Este documento descreve as transformações de valores que ocorreram nas sociedades ocidentais entre 1950 e 1990, levando ao surgimento de valores pós-materialistas. Apresenta 3 pontos principais: 1) A secularização e ênfase na autoexpressão individual levou a uma diminuição da autoridade religiosa e hierárquica. 2) A individualização enfraqueceu os laços sociais tradicionais e aumentou a escolha individual. 3) Houve uma mudança de valores materialistas para pós-materialistas, onde fatores como meio ambiente e qualidade de vida passaram
1. UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA
FACULDADE DE TEOLOGIA
MESTRADO INTEGRADO EM TEOLOGIA (1.º grau canónico)
JOÃO MIGUEL PEREIRA
Surgimento dos Valores pós-materialistas
Trabalho realizado no âmbito de Sociologia da Religião,
sob orientação de:
Prof. Dr. Eduardo Duque
Braga
2016
2. 1
Introdução
Ninguém que tenha vivido as décadas entre os anos 1950 e 19901
num país ocidental
poderá deixar de reconhecer as profundas transformações de valores que se iniciaram durante
este período2
.
Trata-se de um processo inter-geracional que está «transformando gradualmente a
política e as normas culturais das sociedades industriais avançadas»3
, nas quais, «a recente
ênfase na qualidade de vida e na autoexpressão são acompanhadas de uma decrescente ênfase
nas normas políticas, sociais, morais e religiosas tradicionais»4
. Como tal, duas importantes
dimensões constitutivas da modernização cultural são: «a individualização» e o «pós-
materialismo» ou, como se refere Inglehart, autor que iremos seguir de perto, «mentalidade
racional secular» e «desejos de autoexpressão», respetivamente.
Na sociedade moderna, os valores que contribuíram para que ela fosse uma sociedade
industrializada (a motivação para a realização económica, o crescimento económico e a
racionalidade económica) perderam importância5
. Há uma tendência crescente a subordinar os
valores materialistas aos valores pós-materialistas, por exemplo o crescimento económico à
preocupação pelos seus efeitos no meio ambiente ou a busca já não só de um trabalho mas de
um trabalho com sentido6
.
Faremos um breve itinerário pelas mudanças trazidas pela modernidade ao nível da
individualização e, consequentemente na secularização e na rotura com a autoridade
hierárquica e os valores tradicionais.
1
Anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial que decorreu entre 1939 e 1945.
2
Cf. FUKUYAMA, Francis, Grande Rotura – A natureza humana e a reconstituição da ordem social,
Quetzal Editores, Lisboa, 2000, 78.
3
INGLEHART, Ronald, El cambio cultural en las sociedades industriales avanzadas, Centro de
Investigaciones Sociológicas, 1991, Madrid, 59.
4
Ibidem.
5
Cf. INGLEHART, Ronald, Modernización y posmodernización – El cambio cultural, económico y
político en 43 sociedades, Centro de Investigaciones Sociológicas, Madrid, 1998, 102.
6
Ibidem, 104.
3. 2
1 – Secularização e autoexpressão:
Os sistemas de valores ao nível individual devem refletir o projeto central da
sociedade. Por isso, as sociedades tradicionais frisam a conformidade individual com as
normas sociais que limitam a violência, o comportamento sexual e a ordem social e
económica, que normalmente estão codificadas e legitimadas por um sistema religioso7
.
Uma mudança bem visível das sociedades modernas ocorreu no exercício da
autoridade: «a transformação da sociedade tradicional na sociedade industrial originou uma
substituição da autoridade tradicional pela autoridade burocrática racional»8
, o que em muitas
sociedades traduziu-se na substituição da autoridade religiosa pela política. Por sua vez, nas
sociedades que se aproximam da pós-modernidade a autoridade hierárquica está sob suspeita,
e a sua aceitação começa a diminuir. Então, verifica-se um afastamento tanto da autoridade
tradicional como da estatal, o que significa que há uma diminuição da confiança nas
instituições de autoridade hierárquica e um valorizar crescente da individualidade e da
autoexpressão9
: «Entre 1991 e 1997, o número de europeus que concorda com a afirmação de
que “o governo controla uma parte demasiado grande das nossas vidas quotidianas” subiu de
53% para 61%»10
.
A secularização é marcada não só pela negação da autoridade religiosa mas também
pela desacreditação nos elementos religiosos. «Weber atribui a decadência das crenças
religiosas sobretudo ao surgimento de uma visão científica do mundo que pouco a pouco
substituiu os elementos pré-racionais sagrados e místicos da fé religiosa»11
. Por outro lado, «o
surgir dos valores da segurança entre as sociedades economicamente mais avançadas faz com
que as suas pessoas tenham uma menor necessidade psicológica das garantias que os sistemas
7
Cf. INGLEHART, Ronald, Modernización y posmodernización – El cambio cultural, económico y
político en 43 sociedades, Centro de Investigaciones Sociológicas, Madrid, 1998, 101-102.
8
INGLEHART, Ronald, Modernización y posmodernización – El cambio cultural, económico y político
en 43 sociedades, Centro de Investigaciones Sociológicas, Madrid, 1998, 104.
9
Cf. Ibidem.
10
FUKUYAMA, Francis, Grande Rotura – A natureza humana e a reconstituição da ordem social,
Quetzal Editores, Lisboa, 2000, 92.
11
INGLEHART, Ronald, Modernización y posmodernización – El cambio cultural, económico y político
en 43 sociedades, Centro de Investigaciones Sociológicas, Madrid, 1998, 106.
4. 3
de crenças absolutos proporcionaram tradicionalmente, cujo objetivo era proporcionar
segurança e prometer a salvação se não neste mundo, então ao menos no outro»12
. Weber vê
este processo como a substituição de um tipo de religião por outro, aquilo que o marxismo
veio tentar com a substituição da religião tradicional por uma ideologia secular mas que
também declinou13
.
A modernidade quis acabar com a «cosmogonia da razão religiosa». «O homem da
modernidade depositou a sua fé e confiança na razão, como se esta lhe desfizesse as dúvidas,
lhe transmitisse certezas, apontasse sentidos para o seu trajeto e lhe trouxesse o conforto
eterno»14
mas, tudo isto foi ilusão. A razão é permeável a mudanças, débil e fragmentável
numa multiplicidade de «esferas de valores» (Weber) onde os indivíduos se dispersaram: a
fragmentação da razão, com a diversidade de crenças e saberes, conduziu à fragmentação dos
indivíduos e da própria sociedade15
. No entanto, «a vida espiritual sempre formará parte da
condição humana»16
pois, como se verifica na pós-modernidade, há uma fé cada vez menor na
racionalidade instrumental (na ciência, na tecnologia) acompanhada por uma preocupação
crescente sobre o significado e propósito da vida à qual se visa dar resposta por meio de uma
racionalidade valorativa, onde a busca da felicidade humana acontece em si mais que nos
meios económicos17
. O homem pós-moderno continua na busca do sentido para a sua vida,
procura unificar-se, mas também já se deu conta de não encontrar essa unidade interior nas
ciências.
2 - Individualização
As sociedades tradicionais eram caracterizadas por possuírem muitas ligações sociais:
ainda que os indivíduos tivessem poucas opções de escolha individual (no que respeita ao
12
Ibidem.
13
Cf. Ibidem,
14
DUQUE, Eduardo, Mudanças culturais – Mudanças religiosas, Edições Húmus, 2014, V.N.
Famalicão, 27.
15
Cf. Ibidem, 28.
16
INGLEHART, Ronald, Modernización y posmodernización – El cambio cultural, económico y político
en 43 sociedades, Centro de Investigaciones Sociológicas, Madrid, 1998, 106.
17
Cf. Ibidem.
5. 4
parceiro com quem casar, ao emprego, onde viver ou em quê acreditar) estavam amarrados
por laços (frequentemente opressivos) de família, religião, entre outros18
. Ao contrário, «nas
sociedades modernas, os indivíduos têm à sua escolha um número de opções muitíssimo
maior, enquanto os laços que os ligam em redes de obrigação social relaxam enormemente»19
e, quando existem, são assumidos voluntariamente mediante um interesse partilhado. Per si,
isto poderia ser bom: as pessoas unirem-se umas às outras em função de alguns valores ou
interesses partilhados. Todavia, o problema verifica-se na falta de sérios compromissos entre
os indivíduos, o que conduz a uma indução de comportamentos oportunistas (corrupção, por
exemplo) e à generalização da desconfiança, seja em relação ao outro indivíduo, ou em
relação às instituições20
. Como as relações interpessoais facilmente e frequentemente se
rompem, «a dissolução das ligaturas não se fica pelas opressivas, que caracterizam as
sociedades tradicionalistas ou autoritárias: vai em frente e corrói também os laços sociais
subjacentes a essas associações muito voluntárias que povoam as sociedades modernas»21
. As
pessoas revoltam-se contra a autoridade de um outro, ainda que ela lhe tenha sido conferida
democraticamente, revoltam-se contra algum limite que lhes seja imposto (pela lei, pela
moral, pela religião, etc.), revoltam-se contra os constrangimentos de compromissos, mesmo
que assumidos voluntariamente (casamento, família, etc.)22
. «O individualismo, a virtude
basilar das sociedades modernas, começa insensivelmente a deixar de ser a orgulhosa
autossuficiência do indivíduo livre para transformar-se numa espécie de egoísmo fechado, em
que maximizar a liberdade pessoal ignorando as responsabilidades assumidas para com outros
18
Cf. FUKUYAMA, Francis, Grande Rotura – A natureza humana e a reconstituição da ordem social,
Quetzal Editores, Lisboa, 2000, 78.
19
FUKUYAMA, Francis, Grande Rotura – A natureza humana e a reconstituição da ordem social,
Quetzal Editores, Lisboa, 2000, 78.
20
Cf. Ibidem, 82. Na página 91 da mesma obra, escreve o autor: «Os dados do LMV [Levantamento
Mundial dos Valores] referentes a catorze países ocidentais industrializados, incluindo os Estados Unidos,
mostram que, entre 1981 e 1990, a confiança na maior parte das instituições decresceu num grande número de
países».
21
FUKUYAMA, Francis, Grande Rotura – A natureza humana e a reconstituição da ordem social,
Quetzal Editores, Lisboa, 2000, 79.
22
Cf. Ibidem.
6. 5
se torna um fim em si mesmo»23
. Podemos, então, entender «a individualização como um
processo histórico e social onde os valores, as crenças, as atitudes e os comportamentos são
orientados por escolhas [individuais] e são menos dependentes da tradição e das instituições
sociais»24
, ao contrário do que acontecia noutros tempos, em que as escolhas eram tomadas
considerando a conduta ou linhas orientadoras das instituições em que se estava inserido
(Igreja, Família, Estado, etc.). Na busca pela felicidade pessoal, os indivíduos dão cada vez
menos importância às instituições tradicionais, e possuem uma tendência geral para a
pluralização de visões do mundo e desenvolvimentos como a crescente emancipação,
democratização e autodeterminação25
, valorizam por isso uma ativa participação
(autoexpressão) nas decisões políticas.
Um exemplo claro que ilustra este afastamento das instituições tradicionais é o
aumento do número e diversidade de grupos informais pequenos de defesa de ideias (por
exemplo de ambientalistas, de debates online, etc.) e de espiritualidade26
. Sem me querer
alongar, interrogo-me se não será o surgimento da “New Age” um evidente marco na cisão
com a religião tradicional institucionalizada, numa tentativa de instaurar uma religião
individual marcada pelo relativismo ou por uma certa anarquia? E ainda, se não será o
aumento de simpatizantes com os partidos de ideologias extremas (de esquerda ou de direita),
sinal da busca em romper definitivamente com a Moral no sentido de dar total liberdade às
escolhas individuais de cada um, ou sinal do descontentamento com os sistemas políticos
(democráticos) atuais27
?
23
FUKUYAMA, Francis, Grande Rotura – A natureza humana e a reconstituição da ordem social,
Quetzal Editores, Lisboa, 2000, 79.
24
MANÉNDEZ, Millán Arroyo, «Religiosidade e valores em Portugal: comparação com a Espanha e a
Europa católica», in Análise Sociológica, XLII (184), 2007, 770. Disponível em:
http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?pid=S0003-25732007000300004&script=sci_abstract, (consultado em:
18/11/2016).
25
Cf. Ibidem.
26
FUKUYAMA, Francis, Grande Rotura – A natureza humana e a reconstituição da ordem social,
Quetzal Editores, Lisboa, 2000, 88-89.
27
Sobre esta questão poder-se-á aprofundar conhecimentos em: INGLEHART, Ronald, Modernización y
posmodernización – El cambio cultural, económico y político en 43 sociedades, Centro de Investigaciones
Sociológicas, Madrid, 1998, 314-352.
7. 6
3 – Do Materialismo ao Pós-materialismo:
«Com a publicação de The silent revolution no final da década de 1970, Ronald
Inglehart iniciou um programa de pesquisas que hoje pode ser considerado um dos mais
profícuos nas Ciências Sociais»28
. Este autor defende que houve uma evolução das sociedades
humanas de um nível materialista para um nível pós-materialista: Primeiro os indivíduos
procuraram satisfazer as necessidades fisiológicas básicas29
e, «à medida que se vão
satisfazendo as necessidades mais básicas, vão surgindo necessidades ou motivações mais
complexas, de maneira que se pode estabelecer uma pirâmide motivacional onde os
indivíduos tendem a priorizar as necessidades superiores à medida que vão satisfazendo as
inferiores (fisiológicas, de segurança, de pertença, de estima… até culminarem na
autorrealização pessoal)»30
. Com a melhoria das condições de sobrevivência física, abriram-se
as portas para um desenvolvimento do humano ao nível cultural31
, «pós-materialista», onde os
valores desejados são «a autoexpressão, o sentimento de pertença à comunidade, e a qualidade
de vida»32
, bem como a satisfação estética.
Vejamos um primeiro exemplo do que acabamos de dizer:
O Japão é «uma nação que passou de uma pobreza extrema a uma prosperidade
assombrosa»33
. Uma das mudanças a que se assistiu foi a alteração das prioridades
materialistas para prioridades pós-materialistas e que se pode verificar por exemplo na
educação que umas gerações incutem nas novas gerações: Ao educar as crianças na idade da
28
RIBEIRO, Ednaldo, «A CONSISTÊNCIA DAS MEDIDAS DE PÓS-MATERIALISMO: testando a
validade dos índices propostos por R. Inglehart no contexto brasileiro», in:
http://www.scielo.br/pdf/se/v22n2/05, (consultado em: 4/11/2016).
29
Associado ao conceito complementar de hierarquia das necessidades de Maslow (1988): MASLOW,
Abraham, Motivation and Personality, New York, Harper & Row, 1988.
30
MANÉNDEZ, Millán Arroyo, «Religiosidade e valores em Portugal: comparação com a Espanha e a
Europa católica», in Análise Sociológica, XLII (184), 2007, 770. Disponível em:
http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?pid=S0003-25732007000300004&script=sci_abstract, (consultado em:
18/11/2016).
31
RIBEIRO, Ednaldo, «A CONSISTÊNCIA DAS MEDIDAS DE PÓS-MATERIALISMO: testando a
validade dos índices propostos por R. Inglehart no contexto brasileiro», in:
http://www.scielo.br/pdf/se/v22n2/05, (consultado em: 4/11/2016).
32
INGLEHART, Ronald, El cambio cultural en las sociedades industriales avanzadas, Centro de
Investigaciones Sociológicas, 1991, Madrid, 59.
33
Ibidem, 66.
8. 7
escola primária há quem pense que haveria que ensinar-lhes que o dinheiro é o mais
importante»34
. Em 1953 a maioria da população japonesa (65 %) estava de acordo com esta
afirmação. Em 1983, somente 43 % da população estava de acordo com este ponto de vista.
O gráfico seguinte mostra a percentagem da população japonesa, consoante um
intervalo etário, que afirma o valor “segurança económica” como o mais importante35
:
Fig. 1 – Análise de cohortes: Percentagem da população japonesa que afirma que a
segurança económica é o mais importante. Elaboração própria com base nos dados da Japonese
National Characters Surveys, citados por Inglehart36
.
Podemos verificar que os jovens são aqueles que dão menos importância ao dinheiro.
Aferimos ainda, de forma geral, que o dinheiro é um valor cada vez menos valorizado, o que
significa que este valor materialista perdeu a prioridade na vida dos japoneses durante o forte
crescimento económico que o país viveu entre 1953 e 1973. Esta tendência terá, segundo
Inglehart, perdido força em 1973 e nos anos que se seguiram, devido à incerteza económica
que se seguiu à crise do petróleo de 197337
.
Um segundo estudo, mais próximo da nossa realidade, tanto ao nível temporal como
geográfico é o realizado a partir de dados do European Values Study (EVS), no qual se utiliza
aqui unicamente os polos: a Obediência e a Fé Religiosa (valores tradicionais/materialistas)
34
Ibidem, 67.
35
Cf. Ibidem.
36
Ibidem.
37
Ibidem, 68.
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
1953 1963 1968 1973 1978 1983
Percentagem%
Ano de realização do estudo
20 ao 24
25 aos 29
30 aos 34
35 aos 39
40 aos 44
45 aos 49
50 aos 54
55 aos 59
60 aos 64
Faixa etária
9. 8
versus Independência e Determinação (Valores da individualização/pós-materialistas).
Vejamos os resultados:
Ano de
1990
Ano de
2008
Diferenç
a 1990-
2008
Áustria 3,67 3,79 0,13
Bélgica 2,9 2,65 -0,25
França 2,61 2,97 0,37
Irlanda 2,44 2,52 0,08
Itália 2,33 2,66 0,33
Polónia 1,79 2,63 0,84
Espanha 2,27 2,74 0,47
Portugal 2,25 2,89 0,64
Conjunto 2,53 2,86 0,34
Fig. 2 – Índice de Individualização por país (num conjunto de 8 países europeus).
Elaboração própria com base nos dados da European Values Study, citados por Eduardo Duque38
.
Analisando os dados em cima apresentados, verificamos que num período de 20 anos,
que decorreram entre as duas recolhas de dados, houve uma ligeira subida, na maioria dos
países, da importância atribuída aos valores individualistas e uma consequente diminuição dos
valores tradicionalistas, salvo a Bélgica que vê aumentar os seus valores tradicionalistas.
«Portugal, entre os 8, é o segundo país, depois da Polónia, que mais vê aumentar o seu grau
de individualização»39
. Já a Áustria, apresenta-se como o país mais pós-materialista dentro do
conjunto analisado.
Parece-me útil referir que aquando da ocorrência de mudanças (como crises
económicas) que coloquem em causa a satisfação das necessidades materialistas, estes valores
passam a tomar novamente lugar nas prioridades dos indivíduos. Nos gráficos abaixo damos
conta que em 2008 «há um grande retrocesso nos valores pós-materialistas em todas as
gerações tal facto, pode dever-se, a nosso ver, às circunstâncias socioeconómicas
38
Cf. DUQUE, Eduardo, Mudanças culturais – Mudanças religiosas, Edições Húmus, 2014, V.N.
Famalicão, 164.
39
DUQUE, Eduardo, Mudanças culturais – Mudanças religiosas, Edições Húmus, 2014, V.N.
Famalicão, 164.
0
1
2
3
4
Áustria
Bélgica
França
Irlanda
Itália
Polónia
Espanha
Portugal
Conjunto
IndícedeIndividualização
País
1990
2008
Ano do
estudo
10. 9
desfavoráveis com que a generalidade da população, inclusive as gerações mais jovens, se vê
confrontada»40
, devida da «instabilidade económica verificada na União Europeia»41
:
Fig. 3 - Percentagem de pós-materialistas (num conjunto de 8 países europeus) em 1990 e
2008. Elaborado por Eduardo Duque com base nos dados do European Values Study42
.
Fig. 4 - Percentagem de materialistas (num conjunto de 8 países europeus) em 1990 e
2008. Elaborado por Eduardo Duque com base nos dados do European Values Study43
.
Olhemos os índices de materialismo e pós-materialismo em função das seguintes
variáveis:
a) Sexo – Entre 1990 e 2008, no conjunto de países em estudo, os homens destacam-se
como os mais pós-materialistas, sendo que esta diferença entre os sexos é mais acentuada na
Áustria e Bélgica. Portugal, apresenta uma diferença pouco acentuada44
.
b) Estado civil – Verificamos que «tanto em 90 como em 2008, na maioria dos países,
os indivíduos solteiros são mais pós-materialistas que os casados, sendo que esta diferença
40
Ibidem, 170.
41
Ibidem, 169.
42
Cf. Ibidem, 171.
43
Ibidem, 171.
44
Ibidem, 173.
11. 10
diminui em 2008. Portugal é o país em que o estabelecimento das diferenças entre solteiros e
casados mais se faz sentir»45
.
c) Número de filhos – o conjunto dos países em estudo, «quanto maior é o número de
filhos que cada indivíduo tem, maior é a prioridade valorativa materialista. Todavia, entre 90
e 2000, esta diferença baixa em quase todos os países, excetuando-se a Polónia e Espanha.
Portugal, entre estes 10 anos, mantem a mesma diferença»46
.
d) Nível educativo e social – «é de esperar que os indivíduos com um nível educativo
superior sejam os que, a priori, apresentam condições económicas e de segurança favoráveis
ao desenvolvimento dos valores pós-materialistas»47
. Verifica-se que «os indivíduos com
baixo nível de escolaridade, com vencimentos mensais mais baixos, com um trabalho mais
precário e residentes em localidades mais pequenas atribuem maior prioridade à segurança
física e económica [(valores materialistas)], enquanto os indivíduos com maiores níveis de
escolaridade, com vencimentos mensais mais altos, com trabalho mais qualificado e
residentes em localidades mais urbanizadas priorizam as intervenções na vida política, bem
como a liberdade de expressão [(valores pós-materialistas)]»48
.
4 – Novos valores:
Numa sociedade pós-moderna, os valores que contribuíram para que ela fosse uma
sociedade industrializada (a motivação para a realização económica, o crescimento económico
e a racionalidade económica) perderam importância49
. Há uma tendência crescente a
subordinar os valores modernos aos valores pós-modernos, por exemplo, o crescimento
económico à preocupação pelos seus efeitos no meio ambiente ou a busca já não só de um
trabalho mas de um trabalho com sentido50
.
45
DUQUE, Eduardo, Mudanças culturais – Mudanças religiosas, Edições Húmus, 2014, V.N.
Famalicão, 173.
46
Ibidem.
47
Ibidem, 177.
48
Ibidem, 188.
49
Cf. INGLEHART, Ronald, Modernización y posmodernización – El cambio cultural, económico y
político en 43 sociedades, Centro de Investigaciones Sociológicas, Madrid, 1998, 102.
50
Ibidem, 104.
12. 11
As preocupações dos indivíduos já não assentam tanto na fome ou na segurança
económica, contudo não nos ficamos por aqui: as sociedades tradicionais materialistas davam
grande valor à religião, ao sentido patriota (orgulho nacional)51
, preferiam famílias mais
numerosas, guardavam maior respeito pela autoridade, opunham-se mais ao divórcio e pouco
se preocupavam com a política ou com a realização pessoal, embora dessem grande
importância ao trabalho (cujo fim era a sobrevivência) e à maternidade (como fonte de
realização feminina)52
.
Nas sociedades pós-materialistas, «a importância muda da maximização das vantagens
económicas para a maximização do bem-estar subjetivo»53
o trabalho é desejado enquanto
fonte de satisfação pessoal, dispensam ou atrasam o papel da maternidade em detrimento da
carreira profissional, dissolvem os critérios absolutos para dar espaço ao crescimento de
ambiguidade, há uma diminuição na importância atribuída à família e à religião, verifica-se
uma tendência a ter pouca confiança nos avanços científicos, é comum encontrarem-se grupos
e iniciativas em favor da ecologia e da estética (cidades bonitas), há mais tolerância para com
grupos rejeitados nas sociedades tradicionais materialistas (homossexuais, pessoas com
SIDA), verifica-se uma redução da preocupação com a segurança (pois é tida como dado
adquirido) e com isso dá-se menos valor às forças armadas, são mais participativos na tomada
de decisões a todos os níveis (incluindo político) e elegem a autoexpressão como uma
prioridade54
.
51
Ibidem, 113: «As sociedades onde a religião é importante caracterizam-se por mostrar níveis muito
mais altos de orgulho nacional […]. A China é um caso desviante, com um alto nível de orgulho nacional apesar
de ser predominantemente secular, e a Alemanha Ocidental desvia-se na direção contrária, mostrando um nível
mais baixo de orgulho nacional do que o que se poderia prever devido ao seu nível de religiosidade».
52
Ibidem, 110.
53
INGLEHART, Ronald, Modernización y posmodernización – El cambio cultural, económico y político
en 43 sociedades, Centro de Investigaciones Sociológicas, Madrid, 1998, 111.
54
Cf. Ibidem, 110-120. Um estudo que poderá complementar estes dados é o apresentado na obra
citada, página 149.
13. 12
Conclusão:
Evidentemente que seria impossível abarcar num trabalho como este um tema tão
extenso como o é a «Modernidade». Procurei, por isso, percorrer um caminho de análise
sintética das principais mudanças que se deram na passagem das sociedades tradicionalistas
para as sociedades modernas e, consequentemente, uma abordagem dos valores pós-
materialistas em comparação com os valores materialistas tradicionais.
Este trabalho proporcionou-me experimentar um pouco do que é a análise sociologiaca
da sociedade, dos fatores inibidores e indutores da forma de pensar e de valorizar, ou não,
determinados princípios ou conceitos.
Parece-me evidente que as mudanças sociais são cada vez mais rápidas e ambíguas,
reflexo da forte individualização de cada indivíduo e do seu “politeísmo de valores” tão
distinto de pessoa para pessoa. Disto nascem fortes questões que se nos colocam (a nós
Igreja): Como responder a estes Tempos em que o Homem busca sentido para a sua vida mas
não se quer sujeitar à autoridade (institucional, moral ou ideológica)? Como podemos mostrar
ao mundo a importância que Émile Durkheim atribuía aos laços comuns de uma vivência
comunitária em oposição à vida isolada e fragmentária?
Gostava de ter contacto também com estudos sociológicos onde se analisassem os
efeitos que fatores como o terrorismo, a migração massiva (oriunda do médio-oriente), o
choque cultural e religioso (que tal imigração origina na Europa), provocam no caminhar
europeu rumo à pós-modernidade. De facto, condições como a segurança económica,
alimentar e física (substanciais para a construção de uma sociedade pós-moderna) estão a
entrar em rutura nos tempos atuais.
14. 13
Bibliografia
EDNALDO, Ribeiro, «A CONSISTÊNCIA DAS MEDIDAS DE PÓS-MATERIALISMO:
testando a validade dos índices propostos por R. Inglehart no contexto brasileiro»,
in: http://www.scielo.br/pdf/se/v22n2/05, (consultado em: 4/11/2016).
EDUARDO, Duque, Mudanças culturais – Mudanças religiosas, Edições Húmus, 2014, V.N.
Famalicão, 173.
FRANCIS, Fukuyama, Grande Rotura – A natureza humana e a reconstituição da ordem
social, Quetzal Editores, Lisboa, 2000, 78-97.
MILLÁN, Manéndez, «Religiosidade e valores em Portugal: comparação com a Espanha e a
Europa católica», in Análise Sociológica, XLII (184), 2007. Disponível e
consultado em: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?pid=S0003-
25732007000300004&script=sci_abstract, (consultado em 18/11/2016).
RONALD, Inglehart, El cambio cultural en las sociedades industriales avanzadas, Centro de
Investigaciones Sociológicas, 1991, Madrid, 59-352.
RONALD, Inglehart, Modernización y posmodernización – El cambio cultural, económico y
político en 43 sociedades, Centro de Investigaciones Sociológicas, Madrid, 1998,
66-314.