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Área de integração - TEMA_PROBLEMA 9.3 – A experiência religiosa como
afirmação do espaço espiritual no mundo
“Há mal no mundo: isto não pode ser seriamente negado. Basta pensar no
Holocausto ou na prática generalizada da tortura. Todos eles são exemplos de
mal moral e crueldade: seres humanos que provocam sofrimento a outros seres
humanos por uma razão qualquer. (...) Há também outro tipo de mal,
conhecido como mal natural: terramotos, doença e fome são exemplos deste
tipo de mal. (...) Visto existir tanto mal, como pode alguém acreditar
seriamente na existência de um deus sumamente bom? Um deus omnisciente
saberia que o mal existe; um deus todo poderoso poderia evitar que o mal
ocorresse; e um Deus sumamente bom não quereria que o mal existisse. Mas o
mal continua a existir. Este é o problema do mal: o problema de explicar como
os alegados atributos de Deus podem ser compatíveis com o facto inegável de o
mal existir. Este é o mais sério desafio à crença no deus dos teístas. (...) Os
teístas têm sugerido várias soluções para o problema do mal, três das quais
serão aqui consideradas.
Tentativas de solução do problema do mal
Santidade: Algumas pessoas argumentaram que a presença de mal no mundo
se justifica, apesar de não ser claramente uma coisa boa, porque conduz a uma
maior virtude moral. Sem a pobreza e a doença, por exemplo, não seria
possível a virtude moral que a Madre Teresa demonstrava ao ajudar os
necessitados. Sem guerra, tortura e crueldade, os santos e os heróis não
poderiam existir. O mal permite a existência do bem, supostamente maior, que
este tipo de triunfo sobre o sofrimento humano representa. (...)
A defesa do livre arbítrio: a tentativa mais importante de solução do
problema do mal é, de longe, a defesa do livre arbítrio. Trata se da afirmação
de que Deus deu o livre arbítrio aos seres humanos: a capacidade para
escolhermos o que queremos fazer. Se não tivéssemos livre arbítrio, seríamos
como robots, ou autómatos, sem escolhas próprias. Os que aceitam a defesa do
livre arbítrio argumentam que uma consequência necessária da posse do livre
arbítrio é a possibilidade de praticar o mal; caso contrário, não seria,
genuinamente, livre arbítrio. Os seus defensores afirmam que um mundo no
qual os seres humanos têm livre arbítrio, conduzindo-nos por vezes ao mal, é
preferível a um mundo no qual a ação humana fosse predeterminada, um
mundo no qual seríamos como robots, programados para praticar apenas boas
ações. De facto, se fôssemos programados desta forma, não poderíamos sequer
dizer que as nossas ações seriam moralmente boas, uma vez que o bem moral
depende de poder escolher o que fazemos. Uma vez mais, há várias objecções a
esta proposta de solução.
Críticas à Defesa da Santidade
Contudo, esta solução está sujeita a pelo menos duas objecções. Em primeiro
lugar, o grau e a dimensão do sofrimento são muito maiores do que seria
necessário para permitir que santos e heróis desempenhassem os seus atos de
bem moral. É extremamente difícil justificar com este argumento as mortes
horríveis de vários milhões de pessoas nos campos de concentração nazis. Além
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disso, grande parte deste sofrimento passa despercebido e não é registado, de
forma que não pode ser explicado desta maneira: em alguns casos, o indivíduo
que sofre é a única pessoa capaz de aperfeiçoamento moral em tal situação,
mas é altamente improvável que este aperfeiçoamento possa ocorrer em casos
de dor extrema.
Em segundo lugar, não é óbvio que um mundo no qual exista muito mal seja
preferível a um mundo no qual existisse menos mal e, consequentemente,
menos santos e heróis. De facto, há qualquer coisa de ofensivo na tentativa de
justificar a agonia de uma criança que morre de uma doença incurável, por
exemplo, argumentando que isto permite que os que a presenciam se tornem
melhores pessoas do ponto de vista moral. Iria realmente um deus sumamente
bom usar tais métodos para nos ajudar a aperfeiçoar-nos moralmente? (...)
Críticas à Defesa do Livre Arbítrio
Admite dois pressupostos básicos
O pressuposto básico que a defesa do livre arbítrio admite é o de que um
mundo com livre arbítrio e a possibilidade do mal é preferível a um mundo de
pessoas-robots que nunca praticam más ações. Mas será isto obviamente
verdade? O sofrimento pode ser tão terrível que muitas pessoas, dada a
possibilidade de escolha, prefeririam que toda a gente tivesse sido pré-
programada para só praticar o bem, em vez de ter de passar por certos
sofrimentos. Estes seres pré-programados poderiam mesmo ter sido concebidos
de maneira a acreditarem ter livre arbítrio, apesar de o não terem: poderiam ter
a ilusão do livre arbítrio com todos os benefícios que a crença de que seriam
livres lhes traria, mas sem nenhuma das desvantagens. (...)
Não explica o mal natural
Uma crítica da maior importância à defesa do livre arbítrio afirma que este
argumento só poderá, na melhor das hipóteses, justificar a existência do mal
moral, o que resulta diretamente dos seres humanos. Não se concebe qualquer
conexão entre a posse de livre arbítrio e a existência de males naturais, como
terramotos, doenças, erupções vulcânicas, etc., a não ser que se aceite uma
espécie qualquer da doutrina do pecado original, segundo a qual a traição da
confiança de Deus, perpetrada por Adão e Eva, terá trazido toda a espécie de
mal ao mundo. (...) “
Nigel Warburton, Elementos Básicos de Filosofia, Gradiva, Lisboa, 1998, pp.
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