Waltel Branco é um renomado arranjador e violonista brasileiro de 82 anos. Ele teve grande influência na bossa nova e foi arranjador de grandes nomes como João Gilberto. Branco também foi supervisor musical da TV Globo por décadas e criou trilhas sonoras memoráveis para novelas. Recentemente, um CD reuniu violonistas interpretando composições de Branco para celebrar sua obra.
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● SEGUNDO CADERNO O GLOBO Sábado, 7 de janeiro de 2012
PERFIL
A musicalidade do criador do ‘lerê-lerê’
Arranjador dos mais prolíficos nos discos e na TV, Waltel Branco tem sua obra reverenciada por violonistas
Aníbal Philot/07/11/1978
Silvio Essinger veis é o de “Retirantes”, de Do-
rival Caymmi, que abria a no-
silvio.essinger@oglobo.com.br
vela “Escrava Isaura” (1976).
B
asta mencionar o no- — Ela tinha uma parte can-
me Waltel Branco pa- tada que eu achei melhor que
ra um colecionador ficasse sem letra. E acabou
de discos para ver WALTEL, NOS ANOS que aquele “lerê-lerê” fez o
seus olhos brilharem. O para- maior sucesso — lembra.
naense, de 82 anos de idade, é 1970, quando pegou — Junto com o Nelson Mot-
uma daquelas figuras que só as suas influências ta e o Marcos Valle, o Waltel é
os leitores atentos das fichas um representante legítimo de
técnicas de LPs irão reconhe- do funk e gravou o uma era em que as novelas ti-
cer e saber reverenciar — ora disco “Meu balanço”: nham suas próprias trilhas —
como arranjador de gravações conta o ex-Titãs e pesquisador
antológicas da MPB (o “Azul o trabalho não teve musical Charles Gavin. — Ele
da cor do mar” de Tim Maia, o repercussão na se tornou um especialista em
“Bastidores” de Cauby Peixoto trilhas para novelas de época
e o “Faz parte do meu show”, época, mas acabou por causa do tremendo conhe-
de Cazuza), ora como autor virando sensação, cimento de música clássica.
dos arranjos (e às vezes, tam- Além disso, o Waltel conseguia
bém dos temas) de trilhas so- 20 anos depois, sacar como ninguém que tipo
noras de novelas da Globo nos na Inglaterra de música devia ser feito para
anos 1970 (“O bofe”, “Selva de cada um dos personagens.
Pedra”, “Escrava Isaura”, “Ir- Guito Moreto Gavin é um grande admira-
mãos Coragem”). Mas, além dor de um curioso LP instru-
desses dois, ainda tem o Wal- mental que Waltel lançou com
tel compositor e intérprete de seu nome, em 1975: “Meu ba-
peças para violão. O que agora lanço”, um combinado de funk
sai das contracapas e, enfim, (exercitado por ele em traba-
ganha reconhecimento. lhos com Tim Maia, Cassiano e
No recém-lançado CD “O Toni Tornado), samba, jazz e
violão plural de Waltel Bran- lounge. O disco passou em
co”, nomes acima de qualquer brancas nuvens na época, mas
suspeita como Guinga, Marco virou sensação na Inglaterra,
Pereira, Paulo Bellinati, Ulis- 20 anos depois, na badalada
ses Rocha e Quarteto Maogani cena do acid jazz.
emprestam virtuosismo e im- — Eu estava fazendo arran-
primem sentimento às compo- jos para um disco do Roberto
sições desse músico dono de Carlos e havia umas horas de
uma longa e brilhante estrada: estúdio sobrando. Escrevi os
começou tocando com Rada- arranjos em uma hora, e gra-
més Gnatalli, participou de vamos o disco com a banda
discos clássicos da bossa, foi em duas — conta Waltel.
arranjador de João Gilberto, — O “Meu balanço” é um
trabalhou com Henry Mancini disco incrível de uma época
e passou décadas como super- em que a música brasileira es-
visor musical de trilhas de no- tava absorvendo informações
velas da TV Globo. do funk e do soul. Tentei relan-
— O Waltel é uma autorida- çá-lo uma vez, numa coleção
de no violão e um grande com- da Livraria Cultura, mas faltou
positor. Ele mistura o contra- a liberação de uma música. As
ponto barroco com informa- pessoas ainda me pedem mui-
ções da música impressionis- to esse disco — diz Gavin.
ta, o que não nada é fácil. Uma
vez, em Curitiba, ele me mos- A descoberta de Djavan
trou um choro em ré menor Outra passagem reveladora
que eu fiquei com medo de de Waltel nos anos 1970 foi
não conseguir tocar — conta quando ouviu as canções e a
Guinga, que conheceu o maes- voz de um jovem alagoano e
tro nos anos 1960, quando ele resolveu convencer a Som Li-
era regente de um Festival In- vre a gravar um disco com ele.
ternacional da Canção. Em entrevista do ano passado,
— Eu dava aulas de violão e para falar do CD “Ária”, Djavan
comecei a compor uns chori- disse que Waltel fez apenas
nhos bem fáceis, à la Bach, pa- uma ressalva: quanto à quali-
ra que os alunos não tivessem dade do seu instrumento. “Ele
dificuldades. Acho que tudo me levou então a uma sala
começou aí — explica Waltel, com seis violões e disse para
que, ainda jovem, frequentou escolher um. O primeiro que
um seminário franciscano e peguei é o que uso até hoje.”
estudou canto gregoriano. À generosidade, junta-se ou-
tra característica: a distração.
Livro foi o passaporte Quem conta a história é o vio-
Idealizador e produtor de “O lonista e arranjador Zé Mene-
violão plural de Waltel Bran- zes, que trabalhou com Waltel
co”, o jornalista paranaense Al- nos áureos tempos do depar-
varo Collaço conta que o CD é tamento musical da Globo.
o desdobramento de um livro — Uma vez, ele saiu da TV
com as partituras das compo- de carona e esqueceu que ti-
sições de Waltel, organizado nha deixado o carro lá!
por ele junto com o violonista — Fiz isso também em São
Cláudio Menandro. Paulo. Fui para uma gravação
— A reação dos violonistas e deixei o carro no hotel.
em geral foi muito positiva, fa- Quando cheguei em casa, no
zendo-me ver que aquelas mú- Rio, achei que ele tinha sido
sicas poderiam ser muito mais furtado. O chefe da segurança
executadas do que eram. E da Globo já tinha até avisado a
não foi difícil convencer os polícia quando eu me lembrei
convidados a participar: bas- WALTEL, HOJE, com 82 anos de idade, vive em Curitiba uma vida sem luxos: “Tudo o que eu queria era fazer música”, diz de onde estava o carro — di-
tava mostrar o livro — diz. verte-se o arranjador.
Além dos bem conhecidos — O Waltel é uma pessoa
nomes do violão brasileiro e de estudar no Rio. pero de Waltel Branco. que eu gostava de fazer coisas do LP foi um aluno meu, o Ba- que vibrava muito com o fazer
que tocam no disco, estão lá Mas o rapaz não ficaria na Nos tempos da bossa, quem bonitas... — desculpa-se. den Powell — revela. musical e não se importava
talentos de extração local cidade por muito tempo. Em deu uma das mais preciosas li- No começo dos anos 1960, o Já em 1963, Waltel foi traba- com o resto — avalia o produ-
(Menandro, João Egashira, turnê pelo Brasil, a cantora cu- ções de arranjo ao parananse nome de Waltel enfim saiu das lhar com Henry Mancini como tor Álvaro Collaço. — Ele não
Mário da Silva) e até uma vio- bana Lia Ray garfou o violonis- foi justamente João Gilberto. fichas técnicas e foi para a ca- um dos arranjadores da trilha imaginava que um dia poderia
lonista grega, Eva Fampas, que ta para a sua banda. Ele seguiu — Uma vez, fiz um arranjo pa, com o lançamento, pela do filme “A Pantera Cor de Ro- não estar fazendo arranjos.
tem se dedicado a gravar pe- com Lia pela América Latina, para “Insensatez” do jeito que gravadora Musidisc, de “Gui- sa”. Ele retribuiria a honra De volta a Curitiba desde os
ças de violão do brasileiro. parou em Cuba e acabou mo- eu imaginava, e o João não tarras em fogo”, um disco de com um LP, “Mancini também anos 1990, quando se aposen-
Natural de Paranaguá, Wal- rando lá durante dois anos, gostou. Ele dizia: quem tem sambalanço à la Ed Lincoln. é samba”, lançado em 1966 pe- tou da Globo, Waltel hoje mora
“
tel vem de uma família musical durante os quais mergulhou que aparecer é o cantor. Mas é — Quem fez o violão base lo selo Mocambo e relançado, com os irmãos e vive uma vida
— mas, quando criança, o vio- na música de Perez Prado e mais de 30 anos depois, pelos sem grandes luxos. Ele se ale-
lão ainda era tido como coisa Mongo Santamaría. A parada americanos da Whatmusic. gra com o reconhecimento,
de vagabundo. Para dobrar o seguinte de Waltel foi nos Es- A virada da vida de Waltel mas lamenta não ter exigido
pai, ele aceitou estudar os tados Unidos, onde estudou foi em 1965, com a inaugura- crédito pelos incontáveis ar-
clássicos. Mas seu mundo era jazz e deu aulas de violão clás- ção da TV Globo. Convidado ranjos que fez para um leque
o rádio, a música popular. Ain- sico. Quando desembarcou de por Roberto Marinho, ele foi de artistas que vai de João Gil-
da jovem, veio para o Rio de volta no Rio, estava pronto pa- cuidar das trilhas das novelas. berto a Odair José.
Janeiro, para gravar com o ra cair na cena da bossa nova, Às vezes, compunha os temas — Eu não imaginava que is-
acordeonista italiano Claudio onde conheceu João Gilberto O Waltel é uma autoridade no violão e um (caso de “Assim na Terra co- so ia dar dinheiro, tudo o que
Todisco. No estúdio, o arranja- e participou, como músico e mo no Céu”, de 1971, cujo “Te- eu queria era fazer música. O
dor Radamés Gnatalli ficou in- arranjador, de discos de Flora grande compositor. Ele mistura o ma da zorra” foi regravado em Mancini me dizia: “Você tam-
trigado com aquele violonista
que sabia ler partituras — e
Purim, Dom Um Romão, J.T.
Meirelles e os Copa 5, Orlandi-
contraponto barroco com informações da 2003 no disco “Sincerely hot”,
do Domenico + 2), mas, na
bém é autor de todas as músi-
cas que arranjar”. Mas eu não
imediatamente ofereceu em- vo, Luiz Carlos Vinhas, entre música impressionista maior parte das vezes, era o sou assim, de brigar. Quem
prego. Era tudo o que Waltel outros. Ou seja: toda a nata do arranjador das canções. Um gostava de ligar para o Ecad
queria: a chance de trabalhar samba-jazz contou com o tem- Guinga, violonista e compositor dos seus trabalhos mais notá- era o Tim Maia, não eu. ■