Este artigo discute como Portugal se concentrou na faixa litoral nas últimas décadas, deixando o interior subdesenvolvido. Defende que cidades médias como Coimbra têm potencial para revitalizar o interior, se souberem aproveitar seus recursos culturais e acadêmicos para impulsionar a inovação e o desenvolvimento regional de forma sustentável.
Rebeliao de classe media_precariedade de movimentos sociais
Um barco inclinado ee
1. Um barco inclinado em busca de equilíbrio
Jornal Público, 11/03/2012
Elísio Estanque
Sociólogo, Centro de Estudos Sociais/
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Portugal é há muito um barco inclinado para o Atlântico. Como que a demonstrar a sua
tradicional vocação, este país pequeno e periférico da Europa parece querer dizer a si próprio que
é, afinal – contra tudo o que dele se diz –, maior do que o espaço europeu. Andámos pelo mundo
e só muito depois “aterrámos” na Europa. Mas, nos anos oitenta do século passado, quando
caminhava ao encontro do seu “lugar natural” no velho continente, a organização territorial do
país alterava-se, concentrando a população, as infraestruturas e a atividade económica na faixa
litoral e nas duas grandes metrópoles. Tal processo retirou protagonismo a cidades de média
dimensão (de que Coimbra pode ser um caso exemplar) que ocuparam no passado um papel
charneira neste país dual, dividido entre o campo e a cidade. O afluxo para os maiores centros
urbanos configurou uma fuga para a modernidade, uma espécie de volúpia que, afinal, nos
conduziu a uma encruzilhada, onde agora nos encontramos, sem bussola e sem mapa.
E precisamente por isso é que, hoje, no momento de crise, de bloqueio e de falta de
horizontes que estamos a atravessar, é importante olhar para trás e repensar o papel do território
e das pequenas e médias cidades. A ideologia dos anos oitenta e noventa, obcecada pelos fluxos,
pela “globalização”, a mobilidade, o mercado e a “economia virtual”, quase nos fez esquecer que
a nossa vida é organizada no espaço e no território. Deixámos ao abandono inúmeras aldeias,
vilas e campos de cultivo, em troca da “quimera do ouro” de um emprego estável e de um
imaginário estatuto de “classe média” em Lisboa ou no Porto. Em toda essa vertigem, as cidades
de média dimensão foram impotentes para estancar essa vaga de despovoamento do interior.
A grande fantasia de urbanidade e desafogo da classe média foi o corolário de um outro
mito: o mito do “bom aluno” que estava a cumprir todos os requisitos que a tecnocracia europeia
exigia para alcançar a convergência e a maioridade. Nessa espiral de ilusões ficaram pelo
caminho referências simples e tradicionais como o local, a aldeia, a rua ou o bairro numa
pequena ou média cidade, isto é, esquecemos ou deixámos em plano subalterno as principais
dimensões onde se organiza a vida quotidiana e onde reside a chave para o equilíbrio e a
harmonia que dão sentido aos nossos projetos pessoais, familiares e comunitários. Se a revolução
começa numa rua sem saída, é contra os bloqueios que a criatividade irrompe. Estamos num
ponto em que tudo tem de ser posto em causa, tentando perceber os erros do passado e avançar
com iniciativas inovadoras que recuperem para as nossas cidades uma nova função no equilíbrio
territorial do país.
Coimbra poderia ser, a este respeito, um bom exemplo de reconversão. A “cidade dos
estudantes”, cuja universidade acaba de celebrar os seus 722 anos de história, contém um
potencial que lhe permite sonhar. Além da sua imensa riqueza – histórica, cultural e patrimonial
–, concentra um invejável conjunto de saberes e recursos que vem honrando o país em diversos
domínios científicos e tecnológicos. A localização geográfica da cidade e a própria dimensão
constituem mais-valias que podem fazer a diferença, permitindo-lhe reforçar o seu estatuto de
capital de uma Região Centro renovada, reindustrializada e competitiva. A candidatura da
Universidade de Coimbra a património mundial da UNESCO pode constituir um momento de
2. viragem. Mas para isso é necessário que as elites (académicas e políticas) da cidade saibam
cortar com os erros do passado. Que sejam capazes de romper quer com o “academicismo”
pretensioso e fechado quer com o “paroquialismo anti-académico” e preconceituoso. Unir
esforços e mobilizar as forças vivas da cidade, nomeadamente os seus criadores e agentes
culturais mas também o potencial inovador da universidade são condições para o sucesso. A
centralidade de uma cidade que é o centro geográfico do país, a sua proximidade de tudo, coloca-
a em condições ímpares para pôr em prática o princípio da governança, enquanto democracia de
baixo para cima, ao mesmo tempo que pode afirmar-se como cidade-tampão entre o interior e o
litoral, e um “pivô” importante para o desenvolvimento sustentável do país. Talvez assim
pudéssemos reequilibrar o barco e orientá-lo para o rumo adequado.