivo - e a construção de ‘espaços de fala’ como cruciais às estratégias de ‘descontinuidades’ e ao estabelecimento de ‘agendas discursivas’. Palavras-chave: Mulher; Música Popular Brasileira; Representação Social; Mudanças Disruptivas; Descontinuidades. Introdução As transformações que a segunda metade do século XX aportam para o papel social da mulher e suas condições de gênero são evidentes. No entanto, se a mulher que deflagra a primeira onda do movimento feminista tem sua atuação restrita ao espaço do lar, onde na condição de ‘rainha’, encarna como principais atribuições o cuidar do marido e dos filhos, não raro na condição de intelectualmente menos dotada, aquela que inaugura a segunda onda do movimento se depara com novas questões e, consequentemente, novos desafios (Alonso, Breyton, Albuquerque, 2008).
  • 2. 2 Nesse cenário, a abertura de espaços no mercado de trabalho e na polis implicam na demanda por ‘espaços de fala’, discursos e dispositivos de poder outros, capazes de viabilizar e sustentar novas conquistas. Em torno de tal problemática configura-se significativo investigar de que forma as transformações que marcam o deslocamento da primeira para a segunda onda do feminismo evidenciam rupturas também nas formas de representação social da mulher. Aderente a esse propósito e tendo por base a premissa de que a arte não somente reproduz, mas em grande parte antecipa e corrobora transformações, quer no nível discursivo, quer nos níveis político, social e comportamental, o objetivo deste artigo consiste em apresentar resultados de pesquisa destinada a investigar o papel da música popular brasileira na disseminação de formas distintas de representação social da mulher e suas implicações na dinâmica de transição da primeira para a segunda onda do movimento feminista, no país. Em sua essência poder-se-ia definir a primeira onda - ou primeira geração - do feminismo como o período que compreende o surgimento do movimento feminista, que nasce como campanha liberal de luta das mulheres pela igualdade de direitos civis, políticos e educativos, direitos reservados exclusivamente aos homens. O movimento sufragista, que se estrutura na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos e na Espanha, tendo papel fundamental nessa fase, cuja tônica centra-se na luta contra a discriminação das mulheres e na garantia de direitos, inclusive do direito ao voto. Tem-se nessa primeira fase a denúncia da opressão à mulher imposta pelo patriarcado (Narvaz & Koller, 2006; Meyer, 2004). Já em sua segunda onda - ou segunda geração - emergente nas décadas de 1960 e 1970, tem-se, nos Estados Unidos, ênfase na denúncia da opressão masculina e na busca da igualdade; enquanto, na França, postula-se a necessidade de valorização das diferenças entre homens e mulheres, repercutindo, em particular, a especificidade da experiência feminina, geralmente relegada a segundo plano, senão meramente ignorada. As propostas irão caracterizar-se por posições que enfatizam a igualdade e a singularidade da subjetividade feminina (Narvaz & Koller, 2006; Meyer, 2004). Paralelamente, o estudo visa evidenciar dubiedades e contradições nos modos de representação da mulher nas manifestações musicais investigadas, superando lacunas de pesquisas abertas pela pouca ênfase na compreensão mais aprofundada de processos por meio dos quais a música pode ser aplicada na explicitação de ‘descontinuidades’ - assim como de ‘permanências’ - na representação da mulher. Assim sendo, por meio de seus achados visa-se contribuir com a literatura existente de três maneiras principais. Em primeiro lugar, oferecendo uma perspectiva mais dinâmica da representação da mulher, tendo em vista a análise do imaginário construído em relação à mesma em diferentes momentos históricos da sociedade brasileira - em particular no processo de transição da primeira e segunda ondas do feminismo no país - e suas implicações sobre a construção do imaginário em torno da mulher. Em segundo lugar, ao procurar superar análises puramente historiográficas, incorporando a busca por uma investigação mais sistemática de tais ‘continuidades’ e, em particular, de ‘descontinuidades’ ou tentativas mais disruptivas na representação social da mulher, a partir de abordagem inspirada na ‘arqueogenealogia’ foucaultiana (Foucault, 1999, 1997). Em terceiro lugar, ao indicar como discursos - e práticas discursivas - inseridas no cotidiano da sociedade, em seus níveis mais microfísicos e capilares - como é o caso da música popular - podem operar na manutenção e ou na catalisação de transformações sociais. Fundamentação Teórica
  • 3. 3 Não são poucos os trabalhos que demonstram como o modelo tradicional a que se recorre para pensar a diferença entre os sexos compreende um modelo historicamente construído nos séculos XVIII e XIX, fundado na primazia da heterossexualidade e da dominação masculina (Prata, 2010; Arán, 2006). Em decorrência, conforme observa Arán (2006), levar em conta a historicidade do sexual é uma questão não apenas ética e política, mas sobretudo teórica, da maior importância. Se há um território sexual ‘fora’ ou ‘excluído’ do simbólico, em relação ao qual o próprio simbólico se constitui, é fundamental reconhecer de que modo contingências históricas e políticas podem promover deslocamentos subjetivos nesse mesmo território, ampliando as possibilidades de vida (Prata, 2010; Arán, 2006). Igualmente, com base na ideia da arte como processo coletivo (Becker, 1982), número cada vez maior de acadêmicos tem direcionado seus interesses do estudo de características individuais de seus sujeitos de investigação para suas ligações interpessoais e coletivas (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016). Tais estudos compartilham o princípio chave de que a produção de subjetividades e modos distintos de vida se processam nas tessituras e interstícios dos discursos que fluem pelas redes de relações interpessoais e sociais (Ilari, 2006). No entanto, debate-se de que modo as manifestações artísticas podem deliberada e efetivamente ser mobilizadas no suporte a processos e movimentos destinados a rupturas e descontinuidades, que resultem em formas diferenciadas de subjetivação. A utilização da arte como dispositivo de poder, mas também de dominação ideológica e política, assim como instrumento de manutenção do status-quo já constituem temáticas amplamente estudadas. Novos estudos, porém, parecem requeridos no sentido de uma compreensão mais sistemática - que, inclusive, supere descrições de cunho tipicamente historiológico - possibilitando uma apreensão mais ampla da gênese das dinâmicas e práticas subjacentes à produção de novos discursos e, em particular dos processos associados à sua difusão e legitimação (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016; Foucault, 1999, 1997). Especificamente em relação ao movimento feminista - e mais diretamente à construção do significante ‘mulher’ que o fundamenta - cabe, conforme questiona Butler (2014), melhor delimitar a configuração de poder que constrói o ‘sujeito’ e o ‘Outro’, essa relação binária que envolve ‘homens’ e ‘mulheres’, bem como a estabilidade interna desses termos. Em outros termos, ‘a melhor maneira de problematizar as categorias de gênero que sustentam a hierarquia dos gêneros e a heterossexualidade compulsória’ (Butler, 2014, p. 8). Ainda de acordo com Butler (2014, p. 9), ‘explicar as categorias fundacionais de sexo, gênero e desejo como efeitos de uma formação específica de poder supõe uma forma de investigação crítica, a qual Foucault (1997), reformulando Nietzsche, chamou de genealogia’, a qual se direciona à investigação das apostas políticas, indicando ‘como origem e causa categorias de identidade que, na verdade, são efeitos de instituições, práticas e discursos cujos pontos de origem são múltiplos e difusos’. Ao tomar como foco o gênero e a análise relacional - conforme sugerida por Foucault (1997) - Butler (2014) acentua as possibilidades de compreensão da ‘mulher’ - e, por extensão, do ‘feminino’ - não como categoria estável, mas, ao contrário, reconhecendo seu caráter problemático e errático. Isto, na medida em que adquire tais significados apenas em termos relacionais. Sob tal perspectiva, a heterossexualidade compulsória e o falocentrismo constituem regimes de discurso-poder com formas comumente divergentes de responder a questões centrais do discurso de gênero, tais como: ‘De que forma a linguagem constrói as categorias de sexo? [...] Onde e como convergem heterossexualidade compulsória e falocentrismo? Onde estão os
  • 4. 4 pontos de ruptura entre eles? Como a linguagem produz a construção fictícia de sexo que sustenta esses vários regimes de poder?’ (Butler, 2014, p. 10). Embora estudos anteriores tenham aberto caminho para um melhor entendimento de como a arte - e, no caso particular deste estudo, a música - pode afetar os regimes de discurso-poder, nossa compreensão do fenômeno permanece incompleta em dois aspectos muito importantes. Em primeiro lugar, os estudos exploram insuficientemente o ‘processo’ por meio do qual emergem ‘descontinuidades’ ou ‘mudanças disruptivas’, ao longo do tempo - criando novos regimes de poder, fortalecendo relações de poder já existentes etc. Mesmo estudos que adotam uma perspectiva mais longitudinal acabam por explorar principalmente o ‘o quê’, em uma série de momentos, com ênfase em diferentes características estruturais ou contextuais que levam a diferentes resultados, sem, todavia, levar em consideração sua ‘gênese’ (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016). Em seu cerne, a teoria feminista tem presumido a existência de uma identidade definida, compreendida pela categoria de mulheres (Butler, 2004). Compreende, também, que o sujeito próprio das mulheres não é mais abarcado em termos estáveis ou estáticos. Porém, ainda não há concordância quanto ao que constitui, ou deveria constituir, a categoria das mulheres (Butler, 2004). Além disso, como observa Foucault (1997), os sistemas instituídos de poder produzem os sujeitos que eles próprios passam a representar. Dessa ausência de consenso, apresenta-se relevante novos estudos que visem investigar a maneira como relações discursivas operando em contextos históricos específicos afetam a criação e reprodução de novos discursos, superando ou reforçando categorias hegemônicas. Até onde conseguimos revisar, nenhum estudo aprofundou como esse tipo de relacionamento se processa por meio da música popular brasileira. O presente artigo oferece, portanto, três principais contribuições à literatura sobre o tema. A primeira consiste evidenciar as contribuições da produção artística e cultural - no caso a música popular brasileira – nas dinâmicas orientadas à superação de formas tradicionais de poder e dominação. A segunda, relaciona-se à evidenciação da relevância da construção e ou acesso a ‘espaços de fala’ como cruciais às estratégias desenvolvidas pelos movimentos sociais e defesa de minorias quanto à disseminação de novas ‘agendas discursivas’. Finalmente, suas contribuições aos estudos que se destinam à análise de descontinuidades, sob um enfoque relacional. Acredita-se que abordagens de caráter mais relacional possam oferecer novos pontos de vista. Isto, na medida em que no mundo das artes o ‘sucesso’ repousa sobre fontes de apoio que um artista é capaz de mobilizar, mais que sobre o valor intrínseco de suas obras (Becker, 1982). Desse modo, o respaldo público associado ao protagonismo em suas iniciativas artísticas e o alcance de suas metas profissionais (Jones, 1996; Svejenova, 2005), moldam, ao longo do tempo, relacionamentos com diferentes agentes sociais, contribuindo para a emergência e ou ampliação da capacidade de influência quer própria, quer das produções protagonizadas (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016). Métodos da Pesquisa Seguindo trilhamentos abertos por Montanari, Scapolan, Gianecchini (2016), para fins desta pesquisa optou-se pela adoção de método baseado em casos (Yin, 2009). Os estudos de caso são relatados como ‘particularmente bem adaptados a novas áreas de pesquisa’ (Eisenhardt, 1989, p. 548), assim como à geração de novas teorias, ao propiciarem pontos de vista úteis a respostas a questões do tipo ‘como’ e ‘por quê’ (Yin, 2009, p. 9). Mais especificamente, a perspectiva aqui adotada se baseia em estudo de casos múltiplos (Yin, 2009), conduzidos em
  • 5. 5 torno de composições musicais emblemáticas da música popular brasileira que trazem referência à categoria ‘Mulher’, visando identificar ‘permanências’ e ‘descontinuidades’ em suas formas de representação na transição que marca o deslocamento da primeira para a segunda onda do movimento feminista, no Brasil (Prata, 2010; Arán, 2006). Tendo por base tal interesse da pesquisa buscou-se, como anteriormente salientado, investigar de que forma a mulher se vê abordada na música popular brasileira durante o período que se estende de fins do século XIX a meados do século XX. A opção pela análise da categoria ‘mulher’, a partir de composições musicais associa-se diretamente à relevância das mesmas como forma de manifestação cultural de ampla capilaridade e capacidade de produzir - bem como reproduzir - discursos, comportamentos e práticas sociais. Como as demais artes, a música não deixa de se constituir como antecipadora de movimentos e tendências, simbolizando por meio da poesia inerente a diversas de suas letras, o imaginário de diferentes grupamentos sociais, senão da sociedade como um todo. Além desse caráter, a música se apresenta como dispositivo par excellence de expressão e manifestação de anseios, problemas e questões que marcam a humanidade e as relações entre seus diferentes agentes. Seja como expressão do belo, como forma de entretenimento ou relaxamento, seja como arte engajada, de protesto ou de mobilização social, o certo é que a música constituiu singular gramática estética e de conversação com outras formas de arte - teatro, dança, cinema - permitindo-lhe amplo potencial, senão de apropriação com vistas à perpetuação do status quo, mas também de influência e transformação (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016). Interagindo com demais artistas - escritores, poetas, dançarinos, coreógrafos, cineastas, atores etc. - no desenvolvimento, refinamento, amplificação e implementação de suas ideias (Harrison & Rouse, 2014), a música ‘rizomaticamente’ se difunde no contexto social (Deleuze & Guattari, 1995). Além disso, compositores mais vanguardistas, em busca de fontes de inovação e superação dos estilos reificados pelo mainstream, deslocam-se para as periferias e áreas ‘marginais’, com vistas a evidenciar outros modos de vida e de viver. Assim, a música propicia um ambiente significativo para a observação do fenômeno em relação ao qual estamos interessados (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016). No caso da música popular brasileira, ela historicamente assume papel de relevo nos principais movimentos sociais, políticos, culturais e comportamentais, tanto na denúncia a processos de injustiça e exploração social e no trabalho, quanto na defesa de princípios orientadores de políticas e práticas mais humanas e igualitárias. Nesse papel, a música popular brasileira se faz notar, desde seus primórdios, na denúncia e sátira a mandos e desmandos políticos, na crítica ácida e irônica a governantes, ditadores, ‘coronéis’ e ‘empresários’, bem como aos modos de vida e de comportamento das ‘elites’, incluindo seus descasos quanto às condições de vida da grande massa de cidadãos e trabalhadores. Nas décadas de 1960-1970, por exemplo, desnecessário se faz tecer maiores detalhamentos quanto ao seu papel na denúncia e luta em torno das grandes questões e transformações sociais em curso. Seguindo trilhas abertas pelos movimentos em torno dos direitos civis, os movimentos pela democracia e direito à afirmação dos povos, as lutas em torno da qualidade de vida no trabalho colocarão em evidência, também no Brasil, roqueiros eternizados por Woodstock; punks e seus comportamentos ‘desviantes’ e ‘transviados’, imortalizados por músicas e letras de grupos de jovens contestadores, como o inglês Sex Pistols; a contestação dos preconceitos raciais, encarnada pela Black Music, sendo um ícone o Black Panthers ; além de movimentos em defesa dos direitos dos homossexuais, marcados por músicas e hinos universais.
  • 6. 6 Nessa direção, não se pode, igualmente, ignorar, o papel histórico desempenhado por diversos segmentos da música popular brasileira, eternizados por meio de letras de compositores como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, dentre outros tantos interpretes e grupos musicais - Novos Baianos, Doces Bárbaros -, mobilizados, em particular em festivais universitários e nas músicas de protesto, contra o regime totalitário e de exceção instaurado no país, em 1964 (Cabral, 2016; Severiano & Homem de Mello, 2015; Homem de Mello, 2003; Napolitano, 2007; Tinhorão, 1998). Nos grandes festivais, inclusive, tem-se a emergência de novas compositoras como Tuca, Rosinha de Valença e Joyce (Brazil, 2015). Nesse particular, e quanto às relações entre a música popular brasileira e os movimentos feministas? Em outros termos, retomando nossa questão central: Como a categoria ‘Mulher’ se vê representada pela MPB, notadamente no período que marca a transição da primeira onda do movimento feminista (que se desenrola de meados do século XIX a meados do século XX) e a segunda onda do movimento, segundo diversos autores, iniciada na década de 1960? Tendo como orientação tal questão, a pesquisa que subsidiou os resultados deste artigo tem como foco o estudo de casos múltiplos (Yin, 2009), compreendendo a análise de 132 composições selecionadas dentre 304 letras de músicas constantes da primeira edição da ‘Coleção História da Música Popular Brasileira’, produzida e distribuída pela Editora Abril Cultural, por meio de fascículos quinzenais, contendo parte editorial, textos críticos, biografias, e fonografias com os registros das canções com intérpretes brasileiros representativos da música popular brasileira das décadas de 1880 a 1970. Para composição da coletânea, segundo Milani (2014), a Abril Cultural contou com o assessoramento de críticos musicais, músicos, jornalistas e pesquisadores da música popular brasileira como Tárik de Souza (crítico musical), Sérgio Cabral (jornalista e crítico literário), Zuza Homem de Mello (produtor, crítico musical e pesquisador), José Ramos Tinhorão (jornalista e pesquisador); Maurício Kubrusly (jornalista e crítico musical), Paulinho da Viola (cantor e compositor), Aracy de Almeida (cantora) e Almirante (cantor e compositor). Coleta de Dados Os trabalhos de seleção, tratamento e análise das composições se desenvolveram no período entre fevereiro de 2014 e setembro de 2016, utilizando-se além de técnicas manuais a aplicação do software de tratamento qualitativo de dados Nvivo 9.0. A partir da análise das letras das músicas da coletânea foram selecionadas aquelas com significantes diretamente associados ao significante ‘mulher’. Cabe salientar como ponto de partida para o tratamento e análise dos dados, a inserção das composições musicais e informações a elas associadas em planilha Excel, especificando-se, desse modo, o número do disco e da faixa musical; o nome da composição, do compositor e do interprete; seu ano de criação; a letra da música; os trechos com referências à mulher, incluindo expressões e significantes correlatos; e o histórico da música. Cabe salientar que tal procedimento, aplicado às 304 composições presentes na coletânea, resultou na identificação dos 132 casos (43%), contemplando 977 significantes com referência à noção de ‘mulher’. O Quadro 1 traz o exemplo dos dados registrados para cada um dos 132 casos estudados. Análise dos Dados
  • 7. 7 A análise dos dados seguiu a sequência proposta por Langley (1999) e Montanari, Scapolan, Gianecchini (2016). Assim, o estágio inicial da análise envolveu a construção de ‘narrativas’ associadas às composições selecionadas, com o fim de identificar o que cada significante referente à noção de mulher visava explicitar, em que contexto se inseria e por quais possíveis interesses teriam sido aplicados (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016; Garud & Rappa, 1994). Para tal, procedeu-se a análise indutiva de cada um dos 132 casos. Seguindo o processo interativo recomendado por Strauss e Corbin (1990), as informações associadas a cada uma das composições e seus criadores - inseridas no conteúdo da coletânea - serviram de base para o delineamento final das ‘narrativas’ subjacentes aos significantes elencados. Nesse sentido e a fim de se desenvolver uma compreensão mais fidedigna dos casos, cada um dos três autores procedeu a leituras independentes das letras. Em vários momentos, à medida em que compartilhavam as análises individualmente realizadas, discutia-se as interpretações e representações emergentes. Nessas discussões não se objetivou medir as convergências. Ao invés disso, as impressões e interpretações individuais foram livremente compartidas e debatidas até se alcançar um entendimento entre os autores. Por esse procedimento logo foram emergindo temas mais gerais. De fato, o aprofundamento na aplicação da ‘microanálise’ indicada por Strauss e Corbin (1990), paulatinamente, propiciou uma maior imersão nos dados, a emergência de categorias para agrupamento dos significantes obtidos, bem como maior precisão quanto às características distintivas entre elas (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016). Categorias como ‘Imprevisibilidade’, ‘Objetificidade’, ‘Idealidade’, ‘Domesticidade’, ‘Corporeidade’, ‘Afetividade’, ‘Temporalidade’ e ‘Espacialidade’ foram intuitivamente emergindo e refinadas em sucessivas alternâncias entre a discussão de dados emergentes das letras e a teoria. Visando delinear os sentidos atribuídos aos termos aplicados à nomeação das categorias emergentes, vale precisar que o termo ‘Imprevisibilidade’ foi adotado para se referir à extensão em que a mulher se apresenta associada a dúvida, dissimulação, mistério, desordem, irracionalidade e loucura. Já ‘Objetificidade’ foi aplicado para fazer menção elementos de dominação e submissão ao poder viril masculino. ‘Domesticidade’, por seu turno, agrupa o conjunto de termos que atribui à mulher o espaço restrito da casa, em contraposição ao espaço da rua, tipicamente masculino (Ericeira, 2012; DaMatta, 1994). Importante salientar que quando cabe à mulher espaços outros que não o de ‘dona de casa’ ou ‘rainha do lar’, os mesmos são pejorativamente retratados como o espaço da orgia, da prostituição, do ‘bar mal afamado’. Já sob o rótulo de ‘Espacialidade’ agrupam-se também referências a espaços ambíguos e indeterminados, como ‘mulher do mundo’, ‘mulher da vida’ ou da ‘malandragem’, os quais extrapolam seu ‘lugar’ para arriscar no espaço dos homens. Afetos como ‘crueldade’, ‘insensibilidade’, ‘interesse’, ‘maldade’, também se apresentaram bastante recorrentes nas composições estudadas, sendo a ‘afetuosidade’ da mulher comumente associada à sua ausência de coração e de afeto sincero em relação a um homem que ama sem ser correspondido. Fazendo par a essa categoria, tem-se reiteradamente a manifestação de uma “Idealidade” inalcançável. A mulher, neste sentido, sendo por diversas vezes associada à figura materna, a santidade, pureza e musa platônica inacessível.
  • 8. 8 Paradoxalmente, tais traços angelicais se contrapõem a uma mulher dos espaços outros, uma mulher cuja ‘corporeidade’ encarna a provocação, a sedução e luxúria, retirando o homem de seu caminho racional e profissional, remetendo aos espaços de ‘esbornia’ e de ‘perdição”, a ‘descaminhos’. O Quadro 2 sintetiza significantes associados a cada uma das categorias emergentes na primeira etapa da análise, manualmente conduzida. Visando verificar a consistência dos fatores acima, manualmente obtidos, procedeu-se a nova análise, desta vez tendo-se os casos submetidos a tratamento com o auxílio do N-vivo 9.0. Como resultado da análise das frequências absolutas e de fatorações abrangendo os 132 casos pesquisados foi possível reagrupá-los em quatro fatores: ‘Imprevisibilidade’, ‘Objetificidade’, ‘Idealidade’ e ‘Domesticidade’ (Quadro 3). Quadro 2. Análise semântico-comparativa: exemplificação de significantes por categoria Categoria Fatores Principais Variáveis Observáveis Mulher Imprevisibilidade Feitiço, conquista, mistério, dubiedade, traição, ilusão, desconfiança, indecisão, inconstância, loucura, idealismo, desordem, engano, infidelidade, superficialidade, dissimulação, falsidade, subjetividade, fragilidade, instabilidade Objetificidade Dominação, submissão, servidão, posse Idealidade Santa, luz, angélica, mãe, perfeita, amor, ideal, carinho, divino, amor, musa Domesticidade Doméstica, casa, lar, casamento, filhos Corporeidade Sensualidade, luxuria, vaidade, beleza, sedução, provocação, sorriso, olhos, cabelo, braços, beijo, tango, samba, música, morena, mulata Afetuosidade Saudade, morte, carinho, sofrimento, choro, maldade, felicidade, tristeza, dor, alegria, solidão, crueldade, sentimentalismo, ingratidão, insensibilidade, ciúme, compreensiva Espacialidade Orgia, mundo, Brasil, praia, bar Fonte: Dados da pesquisa. Quadro 3. Categorização qualitativa de significantes por categoria Categoria Fatores Principais Variáveis Observáveis Mulher Imprevisibilidade Abandono, acaso, paixão, risco, ruína, ausência, brincadeira, capricho, incerteza, coração, desconfiança, desespero, desordem, destino, dissimulada, dubiedade, emoção, engano, esquecimento, falta, feitiço, feitiço, fingimento, fragilidade, ilusão, inconstância, indecisão, infidelidade, ingratidão, insensibilidade, loucura, luxúria, mágoas, menina, mistério, morte, mundo, noite, olhar, outro, passado, perda, prantos, promessa, provocação, desrazão, remorso, saudade, sedução, sensualidade, sentimentalidade, separação, sofrimento, solidão, superficialidade, tormento, traição, tristeza, vaidade, vingança alucinação Objetificidade Amante, boneca, cabocla, cabrocha, cigana, colombina, corpo, dança, desejo, dinheiro, dominação, favor, materialismo, morena, mulata, orgia, pernas, posse, prazer, sabor, servir, sombra, sorriso, submissão, substituição, torturante, trabalho, vantagem Idealidade Adoração, sonho, calma, afeto, amor, anjo, paixão, beleza, bênção, carinho, casamento, cinderela, ciúmes, compreensão, criança, divino, dolente, donzela, encanto, enfeite, estrela, fraqueza, fragilidade, ideal, inocência, luz, madame, mãe, mãezinha, musa, musical, namorada, oração, pequena, perfeita, perfume, prece, querida, santa, sonho, sorriso, versos Domesticidade Casa, Cozinha, Doméstica, Favela, Favor, Filhos, Marido, Trabalho, Criança, Babá, Vizinhança Fonte: Dados da pesquisa.
  • 9. 9 Quadro 1. Itens contemplados na análise de cada uma das composições musicais trabalhadas: caso ilustrativo Disco Faixa Título Compositor(a) Intérprete Ano Letra Representação da ‘Mulher’ Significantes- Chave Histórico da Composição 7 7 ‘Você vai se quiser’ Noel Rosa Noel Rosa e Marília Batista 1937 Você vai se quiser Pois a mulher Não se deve obrigar a trabalhar Mas não vá dizer depois Que você não tem vestido Que o jantar não dá pra dois! Todo cargo masculino Seja grande ou pequenino Hoje em dia é pra mulher... E por causa dos palhaços Ela esquece que tem braços: Nem cozinhar ela quer! Os direitos são iguais... Mas até nos tribunais A mulher faz o que quer... Cada qual que cave o seu Pois o homem já nasceu Dando a costela à mulher! Sim Mulher, trabalho, vestido, cozinha ‘Você vai se quiser’ foi o único samba de Noel para sua esposa, Lindaura. Preocupada com as dificuldades pelas quais passavam, ela se propôs a ir trabalhar fora. Do nada feminista Noel, recebeu essa irônica resposta: ‘Ela esquece que tem braços, / Nem cozinhar ela quer’. ... Fonte: Dados da pesquisa
  • 10. 10 Em nova rodada de análises, desta vez visando articular os achados obtidos manualmente e por meio do N-Vivo 9.0, os dados obtidos foram confrontados com a teoria. Como produto foi possível uma composição final dos significantes em três fatores principais: ‘Imprevisibilidade’, contemplando 111 significantes (46%); ‘Objetificidade’, abrangendo 64 significantes (27%) e ‘Idealidade’, igualmente, abrangendo 66 significantes (27%), conforme ilustrado no Quadro 4. Quadro 4. Categorização qualitativa de palavras por categoria Categoria Fatores Principais Variáveis Observáveis Mulher Imprevisibilidade Acaso, anormalidade, paixão, risco, ruína, brincadeira, capricho, incerteza, ciúme, conquista, consolo, coração, crueldade, desconfiança, desespero, desordem, desprezo, destino, dissabor, dissimulação, dubiedade, emoção, engano, esquecimento, falta, feitiço, fingimento, flerte, fragilidade, fuga, ilusão, inconstância, indecisão, infidelidade, ingratidão, insensibilidade, lágrima, loucura, luxúria, madrugada, mágoa, maldade, malícia, menina, mistério, perigo, morte, mundo, noite, olhar, outro, passado, perda, pranto, promessa, provocação, desrazão, remorso, saudade, sedução, sensualidade, sentimentalidade, subjetividade, sofrimento, solidão, superficialidade, tormento, traição, tristeza, vaidade, vingança Objetificidade Amante, baiana, boneca, bonitinha, braços, cabocla, cabrocha, casa, cigana, colombina, corpo, cozinha, dança, desejo, dinheiro, doméstica, dominação, favor, filhos, ginga, lábios, loira, loirinha, machismo, macia, marido, materialista, minha, morena, moreninha, mulata, orgia, pernas, posse, prazer, servir, sombra, submissão, substituível, trabalho, vantagem, vestido, vizinha Idealidade Calma, crença, adoração, afeto, amada, amor, angelical, beleza, bênção, carinho, casamento, cinderela, compreensão, criança, divino, dolente, donzela, encanto, enfeite, estrela, fragilidade, ideal, luz, madame, mãe, musa, música, namoro, olhos, oração, pequena, perfeição, prece, querida, santa, sereia, sonho, sorriso, verso Fonte: Dados da pesquisa. Cabe registrar que tal reagrupamento envolveu a exclusão de 5 significantes e a agregação, junto ao fator ‘Objetificidade’ de 16 dos 21 originalmente constantes do fator ‘Domesticidade’. Como critérios para os agrupamentos adotou-se os princípios da parcimônia, semelhança e analogia (Flick, 2009). Além de identificar tais fatores, agregando os principais significantes associados à categoria ‘Mulher’, foi possível verificar diversas contradições inerentes às variáveis observáveis neles inseridos, incluindo alternâncias entre características, reconhecidas nos contextos sociais vigentes como ‘positivas’, simultaneamente a referências ‘pejorativas’. O fator ‘Imprevisibilidade’, por exemplo, ao mesmo tempo que poderia denotar maior habilidade das mulheres em lidar com a dimensão da subjetividade - e, enfim, com aspectos que extrapolam a instância da racionalidade puramente instrumental, masculina - inserem-se em narrativas que acabam por desqualificar tais habilidades, transformando-as em tributárias de ‘irracionalidade’, ‘desrazão’, ‘dubiedade’ e ‘indecisão’. Em outros termos os vinculam a
  • 11. 11 incapacidades de ‘tomada de decisões racionais’, marcando o distanciamento da mulher do universo e intuições ‘masculinas’, do ‘poder’. Igualmente, contradições se fazem evidenciar em relação à dimensão ‘Objetificidade’, notadamente ao retratar mulher de forma ambígua. Ora no sentido de ‘objeto sexual’ (‘mulata’, ‘morena’, ‘prazer’, ‘orgia’), ora como ‘objeto de trabalho’, a serviço e ou como fonte de sustentação financeira do ‘patrão’, do ‘esposo’, do ‘amante’, do ‘malandro’ ou do ‘cafetão’ (‘serva’, ‘doméstica’), ora como objeto de ‘ostentação masculina’ (‘joia’, ‘vestido’, ‘beleza’). Para capturar mudanças decorrentes de transformações econômicas e sociais vivenciadas pela sociedade brasileira ao longo do período em análise (1880-1970), objetivando o ‘lançamento de algo novo no campo’ (Castañer e Campos, 2002, p. 31), parte da construção da teoria focalizou a análise dos dados por estágios. A ‘hipótese’ adotada é que diferentes momentos históricos exibem variações nas narrativas e características atribuídas à mulher. Mais precisamente interessou-nos, a partir da noção de ‘descontinuidade’ (Foucault, 1997), investigar a extensão em os significantes aportados à ‘mulher’ se desviaram de convenções dominantes na transição entre a primeira e segunda ondas do movimento feminista, no Brasil. Além do ‘o quê’ abarcado pelos fatores propostos - características associadas aos fatores de ‘Imprevisibilidade’, ‘Objetificidade’ e ‘Idealidade’) - objetivou-se, portanto, considerar questões de ‘como’, ‘quando’, ‘onde’, e ‘por quê’ (Whetten, 1989). Finalmente, vale salientar a utilização de ‘códigos seletivos’ para integrar e refinar a teoria emergente, tendo o processo analítico se concluído quando da percepção de que ocorrera ‘saturação teórica’ (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016; Strauss & Corbin, 1990). Estudo dos Casos e Achados Nesta seção apresentamos os principais significantes utilizados para caracterização da mulher junto às composições musicais constantes da ‘Coleção História da Música Popular Brasileira’, abrangendo o período compreendido entre os anos de 1880 a 1970. Nesse intervalo temporal se modela, precisamente no plano internacional, mas também no Brasil, significativas transformações culturais, sociais e comportamentais, com reflexos marcantes na luta pelos direitos civis das ‘minorias’ e, em particular nas batalhas travadas pelo movimento feminista. Conforme indicam diversos autores, o movimento feminista vivenciará neste período a intensificação e expansão de suas iniciativas, instaurando um novo estágio de seu desenvolvimento. Para eles, esse estágio se estenderá de meados do século XIX a meados do século XX. Nesse longo período, um intenso trabalho de conscientização e envolvimento das mulheres propiciou conquistas importantes na luta por direitos - ‘voto’, ‘divórcio’, ‘regulação trabalhista’. No entanto, será a partir dos anos 1960 que o movimento feminista ganhará novos contornos e maior amplitude, aportando novas agendas e pautas de luta. Nesse segundo estágio, marcado pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, a busca por relações mais horizontalizadas, esperam-se significantes associados a novas formas de luta (Arán, 2006). Por meio dos casos analisados na pesquisa que subsidiou a produção deste artigo buscou-se evidências dessas transformações. Isto envolveu a analise, década a década, de ‘permanências’ e ‘descontinuidades’ (Foucault, 1997) - nas representações da mulher subjacentes às composições musicais objeto do estudo.
  • 12. 12 Para tal, novos procedimentos de análise foram incorporados ao estudo. Em linhas gerais, os significantes obtidos dos 132 casos investigados foram novamente transpostos e horizontalmente alinhados em uma planilha Excel com o objetivo de proporcionar melhor visualização de sua presença, em cada década, conforme exemplificado no Quadro 5. Quadro 5. Alinhamento de significantes por década (Exemplificação) 1880 -1909 1910 -1919 1920 -1929 1930 -1939 1940 -1949 1950 -1959 1960 -1969 1970 Amor Amor Amor Briga Dinheiro Dinheiro Dinheiro Dinheiro Mulata Mulata Mulata Mundo Mundo Mundo Mundo Mundo Coração Coração Coração Coração Coração Coração Coração Alegria Alegria Alegria Alegria Alegria Alegria Alegria … Fonte: Dados da pesquisa Igualmente, com o objetivo de verificar, para cada década estudada, a representatividade dos fatores produzidos das rodadas de análises anteriores - ‘Imprevisibilidade’, ‘Objetificidade’ e ‘Idealidade’ - considerou-se, a partir do N-vivo 9.0, o número de repetições de cada significante referente à noção de mulher. A Tabela 1 ilustra os resultados. Tabela 1. Análise quantitativa dos significantes por década Nota: A tabela considera o número de vezes que aparecem palavras mesmo que repetidas relacionadas aos fatores obtidos, por década. Visando articular os significantes às narrativas típicas dos momentos históricos típicos de cada período recorremos, uma vez mais, à teoria. Como resultante foi possível, a partir da categorização proposta por Tinhorão (1998), reagrupá-los em quatro estágios narrativos: ‘Brasil República’ (BR), ‘Estado Novo’ (EM), ‘Pós-guerra’ (PG) e ‘Regime Militar’ (RM), conforme explicitado na Tabela 2. Tabela 2. Análise quantitativa dos significantes por década Nota: A tabela considera o número de vezes que aparecem palavras mesmo que repetidas relacionadas aos fatores obtidos, por estágio. Décadas Imprevisibilidade % Objetificidade % Idealidade % TOTAL 1880-1909 2 22,0 7 77,8 - - 9 1910-1919 22 48,9 13 28,9 10 22,2 45 1920-1929 17 53,1 7 21,9 8 25 32 1930-1939 193 52,4 112 30,4 63 17,2 368 1940-1949 76 49,0 54 34,8 25 16,2 155 1950-1959 77 46,1 35 21,0 55 32,9 167 1960-1970 82 40,7 61 30,3 58 28,9 201 Estágios Imprevisibilidade % Objetificidade % Idealidade % TOTAL BR 24 44,4 20 37,0 10 18,6 54 EN 210 52,5 119 29,8 71 17,7 400 PG 153 47,5 89 27,6 80 24,9 322 RM 82 40,8 61 30,3 58 28,9 201 TOTAL 469 48,0 289 30,0 219 22,0 977
  • 13. 13 Finalmente, além dos recortes temporais procurou-se também articular os fatores emergentes da pesquisa às ondas do Movimento Feminista que perpassaram o período em análise (1880- 1970). As caracterizações de cada estágio vis-à-vis aos dados obtidos desta pesquisa são discutidas a seguir. Estágio 1 (1880-1919): Brasil República A ‘Coleção História da Música Popular Brasileira’ contempla para o período que se estende de 1880 a 1919, 54 composições com referência à categoria ‘Mulher’, correspondendo a 5,5% do total de casos analisados. Poder-se-ia aventar que o reduzido número de letras inseridas junto à coletânea no período em questão reproduzisse um baixo interesse quanto à temática da mulher nos hits e gostos da audiência vigente. Essa hipótese, todavia, não se sustenta quando se leva em conta análise mais ampla dos ‘clássicos’ musicais do período. Ao contrário, a teoria sugere ampla gama de composições, neste período, alusiva à mulher (Ericeira, 2012; Tinhorão, 1998; Souza, 2001; Diniz, 1999; Moraes, 1958). Para a compreensão de seu teor vale, de início, ter em mente que a música popular brasileira dessa época se direcionava sobretudo à classe média, cujo desejo de modernidade e superação da realidade ‘agrária’ e do ‘ancien regime’, aproxima-a de sua equivalente nos países desenvolvidos. Entendida, portanto, como artigo de consumo de uma sociedade urbana em expansão, a música popular brasileira e seus novos gêneros não chegarão a atingir as camadas populares. Isto, considerando, dentre outros fatores, os elevados preços das novas técnicas de divulgação musical - equipamentos de rádio, discos e gramofones (Souza, 2001). Nesse contexto, as comunidades baianas migradas para o Rio de Janeiro - alheias às novidades importadas - serão responsáveis, neste período pós proclamação da República (1889), pelas ‘duas maiores criações coletivas do povo miúdo no Brasil: o carnaval de rua dos ranchos e suas marchas e o ritmo do samba’ (Tinhorão, 1998, p. 263). Sob uma perspectiva sociológica, para DaMatta (1994), as marchinhas e, posteriormente, as músicas de Carnaval, apresentam-se exemplares para se pensar o Brasil. Isto, na medida em que, primeiramente marginais, ganham paulatinamente espaço difundindo-se em todas as camadas sociais, superando barreiras econômicas, etárias e sexuais, constituindo-se em ‘instrumentos simbólicos pelas quais a sociedade brasileira encontra meios para dramatizar seus valores sociais, para pensar suas relações de poder, bem como para aludir a questões referentes ao relacionamento entre homens e mulheres no país’ (Ericeira, 2012, p. 85). Em levantamentos sobre a música popular brasileira desse período Ericeira (2012) faz menção a três aspectos relevantes: em primeiro lugar, ao fato de a quase totalidade das canções serem de autoria masculina; segundo, à predominância de compositores ligados às camadas médias cariocas; e, terceiro, corroborando nossa hipótese, a presença de grande número de músicas contemplando temas relacionados à mulher, com destaque para sua aparência física, sua honra e comportamento. Segundo historiadores da música popular brasileira até o final do século XIX não se tem registro de músicas específicas para o Carnaval. Os grupos carnavalescos saiam pelas ruas ao som de maxixes, habaneras, modinhas, valsas e polcas. Será somente em 1899, curiosamente pelas mãos de uma mulher, a maestrina Chiquinha Gonzaga, que se compõe a marcha-rancho ‘Ó Abre-Alas’, sob encomenda do cordão carnavalesco Rosa de Ouro (Diniz, 1999). Será, no
  • 14. 14 entanto, somente a partir da segunda década do século XX que as músicas de Carnaval se verão difundidas em larga escala (Moraes, 1958). Quanto aos campos semânticos identificados para este período em relação à mulher, os dados desta pesquisa corroboram achados anteriores que apontam para a busca de ‘[...] definição da mulher por meio de algum aspecto físico ou natural, assim como às percepções das diferentes formas de relacionamento entre homens e mulheres’ (Ericeira, 2012, p. 91), com destaque para características associadas ao fator ‘Idealidade’ e, em particular, às ênfases em relação a dotes estéticos e à beleza feminina. Nessa direção, os casos estudados são ilustrativos da atenção dispensada ao tom da pele ou etnia da mulher. Nesse sentido, é interessante como o ‘cabelo’ coloca-se como ‘uma espécie de metonímia das mulheres’, elegendo-se a morena como a cor da mulher brasileira e a loira como representante de territórios alhures (Ericeira, 2012, p. 93). Em relação ao fator ‘Objetificação’, a mulher é comumente retratada de modo a reiterar seu ‘ser biológico’ e, portanto, objeto de prazer e ou de reprodução da espécie; e ‘[...] não como ser social dotado de capacidade intelectual ou de aptidão para o trabalho’ e para a política (Ericeira, 2012, p. 93). Curiosamente, as narrativas musicais analisadas neste contexto histórico fazem emergir a noção de ‘mulher-dominante”, a qual ‘contrariamente à dominação masculina que faz uso da agressividade e da gerência dos bens materiais para subjugar a mulher, recorre aos seus atributos físicos e à economia afetiva para exercer o controle sobre os sentimentos e comportamentos masculinos’, dando a entender uma inversão do sentido da dominação, ‘posto ser a mulher que exerce o controle da relação, fazendo com que o homem solicite seu amor e sua atenção’ (Ericeira, 2012, p. 94). Assim sendo, ‘Objetificação’ e ‘Imprevisibilidade’ - este último menos pronunciado nas composições analisadas neste período - parece se enodar. Isto, na medida em que ‘embora encontrando mecanismos para se proteger contra os seus feitiços, o homem sucumbe, pedindo anistia, perante o que denomina de ‘olhar fuzilante’ da mulher-dominante (Ericeira, 2012, p. 94). ‘Nessa relação desigual entre senhora e escravo, é este que deve implorar a Deus que sua senhora se apiede, concedendo-lhe um beijo’. Cabe, todavia, observar que essa visão da mulher como ocupante do papel dominante se vê reduzida ao domínio dos afetos, passando ao largo do mundo da razão e do trabalho, propriedades inerentes e restritas ao universo masculino (Ericeira, 2012; Bourdieu, 1999). Além disso, tem-se uma atitude dúbia também diante da mulher-parceira - objeto idealizado- odiado - que se desvela, por exemplo, no trato com a relação financeira: ‘ao mesmo tempo em que a dependência econômica da mulher é um elemento a mais na posse, ela é apontada como um risco de falsidade’. Retratando o cenário da precariedade das condições econômicas das classes populares, o conflito doméstico, em que a mulher - ‘esposa’, ‘nêga’, ‘teúda’ e ‘manteúda’ -, objeto possuído, adquire, não raro, o estereótipo da ‘falsa interesseira’ (Costa, 2006). O Quadro 6 ilustra os principais significantes associados à mulher nas canções estudadas referentes ao período 1880-1919.
  • 15. 15 Quadro 6. Principais Significantes por Fatores (1880-1919) Período Imprevisibilidade Objetificidade Idealidade 1880-1919 Paixão, noite, mundo, briga Mulata, dinheiro, ardor, calor, desejo, sabor, donzela, fragilidade Santidade, amor, divindade, beleza, alegria, prece, sonho Fonte: Dados da pesquisa A emergência do Estado Novo - com a tomada do poder por Getúlio Vargas -, a maior presença da mulher no mercado de trabalho e a emergência do movimento modernista nas artes e na cultura brasileira irá, todavia, sugerir um novo estágio. Estágio 2 (1920-39): Estado Novo O avanço da música popular brasileira dos morros cariocas para os recintos das médias e altas do país será lenta e não sem perseguições, preconceitos e sobressaltos, tendo somente em 1920 se registrado o primeiro sucesso nacional de uma marchinha carnavalesca: ‘Pé de Anjo’, composta por Sinhô. Tal abertura terá como pano de fundo uma cidade do Rio do Janeiro - então capital federal - na efervescência do cinema, da ‘era do rádio’ e do ‘teatro de revista’. Isto não obstante a ditadura do presidente Getúlio Vargas (1937-1945) que restringe a liberdade de expressão, ao mesmo tempo que fomenta manifestações culturais de cunho patriótico e ufanista. Igualmente, assiste-se à busca por apropriação da cultura popular e pela valorização de produções ‘mestiças’, tendo-se as discussões em torno das relações de gênero maior presença no cotidiano da cidade. Não obstante as conquistas sociais obtidas pelas mulheres durante este período - como o direito ao voto e à inserção em algumas atividades profissionais - prevalecem discursos conservadores, cerceadores do direito de expressão e de circulação da mulher nos espaços públicos, ainda reservados ao universo masculino. Conforme observa (Paranhos, 2013, p. 135): ‘Que não se pense que o presente sepultara de vez o passado. Este se atualizava sob diversos aspectos e se insinuava em muitos discursos, práticas e normas legais’. Sob as normas de uma estrutura ainda fortemente patriarcal, as mulheres permanecem condenadas ao trabalho doméstico e reprodutivo, não obstante o crescimento de sua participação na força de trabalho remunerada. Análise dos significantes utilizados com referência à mulher nas composições musicais produzidas nessa época reiteram-na, uma vez mais, como ideal de bela e juventude, capaz de despertar e dominar o interesse sexual masculino; mas, ao mesmo tempo, a ele submissa e fiel. A dimensão da dominação masculina - permeada pela noção de objetificação - impõe, por exemplo, às mulheres que ousassem sair desacompanhadas à noite ou que cometessem algum ato de desagrado ao pai ou ao marido duas opções: a ‘difamação’ ou ‘agressão física’. Relevante considerar que submetidas à censura prévia do Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP, as composições musicais dessa época se veem sob intenso patrulhamento visando sua conformidade aos códigos de comportamento destinados a assegurar uma ‘boa sociedade’. Particularmente a partir de 1940, a vigilância do DIP se intensificará em torno das figuras do ‘malandro’ e da ‘malandragem’. Como resposta, as letras comumente produzidas por homens - e interpretadas por mulheres - terão uma torrente de canções destinadas a expressar, em particular, a insatisfação das mulheres com companheiros ‘malandros’ e ‘sanguessugas’, que dão as costas ao trabalho.
  • 16. 16 Igualmente, serão comuns letras destinadas a expressar as ‘dores de amor’ sentidas pelos homens; bem como de mudanças no comportamento feminino, que passam a trocar a reclusão nos ambientes domésticos pela ‘gandaia’ (‘orgia’), regada a samba e batucada. Em certa medida, decisão responsável pela alegria ou pelo sofrimento psicológico masculino. A repressão do DIP fomenta também o emprego pelos compositores de então de figuras retóricas para o enaltecimento de aspectos da ‘natureza brasileira’ e, nesse contexto, da beleza física das mulheres. Nesse âmbito, os casos analisados nesta pesquisa, assim como a literatura sobre o período, apontam, uma vez mais, para número significativo de letras com referência ao tom da pele. No entanto, até então utilizadas como razão do atraso intelectual e econômico do país, na década de 1930, o pensamento sociológico nacional busca reformulá-la como elemento de alteridade da identidade brasileira (Ericeira, 2012; Freyre, 1981). Esse mercado da música fomentado por gêneros locais e populares alcançará seu limite, no pós- guerra, em particular com a mudança de postura política dos Estados Unidos em relação à América Latina. Como efeito, após a segunda grande guerra mundial, os investimentos na difusão do ‘American Way of Life’ colocarão termo ao estágio do Estado Novo (Souza, 2001). Estágio 3 (1940-1959): Pós-Guerra Em relação a este estágio identifica-se o segundo maior número de composições com a alusão à categoria ‘Mulher’: 523 casos; sendo 153 classificados junto ao fator ‘Imprevisibilidade’, 89 no fator ‘Objetificidade’ e 80 em ‘Idealidade’ (Quadro 7). Quadro 7. Principais Significantes por Fatores – 1940-1959 Período Imprevisibilidade Objetificidade Idealidade 1940-1959 Mundo, coração, noite, morte, anormal, aflição ausência, feitiço, flerte, solidão, esquecimento, falta, lágrima, olhar, passado, perda, desrazão, outro, saudade, emoção, paixão, ruína, fingimento, remorso, vingança, loucura, madrugada, tormento, ilusão, desespero, malícia Posse, beijo, beijinhos, lábios, ardor, desejo, capacho, filhos, favor, necessidade, trabalho, vestido, morena, braços, corpo, cozinha, criança, agradar, boêmia, favor Beleza, sonho, carinho, madame, vaidade, maternidade, prece, sonho, alegria, carinho, alegria, musical, namoro, oração, versos, pequena Fonte: Dados da pesquisa Em termos das narrativas presentes nas composições analisadas é significativo no cenário da música nacional deste período, em especial com a retomada do país ao regime democrático, a crescente influência do modelo norte-americano, com respectiva perda de espaço dos estilos até então dominantes na música popular brasileira. Igualmente, assiste-se a um grupo de jovens da classe média carioca, saturados pela avalanche de músicas estrangerias, a movimentos de ‘atualização’ da música brasileira. Inicialmente, com referências na música clássica e no jazz, bem como posteriormente retomando-se o interesse pelos compositores populares forjam-se as bases para a Bossa Nova. O movimento bossanovista terá como pano de fundo o clima de otimismo e de modernização vivenciado pelo país durante o governo de Juscelino Kubitschek (1954-1960). A inauguração
  • 17. 17 de Brasília, a expansão dos processos de industrialização e de urbanização do país irão compor o cenário para novos comportamentos e modos de vida. Na música, tal clima se fará refletir na exaltação das paisagens da cidade do Rio de Janeiro, na intimidade com o mar e com a praia. Nesse cenário, a mulher é retratada como parte do cotidiano de uma classe média-alta, tendo como cenário favorito o bairro carioca de Copacabana. Vale observar, no primeiro momento, uma participação da mulher eminentemente como intérprete – com exceção de Dalva de Oliveira, em parceria com Tom Jobim, um dos grandes nomes do movimento. Tendo como pano de fundo as referências às paisagens fluminenses os relacionamentos serão indiscutivelmente os temas centrais do gênero musical em questão. Nessa direção, as composições evidenciam, uma vez mais, resquícios da mulher como ser idealizado, como ‘musa’ a que todo amor será dado, expressando a ideia de amor perfeito, ideal. Apesar de maior horizontalidade das relações e de tímido posicionamento rumo a igualdade, a relação de dominação masculina não sofrerá grandes mudanças, tendo a mulher se perpetuado como ‘auxiliadora’ e ‘apêndice’ do homem. Ao contrário das músicas de décadas anteriores, a linguagem adotada para expressar os sentimentos apresenta-se, no entanto, mais leve e menos dramática - comparativamente ao samba canção, por exemplo. As músicas ainda se verão geralmente escritas no masculino, constatando-se não-raro o pronome “ela” nos repertórios, aludindo à mulher uma posição secundária, comumente associada a letras que retratam as instâncias do sentimento e/ou da relação amorosa homem- mulher. No entanto, se por um lado algumas músicas mantêm postura de profunda contemplação em relação à mulher em outras a vemos como agente ativo, porém em contextos em que os discursos associados à ação feminina são frequentemente positivos. Mesmo quando os relacionamentos acabam e emerge a saudade a mulher não é vista como ingrata, malévola, mas ainda como ‘objeto desejado’. Ao compararmos os achados deste período com o de períodos anteriores constata-se que apesar de nuances à ‘igualdade’, o discurso permanece restrito ao masculino, perpetuando a condição secundarizada do feminino, bem como a direção do ‘olhar’ ainda significativamente orientado para o outro, no caso o homem. A condição da mulher nesse contexto, uma vez mais, marcada pelo paradoxo: se por um lado ela é protagonista no sentido de participar da ação, consentindo ou não o relacionamento, permanece como coadjuvante, isto, na medida em que o sentimento se apresenta como pivô central das composições. Enfim, apesar da emancipação de algumas mulheres, até fins da década de 1950 não se registram mobilizações consideráveis dos movimentos feministas junto à música popular brasileira, nem tampouco reivindicações mais sistemáticas em prol de uma causa. Apesar de grande número de temas e questões retratados pela música popular brasileira do período terem como substrato o cotidiano feminino, não se verifica um esforço organizado em prol de mudanças na condição em que se vê retrata. Lamentavelmente até este período pode-se dizer que a mulher não se reconhece como grupo e não tem história própria nos grandes hits da música popular brasileira. Coincidentemente, o movimento feminista apesar de existir desde o século XIX, no período abordado não será tema de grandes discussões no país. Será preciso aguardar as grandes transformações no feminismo mundial, com a transição para sua segunda geração, para novos movimentos.
  • 18. 18 Estágio 4 (1960-1970): Regime militar Com a promulgação, em 1969, do Ato Institucional n. 5, pelo governo militar alçado ao poder pelo golpe de 1964, ampliam-se radicalmente os poderes do regime e sua força repressiva. Como efeitos tem-se uma interrupção abrupta das experiências musicais registradas nas duas décadas anteriores. A partir de então, as músicas de protesto ao regime e o movimento tropicalista - movimento cultural que emerge sob a influência de correntes artísticas de vanguarda e da cultura pop nacional e estrangeira, mesclando manifestações tradicionais da cultura brasileira a inovações estéticas e comportamentais - irão se dedicar a formas de resistência ao endurecimento da censura e ao avanço da ideologia do projeto econômico proposto pelo regime militar: ‘a conquista da modernidade pelo [...] alinhamento às características do modelo importador de pacotes tecnológicos prontos para serem montados no país’ (Tinhorão, 1998, p. 325). Nesse estágio, como contraposição a estilos musicais ‘alienados’ - como a Jovem Guarda, por exemplo - a ‘Música Popular Brasileira – MPB’ se afirma como sigla síntese da busca por novas formas musicais capazes de expressar os ideais de um país que se almeja democrático e influenciado por uma ideologia popular nacionalista. Nesse sentido temas como ‘modernidade’, ‘liberdade’, ‘justiça social’ se evidenciam como marcas registradas da MPB, em particular nos momentos mais autoritários do regime militar, entre os anos 1969-76. Nesse período os ouvintes mais assíduos da MPB serão os jovens, de classe média, de nível escolar médio e universitário, os quais lhe conferem a reputação de ‘bom gosto’ e ‘qualidade musical’. Não se pode, igualmente, ignorar os reflexos, também no Brasil, dos movimentos estudantis, pelos direitos civis e feministas, protagonizados no continente europeu e nos Estados Unidos. Os festivais universitários, organizados pelas principais emissoras de televisão da época, também desempenharão papel importante no reforço aos traços e à consolidação da hegemonia da MPB junto ao público jovem mais intelectualizado e politicamente mais engajado. Aproveitando a crise mundial do petróleo e o enfraquecimento do governo, com a derrocada do ‘milagre econômico brasileiro’, os jovens ganham as ruas, exilados começam a retornar ao país e o governo a ceder a uma redemocratização ‘lenta e gradual’, impulsionando cada vez mais os jovens e as classes populares a lutarem por seus direitos. Como resultado, o processo de distensão do regime militar, pós 1977, irá abrir espaço para um novo boom criativo e comercial da música popular brasileira. Já por volta de 1978, a MPB já compreendia em todas as suas esferas estilísticas e de influência social, o segmento mais dinâmico da indústria fonográfica brasileira. Ao mesmo tempo constata-se sua penetração junto a novos públicos, fora dos extratos mais intelectualizados e universitários da classe média. Esse auge se estenderá até o início dos anos 1980, quando o cenário musical nacional irá se voltar para o rock nacional. Nesse contexto de enfrentamento ao regime militar irá ressurgir, principalmente por meio de exilados que tiveram contato com as ideias feministas na Europa e nos Estados Unidos, bem como da participação ativa de mulheres nas organizações eclesiais de base e de combate à ditadura, registram-se as primeiras manifestações contrárias a violência contra a mulher. Ampliando seus espaços de fala e de expressão, um aliado importante será a decretação do ano de 1975 como “Ano Internacional da Mulher”. Tal cenário estimula a militância feminista que se alastra para outros espaços - sindicatos, partidos políticos, universidades - na defesa de temas como o direito de ter ou não filhos, a
  • 19. 19 punição aos assassinos de mulheres, o aborto, a sexualidade, a violência doméstica, os quais foram posteriormente incorporados a diversos programas de partidos políticos de esquerda (Henkin & Rodrigues, 2014; Soares, 1998). Enquanto o feminismo da ‘primeira onda’, no final do século XIX, centra-se em reivindicações dos direitos políticos (direito ao voto), trabalhistas e econômicos das mulheres, o da ‘segunda onda’, ampliado no Brasil deste período, abraça temas de caráter mais subjetivos, priorizando as lutas pelo corpo, o direito ao prazer e ao livre exercício da sexualidade (Gomes da Silva, 2014). Conforme observa Faour (2011, p. 16), ‘só a partir dos anos 70 a mulher e o gay passaram a ser tratados com maior dignidade por nossos letristas’. O Quadro 8 apresenta os principais significantes associados à representação da mulher nos fatores obtidos, no período 1960-1970. Quadro 8. Principais Significantes por Fatores – 1960-1970 Década Imprevisibilidade Objetificação Idealização 1960- 1970 Coração, flerte, fingimento, esquecimento, capricho, emoção, esperança, alucinação, crença, paixão, mundo, noite, desprezo, dissabor, razão, mágoa, saudade, pranto, perfume Posse, dinheiro, beijo, calor, amante, necessidade, braços, corpo, casamento, maciez, joia Amor, carinho, beleza, estrela, bênção, cinderela, alegria, adoração, calma, amor Fonte: Dados da pesquisa Não obstante, a prevalência do modelo masculino registra-se uma crescente expansão da participação da mulher na composição musical. É, de fato, inegável as conquistas, questionamentos e denúncias às formas tradicionais de dominação masculina e aos micropoderes que as capilarisa e as naturaliza, abrindo novos ‘espaços de fala’ e, por conseguinte, novas possibilidades de reinvenção do feminino. Esses quatro estágios - inovação proximal, inovação difusa, inovação estabelecida e inovação mantida – descrevem a evolução da MPB e a representação da mulher conforme os ícones musicais constantes da ‘Coleção História da Música Popular Brasileira’. Conforme procurou- se evidenciar acima, para cada estágio constatam-se permanências e descontinuidades em torno do imaginário da mulher. Muito embora de forma dúbia e permeada pelo ‘eterno feminino’ e pela marca de objeto sexual, a mulher vai conquistando novas representações MPB, refletindo o próprio movimento em prol de melhoria de suas condições no seio da sociedade brasileira. Síntese das Discussões e Conclusões Este estudo ao investigar como a mulher é retratada na música popular brasileira no período compreendido entre os anos de 1880-1970, aponta para ‘permanências’, bem como sinaliza para ‘descontinuidades’ em relação à forma de sua representação social. Mais especificamente, os achados sugerem a possibilidade de agrupamento do universo dos significantes em três fatores principais - ‘Imprevisibilidade’, ‘Objetificidade’ e ‘Idealidade’- recorrentes ao longo do conjunto dos estágios que caracterizam a produção da música popular brasileira, conforme propostos por Tinhorão (1998): ‘República Nova’, ‘Estado Novo’, ‘Pós-guerra’ e ‘Regime Militar’.
  • 20. 20 Concomitantemente, as mudanças na representação da mulher em cada um desses estágios apontam para a influência direta de mudanças contextuais - socioeconômicas, culturais, políticas e comportamentais - bem como suas relações e repercussões nas agendas de lutas e conquistas dos movimentos feministas (Arán, 2006). Não obstante, convém ressaltar a prevalência de composições musicais que retêm, ao longo do tempo, formas tradicionais de dominação masculina (Bourdieu, 1999). De fato, os achados deste estudo apontam para o caráter hegemônico e recorrente de representações da mulher que reiteradamente a vincula a pares binários, tais como ‘natureza-cultura’ (biológico-corporal versus cultural-discursivo), ‘objetividade-subjetividade’ (imprevisibilidade-irracionalidade versus objetividade- racionalidade), ‘sujeito-objeto’ (satisfação-prazer versus produção-realização). Pares esses, reforçados por significantes que a restringem aos espaços privados e domésticos, não raro sob justificativas que enfatizam seu frágil e instável caráter, bem como a naturalidade de seus instintos maternos. Recorrendo, uma vez mais à teoria, ampliamos nossa análise sobre a representação da mulher a outros campos das artes - literatura, artes plásticas, teatro, dança -, o que permitiu constatar a prevalência das representações obtidas por meio do estudo no contexto da música popular brasileira. As influências patriarcais, patrimonialistas e falocêntricas se fazem igualmente constatar também nessas outras manifestações culturais desde, inclusive, temporalidades ainda mais remotas (Colling, 2014; Gardiner, 2005; Heilborn, 2002; Lipovetsky 2000; Perrot, 1995; Laqueur, 1994; Stoller, 1968; Mead, 1949), conforme ilustrado no Quadro 9. Igualmente, os achados contribuem com estudos anteriores que chamam a atenção para a relevância da implicação pessoal do artista, como parte interessada na causa por ele defendida. No entanto, o que reforçamos nessa discussão é a importância desses agentes na abertura e construção de ‘espaços de fala’. Nesse sentido, acrescentamos à ênfase no papel da ação individual (Boari & Riboldazzi, 2014), a importância de papeis sociais e relacionais, por meio dos quais discursos alternativos possam se lançar, manipulando algum aspecto do contexto social (Phillips & Lawrence, 2010). Desse modo, defende-se que os artistas desempenham papel significativo ao se engajarem em trabalho relacional com o objetivo de produzir espaços e ou abrir fissuras em que novas agendas discursivas possam penetrar e se fixar (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016). De fato, nossos achados apontam, a partir do conjunto dos estágios estudados, possibilidades concretas de ‘descontinuidades’, somente a partir do momento (e.g. do estágio descrito como ‘Regime Militar’), em que maior número de mulheres assumem a tarefa de produção das próprias composições musicais. Com base em Montanari, Scapolan, Gianecchini (2016) compreende-se o trabalho relacional como o processo que ‘inclui o estabelecimento de ligações sociais, sua manutenção, sua reformulação, sua distinção das outras relações e, às vezes, seu término’ (Bandelj, 2012, pág. 176). Não se trata, portanto, da proposição de formas simplistas de ação e engajamento, mas, ao contrário, de ações ‘conceituantes’, inseridas nas estruturas sociais que se busca modelar. Nessa direção, nossos achados contribuem para uma melhor compreensão do lado ‘microscópico’ da capacidade de disruptiva aportada pela artística e, assim, complementa e amplia resultados de pesquisas centradas na estrutura (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016; Cattani, Ferriani, Allison, 2014; Zaheer & Soda, 2009). Assim sendo, ao salientar o papel desempenhado pelo trabalho relacional de um artista, ampliamos a necessidade de olhares mais atentos à microteoria da ação criativa, que sustenta que a inovação artística é o resultado da ação individual por meio da qual os indivíduos agem como ‘empreendedores institucionais’ (DiMaggio, 1998), por exemplo, ao desenvolverem
  • 21. 21 parcerias e grupos que apoiam suas empreitadas artísticas (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016). O estudo, desse modo, amplia a compreensão do processo por meio do qual um artista se engaja em diferentes interações com sociais, por exemplo, por intermédio de sua ligação com outros compositores, parceiros, interpretes, festivais e ou a movimentos, os quais possam propiciar acesso a espaços e a recursos necessários à difusão de suas ideias e causas. Inspirados, uma vez mais, em contribuições aportadas por Montanari, Scapolan e Gianecchini (2016), ilustramos, na Figura 1, o modelo analítico-teórico aplicado para fins deste estudo. Figura 1. Modelo Analítico-teórico de ‘Descontínuidades’ por ação/protagonismo relacional. Nota 1. Considerada a análise das narrativas das composições musicais, do contexto social e dos significantes constantes dos fatores identificados na pesquisa: ‘Imprevisibilidade’, ‘Objetificidade’ e ‘Idealidade’. Fonte: Dados da pesquisa. Embora este estudo se debruce sobre a análise de período de tempo (1880-1970), provavelmente sua maior contribuição esteja assentada no estágio mais recente das composições musicais estudadas. Análise futura sobre o período pós-1970 poderá expandir os atuais achados. Certamente, uma extensão do estudo para a transição entre a segunda e terceira ondas do feminismo - ou ainda da terceira para a quarta onda, sugerida por alguns autores - permitirão corroborar nossos achados acerca da importância de papeis mais protagônicos da mulher - em particular como compositoras - na construção de ‘espaços de fala’ e de posturas diferenciadas nas relações com os demais agentes sociais e instituições envolvidos no ‘campo’ Tempo ProtagonismodaMulhernasRelações Trabalho Relacional Estágio Representação Social da Mulher (1) República Nova (1880-1920) Estado Novo (1930-1940) Pós-guerra (1940-1950) Regime Militar (1960-1970) Domínio masculino das composições. Poucas mulheres no meio. Quando presentes, atuantes como interpretes. No máximo, como compositoras de músicas instrumentais. Radicalmente Conservadora Fortemente Conservadora Domínio masculino das composições. Ampliação da participação das mulheres como interpretes de projeção nacional, via penetração do Rádio e Teatro de Revista Conservadora Domínio masculino das composições. Mulheres como interpretes ou em dupla com homens. Espaços sendo abertos no Rádio, sob interveniência masculina Predomínio masculino das composições. Mulheres começam a ocupar espaços, por meio da televisão, movimentos coletivos e ou festivais Abertura de espaços de fala e de poder. Mudanças, porém, incrementais. Construção de relações com potenciais ‘disruptivos’ (futuro) Mulher Homem Mulher Rádio Homem Rádio Homem Mulher RádioHomem TV Festivais Movimentos Movimento Feminista: Primeira Onda Movimento Feminista: Segunda Onda (Transição) Mulher Baixo Alto
  • 22. 22 (Bourdieu, 2009) musical - e.g. outras compositoras, parceiras, interpretes, bandas, grupos, festivais e movimentos musicais. Acreditamos que tais ações relacionais, levadas a cabo nos anos 1970, por um maior número não apenas de interpretes, mas também de compositoras mulheres - e.g. Sueli Costa, Marlui Miranda, Luli e Lucina, Kátia de França, Angela Roro, Zelia Duncan, Vange Leonel, Paula Toller, Marina Lima (Brazil, 2015) -, mas também bandas e grupos musicais capiteados por mulheres abriram novos ‘espaços de fala’ e ‘novos dialógos’ ampliando as potencialidades de criação de novos significantes e rupturas com o mainstream. Estudo conduzido por Henkin e Rodrigues (2014), envolvendo análise do discurso feminista (Pêcheux, 1997) em três letras de músicas de três diferentes ‘estilos’ (Possenti, 2001) musicais: Rock, MPB e Funk, produzidas a partir dos anos 1980, ‘período em que o movimento feminista conquista vários direitos para as mulheres’ (Henkin e Rodrigues, 2004, p. 8), as autores identificam que ‘o discurso feminista aparece como afirmação da igualdade entre homens e mulheres, como crítica ao pensamento machista e como confirmação de um novo posicionamento das mulheres em suas relações com os homens, com os espaços de produção e reprodução do sistema, com os espaços de poder’. Ainda segundo elas ‘os discursos musicais analisados aparecem as mulheres que exercem seus direitos e que rejeitam a dominação sexista, mostrando a sua força e o seu protagonismo’. Muito embora o reduzido número de casos investigados, Henkin e Rodrigues (2004, p. 17) concluem salientando que o ‘feminismo, como acontecimento, destaca mulheres que conquistaram seu lugar no mercado de trabalho, em que pese a dominação/exploração capitalista, que disputam, mesmo que não em condição de igualdade, os espaços de poder, destacando fatos discursivos que revelam uma nova chave histórica, rompendo com a concepção de naturalidade da desigualdade entre homens e mulheres’. Nesse sentido, possíveis retardos na incorporação da agenda de discussões da segunda onda do feminismo, no Brasil, podem limitar a generalização dos resultados, bem como a própria opção pelo estudo do conjunto das músicas inseridas na ‘Coleção História da Música Popular Brasileira’ (1880-1970). Ademais, como produto comercial, os artistas, intérpretes e canções não foram selecionadas ao acaso, mas, ao contrário, tendo por base interesses mercadológicos e financeiros. Não obstante, conforme observa Milani (2014), evidenciarem-se, pelos descritores das músicas e mesmo nas escolhas dos compositores, ideais de defesa da música ligada a raízes e tradições, e não somente ao mercado. Não obstante as limitações, importante contribuição deste estudo é sinalizar para o papel das perspectivas relacionais, corroborando abordagens, que muito embora sob distintas matrizes epistemologias e diferentes correntes teóricas, sugerem a relevância do estabelecimento de redes de relacionamento, simultaneamente ao papel de agentes individuais, na construção de posições de protagonismo nas ações e causas mobilizadas (Montanari, Scapolan, Gianecchini, 2016; Cattani , Ferriani, Allison, 2014; Bandelj, 2012; Zaheer & Soda, 2009). Assim, conforme bem sintetiza Miranda (2014), quer por meio de um poder disciplinar que atribui poder simbólico sobre os corpos, diferenciando e distinguindo-os em termos de valor e prestígio (Bourdieu, 1999); quer no destaque aos agentes que fazem parte de relações de dominação e se agregam por ter as mesmas orientações culturais e lutarem por elas (Touraine, 1985, 1984), quer na ênfase aos modos de ação que envolvem, de um lado, as formas como os indivíduos agem para constituir uma coletividade e, de outro, o método pelo qual eles confrontam isso com o mundo externo e seus oponentes (Claus Offe, 1985); quer na análise de como se articulam em uma ‘sociedade civil global’ (Alvarez, 2000) ou em um ‘enredo de redes’ (León, 1994); o que se evidência, por meio de nossos achados, é que ‘permanências’ ou ‘descontinuidades’ derivam de um entrelaçamento de indivíduos, organizações e movimentos atuando em rede
  • 23. 23 (Castells, 1999), sendo o protagonismo dos agentes na construção de ‘espaços de fala’ fator chave às ‘dinâmicas disruptivas’.
  • 24. 24 Quadro 9. A “mulher’ na antiguidade, na modernidade e no contemporâneo: significantes recorrentes Temporalidades/ Fatores Antiguidade Modernidade Contemporaneidade Imprevisibilidade Sedução, emoção, astúcia, perigo, inferioridade, desrazarão, natureza, pandora, sofrimento, pecado, proibido, bruxa, feminilidade, dissimulação, luxúria, ambição, infidelidade Vaidade, histeria, loucura, nervosismo, incapacidade, inferioridade, desgoverno, inveja, risco Sensibilidade, incompetência, sentimentalismo, ingenuidade, intuição, inveja, criatividade, risco Objetificidade Doméstica, invisibilidade, fertilidade, punição, sexualidade, lar Docilidade, submissão, obediência, paciência, passividade, fraqueza, fragilidade, subalternidade, conselheira, biológico Fragilidade, fraqueza, dependência, submissão Idealidade Anjo, rainha, mãe, deusa, sensibilidade Amor, castidade, pureza, comedimento, delicadeza, beleza, sensualidade, maternidade Cuidado, gentileza, polidez, compreensão, empatia Fonte: Dados de pesquisa
  • 25. 25 Referências Alonso, S. L.; Breyton, D. M.; Albuquerque, H. M. F. M. (2008) Interlocuções sobre o feminino na clínica, na teoria, na cultura. São Paulo: Escuta. Arán, M. (2006). O avesso do avesso: Feminilidades e novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Garamond. Bandelj, N. (2012) Relational work and economic sociology. Politics & Society, 40, 175-201. Becker, H. S. (1982) Art Words. Berkeley: University of California Press. Boari, C. & Riboldazzi, F. (2014) How knowledge brokers emerge and evolve: The role of actor’s behavior. Research Policy, 43, 683-695. Bourdieu, P. (1998) A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. Bourdieu, P (2009) O senso prático. Petrópolis: Vozes. Brazil, D. (2015) A mulher protagonista na música brasileira. Revista da Música Brasileira. Disponível em: http://www.revistamusicabrasileira.com.br/homenagens/mulher- protagonista-na-musica-brasileira. Acessado em: 11/10/2016. Butler, J. (2014) Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Cabral, S. (2016) Na era do rádio. São Paulo: Editora Lazuli. Castañer, X.; & Campos, L. From the armory to academia: Careers and reputations of early modern artists in the United States. Poetics, 37, 683-695. Castells, M. (1999) O poder da identidade. A era da informação: Economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra. Cattani, G.; Ferriani, S.; & Allison, P. D. (2014) Insiders, outsiders, and the struggle for consecration in cultural fields: A core-periphery perspective. American Sociological Review, 1, 1-24. Colling, A. M. (2014) Tempos diferentes, discursos iguais: A construção do corpo feminino na história. Dourados, MS: Editora UFGD. Costa, N. M. (2006) A mulher na música popular brasileira. Disponível em: http://www.samba-choro.com.br/s-c/tribuna/samba-choro.0401/0405.html. Acessado em: 11/10/2016. DaMatta, R. (1994) Conta de Mentiroso: Sete ensaios de antropologia brasileira. Rio de Janeiro: Rocco. Deleuze, G.; & Guattari, F. (1995) Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, v. 1. São Paulo: Editora 34. DiMaggio, P. J. (1998) Interest and agency in institucional theory. In: L. Zuckerman (Ed.). Institutional patterns and organizations. Cambridge, MA: Ballinger. Diniz, E. (1999) Chiquinha Gonzaga: Uma história de vida. Rio de Janeiro: Rosas dos Ventos. Ericeira, R. (2012) O discurso das marchinhas carnavalescas e as relações de gênero no Rio de Janeiro (1930-1940). Cadernos de Linguagem e Sociedade, 13, 84-101. Eisenhardt, K. (1989) Building theories from case study research. Academy of Management Review, 14, 532-550. Faour, R. (2011) História sexual da MPB: A evolução do amor e do sexo na canção brasileira. Rio de Janeiro: Record. Flick, U. (2009) Introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed. Foucault, M. (1999) As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes. Foucault, M. (1997) A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Freyre, G. (1981) Casa grande & senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio.
  • 26. 26 Gardiner, J. K. (2005) Men, masculinities, and Feminist theory. In: Michael S. Kimmel; Jeff Hearn; & Connell, R. W. (Eds.). Handbook of Studies on Men & Masculinities. Thousand Oaks, CA: Sage Publications. Garud, R.; & Rappa, M. (1994) A socio-cognitive modelo of technology evolution. Organization Science, 5, 344-362. Harrison, S. H.; Rouse, E. D. (2014) Let’s dance! Elastic coordination in creative group work: A qualitative study of modern dancers. Academy of Managment Journal, 57, 1256-1283. Heilborn, M. L. (2002) Fronteiras simbólicas: gênero, corpo e sexualidade. Cadernos CEPIA, 5, 73-92. Henkin, R. M.; & Rodrigues, M. L. (2014) O discurso feminista nos estilos rock, MPB e samba. Questões de Linguística & Linguagem, 23, 1-20. Jones, C. (1996) Careers in Project networks: The case of the film industry. In: M. B Arthur & D. M. Rousseau (Eds.) The boundaryless career: A new employment principle for a new organizational era. New York: Oxford University Press. Langley, A. (1999) Strategies for theorizing from process data. Academy of Management Review, 24, 691-710. Laqueur, T. (1994) La construcción del sexo: cuerpo y género desde los griegos hasta Freud. Madrid: Cátedra. Lipovetsky, G. (2000) A terceira mulher: permanência e revolução do feminino. São Paulo: Companhia das Letras. Mead, M. (1949) Male and female: a study of the sexes in a changing world. New York: Morrow. Mello, Z. H. (2003) A era dos festivais: uma parábola. São Paulo: Editora 34. Meyer, D. E. (2004) Teorias e políticas de gênero: Fragmentos históricos e desafios atuais. Revista Brasileira de Enfermagem, 57, 13-18. Milani, V. P. (2014) Entre a arte e a mercadoria: o samba na coleção história da música popular brasileira. In: XXII Encontro Estadual de História da ANPUH-SP. Anais... Santos: ANPUH-SP. Miranda, C. M. (2014) Os movimentos feministas e a construção de espaços institucionais para a garantia dos direitos das mulheres no Brasil. In: IX Encontro da Associação Brasileira de Ciências Políticas. Anais... Brasília: ABCP. Moraes, E. (1958) História do carnaval carioca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1958. Montanari, F.; Scapolan, A.; & Gianecchini, M. (2016). ‘Absolutely free’? The role of relational work in sustaining artistic innovation. Organization Studies, 37, 797-821. Napolitano, M. (2007) A síncope das ideais: A questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo. Narvaz, M. G.; & Koller, S. H. (2006) Metodologias feministas e estudos de gênero: Articulando pesquisa, clínica e política. Psicologia em Estudo, 11, 647-654 Offe, C. (1985) New Social Movements: Challenging the Boundaries of Institutional Politics. Social Movements, 52, 817-868. Paranhos, A. (2013) Além das amélias: Música popular e relações de gênero sob o ‘Estado Novo’. ArtCultura, 15, 133-144 Perrot, M. (1995) História das mulheres no Ocidente. Porto: Afrontamento. Phillips, N., & Lawrence, T. B. (2012) The turn to work in organization and management theory: Some implications for strategic organization. Strategic Organization, 10, 223-230. Prata, M. R. (2010) Sexualidades. Rio de Janeiro: Contra Capa. Strauss, A.; & Corbin, J. (1990) Basics of qualitative research: grounded theory procedures and techniques. London: Sage Publications. Severiano, J.; & Homem de Mello, Z. A canção no tempo. V. 1. São Paulo: Editora 34.
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