O documento discute a devoção à "escravidão amorosa" a Maria pregada por São Luís Maria Grignion de Montfort. Aponta que Montfort não criou essa devoção, mas herdou de uma tradição espiritual medieval. Também analisa como Montfort usa os termos "servo", "escravo" e "filho" de forma quase sinônima para expressar a relação amorosa com Jesus e Maria, mais do que uma relação de submissão. Conclui que a consagração pregada por Montfort enfatiza um amor filial,
3. Maria nos Evangelhos
• Marcos: Jesus afirma que a nova família dos seus seguidores
(discípulos e discípulas) tem prioridade sobre a família
biológica: “minha mãe e meus irmãos são aqueles que
fazem a vontade de Deus” (Mc 3,31-35).
• Mateus: Maria é a mãe virginal do messias (Mt 1-2).
• Lucas: Maria é a perfeita discípula de Jesus, que ouve,
cultiva no coração e frutifica. Ela também é peregrina na
fé, profeta da libertação e ungida pelo Espírito Santo.
• João: Maria intercede no 1º sinal de Jesus e guia os servidores
para fazer sua vontade. Persevera na Cruz e recebe a
missão de ser a mãe da comunidade.
4. Escravidão no povo de Israel
• Há uma evolução na história de Israel.
• Patriarcas: tem escravos e escravas, servos e servas.
• A escravidão no Egito foi marcante para a memória bíblica.
Deus ouve o clamor do povo sofrido e os liberta. Faz uma
aliança com ele. Na caminhada do deserto, há a tentação de
idealizar a escravidão e não pagar o preço da liberdade.
• Em poucos casos, alguém perdia a liberdade e se tornava servo
ou escravo. No ano jubilar (7x7) todos voltariam a serem livres e
donos da terra dos antepassados.
• O cativeiro da Babilônia foi outra experiência terrível de perda
da autonomia dos judeus.
• Profetas e Salmos: Deus é o libertador e o criador.
5. A figura do “Servo de Javé”
Personagem enigmática, fiel à Deus, solidário ao sofrimento
dos outros. A comunidade cristão viu na vida, paixão e morte
de Jesus a realização da profecia de Isaías sobre o Servo.
1º cântico: Is 42.1-7;
2º cântico: Is 49.1-9;
3º cântico: Is 50.4-9;
4º cântico: Is 52.13-53.12
6. Jesus e seus seguidores(as)
• Jesus não trata seus seguidores nem como servos, nem como escravos.
• Ele os chama de discípulos (aprendizes na vida). Jesus associa os doze e
também os setenta e dois à sua missão de inaugurar o Reino de Deus e
anunciar que Deus é um pai bondoso, com traços maternos (misericórdia).
• No evangelho de João 15, 12-16 O meu mandamento é este: amem-se uns
aos outros, assim como eu amei vocês. Não existe amor maior do que dar
a vida pelos amigos. Vocês são meus amigos, se fizerem o que eu estou
mandando. Eu já não chamo vocês de servos, pois o servo não sabe o que
seu senhor faz; eu chamo vocês de amigos, porque eu comuniquei a vocês
tudo o que ouvi de meu Pai. Não foram vocês que me escolheram, mas fui
eu que escolhi vocês. Eu os destinei para ir e dar fruto, e para que o fruto
de vocês permaneça.
7. Paulo: escravo e livre
• Paulo evangeliza em comunidades de origem judaica e
pagã, que estão situadas em cidades sob o domínio do
império romano. Lá a escravidão é um fator cultural e
econômico.
• Paulo utiliza a figura do escravo que alcança a alforria
(liberdade) para explicar a ação salvífica de Cristo, na sua
paixão, morte e ressurreição -> Redenção
• Por vezes, Paulo diz que o cristão não é mais escravo do
Mal, mas sim escravo de Cristo.
• Diante dos que pediam a volta à Lei judaica, Paulo prega
a liberdade. Não somos mais escravos! (Gal 5,1; Rom 8,15)
9. O crescimento da devoção mariana na História
• No correr dos séculos, a figura de Maria ganhou importância na
devoção, na liturgia, na pregação e na doutrina.
• No cristianismo medieval, a figura dos santos, e especialmente
de Maria, ganha mais importância que o próprio Cristo.
• Lutero e a reforma protestante enfatizam a centralidade e a
exclusividade de Jesus Cristo.
• A Igreja, em reação, intensifica as práticas e os argumentos em
favor da devoção filial a Maria. Esse é o contexto eclesial de
Montfort.
10. A origem da “escravidão a Maria”
• Montfort não criou a devoção à escravidão amorosa a
Maria. E sim, herdou de um movimento religioso medieval.
• Provavelmente na escola onde estudou ele conheceu a
devoção à “escravidão”, que era difundida por dois jesuítas.
• Padre Boudon, falecido em 1702, escreveu: “A santa
escravidão da admirável mãe de Deus”.
11. A santa escravidão para com Maria
• Montfort não criou a devoção à escravidão amorosa a Maria.
Herdou-a da espiritualidade de seu tempo.
• Origem: Associação de escravidão a Maria: fundada por Irmã
Inês Batista de São Paulo, franciscana concepcionista (1595).
• Escritos de Juan de los Angeles (1608) e Melchior de Cetina (1618)
-> Espalhou-se pela Espanha.
• Chega à França graças ao Cardeal Bérulle, que 1614 propõe o
duplo voto de servidão perpétua a Maria e a Jesus.
• Polêmica a respeito desse “quarto voto”.
• Henry Budon difunde-a na França. Escreve em 1667: “Somente
Deus, ou a santa escravidão da admirável Mãe de Deus”. Não
inclui a referência ao batismo.
13. A história continua...
• A devoção à santa escravidão à Maria se espalhou pela Bélgica,
Alemanha, Polônia e Itália. Muitas outras fórmulas devocionais
também se criaram e difundiram nessa época.
• João Eudes (+1680): propõe a doação a Jesus e a Maria, em
conformidade com o contrato de aliança firmado no batismo.
• Alguns livros que recomendavam o uso de cadeias ou correntes
(especialmente como forma de castigar o corpo ou de obrigação
constrangedora) são condenados pelo Santo Ofício em 1873.
• Isso não atinge Bérulle, Boudon e Montfort, “que propõem uma
escravidão de amor, voluntária e santa”.
• Montfort situa a escravidão amorosa no contexto da consagração a
Jesus pelas mãos de Maria.
• Outros santos e fundadores manterão o tema da consagração a
Maria, mas retiram o tema da escravidão. Ex: Claret, Kolbe.
14. Consagração à Imaculada (Maximiliano Kolbe)
Ó Imaculada, Rainha do céu e da terra, Refúgio dos pecadores e nossa Mãe amorosíssima,
a quem Deus quis confiar a inteira distribuição da misericórdia,
eu, indigno pecador, me prostro aos Teus pés,
suplicando-te humildemente de querer-me aceitar todo e completamente
como coisa e propriedade Tua e de fazer aquilo que Te agrada de mim e de todas as faculdades
da minha alma e do meu corpo, de toda a minha vida, morte e eternidade.
Disponha também, se queres, de todo meu ser, sem nenhuma reserva, para realizar aquilo que foi dito de Ti:
“Ela te esmagará a cabeça” (Gen 3,15),
como também: “Somente Tu destruíste todas as heresias do mundo inteiro” (Lit.),
a fim de que, nas Tuas mãos imaculadas e misericordiosíssimas,
eu me torne um instrumento útil para enxertar e incrementar o mais fortemente possível a Tua glória
em tantas almas desgarradas e indiferentes
e para estender de tal modo, quanto mais for possível, o bendito Reino do SS.Coração de Jesus.
Onde Tu entras, de fato, obténs a graça da conversão e santificação,
porque toda graça escorre através das Tuas mãos
do Coração dulcíssimo de Jesus até nós.
15. A escravidão amorosa em Montfort
A escravidão voluntária e amorosa, expressa na
Consagração, pode nos fazer livres, pois concede uma grande
liberdade interior, a dos filhos de Deus (cf. Rm 8,21).
Devido à essa entrega amorosa, Jesus retira da pessoa todo
escrúpulo e temor servil, que a constrangem, escravizam e
perturbam; alarga o coração por uma santa confiança em
Deus, considerando-o como Pai; e inspira-lhe um amor terno
e filial (Tratado: 182)
16. A comparação Escravo-servo (Tvd 69-72)
Há duas maneiras, aqui na terra, de alguém pertencer a outrem
e de depender de sua autoridade. São a servidão e a escravidão,
donde a diferença entre servo e escravo.
Pela servidão, comum entre os cristãos, um homem se põe a
serviço de outro por um certo tempo, recebendo determinada
quantia ou recompensa.
Pela escravidão, um homem depende inteiramente de outro
durante toda a vida, e deve servir a seu senhor, sem esperar
salário nem recompensa alguma, como um dos animais sobre o
qual o dono tem direito de vida e morte (Tratado, 69).
17. Os argumentos....
(a) O escravo se dá integralmente a seu senhor, com tudo o que possui, mas
não o servo;
(b) Esse exige salário pelos serviços que presta a seu patrão, e o escravo nada
pede;
(c) O servo pode deixar o patrão quando quiser, mas o escravo não tem esse
direito;
(d) Se o patrão matar seu servo, comete homicídio, mas ele tem poder sobre
o escravo, de vende-lo ou matá-lo,
(e) O servo só fica por algum tempo a serviço de um patrão, enquanto o
escravo o é para sempre (Tratado 71).
Conclusão: “Só a escravidão, entre os homens, põe uma pessoa na posse e
dependência completa de outra. Nada há, do mesmo modo, que mais
absolutamente nos faça pertencer a Jesus Cristo e a sua Mãe Santíssima do
que a escravidão voluntária” (Tratado, 72).
18. A analogia da escravidão não é central
Montfort faz uma comparação idealizada, que não corresponde à
realidade de seu tempo, pois não havia mais escravos entre os
europeus.
Eles subjugavam os povos indígenas e africanos de outros
continentes -> colonialismo. Os escravos eram submissos porque não
lhes restava outra alternativa para sobreviver.
Os servos podiam ser bons ou maus. Não era a sua condição de
servos que os faziam interesseiros ou generosos.
Para Montfort, a questão fundamental não era ser escravo ou servo,
mas sobretudo a quem servir em liberdade: a Deus e ao diabo.
Maria é o exemplo da verdadeira e integral entrega a Deus.
19. Escravo(a), servo(a) e filho(a)
• Montfort usa a palavra “escravo” aproximadamente 70 vezes (incluindo
os escravos do demônio), e “servo/servidor” umas 50 vezes. E em servo
predomina o sentido positivo, de alguém que presta um serviço
generoso, e não do empregado descomprometido.
• Em vários parágrafos, são praticamente sinônimos “escravos amorosos”,
“servos fiéis” ou “filhos” e “ servos” (Tratado: 50, 52, 53, 54, 152, 153, 154,
183, 188, 200, 203, 204, 206, 209).
• Com diferentes termos, São Luís salienta a relação única de confiança e
de entrega. “Quem serão esses servidores/servos, esses escravos e filhos
de Maria? (Tratado: 56) E ainda: “Maria terá mais filhos, servos e
escravos de amor, como nunca houve” (Tratado: 113).
• A não ser na famosa comparação entre o servo mercenário e o escravo
amoroso (Tratado: 69-72), os termos, “servo/servidor”, “escravo” e
“filho” expressam a mesma realidade: uma relação amorosa com Jesus
e Maria.
20. Servidores e amigos de Jesus
• Em “Amor da Sabedoria eterna”(ASE), Montfort utiliza a imagem da
amizade. “Existe um vínculo de amizade” entre a Sabedoria e o ser
humano, pois fomos criados à sua imagem e semelhança (64 , 65, 69).
Ela nos conquista pela sua doçura, beleza e sabor (ASE 10, 11, 13, 17, 19,
32, 33, 53). Faz sua morada nos justos, “transformando-os em amigos e
profetas de Deus” (ASE 47, 51, 90).
• O filho de Deus se encarnou para testemunhar a sua amizade (168).
Jesus Cristo concede-nos “saborear e realizar” tudo o que nos deu a
conhecer (ASE 56). “A Sabedoria fez-se homem com a finalidade única
de atrair os corações à sua amizade” (ASE 117).
• O seguimento a Jesus exige assumir a sua cruz (ASE 169-180). O Espírito
Santo nos comunica a Sabedoria, derramando em nossos corações “a
alegria, a doçura e a paz indizíveis” (ASE 98).
• No final dessa obra e na fórmula da Consagração Montfort apresenta
a “ escravidão amorosa” (ASE 211, 219, 223, 226, 227)
21. Amor filial, mais do que escravidão
• Montfort se dirige a Maria de forma próxima, respeitosa e carinhosa.
Sua prática e suas palavras rompem com o esquema da escravidão.
Entre escravo e senhor(a) não existe a reciprocidade e a comunicação
interpessoal, que caracterizam a devoção em São Luís. Os termos
utilizados no tratado sinalizam isso.
• Além de “santíssima virgem”, típico da piedade popular francesa, São
Luís a chama de “maîtresse” (Tratado: 112, 121, 145, 151, 152, 159, 173, 197,
216, 217 e 26), que pode significar senhora, dona da casa, ou amada.
• Ao redor de 27 vezes denomina-a carinhosamente de “Mãe bondosa”
(bonne mère). Por mais de 15 vezes, a chama de “querida mãe” (chère
mère).
• Por 20 vezes considera-a a “Rainha” amorosa e condescendente.
• Este amor a Maria, não escravizador nem infantil, caracteriza-se pela
reciprocidade de uma relação livre e madura. Maria se volta para nós,
nos ajuda, nos acompanha e nos conduz a Jesus (Tratado: 201-207).
22. Até que ponto é conveniente utilizar ou enfatizar a
analogia da escravidão amorosa?
Como evitar que ela não seja usada de maneira
incoerente, justificando formas desumanas de
relacionamentos na Igreja, na família e na sociedade,
contrárias à fé cristã?