Rebeliao de classe media_precariedade de movimentos sociais
Opiniao 2b cultura popular (2), 2007
1. O povo, as elites e a democratização da cultura (2)
Diário de Coimbra, 14/09/2007
Elísio Estanque
Centro de Estudos Sociais da FEUC
Como é sabido, ao longo da história, em especial durante a Idade Média, o
povo mereceu sempre o total desprezo das elites. As camadas pobres e as
suas manifestações lúdicas eram conotadas com ignorância, incivilidade,
sujidade, brutalidade, etc. Só com o advento da sociedade industrial e
sobretudo após a Revolução Francesa e a emergência do movimento operário,
as classes trabalhadoras e o povo foram reconhecidos como sujeitos da
transformação histórica e dignos de algum respeito. O processo dito
civilizacional, burguês, foi-se impondo (com a ajuda da Igreja e do Estado),
procurando “domesticar” os modos “rudes”, desbragados e transgressivos das
classes baixas. Porém, os ambientes de boémia, os bordéis, as tabernas, as
casas de fado e outras expressões de música popular – onde em geral se
misturavam a prostituição, o alcoolismo e a marginalidade – tornaram-se ao
longo do século XIX pólos de atracção de intelectuais, artistas, poetas e
personagens diversas que rompiam com os padrões de vida da aristocracia a
que pertenciam e desafiavam a moral burguesa da época.
Figuras célebres como Rimbaud, Balzac, Baudelaire e outros, mergulharam
nas atmosferas populares de Paris – num país marcado pela agitação política
e os movimentos revolucionários – onde germinava a irreverência, a
perversidade e o excesso, e encontraram aí inspiração para as suas obras,
aguçando o sentido crítico perante os valores convencionais. Muitos
pensadores e criadores culturais de vanguarda foram desprezados no seu
tempo e alguns experimentaram a miséria e a marginalidade (supostamente
exclusivo das classes baixas). Romper fronteiras, convenções e estereótipos
estabelecidos foi desde sempre um traço marcante do pensamento
transformador e das propostas culturais e artísticas que lhe deram corpo.
Essa relação contraditória e complexa entre os artistas e os meios
populares teve e tem os seus prolongamentos nas sociedades democráticas
do nosso tempo. Por um lado, nas sociedades abertas de hoje o acesso à
cultura erudita tornou-se infinitamente maior e esta deixou de ser exclusivo das
elites. Por outro lado, também a apropriação de formas de cultura tradicional
(ou mesmo “popular”) por parte das elites se expandiu e complexificou. Não é a
cultura, mas sim as formas diferenciadas de “apropriação” que são
diferenciadoras e que reproduzem desigualdades. Porém, o crescente acesso
à educação e o desenvolvimento socioeconómico deram lugar a profundas
mudanças nas modernas sociedades industriais, em especial a concentração
urbana e a emergência das novas classes médias assalariadas. A explosão de
estilos de vida modernos e cosmopolitas alterou profundamente a relação das
diferentes camadas sociais com a cultura, tornando-se o próprio “capital
cultural” um indicador de status importantíssimo.
É, portanto, necessário ter presente que o campo cultural faz parte do
processo mais geral de transformação social e nele toma um papel activo.
Investir na cultura e procurar democratizá-la cada vez mais, passa por
promover e estimular o acesso dos diferentes estratos sociais às diferentes
modalidades e programas culturais (eruditas, vanguardistas ou clássicas). Do
2. mesmo modo que muitos produtos das culturas locais e “étnicas” são
procurados e apropriados pelas classes médias e superiores, também as
classes populares e trabalhadoras podem aceder aos produtos da chamada
cultura erudita, desde que a sua disseminação os faça chegar junto desses
sectores sociais.
Esta deveria ser a abordagem a prosseguir pelos agentes institucionais a
quem compete promover a cultura e o desenvolvimento. Além da atenção
devida à diversidade de projectos e iniciativas nesta área, para se potenciar a
cultura como factor de progresso é necessário ultrapassar a visão anacrónica e
reducionista – infelizmente ainda vigente em alguns meios – que estabelece
divisões rígidas entre o que é “popular” e o que é das “elites”. Uma tal
concepção, sendo populista, favorece objectivamente as elites como, de resto,
acontece com o populismo nos mais diversos campos em que ele se
manifesta.
Por muito respeito que se tenha pelas festas e romarias em honra dos mais
diversos santos, as classes populares têm direito a mais do que isso. E elas
aderem a outras propostas bem mais enriquecedoras, como se tem visto por
esse país fora, com festivais de Verão, programas de ópera, teatro, cinema,
música de qualidade, exposições, encontros e espectáculos de diversos tipos.
Com isso ganham projecção as vilas e cidades que as realizam, beneficiando
as comunidades locais e promovendo a educação, o cosmopolitismo e até a
economia local. Mas em Coimbra continua a reinar a mentalidade paroquial a
este respeito. Olhando o discurso de alguns responsáveis e cronistas dos
jornais locais, o que sobressai é a ladainha que continua a ver o povo (os seus
cultos e a sua cultura) como uma entidade mítica, exótica e ordeira, em
permanente “devoção” e em “alegre” divertimento. De facto, se é assim para
quê levar-lhe propostas culturais “complicadas” e de conteúdos “duvidosos”?...