1. HÁ LIMITE PARA O PERDÃO?
Pe. José Bortoline – Roteiros Homiléticos Anos A, B, C Festas e Solenidades - Paulos, 2007
* LIÇÃO DA SÉRIE: LECIONÁRIO DOMINICAL *
ANO: A – TEMPO LITÚRGICO: 24° DOMINGO TEMPO COMUM – COR: VERDE
I. INTRODUÇÃO GERAL
1. As comunidades se reúnem para celebrar a fé e a certeza de
que pertencem ao Senhor: "Ninguém de nós vive para si mesmo e
ninguém de nós morre para si mesmo. Pois se vivemos, é para o
Senhor que vivemos, e se morremos, é para o Senhor que morre-mos"
(cf. 2ª leitura, Rm 14,7-9). A vitória de Cristo sobre a morte
é a grande lição que aprenderemos no dia de hoje. Sua morte nos
perdoou os pecados, uma dívida impagável que tínhamos com
Deus. Dessa certeza nasce nosso compromisso de perdoar sempre
e totalmente, exatamente como pedimos no Pai-nosso: "Perdoa-nos
as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos
devedores".
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
2ª leitura (Eclo 27,33-28,9; grego: 27,30-28,7): Perdoar para
ser perdoado
2. “O Eclesiático não faz parte da bíblia hebraica, fato pelo qual
foi também excluído do cânon pelas Igrejas protestantes.” (Intro-dução
ao Eclesiático, Bíblia Ed. Vozes) — O livro do Eclesiásti-co
surgiu no início do segundo século a.C., tempo em que a Ju-déia
estava sob o domínio dos selêucidas. Estes, a fim de unificar
o império, estabeleceram na região o imperialismo cultural e
religioso: religião e costumes gregos deviam ser adotados pelos
povos dominados. Para isso utilizavam artifícios e promessas, a
fim de convencer o povo à submissão. Dentro desse contexto
surge o livro que, mais tarde, recebeu o nome de Eclesiástico. O
objetivo da obra é preservar a identidade do povo, conservar suas
raízes e manter a fé que o caracterizou como povo de Deus. Ecle-siástico
é, portanto, um livro de resistência, capaz de reavivar a
memória histórica de um povo, desmascarando a linguagem e
ideologia dos opressores.
3. Os versículos escolhidos para a liturgia deste domingo têm
sabor sapiencial, ou seja, são resultado de longas experiências que
ajudam a entender melhor o sentido da vida e das relações das
pessoas entre si e com Deus. Constituem passo importante na
vida do povo de Deus, pois conseguem superar a lei do olho por
olho e dente por dente, a lei do talião (cf. Ex 21,23-25; Lv 24,19-
20; Dt 19,21). Nesse sentido, esses versículos sintonizam perfei-tamente
com a bem-aventurança da misericórdia (cf. Mt 5,7) e
com o que Jesus nos ensina no Pai-nosso (cf. Lc 11,4).
4. O autor do Eclesiástico chegou à conclusão de que "o rancor
e a raiva são coisas detestáveis" (27,33), pois geram um tipo de
reação que conduz à vingança. Quando as relações humanas são
temperadas por esses sentimentos, o que pode Deus fazer senão
retribuir a cada um de acordo com o que deseja e faz a seu pró-ximo?
De fato, "quem se vingar encontrará a vingança do Senhor,
que pedirá severas contas dos pecados" (28,1). O que fazer, en-tão?
Em primeiro lugar, tomar consciência de que a religião é a
síntese das relações humanas vitais. O ódio para com as pessoas é
ruptura com Deus, e ele dará a cada um de nós segundo a medida
de nossos sentimentos em relação aos outros. Mexer com as pes-soas,
portanto, é mexer com Deus. Essa é uma das grandes con-clusões
a que chegou o autor do Eclesiástico.
5. A melhor coisa a ser feita, portanto, é perdoar as injustiças
que os outros cometeram contra nós, a fim de que Deus perdoe as
nossas (v. 2), pois se alguém "não tem compaixão do seu seme-lhante,
como poderá pedir perdão dos próprios pecados?" (v. 4).
6. O autor conclui dando alguns conselhos. Acima de tudo,
pensar no fim, na destruição e na morte que nivelam a todos (vv.
6-7). Aí cessam rancor e raiva. Teria valido a pena viver assim?
A seguir, aconselha a pensar nos mandamentos, síntese de um
projeto onde todos podem usufruir da vida fundada na liberdade e
no respeito mútuos (v. 8). Finalmente, convida a pensar na alian-ça
com o Altíssimo, a fim de não levar em conta a falta alheia (v.
9). Esse dado é o mais importante de todos, pois Deus se aliou a
um povo não porque esse fosse perfeito e fiel. Pelo contrário,
Javé se aliou a um povo que clamava por causa da opressão sofri-da.
Ser aliado dele, portanto, é acima de tudo aprender a ter com-paixão
e ajudar as pessoas a se libertarem de todos os males, entre
os quais estão o ódio, a raiva e a vingança. Pensar na aliança é,
pois, aprender a ser misericordioso e bom à semelhança da bon-dade
e misericórdia divinas.
Evangelho (Mt 18,21-35): Há limite para o perdão?
7. Como dissemos no comentário ao evangelho do domingo
passado, o tema que domina o evangelho de Mateus é o da justiça
do Reino como chave que cria sociedade e história novas. Esse
evangelista apresenta Jesus como o Mestre que traz para dentro
de nossa sociedade e história ensinamento e prática centrados na
justiça que gera relações novas e, conseqüentemente, constrói um
mundo novo. Todo o evangelho de Mateus é dominado pelas
primeiras palavras que marcam o programa de Jesus: "Devemos
cumprir toda a justiça" (3,15) e também o programa dos seus
seguidores: "Se a justiça de vocês não superar a dos doutores da
Lei e dos fariseus, vocês não entrarão no Reino do Céu" (5,20).
8. O capítulo 18 de Mateus — ao qual pertence o texto de hoje
— não foge à regra, procurando mostrar aos seguidores de Jesus
como viver a justiça do Reino dentro da comunidade, sobretudo
em situações difíceis como, por exemplo, na questão do perdão.
A pergunta de Pedro a Jesus demonstra que se trata de questão
delicada: "Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão
pecar contra mim? Até sete vezes?" (v. 21).
9. A parábola que segue (vv. 23-34) é a resposta de Jesus. Ele
mostra a seus seguidores que, para entrar no Reino do Céu, é
preciso superar a justiça dos doutores da Lei e dos fariseus (cf.
5,20). De fato, a casuística dos rabinos tinha chegado a um con-senso
sobre o número de vezes em que devemos perdoar quem
nos ofendeu: era suficiente perdoar quatro vezes o mesmo erro.
Pedro, ao fazer a pergunta, demonstra boa vontade em superar as
barreiras da justiça humana codificada em quantidades numéri-cas.
Ele imagina que sete vezes seja o limite máximo. E depois
disso, o que viria: indiferença? ódio? vingança? O Mestre da
justiça vai mostrar que não se trata de números quantitativos. O
perdão é questão de qualidade. Se não for total e contínuo não é
perdão. Com isso amplia-se o que foi dito em Mt 6,12: "Perdoa-nos
as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos
devedores". A resposta de Jesus a Pedro mostra que somente o
perdão pode salvar uma comunidade da ruína: "Não lhe digo que
até sete vezes, mas até setenta vezes sete" (v. 22), ou seja, sem-pre.
O Mestre da justiça ensina, dessa forma, a acabar com a
indiferença, ódio e vingança que geraram uma sociedade brutal e
ambígua. De fato, por trás dessa afirmação de Jesus se esconde
uma grande novidade que elimina o progresso da violência ace-nado
em Gn 4,23b-24: "Por uma ferida, eu matarei um homem, e
por uma cicatriz eu matarei um jovem. Se a vingança de Caim
valia por sete, a de Lamec valerá por setenta e sete (setenta vezes
sete na “Bíblia JFARA”)".
a. Por que não há limite para o perdão? (vv. 23-34)
10. A parábola é própria de Mateus e contém três cenas sucessi-vas
bem ligadas entre si. É uma comparação que ajuda a entender
o que é a justiça do Reino. Na primeira cena (vv. 23-27) encon-tramo-
nos diante de um rei (que faz a gente se lembrar de Deus)
que resolveu acertar as contas com seus empregados. Isso nos
recorda que todos teremos de acertar as contas com Deus. A
parábola vai logo ao que é mais importante, apresentando em
primeiro lugar um empregado que devia dez mil talentos. Estra-nhamente,
o texto não dirá, em seguida, quanto os outros estariam
devendo. É sinal de que cada pessoa deverá perguntar-se: A quan-to
chega a minha dívida com Deus? No seu conjunto, a parábola
2. dá a entender que esse empregado que devia dez mil talentos
somos todos e cada um de nós.
11. A parábola mexe com quantidades. Um talento de ouro pe-sava
mais de 30 quilos. Ora, o empregado que somos nós tem
uma dívida de dez mil talentos. É fácil fazer as contas. Maior é o
susto quando chegamos aos resultados concretos: dez mil talentos
é uma soma que ninguém conseguirá pagar: "Ele não tinha com
que pagar" (v. 25a). Estava irremediavelmente perdido. A primei-ra
reação do rei mostra como funciona uma sociedade baseada na
justiça dos doutores da Lei e dos fariseus: "O patrão mandou que
fosse vendido como escravo, junto com a mulher e os filhos e
tudo o que possuía, para que pagasse a dívida" (v. 25b). Conse-guiria
saldar a dívida? Não.
12. O empregado reage com presunção: "Dá-me um prazo! e eu
te pagarei tudo!" O pedido é feito de joelhos (v. 26). Vem então a
reação inesperada do rei, e é justamente aí que descobrimos por
trás dele o rosto de Deus: "Diante disso, o patrão teve compaixão
(literalmente entranhas de misericórdia), soltou o empregado e
perdoou-lhe a dívida" (v. 27). Nossa dívida para com Deus, im-pagável,
é inesperadamente perdoada, superando nossas expecta-tivas
e pretensões.
13. A segunda cena (vv. 28-31) põe frente a frente aquele que foi
perdoado e um de seus companheiros. Nesse caso, a dívida é
irrisória se comparada com os dez mil talentos: trata-se de cem
moedas de prata, pouco mais de três salários mínimos. Como
reagimos diante das bagatelas que devemos uns aos outros? Rea-gimos
com violência: "Ele o agarrou e começou a sufocá-lo,
dizendo: ‘Pague o que você me deve’ " (v. 28b). O companheiro
que devia cem moedas de prata reage de uma forma que já co-nhecemos,
pois é o mesmo modo como o "grande devedor" rea-giu
diante do rei: ajoelha-se e suplica: "Dá-me um prazo e eu te
pagarei!" (v. 29). Sua pretensão não é inconcebível, pois de fato
tem condições de pagar. Mas acontece que, ao ver alguém ajoe-lhado
diante de nós, temos a sensação de ser todo-poderosos,
esquecendo-nos de que também já ajoelhamos um dia, pedindo
tempo e paciência.
14. A reação do empregado não é marcada pelas entranhas de
misericórdia: "Ele não quis saber disso; saiu e mandou jogá-lo na
prisão, até que pagasse o que devia" (v. 30). E a gente se pergun-ta:
como poderia pagar se foi posto na prisão? Além de não ser-mos
capazes de perdoar, impedimos que os outros andem e te-nham
liberdade, exatamente ao contrário do que Deus faz conos-co!
15. Na terceira cena (vv. 31-34) retornam as personagens da
primeira. E o patrão, numa palavra, nos desmascara no que somos
e fazemos: "Empregado miserável, eu lhe perdoei toda a sua
dívida porque você me suplicou. Não devia você também ter
compaixão (= entranhas de misericórdia) do seu companheiro
como eu tive compaixão de você?" (vv. 32b-33). Note-se que só
se fala de perdão na relação patrão-servo. Com isso chegamos a
esta constatação: o primeiro e talvez único perdão é o que Deus
nos concede gratuitamente. O resto é simplesmente misericórdia e
gratuidade nas relações entre pessoas perdoadas. Não havendo
misericórdia, também não haverá perdão por parte de Deus: "O
patrão indignou-se e mandou entregar aquele empregado aos
torturadores, até que pagasse toda a sua dívida" (v. 34). Agora já
sabemos que essa dívida não pode ser paga. E então, como fica-mos?
b. A solução é ser misericordioso (v. 35)
16. O v. 35 é, ao mesmo tempo, a conclusão da parábola e a
amarra de todo o capítulo 18 de Mateus, que trata da justiça do
Reino na comunidade dos que seguem a Jesus: "É assim que o
meu Pai que está no céu fará com vocês, se cada um não perdoar
de coração ao seu irmão".
2ª leitura (Rm 14,7-9): Pertencemos ao Senhor
17. Durante vários domingos do Tempo Comum, a 2ª leitura nos
apresentou os trechos mais importantes da carta aos Romanos. Os
versículos de hoje fazem parte das orientações de Paulo à comu-nidade,
procurando ajudá-la a traduzir na vida a fé professada em
Jesus Cristo.
18. Acontece que a comunidade tinha problemas de convivência
fraterna, pois estava dividida entre fortes e fracos, à semelhança
da comunidade de Corinto. Os fortes eram pessoas esclarecidas
que, diante de certas questões, como a de comer as carnes ofere-cidas
aos ídolos, não se deixavam levar pelos escrúpulos. Os
fracos eram exatamente o contrário dos fortes e, diante da ques-tão,
preferiam viver como vegetarianos. Havia outros motivos de
divisão, como a questão de seguir tal ou tal calendário religioso.
Críticas, julgamentos precipitados e desprezo vinham de ambas as
partes.
19. Paulo quer ajudar a comunidade. Para ele, o importante é que
ambas as partes acreditam em Deus e, quando estão à mesa, todos
dão graças a Deus pelo alimento, quer sejam vegetarianos, quer
não. Se ambas as partes crêem no mesmo Deus e o louvam, é
sinal de que os motivos que dividem não são mais fortes do que a
razão unificadora da comunidade. Diante disso, Paulo toma uma
decisão: cada qual fique com sua convicção (14,5), pois a questão
do puro e do impuro não existe mais. O importante nisso tudo é a
capacidade de as pessoas se acolherem umas às outras, saberem
se unir no importante e se respeitarem na diversidade.
20. Os três versículos lidos na liturgia deste domingo se inserem
dentro desse contexto e justificam por que Paulo chegou à con-clusão
de que cada qual deve ficar com a própria convicção.
Salientam que os cristãos não pertencem a si próprios mas, em
qualquer situação da vida, pertencem sempre e totalmente ao
Senhor Jesus: "Nenhum de nós vive para si mesmo, e ninguém
morre para si mesmo. Pois se vivemos, é para o Senhor que vi-vemos,
e se morremos, é para o Senhor que morremos. Portanto,
quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor" (vv. 7-8).
A dimensão da totalidade de nossa vida é expressa no texto pelas
polaridades viver-morrer. É provável que a expressão "quer vi-vamos,
quer morramos" seja uma expressão idiomática. Traduzi-da
em outros termos soaria assim: "Qualquer coisa que façamos"
(independentemente de nos abstermos ou não das carnes ofereci-das
aos ídolos e também de calendários especiais), tenhamos
consciência de que pertencemos ao Senhor. E por que somos
dele? "Porque Cristo morreu e recobrou a vida, para ser o Senhor
dos mortos e dos vivos" (v. 9). Nossa vida, portanto, está nas
mãos de Deus de forma tão profunda que nem sempre compreen-demos
plenamente. O mesmo se diga do amor total que ele tem
por nós. Um místico da Idade Média entendeu isso de maneira
perfeita: "O amigo dizia ao Amado: — ‘Tu és tudo, e estás por
toda parte, e em tudo, e com tudo. Quero-te totalmente, a fim de
que tudo tenha e seja em mim’. — ‘Não podes ter-me totalmente
se não fores meu’, respondeu o Amado. — ‘Toma-me todo, e que
eu também te tenha totalmente’, retrucou o amigo. O Amado
disse-lhe: — ‘E o que restará então a teu filho, a teu irmão e a teu
pai?’ — ‘Tu és um todo tal, que podes ser tudo para quem se
entrega totalmente a ti’, disse o amigo" (Raimundo Lúlio).
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
21. A 1ª leitura (Eclo 27,33-28,9) e o evangelho (Mt 18,21-35) nos garantem que somente o perdão pode salvar uma co-munidade
da ruína, e esse perdão precisa ser contínuo e total. Se pomos limites, já não seremos capazes de perdoar, nem
teremos "entranhas de misericórdia". Por isso seria interessante dinamizar, nas celebrações, o momento de confissão para
que traduza a reconciliação de Deus com a humanidade e das pessoas entre si.
22. A 2ª leitura (Rm 14,7-9) pode ajudar as comunidades no discernimento do que as une e daquilo que separa as pesso-as.
Por que as críticas e os julgamentos apressados? Aquele que nos reúne e une em comunidade é infinitamente superior
às questões que nos separam.