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OARTISTAE SUAARTE: UM ESTUDO FENOMENOLÓGICO1
Giuliana Gnatos Lima Bilbao2
Vera Engler Cury
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Resumo: Este estudo tem por objetivo apreender a estrutura do vivido do artista e sua arte e as
decorrências para a Psicologia. Foram gravados 9 (nove) depoimentos de artistas de diferentes áreas, posteri-
ormente submetidos aos passos do método fenomenológico, incluindo leitura inicial para apreensão do todo,
releituras para apreensão de unidades de significado, compreensão psicológica das unidades de significado,
síntese específica de cada depoimento e, por fim, síntese geral dos depoimentos. A síntese geral, abarcando as
vivências de todos os participantes, delineou aspectos positivos da arte: auto-conhecimento; integração da
personalidade; transformação de valores e afetos; transcendência da realidade cotidiana. Os resultados apon-
tam para uma consideração da criatividade como componente da saúde e da prática de uma atividade artística
como facilitadora do desenvolvimento psicológico, abrindo perspectivas para novos estudos sobre arte, que
vem sendo associada a processos psicoterapêuticos na atualidade.
Palavras-chave: arte; artista; arte-terapia; pesquisa fenomenológica.
THE ARTIST AND HIS ART: A PHENOMENOLOGICAL STUDY
Abstract: The objective of this research is to describe the elements which are part of the experience of
artists, comprehending the structure of experiences and the consequences for Psychology. Nine depositions
have been recorded from artists of different areas and they were all submitted to the steps of the phenomenological
method, including a first reading in order to get a general sense, further readings aiming the apprehension of
meaning units within a psychological perspective, a synthesis of each deposition and, finally, a synthesis of all
depositions. The results show positive aspects of art: self-knowledge; integration of personality; transformation
of values and affections; transcendence of the quotidian reality.These data point to a consideration of creativeness
as health and the practice of an artistic activity promoting psychological growth, opening perspectives for new
researches in art, which has been lately associated to psycotherapeutic processes.
Key words: art; artist; art therapy; phenomenological research.
Introdução: É preciso ter em mente que, na
filosofia antiga, as reflexões que versavam sobre a
Arte consideravam não só suas relações com a Be-
leza e a realidade natural, como também com a mo-
ral e a evolução espiritual (Bosi, 1991; Lacoste, 1986;
Nunes, 1966).
A arte tinha justificativa em suas relações com
a moral e valia na medida em que possibilitasse ao
homem uma evolução espiritual, cujo alcance verda-
deiro dar-se-ia através das Idéias existentes num
mundo à parte. A arte, se pudesse refletir, ainda que
não plenamente, a Beleza que era uma Idéia, única,
imutável, presente nesse mundo à parte, poderia ser-
vir de “degrau” na escalada espiritual. Contudo, de
maneira geral, ela refletia a natureza propriamente
dita, uma cópia denegrida do mundo imutável e, por-
tanto, acabava por atrelar o homem ao mundo corri-
queiro, mutável – chamado Sensível pelos filósofos
– impedindo sua ascensão espiritual. A arte estava,
então, de maneira indireta, relacionada a outros va-
lores na sociedade grega, não sendo vista e refletida
em si mesma.
1
Artigo recebido em 10/10/2005 e aceito para publicação em 29/
12/2005.
2
Endereço para correspondência: Giuliana Gnatos Lima Bilbao, Av.
Dr. Francisco Mais, 426 , Bairro Novo Chapadão , Campinas – SP,
CEP: 13066-330, E-mail: lgglima@uol.com.br
Paidéia, 2006, 16(33), 91-100
92
Numa direção oposta, o filósofo Schiller (1995)
traz uma concepção interessante sobre o fazer arte,
desvinculando o impulso lúdico (inerente ao fazer ar-
tístico) da moral ou de qualquer outro valor, fazendo
a arte valer por si:
“pois a beleza não oferece resultados
isolados nem para o entendimento nem para a
vontade, não realiza, isoladamente, fins
intelectuais ou morais, não encontra uma
verdade sequer, não auxilia nem mesmo o
cumprimento de um dever, e é, numa palavra,
tão incapaz de fundar o caráter quanto de
iluminar a mente. Pela cultura estética,
portanto, permanecem inteiramente
indetermina-dos o valor e a dignidade pessoais
de um homem, à medida que estes só podem
depender dele mesmo, e nada mais se alcançou
senão o fato de que, a partir de agora, tornou-
se-lhe possível pela natureza fazer de si mesmo
o que quiser – de que lhe é completamente
devolvida a liberdade de ser o que deve ser
.”(p.110)
Num sentido contrário ao da filosofia antiga,
que apregoava que o fazer artístico distanciava o ho-
mem do Bem e da Verdade, das Idéias e da perfei-
ção, Schiller (1995), ao contrário, enfatiza que a pró-
pria humanidade é decorrente da liberdade conquis-
tada pelo impulso lúdico. Ele afirma que a humanida-
de já existe como predisposição, mas na medida em
que o homem perde a liberdade, desenvolvendo de
maneira unilateral a sensação ou o pensamento, per-
de também sua humanidade. Somente o impulso lúdico
pode reconstituí-la.
Sob outro aspecto, o estudo da filosofia traz
três definições tradicionais da arte: arte é fazer, arte
é exprimir e arte é conhecer (Bosi, 1991; Pareyson,
1966; Frayze-Pereira, 1994).
Com relação à primeira definição, pode-se ave-
riguar que a dimensão do fazer encontra-se presente
desde o aspecto etimológico das palavras que desig-
nam arte. A palavra tekné, denominação grega da
arte, significa modo exato de fazer uma tarefa (Bosi,
1991); a palavra póiesis, significando produção, cria-
ção, traz implícito um fazer; e a Ars, matriz latina do
português arte, está na raiz do verbo articular, deno-
tando a ação de fazer junturas entre as partes de um
todo (Bosi, 1991).
A segunda definição afirma que arte é expri-
mir. Bosi (1991) utiliza três termos para diferenciar
os níveis de expressão: efusão, símbolo e alegoria. Se
alguém chora pela perda de um amigo, sua expres-
são está no nível de efusão; se escreve um poema,
sua expressão está no nível do símbolo e, se constrói
uma estátua com o desenho de uma águia como sím-
bolo de força e ousadia – virtudes do amigo- então,
sua expressão está no nível da alegoria. Em todos os
modos de expressão há um sentimento, mas ele é
diretamente expresso no nível da efusão, indiretamente
no da alegoria e intermediário no simbólico.
Cabe ressaltar essa questão da distância entre
o resultado da expressão (signo exterior) e a força
correspondente (sentido interno, que pode ser emo-
ção, idéia). Quanto maior a distância, maior a dificul-
dade em fazer uma correspondência direta. Em de-
corrência disso, existe uma relação assimétrica entre
o signo exterior e o sentido interno, isto é, um mesmo
exterior pode ter vários sentidos internos e um mes-
mo interno pode corresponder a vários externos, de
modo que não se pode derivar a forma poética dire-
tamente dos sentimentos do poeta (Bosi, 1991;
Focillon,1983).
Pelo fato de a arte ser composta de símbolos,
para chegar ao sentido interno, é necessário um tra-
balho de decodificação que possa, com propriedade,
estabelecer o sentido interno correspondente ao sig-
no externo, um processo que anule a distância e per-
mita uma correspondência plausível, que seria a in-
terpretação.
Porém, segundo Bosi (1991), no momento da
realização da obra, a força e a forma, a emoção e o
signo, não estão dissociados, e “a necessidade de in-
terpretar decorre da distância que medeia o fenôme-
no simbólico e suas raízes emotivas” (p.52)
Então, compreendendo o fenômeno expressi-
vo dessa maneira, a unificação inerente a ele dispen-
saria interpretação, pois ela própria fornece a com-
preensão. De fato, segundo Pareyson (1966), o que
acontece em arte é que não há forma que não seja
conteúdo, e conteúdo que não seja forma; o resultado
artístico é um conteúdo expresso em forma e, “preci-
samente porque o artista resolveu toda vontade ex-
pressiva,significativaecomunicativanofazer,nogesto
formativo, na atividade operativa... por isso tudo, em
Giuliana Gnatos Lima Bilbao
93
arte, até a coisa aparentemente irrelevante diz, signi-
fica, comunica alguma coisa” (p.61)
Passando à concepção da arte como conheci-
mento tem-se, segundo Pareyson (1966), que esse
aspecto não é tão importante quanto o do fazer, e é
lamentável que, a partir do Renascimento, a tarefa
da arte tenha sido enfatizada como contemplação,
desviando as atenções para esse aspecto menos re-
levante que seu ato executivo. Diz ele : “O quanto
esse “espiritualismo artístico” é inadequado, sabem-
no bem os artistas, às voltas com a matéria e a técni-
ca de sua arte, e com a obra que exige ser feita, exe-
cutada, realizada”(p.31).
Segundo Pareyson (1966) e Nunes (1966), não
podem ser feitas abstrações sobre o conhecimento
oriundo da arte ignorando sua característica
essencial:a forma. Na concepção desses autores, se
há um conhecimento que advenha da arte, ele não
deve se encontrar separado da própria forma, mas
existir enquanto forma particular, sensível e concre-
ta. Há analogia entre o processo do conhecimento e
o da criação artística, unindo fazer e conhecer.
Arte, doença mental e saúde mental
Em fins do século XIX, quando psiquiatras re-
velaram interesse pelas produções plásticas dos
insanos e começaram a estudá-las, iniciou-se a cone-
xão entre arte e doença mental. Dentre os que se
destacaram por um período de quase duas décadas
nesses estudos, podem ser citados os franceses
Ambroise Tardieu, Paul-Max Simon, Marcel Reja.
Segundo Malchiodi (1998), esse movimento come-
çou em 1872, quandoAmbroise Tardieu publicou um
livro sobre doença mental em que relatava quais eram,
no seu modo de ver, as características do trabalho
artístico produzido pelos então chamados insanos.
Um pouco mais tarde, entre os anos de 1876 e
1888, Paul-Max Simon publicou uma série de estu-
dos sobre os desenhos de doentes mentais. Ele tem
sido considerado “pai da arte e da psiquiatria”; foi um
dos primeiros psiquiatras a reunir uma coleção de
desenhos e pinturas de pacientes psiquiátricos. Ele
acreditava que os sintomas se associavam ao con-
teúdo do trabalho artístico, apontando para uma dire-
ção diagnóstica dos desenhos.
Em 1912, dois psiquiatras europeus, Emil
Kraepelin e Karl Jaspers, observaram que os dese-
nhos dos pacientes podiam auxiliar a entender a sua
psicopatologia, o que, na verdade, já havia sido
operacionalizadocomosestudosdeSimon(Malchiodi,
1998). Até então, o interesse psiquiátrico voltava-se
aos produtos artísticos e suas relações com o funcio-
namento mental que, supostamente, estaria revelado
nas obras. Em vista disso, alguns começaram a fazer
pequenas coleções das obras dos pacientes, mere-
cendo destaque a de Prinzhorn, psiquiatra alemão, que
reuniu 5000 produções de internos de vários hospitais
da Áustria, Suíça, Itália, África.
Prinzhorn e Wilmanns, diretor da clínica psi-
quiátrica de Heidelberg, onde trabalhavam, diferen-
ciaram-se de outros psiquiatras da época em dois
aspectos: primeiro, eles se interessaram pelo que ti-
nham a dizer os pacientes sobre suas produções e
assim chegaram mais perto do significado das artes
para eles; segundo, pelo fato de Prinzhorn ser artista
e historiador de arte, além de psiquiatra, seu interes-
se voltou-se para as origens da arte propriamente,
não se interessando tanto pela Patologia ou Psicolo-
gia (Claussen, 1997).
De qualquer forma, historicamente, as corres-
pondências entre arte e mente continuaram a ser
investigadas pelos estudiosos da saúde mental. Em
1900, Freud publicou a Interpretação dos Sonhos,
dizendo que as imagens oníricas remeteriam ao fun-
cionamento psicológico inconsciente na medida em
que fossem traduzidas em termos de pulsões incons-
cientes, desejos reprimidos, pela técnica psicanalítica
da interpretação. Ainda que não pretendesse tratar
da arte em sua teoria, Freud transpôs tal concepção
para a apreensão da pintura, escultura e poesia, ana-
lisando pormenorizadamente a Gioconda de Leonar-
do da Vinci (1910), depois, o Moisés de Michelângelo
(1914), não fazendo distinção entre arte, fantasia,
sonho e devaneio, considerando todos eles como pro-
jeções do inconsciente.
Para Freud (1976), a arte é fruto de um me-
canismo através do qual os impulsos sexuais reprimi-
dos, por não serem aceitos, são desviados para uma
meta alternativa de satisfação, socialmente aceita, pelo
mecanismo da sublimação. Essa concepção fica cla-
O Artista e sua Arte
94
ra na interpretação do sorriso da Mona Lisa, que, para
ele revelava o inconsciente de Leonardo da Vinci,
sua obsessão por esse sorriso, que se repetia em vá-
rios quadros, evidenciando conflito não resolvido dos
seus impulsos eróticos primitivos para com sua mãe.
Antes mesmo de 1910, Freud postulava que a
base da poesia era a fantasia do escritor e esta, por
sua vez, era decorrente das insatisfações com o mundo
externo. Suas considerações partiam da premissa de
que “ a pessoa feliz nunca fantasia, somente a insa-
tisfeita’’, pois, “As forças motivadoras das fantasias
são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é realiza-
ção de um desejo, uma correção da realidade
insatisfatória” (p. 152).
Assim, pode-se deduzir que, na sua visão, tan-
to um pintor quanto um escritor criativo estão proje-
tando em sua arte significados pessoais inconscien-
tes e tentando corrigir uma realidade frustrante. Tal
apreensão é criticada, posteriormente, pelo filósofo
Bachelard (1989), que assinala: “A imagem poética
não está sujeita a um impulso. Não é o eco de um
passado”(p. 2) bem como por psicólogos que aponta-
ram para o caráter progressivo - e não regressivo –
dos símbolos (May, 1975; Naumburg, 1966).
Alguns avanços foram feitos do ponto de vista
teóricopsicanalíticonosentidodecompreensãodaarte.
Trinca (1995) classifica vários tipos de arte, segundo o
funcionamento mental subjacente: a arte do esquizo-
frênico, que traz embutida a cisão e a fragmentação
do self; a da fusão, em que existe um amálgama de
aspectos objetivos e subjetivos, e pode ir do fantasioso
ao alucinatório; a oriunda da sublimação, em que há
transformação de tendências recalcadas em
estetizantes; a da posição depressiva, em que o mundo
interno, repleto de objetos mortos e estragados é refei-
to, transformando-se em obra de arte.
Partindo do pressuposto teórico kleiniano da
posição depressiva, além dos tipos supracitados, o
autor propõe outro elevado e nobre, não comprometi-
do com as turbulências da mente, que estaria além da
posição depressiva. Em níveis regredidos, a arte se
ligaria à dor mental, na medida em que o artista esta-
ria sujeito às oscilações permanentes das posições
esquizo-paranóide e depressiva; já o tipo elevado de
arte seria resultado de uma superação da dor mental,
alcançada pelo fato de ele ter lidado interiormente
com situações psíquicas profundas, havendo supera-
ção que envolveria transcendência das memórias,
desejos, egocentrismo, condicionamentos. O artista
ficaria numa atmosfera psíquica em que não haveria
espaço para mágoas, paixões e frustrações; Trinca
(1995) sugere que há uma libertação dos limites de
espaço e tempo e impregnações sensoriais, um alar-
gamento da consciência e “a realidade pode se mos-
trar tal qual é, livre o mais possível da interferência
de nossos próprios vértices de pensar” (p.19).
Nesse silêncio da base sensorial, origina-se a
experiência de imaterialidade, que provê uma aber-
tura da mente para a ressignificação da realidade,
disposição para nova relação espiritual, suprapessoal
(Trinca, 1995). A arte, assim permitiria liberdade e o
contato com “o sagrado que reside nas profundezas
do mundo” (p.20). Relacionando a arte à experiência
de imaterialidade, e colocando-a como possibilidade
de se alcançar uma realidade verdadeira, ampliada e
suprapessoal, existe aproximação de seus pensamen-
tos com concepções filosóficas da arte que ressal-
taram justamente esses aspectos.
Ressaltam-se outros autores, além de Trinca
(1995), que contribuíram para uma visão da arte mais
ligada à saúde. Winnicott (1990) é uma figura de des-
taque nesse sentido. Ele concebe que a vida cultural
do homem – em que a arte se encontra - é o equiva-
lente adulto dos fenômenos transicionais da criança,
fazendo, a relação da arte com o brincar. No decorrer
de sua obra, ele elabora várias considerações sobre a
importância do brincar e da criatividade para a saúde
mental, dando um passo além das considerações psi-
canalíticas, cuja abordagem sobre esses aspectos re-
duzia-se à noção de sublimação de instintos.
Na visão desse autor, a importância do brincar
reside no inter-jogo entre a realidade psíquica e a
externa, uma atividade em área intermediária de ex-
periência, que mescla subjetividade e objetividade.
Winnicott (1975) interessava-se pela experiência em
si, e não pelos produtos ou conteúdo da brincadeira
ou da arte, como faziam os psicanalistas de seu tem-
po, fato que critica, e afirma que “o brincar é por si
mesmo uma terapia” (p.74) e “uma terapia de tipo
profundo pode ser efetuada sem trabalho
interpretativo” (p.75), mostrando a importância do
brincaremsimesmo.Dopontodevistadacriatividade,
Giuliana Gnatos Lima Bilbao
95
ele compreendia que ela deve ser considerada como
“uma coisa em si” (p.100), necessária a um artista
mas presente em toda pessoa que se inclina criativa-
mente na apreensão da realidade externa.
Vale lembrar que Jung (1997) também descre-
veu o valor artístico em si e utilizou as representa-
ções produzidas por seus pacientes nas sessões. Se-
gundo Philippini (1995), a abordagem junguiana parte
da premissa de que o homem é orientado por símbo-
los, a arte-terapia facilitaria a compreensão e resolu-
ção de estados afetivos conflituosos ao permitir a cri-
ação; por ela o homem entraria em contato com os
símbolos a serem compreendidos e transformados;
assim a arte é uma função psíquica natural, com pa-
pel estruturante.
Já na visão de Carl Rogers (1999), psicólogo
humanista e fundador da Abordagem Centrada na
Pessoa, a criatividade está relacionada à tendência
atualizante, força inerente ao organismo em direção
à saúde; para ele quando um indivíduo encontra-se
aberto à experiência, podendo experimentar idéias,
emoções que antes se encontravam rigidamente ne-
gadas à consciência, quando encontrou um centro
interior de avaliação, sendo o juiz das suas ações e
emoções, lidando livremente com idéias e conceitos,
ele é um ser criativo.
Maslow (1973), outro psicólogo humanista, en-
tende a criatividade humana como decorrente da saú-
de, num sentido semelhante ao de Rogers (1999). As
pessoas sadias satisfazem suas necessidades básicas
de segurança, filiação, amor, respeito e amor próprio,
de modo que passam a ser motivadas para a realiza-
ção de suas capacidades e talentos; no processo de
individuação, o auge seria um funcionamento mais ple-
no do indivíduo com conseqüente aumento da
criatividade.Noentanto,Maslow(1973),diferentemen-
te de Rogers (1999), define a criatividade em termos
mais episódicos do que como característica de deter-
minada etapa alcançada e, nesse sentido, sua concep-
ção é ainda mais abrangente, não se restringindo às
pessoas saudáveis. Partindo desses pressupostos, abor-
da a criatividade e a atividade artística pelo estudo do
que denominou experiências culminantes.
De fato, Maslow (1973) define as experiências
criativas, artísticas, como aquelas em que o indivíduo
experimentaum“episódiodeindividuação”(p.127),que
pode ser equiparado a “uma visita a um Céu pessoal-
mentedefinido,doqualretornadepoisàTerra(p.131)”.
A pessoa, nessas experiências, sente felicidade e rea-
lização supremas, sente-se no auge de seus poderes,
livre de bloqueios, medos, autocríticas, sendo, conse-
qüentemente, mais espontânea e auto-confiante, ca-
racterísticas essas usualmente encontradas em pesso-
as capazes de individuação, segundo observações clí-
nicas de Maslow (1973).
Dentre os psicólogos contemporâneos que se
ativeram a questões da criatividade e arte, Rollo May
(1975) explorou o tema com profundidade; ele partiu
de seu contato com obras de artistas e com os artis-
tas para formular suas considerações, o que é uma
aproximação diferente das citadas anteriormente. Ele
critica dois aspectos das teorias psicanalíticas de seu
tempo sobre a criatividade: primeiro, o fato de essas
teorias reduzirem a criatividade a outro processo qual-
quer (como “regressão a serviço do ego”); segundo
a consideração da criatividade como expressão de
padrões neuróticos. O autor discorda “enfaticamen-
te” dessas duas abordagens; ele diz que por existi-
rem artistas com sérios problemas psicológicos isto
não leva, necessariamente, que a arte seja um produ-
to da neurose. Pelo contrário, o processo criativo deve
ser estudado como “representação do mais alto grau
de saúde emocional” (p39).
May (1992) afirma que a vivência da beleza
desperta qualidades que transcendem a morte e nos
projetam para além do tempo e do espaço: “A beleza
é a eternidade vinda à luz dentro da experiência” (p83);
os artistas bem o sabem, criando obras que são eter-
nas, e a arte, ao permitir essa vivência de eternidade,
de transcendência, modifica a qualidade de vida e
oportuniza a conscientização. Ela seria um ato lúdico
integrador que, ao mesmo tempo, revela sua forma
de ver o mundo. De sua vivência enquanto pintor,
sente que participa do universo, sente prazer e vê-se
como transmissor de nova visão da realidade.
Há vários profissionais de renome internacio-
nal que utilizaram recursos artísticos – pintura, escul-
tura, música, dança, teatro - em contexto terapêutico.
Surge, pois, em meados do século XIX, a arte-tera-
pia, campo que abrange diversos tipos de práticas,
baseadas em teorias psicológicas diversas e diferen-
tes concepções de arte.
O Artista e sua Arte
96
Dentre as existentes sobre o poder terapêutico
do processo criativo, uma primeira é de que a arte é
curativa, cicatrizante, restabelecedora.3
Segundo
Malchiodi (1998), fazer arte gera auto-estima, enco-
raja a experimentação, desperta novas habilidades e
enriquece a vida, o que, por si só, já seria terapêutico.
Além disso, o processo criativo conduz à individuação,
aodesenvolvimentodospotenciaiseflexibilidade,além
de oferecer oportunidade para crescimento e mudança
de forma agradável.
Para Natalie Rogers4
(1993) o processo
psicoterápico e criatividade são ligados: o que é cria-
tivo geralmente é terapêutico e vice-versa. A autora,
utilizando os princípios da Abordagem Centrada na
Pessoa e também recursos artísticos diversos reuni-
dos sob a denominação de Person-Centered
Expressive Therapy, parte da premissa de que men-
te, corpo, emoção e espírito devem estar integrados
no indivíduo saudável e, portanto, o processo
terapêutico precisa oportunizar experiências que en-
volvam todos esses aspectos.
Outra personalidade de destaque no campo das
arte-terapias5
é Rhyne (1996) que seguindo os prin-
cípios da Psicologia da Gestalt e da Gestalt-Terapia,
pratica o que denominou Experiência Gestáltica de
Arte, em contexto terapêutico e educacional. Ele acre-
dita que a experiência de criar em arte contribui para
a clareza de insight. Partindo do pressuposto que é
naturalmente humano fazer arte, ele busca recuperar
essa parcela humana que é, muitas vezes, abafada e
bloqueada no processo natural de crescimento.
Pereira (1976) afirma que, na atividade artísti-
ca, o artista sintetiza elementos de sua percepção e
intuição e preocupa-se esteticamente com a escolha
dos modos de expressão que mais favoreçam sua
mensagem. Então, ao contrário de fortuito e ocasio-
nal, o processo artístico é controlado pelo intelecto,
segundo exigências estéticas.Assim, ao mesmo tem-
po em que há o desprendimento de padrões antigos e
mergulho em associações novas, há um rigor estéti-
co. Ele diz que seus pacientes relataram mudanças
no sono depois da arte-terapia: para uns, os pesade-
los deixaram de existir e para outros a insônia dimi-
nuiu. Ele, então assinala a possibilidade de mudanças
no estado de consciência provocadas pela arte.
Para Allen (1995), a arte é um meio de auto-
conhecimento; não cura ou conserta, mas restabe-
lece a conexão do indivíduo com o aspecto mais pro-
fundo de si: a alma. O caminho da arte possibilita
maior vivacidade e contato com emoções e intui-
ções, mas requer coragem e curiosidade para
contatar a imaginação. A arte permitiu-lhe a solu-
ção de problemas, amenização de sofrimentos,
enfrentamento de perdas, e também um profundo
conhecimento de si .Andrade (1993, 1995), psicólo-
go que realizou um extenso estudo sobre a prática
da arte-terapia, também cita a arte como possibili-
dade de auto-conhecimento.
A conexão com a alma, como possibilidade ine-
rente à arte, é assinalada, também, por McNiff (1988).
Ela expressa, engaja e reestrutura a alma, asseme-
lhando-se à terapia, ao xamanismo e à religião. Exer-
cendo a mesma função de um sacramento, ela faz a
alma acessível a sentidos, permite consciência dos
propósitos coletivos.Aalma, a seu ver, é algo de mis-
terioso e profundo, próximo ao que se passou a cha-
mar “inconsciente” na Psicologia.
Para este autor o processo criativo permite a
livre experimentação, exercitando a imaginação; por
sua vivência como artista e pesquisador, admite que o
processo criativo traz benefícios e pode modificar o
criador e afirma que este implica em mergulho no des-
conhecido, requer confiança do criador, que é, sobre-
tudo, dinâmico, surgindo a partir do próprio fazer e não
de um planejamento pré-concebido. McNiff (2000)
atribui à arte um poder de conhecimento do mundo,
diferente do intelectual. Por isso, o fazer artístico, a
imaginação, as metáforas, podem ser utilizados como
meio de conhecimento de certos fenômenos humanos.
Nesse sentido, a arte é, pois, um método.
Em uma pesquisa feita por McNiff (1977), in-
vestigando as motivações dos artistas com relação à
arte, foram entrevistados 100 artistas, adultos e crian-
ças; ele constatou que a motivação para a arte está
vinculada a impulso de competência dentro do contex-
to de um meio material específico, para explorar novas
situações, por desejo de prazer estético, de usar a arte
como veículo para mudança social, estabelecendo pa-
drõeséticos,deusá-lacomomeiodeconfrontaromedo
eosofrimento,intensificaçãodavida,dealcançaraimor-
talidade através de seu trabalho, pela necessidade de
3
Traduções possíveis para o termo healing, frenqüente na bibliogra-
fia estrangeira.
4
Natalie Rogers é filha de Carl Rogers.
5
O termo é usado no plural devido à adversidade do campo e à falta
de especifidade do termo arte-terapia em sua forma singular.
Giuliana Gnatos Lima Bilbao
97
comunicaçãodesentimentoseinteraçãocomoutros,de
reconhecimentosocial;porpropósitosespirituais.
Método
Os participantes deste estudo foram artistas
adultos, 4 do sexo masculino e 5 do sexo feminino,
com idades entre 27 e 57 anos, cujo envolvimento
com a modalidade artística fosse fundamental em suas
vidas, portanto, todos tinham contato profundo com a
arte; então, a fama ou o tempo como artista não fo-
ram critérios relevantes para a participação na pes-
quisa, mas sim a arte vivenciada como algo funda-
mental, sendo provenientes das modalidades: teatro,
pintura, dança, escultura, poesia e música.
O primeiro contato com os artistas aconteceu
por telefone ou pessoalmente, momento em que se
fez uma breve apresentação do trabalho e o convite
à participação.
Os depoimentos foram colhidos no habitat de
cada artista, ou seja, no local onde acontecem suas
produções. Houve uma pergunta disparadora: “Como
você vive a arte ?” e o participante discorria livre-
mente sobre sua experiência em relação ao tema.
Os depoimentos foram gravados, transcritos
e procedeu-se, posteriormente, aos passos
metodológicos descritos por Giorgi (1985) para aná-
lise: 1- leitura dos depoimentos integralmente para
apreensão do todo; 2- releituras dos depoimentos,
tantas vezes quantas necessárias, com o objetivo de
apreender Unidades de Significado, que, vale res-
saltar, não se encontram prontas no texto, mas refe-
rem-se aos significados que se aproximam do inte-
resse do pesquisador, tendo em vista o fenômeno
estudado. Elas se diferenciam umas das outras na
medida em que existe mudança de significado, com
foco no fenômeno estudado; 3-elaboração de uma
Compreensão, transcrevendo o significado em lin-
guagem psicológica, com ênfase ao fenômeno in-
vestigado; 4-elaboração de uma Síntese Específica
do depoimento, que traduz a essência do fenômeno.
Após esses passos, procedeu-se à elaboração de
uma Síntese Geral baseada nas específicas, buscan-
do contemplar os significados comuns aos artistas e
apreender a essência do fenômeno.
Resultados e Discussão
A estrutura do experienciado, em relação ao fe-
nômeno de vivência do artista, revelou que a arte é per-
cebida como uma atividade fundamental e necessária.
A experiência artística, tal como vivenciada na
pesquisa, tem relações com o que Maslow (1973)
denominou de culminante, na medida em que é auto-
validada e semelhante a uma “visita ao céu”. A sen-
sação de aumento de poder, força ou energia, relaci-
ona-se à descrição das experiências culminantes em
que o indivíduo sente-se no “auge dos seus poderes”.
Dentre as funções que os artistas atribuem à
arte, o auto-conhecimento, mencionado por vários
autores da arte-terapia (Allen, 1995; Rhyne, 1996;
Naumburg, 1966; Halprin, 2000; McNiff, 1998;
Rogers, 1993; Andrade, 1995) parece ser relevante e
parte natural do exercício da própria arte, bem como
a compreensão de aspectos criativos, da auto-ima-
gem, das limitações, dos valores, idéias, sensações e
emoções seriam inerentes à vivência da arte, ainda
que cada artista o faça de forma particular.
Com relação à superação e ao movimento de
aperfeiçoamento constantes, buscando o esteticamen-
te coerente e melhor, pode-se pensar em auto-desen-
volvimento e superação de si mesmo como caracte-
rísticas da pessoa metamotivada, conforme assinala
Maslow (1973); ela estaria motivada à auto-realiza-
ção e ao desenvolvimento de seus potenciais através
da arte. Por isso esta é vivenciada como uma neces-
sidade, ainda que não básica.
De certa forma, também Jung (1997) concebe
o próprio processo de auto-desenvolvimento, deno-
minado individuação, como envolvendo a criatividade
e a concretização de imagens que possibilitam um
contato mais profundo com o inconsciente pessoal e
coletivo, favorecendo o crescimento.
Do ponto de vista filosófico, vale questionar
se esse movimento de aperfeiçoamento não poderia
ser compreendido como característico da evolução
espiritual que se consegue alcançar através da bele-
za, uma asserção desenvolvida por filósofos que viam
como possível, através da arte, alcançar a perfeição,
a verdade, a essência das coisas.
Com relação à característica integradora da
arte, presente na estrutura do vivido dos participan-
tes, pode-se afirmar que filósofos como Pareyson
(1966), que concebem a arte como conteúdo
formatado, acabam por juntar os aspectos racional e
emocional, objetivo e subjetivo dela, concentrando-
os. Esse ponto integrador também está de acordo com
as formulações de Winnicott (1975), May (1975) e
O Artista e sua Arte
98
do filósofo Schiller (1995), quando mencionam a ple-
nitude humana alcançada pelo impulso lúdico.
Cabe salientar a arte usada para alívio de ten-
são, ou de algum tipo de mal-estar psicológico. Tais
vivênciasrelacionam-secomorelatodearte-terapeutas
como McNiff (1998), Rhyne (1996) e Allen (1995),
que declaram utilizá-la para benefício próprio e de seus
pacientes. Num mesmo sentido, May (1992) discorre
sobre a exposição às potencialidades de cura que a
arte promove e McNiff (1977) constata entre artistas
apossibilidadedetê-lacomomeiodeconfrontaromedo
e o sofrimento. De fato, a palavra “remédio” foi, inclu-
sive, referida por alguns artistas da pesquisa.
Com relação ao prazer da experiência, obser-
va-se que este se mostra inexorável na vivência dos
artistas, aproximando-se de Maslow (1973), com sua
descrição das experiências culminantes.
Quanto à possibilidade de exercer a própria li-
berdade, Schiller (1995) afirma que só através do
exercício do impulso lúdico, o homem pode ser livre,
sendo incontestável a liberdade proposta nos contex-
tos de arte-terapia.
Com relação aos obstáculos enfrentados pelos
participantes para a realização da arte, impostos pela
família,pelamarginalizaçãosocialoupelaprópria arte,
que exige superação de limites pessoais e contato com
o desconhecido, pode-se dizer, de maneira geral, que
arte envolve coragem, nos termos de May (1975) e
Allen (1995). Face à não aprovação social da arte,
discute-se a questão da sublimação, pois os resulta-
dos da pesquisa parecem apontar para um possível
rechaço social, em dissonância com o conceito de
sublimação, pelo qual a arte seria uma satisfação al-
ternativa de impulsos sexuais com decorrente apro-
vação social e adaptação ao processo civilizatório.
Existe, de fato, na vivência de alguns artistas, a cana-
lização de aspectos pessoais, não expressos na vida
real, por dificuldades ou por desaprovação. Contudo,
tais aspectos referem-se à criatividade, espontanei-
dade e auto-expressão e não propriamente à sexuali-
dade. Questiona-se se seria a criatividade a expres-
são pessoal rechaçada pela sociedade. A frase de
Pereira (1976)diz: “E o que se reprime no homem
talvez não seja a sexualidade, nem a agressão, mas a
essência de sua natureza: uma vida pregnante de li-
berdade e de consciência cósmica”(p11).
A característica transformadora parece rele-
vante na vivência da arte e é confirmada por alguns
autores. De forma genérica, a arte associada à evo-
lução espiritual, conforme concepções filosóficas,
traz implícita a idéia de transformação. Na Psicolo-
gia, autores citam que o fazer arte modifica o mun-
do interior (Jung, 1997; McNiff, 1998; Rhyne (1996);
May, 1992; Andrade, 1993, 1995; Pereira, 1976;
Allen, 1995). Para alguns, a vivência de transfor-
mação é sentida de maneira intensa, profunda, dan-
do à arte um caráter de salvação. Salienta-se que a
arte foi um meio que os participantes desta pesqui-
sa encontraram para estar no mundo de maneira
adaptada e feliz. Uns encontraram nela um meio de
expressão de características represadas, outros de
auto-desenvolvimento, de preservar suas caracte-
rísticas espontâneas e infantis e, ainda, uma forma
de sobreviver num mundo considerado desagradá-
vel e hostil.
Assim, houve uma transformação adaptativa
e, ao mesmo tempo, prazerosa. Pode-se, pois, com-
preender esses movimentos como saudáveis,
atualizantes, no sentido descrito por Rogers (1999).
Certamente, isso vem ao encontro das afirmações
que mostram como a criatividade é saudável, que
seu exercício exerce papel importante na saúde do
indivíduo (Winnicott, 1975; May, 1975; Maslow,
1973; Rogers, 1999; Andrade, 1995; Allen, 1995;
Rogers, 1993; McNiff, 1998; Rhyne, 1996; Halprin,
2000) e que sua ausência pode estar associada à
doença psicológica (Winnicott, 1975; Rhyne,1996;
McNiff, 1998).
A questão da consciência através da arte pa-
rece relevante em dois níveis: primeiro, pela altera-
ção de estados de consciência; segundo, pela maior
conscientização de si e dos outros. A alteração do
estado de consciência aparece nas afirmações sobre
insônia posterior à criação, aumento da energia, po-
der ou lucidez com a criação, maior velocidade de
raciocínio, abertura sensível face à realidade e a sen-
sação de uma outra atmosfera em que a densidade
ou o tempo são diferentes.
Quanto à ampliação da consciência, alguns au-
tores creem que a arte a possibilita, num nível pessoal
(Rhyne,1996;Allen,1995;McNiff,1998;Rogers,1993;
Halprin, 2000); outros enfatizam o nível coletivo e su-
pra-pessoal (Rogers, 1993; Pereira, 1976; May, 1975;
Giuliana Gnatos Lima Bilbao
99
Trinca, 1995), que se pode chamar de trans-pessoal, e
que seria o equivalente ao metafísico, na linguagem
filosófica. Segundo a vivência dos artistas, essa cons-
ciência implica o conhecimento de uma nova realida-
de, seja ela pessoal, coletiva ou, ainda, metafísica.
De forma geral, as características de auto-co-
nhecimento, transformação e ampliação da consci-
ência evidenciadas pela pesquisa parecem condizer
com as afirmações de arte-terapeutas, ainda que o
contexto de suas observações tenha sido prioritaria-
mente o terapêutico e os que deram origem às
asserções eram pacientes e não artistas. Assim sen-
do, a constatação de tais características na vivência
da arte justificaria sua inclusão no processo
terapêutico com o intuito de favorecê-lo e esclarece
cientificamente os pressupostos dos arte-terapeutas
segundo os quais ela tem, por si só, poder terapêutico.
No entanto, pergunta-se se a arte não é assim
vivenciada pela profundidade que a arte assume. Essa
hipótese é pertinente, suscita questões para pesqui-
sas posteriores que possam estabelecer diferencia-
ções no poder terapêutico da arte segundo variações
na profundidade de sua vivência, levando-se em con-
ta as diferenças pessoais.
Com relação ao aspecto da consciência
metafísica, que para os filósofos antigos era a apre-
ensão das essências no Mundo Inteligível, deve-se
ressaltar que a estrutura do vivido, conforme a pes-
quisa, aponta a arte como forma de conhecimento de
uma outra realidade, diferente da habitual, o que co-
incide com as afirmações filosóficas. Essa realidade
diversa pode ser vivenciada como captação de uma
verdade cósmica, ou o transporte para outro mundo,
ou contato com o Todo ou Deus. Esse é um aspecto
de transcendência.
Além disso, o processo que desfocaliza o eu,
direcionando a maior consideração com o outro em
virtude da percepção do poder transformador da arte,
pode ser compreendido como um aspecto ético inte-
ressante. É-se levado a pensar que uma intimidade
com a arte conduziria ao exercício do bem e a uma
preocupação social. Um estudo anterior (McNiff,
1977) aponta para o desejo de artistas de usarem a
arte como veículo para mudança social, estabelecen-
do padrões éticos. Nesse sentido, a afirmação dos
filósofos sobre a interdependência da tríade Bem,
Beleza e Verdade parece ter respaldo na vivência
dos artistas, considerando-se que beleza e arte cami-
nham juntas, ainda que a conotação filosófica não seja
nesses termos. Talvez se possa dizer que os filósofos
captaram algo verdadeiro sobre o fenômeno e elabo-
raram suas asserções.
No que tange a intimidade e familiaridade com
aspectos fantasiosos, imaginativos, caóticos, absurdos
do ponto de vista lógico-racional, vividos pelos artitas,
ressalta-se que o caos é apontado por alguns como
inerente ao próprio processo criativo, pois é de onde
emergirá o novo, que é a obra (May, 1992; Pereira,
1976) e a imaginação também é vista como ingredien-
te essencial (Allen, 1995; May, 1975; McNiff, 1998;
Rhyne, 1996). Rogers (1999) fala da abertura à expe-
riência em indivíduos criativos; o que concorda com a
abrangência de elementos imaginativos, fantasiosos,
sem rigidez perceptual, numa congruência entre as-
pectos sensoriais e sua simbolização na consciência.
Esse lado, que parece desenvolvido pela arte, remete
a reflexões sobre aspectos do ser humano saudável.
Pergunta-se se não se estaria relegando isto a um se-
gundo plano nas escolas e no contexto social mais
amplo, o que condiz com afirmação de May (1992) de
que “O futuro de nossa civilização, sua sobrevivência
e sua saúde, é inseparável do futuro de sua arte”
(p.171).
Referências
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dade. Rio de Janeiro: Imago.
Winnicott,D. W. (1990). O ambiente e os pro-
cessos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas.
Artigo baseado em uma Dissertação de
Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação
da PUC-Campinas em Dezembro de 2001, com apoio
financeiro do CNPq.
Giuliana Gnatos Lima Bilbao

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O diálogo com a obra de arte na escola
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Campanha "Hope ensina": Uma análise dos estereótipos e ideologia envolvidas.
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  • 1. 91 OARTISTAE SUAARTE: UM ESTUDO FENOMENOLÓGICO1 Giuliana Gnatos Lima Bilbao2 Vera Engler Cury Pontifícia Universidade Católica de Campinas Resumo: Este estudo tem por objetivo apreender a estrutura do vivido do artista e sua arte e as decorrências para a Psicologia. Foram gravados 9 (nove) depoimentos de artistas de diferentes áreas, posteri- ormente submetidos aos passos do método fenomenológico, incluindo leitura inicial para apreensão do todo, releituras para apreensão de unidades de significado, compreensão psicológica das unidades de significado, síntese específica de cada depoimento e, por fim, síntese geral dos depoimentos. A síntese geral, abarcando as vivências de todos os participantes, delineou aspectos positivos da arte: auto-conhecimento; integração da personalidade; transformação de valores e afetos; transcendência da realidade cotidiana. Os resultados apon- tam para uma consideração da criatividade como componente da saúde e da prática de uma atividade artística como facilitadora do desenvolvimento psicológico, abrindo perspectivas para novos estudos sobre arte, que vem sendo associada a processos psicoterapêuticos na atualidade. Palavras-chave: arte; artista; arte-terapia; pesquisa fenomenológica. THE ARTIST AND HIS ART: A PHENOMENOLOGICAL STUDY Abstract: The objective of this research is to describe the elements which are part of the experience of artists, comprehending the structure of experiences and the consequences for Psychology. Nine depositions have been recorded from artists of different areas and they were all submitted to the steps of the phenomenological method, including a first reading in order to get a general sense, further readings aiming the apprehension of meaning units within a psychological perspective, a synthesis of each deposition and, finally, a synthesis of all depositions. The results show positive aspects of art: self-knowledge; integration of personality; transformation of values and affections; transcendence of the quotidian reality.These data point to a consideration of creativeness as health and the practice of an artistic activity promoting psychological growth, opening perspectives for new researches in art, which has been lately associated to psycotherapeutic processes. Key words: art; artist; art therapy; phenomenological research. Introdução: É preciso ter em mente que, na filosofia antiga, as reflexões que versavam sobre a Arte consideravam não só suas relações com a Be- leza e a realidade natural, como também com a mo- ral e a evolução espiritual (Bosi, 1991; Lacoste, 1986; Nunes, 1966). A arte tinha justificativa em suas relações com a moral e valia na medida em que possibilitasse ao homem uma evolução espiritual, cujo alcance verda- deiro dar-se-ia através das Idéias existentes num mundo à parte. A arte, se pudesse refletir, ainda que não plenamente, a Beleza que era uma Idéia, única, imutável, presente nesse mundo à parte, poderia ser- vir de “degrau” na escalada espiritual. Contudo, de maneira geral, ela refletia a natureza propriamente dita, uma cópia denegrida do mundo imutável e, por- tanto, acabava por atrelar o homem ao mundo corri- queiro, mutável – chamado Sensível pelos filósofos – impedindo sua ascensão espiritual. A arte estava, então, de maneira indireta, relacionada a outros va- lores na sociedade grega, não sendo vista e refletida em si mesma. 1 Artigo recebido em 10/10/2005 e aceito para publicação em 29/ 12/2005. 2 Endereço para correspondência: Giuliana Gnatos Lima Bilbao, Av. Dr. Francisco Mais, 426 , Bairro Novo Chapadão , Campinas – SP, CEP: 13066-330, E-mail: lgglima@uol.com.br Paidéia, 2006, 16(33), 91-100
  • 2. 92 Numa direção oposta, o filósofo Schiller (1995) traz uma concepção interessante sobre o fazer arte, desvinculando o impulso lúdico (inerente ao fazer ar- tístico) da moral ou de qualquer outro valor, fazendo a arte valer por si: “pois a beleza não oferece resultados isolados nem para o entendimento nem para a vontade, não realiza, isoladamente, fins intelectuais ou morais, não encontra uma verdade sequer, não auxilia nem mesmo o cumprimento de um dever, e é, numa palavra, tão incapaz de fundar o caráter quanto de iluminar a mente. Pela cultura estética, portanto, permanecem inteiramente indetermina-dos o valor e a dignidade pessoais de um homem, à medida que estes só podem depender dele mesmo, e nada mais se alcançou senão o fato de que, a partir de agora, tornou- se-lhe possível pela natureza fazer de si mesmo o que quiser – de que lhe é completamente devolvida a liberdade de ser o que deve ser .”(p.110) Num sentido contrário ao da filosofia antiga, que apregoava que o fazer artístico distanciava o ho- mem do Bem e da Verdade, das Idéias e da perfei- ção, Schiller (1995), ao contrário, enfatiza que a pró- pria humanidade é decorrente da liberdade conquis- tada pelo impulso lúdico. Ele afirma que a humanida- de já existe como predisposição, mas na medida em que o homem perde a liberdade, desenvolvendo de maneira unilateral a sensação ou o pensamento, per- de também sua humanidade. Somente o impulso lúdico pode reconstituí-la. Sob outro aspecto, o estudo da filosofia traz três definições tradicionais da arte: arte é fazer, arte é exprimir e arte é conhecer (Bosi, 1991; Pareyson, 1966; Frayze-Pereira, 1994). Com relação à primeira definição, pode-se ave- riguar que a dimensão do fazer encontra-se presente desde o aspecto etimológico das palavras que desig- nam arte. A palavra tekné, denominação grega da arte, significa modo exato de fazer uma tarefa (Bosi, 1991); a palavra póiesis, significando produção, cria- ção, traz implícito um fazer; e a Ars, matriz latina do português arte, está na raiz do verbo articular, deno- tando a ação de fazer junturas entre as partes de um todo (Bosi, 1991). A segunda definição afirma que arte é expri- mir. Bosi (1991) utiliza três termos para diferenciar os níveis de expressão: efusão, símbolo e alegoria. Se alguém chora pela perda de um amigo, sua expres- são está no nível de efusão; se escreve um poema, sua expressão está no nível do símbolo e, se constrói uma estátua com o desenho de uma águia como sím- bolo de força e ousadia – virtudes do amigo- então, sua expressão está no nível da alegoria. Em todos os modos de expressão há um sentimento, mas ele é diretamente expresso no nível da efusão, indiretamente no da alegoria e intermediário no simbólico. Cabe ressaltar essa questão da distância entre o resultado da expressão (signo exterior) e a força correspondente (sentido interno, que pode ser emo- ção, idéia). Quanto maior a distância, maior a dificul- dade em fazer uma correspondência direta. Em de- corrência disso, existe uma relação assimétrica entre o signo exterior e o sentido interno, isto é, um mesmo exterior pode ter vários sentidos internos e um mes- mo interno pode corresponder a vários externos, de modo que não se pode derivar a forma poética dire- tamente dos sentimentos do poeta (Bosi, 1991; Focillon,1983). Pelo fato de a arte ser composta de símbolos, para chegar ao sentido interno, é necessário um tra- balho de decodificação que possa, com propriedade, estabelecer o sentido interno correspondente ao sig- no externo, um processo que anule a distância e per- mita uma correspondência plausível, que seria a in- terpretação. Porém, segundo Bosi (1991), no momento da realização da obra, a força e a forma, a emoção e o signo, não estão dissociados, e “a necessidade de in- terpretar decorre da distância que medeia o fenôme- no simbólico e suas raízes emotivas” (p.52) Então, compreendendo o fenômeno expressi- vo dessa maneira, a unificação inerente a ele dispen- saria interpretação, pois ela própria fornece a com- preensão. De fato, segundo Pareyson (1966), o que acontece em arte é que não há forma que não seja conteúdo, e conteúdo que não seja forma; o resultado artístico é um conteúdo expresso em forma e, “preci- samente porque o artista resolveu toda vontade ex- pressiva,significativaecomunicativanofazer,nogesto formativo, na atividade operativa... por isso tudo, em Giuliana Gnatos Lima Bilbao
  • 3. 93 arte, até a coisa aparentemente irrelevante diz, signi- fica, comunica alguma coisa” (p.61) Passando à concepção da arte como conheci- mento tem-se, segundo Pareyson (1966), que esse aspecto não é tão importante quanto o do fazer, e é lamentável que, a partir do Renascimento, a tarefa da arte tenha sido enfatizada como contemplação, desviando as atenções para esse aspecto menos re- levante que seu ato executivo. Diz ele : “O quanto esse “espiritualismo artístico” é inadequado, sabem- no bem os artistas, às voltas com a matéria e a técni- ca de sua arte, e com a obra que exige ser feita, exe- cutada, realizada”(p.31). Segundo Pareyson (1966) e Nunes (1966), não podem ser feitas abstrações sobre o conhecimento oriundo da arte ignorando sua característica essencial:a forma. Na concepção desses autores, se há um conhecimento que advenha da arte, ele não deve se encontrar separado da própria forma, mas existir enquanto forma particular, sensível e concre- ta. Há analogia entre o processo do conhecimento e o da criação artística, unindo fazer e conhecer. Arte, doença mental e saúde mental Em fins do século XIX, quando psiquiatras re- velaram interesse pelas produções plásticas dos insanos e começaram a estudá-las, iniciou-se a cone- xão entre arte e doença mental. Dentre os que se destacaram por um período de quase duas décadas nesses estudos, podem ser citados os franceses Ambroise Tardieu, Paul-Max Simon, Marcel Reja. Segundo Malchiodi (1998), esse movimento come- çou em 1872, quandoAmbroise Tardieu publicou um livro sobre doença mental em que relatava quais eram, no seu modo de ver, as características do trabalho artístico produzido pelos então chamados insanos. Um pouco mais tarde, entre os anos de 1876 e 1888, Paul-Max Simon publicou uma série de estu- dos sobre os desenhos de doentes mentais. Ele tem sido considerado “pai da arte e da psiquiatria”; foi um dos primeiros psiquiatras a reunir uma coleção de desenhos e pinturas de pacientes psiquiátricos. Ele acreditava que os sintomas se associavam ao con- teúdo do trabalho artístico, apontando para uma dire- ção diagnóstica dos desenhos. Em 1912, dois psiquiatras europeus, Emil Kraepelin e Karl Jaspers, observaram que os dese- nhos dos pacientes podiam auxiliar a entender a sua psicopatologia, o que, na verdade, já havia sido operacionalizadocomosestudosdeSimon(Malchiodi, 1998). Até então, o interesse psiquiátrico voltava-se aos produtos artísticos e suas relações com o funcio- namento mental que, supostamente, estaria revelado nas obras. Em vista disso, alguns começaram a fazer pequenas coleções das obras dos pacientes, mere- cendo destaque a de Prinzhorn, psiquiatra alemão, que reuniu 5000 produções de internos de vários hospitais da Áustria, Suíça, Itália, África. Prinzhorn e Wilmanns, diretor da clínica psi- quiátrica de Heidelberg, onde trabalhavam, diferen- ciaram-se de outros psiquiatras da época em dois aspectos: primeiro, eles se interessaram pelo que ti- nham a dizer os pacientes sobre suas produções e assim chegaram mais perto do significado das artes para eles; segundo, pelo fato de Prinzhorn ser artista e historiador de arte, além de psiquiatra, seu interes- se voltou-se para as origens da arte propriamente, não se interessando tanto pela Patologia ou Psicolo- gia (Claussen, 1997). De qualquer forma, historicamente, as corres- pondências entre arte e mente continuaram a ser investigadas pelos estudiosos da saúde mental. Em 1900, Freud publicou a Interpretação dos Sonhos, dizendo que as imagens oníricas remeteriam ao fun- cionamento psicológico inconsciente na medida em que fossem traduzidas em termos de pulsões incons- cientes, desejos reprimidos, pela técnica psicanalítica da interpretação. Ainda que não pretendesse tratar da arte em sua teoria, Freud transpôs tal concepção para a apreensão da pintura, escultura e poesia, ana- lisando pormenorizadamente a Gioconda de Leonar- do da Vinci (1910), depois, o Moisés de Michelângelo (1914), não fazendo distinção entre arte, fantasia, sonho e devaneio, considerando todos eles como pro- jeções do inconsciente. Para Freud (1976), a arte é fruto de um me- canismo através do qual os impulsos sexuais reprimi- dos, por não serem aceitos, são desviados para uma meta alternativa de satisfação, socialmente aceita, pelo mecanismo da sublimação. Essa concepção fica cla- O Artista e sua Arte
  • 4. 94 ra na interpretação do sorriso da Mona Lisa, que, para ele revelava o inconsciente de Leonardo da Vinci, sua obsessão por esse sorriso, que se repetia em vá- rios quadros, evidenciando conflito não resolvido dos seus impulsos eróticos primitivos para com sua mãe. Antes mesmo de 1910, Freud postulava que a base da poesia era a fantasia do escritor e esta, por sua vez, era decorrente das insatisfações com o mundo externo. Suas considerações partiam da premissa de que “ a pessoa feliz nunca fantasia, somente a insa- tisfeita’’, pois, “As forças motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é realiza- ção de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória” (p. 152). Assim, pode-se deduzir que, na sua visão, tan- to um pintor quanto um escritor criativo estão proje- tando em sua arte significados pessoais inconscien- tes e tentando corrigir uma realidade frustrante. Tal apreensão é criticada, posteriormente, pelo filósofo Bachelard (1989), que assinala: “A imagem poética não está sujeita a um impulso. Não é o eco de um passado”(p. 2) bem como por psicólogos que aponta- ram para o caráter progressivo - e não regressivo – dos símbolos (May, 1975; Naumburg, 1966). Alguns avanços foram feitos do ponto de vista teóricopsicanalíticonosentidodecompreensãodaarte. Trinca (1995) classifica vários tipos de arte, segundo o funcionamento mental subjacente: a arte do esquizo- frênico, que traz embutida a cisão e a fragmentação do self; a da fusão, em que existe um amálgama de aspectos objetivos e subjetivos, e pode ir do fantasioso ao alucinatório; a oriunda da sublimação, em que há transformação de tendências recalcadas em estetizantes; a da posição depressiva, em que o mundo interno, repleto de objetos mortos e estragados é refei- to, transformando-se em obra de arte. Partindo do pressuposto teórico kleiniano da posição depressiva, além dos tipos supracitados, o autor propõe outro elevado e nobre, não comprometi- do com as turbulências da mente, que estaria além da posição depressiva. Em níveis regredidos, a arte se ligaria à dor mental, na medida em que o artista esta- ria sujeito às oscilações permanentes das posições esquizo-paranóide e depressiva; já o tipo elevado de arte seria resultado de uma superação da dor mental, alcançada pelo fato de ele ter lidado interiormente com situações psíquicas profundas, havendo supera- ção que envolveria transcendência das memórias, desejos, egocentrismo, condicionamentos. O artista ficaria numa atmosfera psíquica em que não haveria espaço para mágoas, paixões e frustrações; Trinca (1995) sugere que há uma libertação dos limites de espaço e tempo e impregnações sensoriais, um alar- gamento da consciência e “a realidade pode se mos- trar tal qual é, livre o mais possível da interferência de nossos próprios vértices de pensar” (p.19). Nesse silêncio da base sensorial, origina-se a experiência de imaterialidade, que provê uma aber- tura da mente para a ressignificação da realidade, disposição para nova relação espiritual, suprapessoal (Trinca, 1995). A arte, assim permitiria liberdade e o contato com “o sagrado que reside nas profundezas do mundo” (p.20). Relacionando a arte à experiência de imaterialidade, e colocando-a como possibilidade de se alcançar uma realidade verdadeira, ampliada e suprapessoal, existe aproximação de seus pensamen- tos com concepções filosóficas da arte que ressal- taram justamente esses aspectos. Ressaltam-se outros autores, além de Trinca (1995), que contribuíram para uma visão da arte mais ligada à saúde. Winnicott (1990) é uma figura de des- taque nesse sentido. Ele concebe que a vida cultural do homem – em que a arte se encontra - é o equiva- lente adulto dos fenômenos transicionais da criança, fazendo, a relação da arte com o brincar. No decorrer de sua obra, ele elabora várias considerações sobre a importância do brincar e da criatividade para a saúde mental, dando um passo além das considerações psi- canalíticas, cuja abordagem sobre esses aspectos re- duzia-se à noção de sublimação de instintos. Na visão desse autor, a importância do brincar reside no inter-jogo entre a realidade psíquica e a externa, uma atividade em área intermediária de ex- periência, que mescla subjetividade e objetividade. Winnicott (1975) interessava-se pela experiência em si, e não pelos produtos ou conteúdo da brincadeira ou da arte, como faziam os psicanalistas de seu tem- po, fato que critica, e afirma que “o brincar é por si mesmo uma terapia” (p.74) e “uma terapia de tipo profundo pode ser efetuada sem trabalho interpretativo” (p.75), mostrando a importância do brincaremsimesmo.Dopontodevistadacriatividade, Giuliana Gnatos Lima Bilbao
  • 5. 95 ele compreendia que ela deve ser considerada como “uma coisa em si” (p.100), necessária a um artista mas presente em toda pessoa que se inclina criativa- mente na apreensão da realidade externa. Vale lembrar que Jung (1997) também descre- veu o valor artístico em si e utilizou as representa- ções produzidas por seus pacientes nas sessões. Se- gundo Philippini (1995), a abordagem junguiana parte da premissa de que o homem é orientado por símbo- los, a arte-terapia facilitaria a compreensão e resolu- ção de estados afetivos conflituosos ao permitir a cri- ação; por ela o homem entraria em contato com os símbolos a serem compreendidos e transformados; assim a arte é uma função psíquica natural, com pa- pel estruturante. Já na visão de Carl Rogers (1999), psicólogo humanista e fundador da Abordagem Centrada na Pessoa, a criatividade está relacionada à tendência atualizante, força inerente ao organismo em direção à saúde; para ele quando um indivíduo encontra-se aberto à experiência, podendo experimentar idéias, emoções que antes se encontravam rigidamente ne- gadas à consciência, quando encontrou um centro interior de avaliação, sendo o juiz das suas ações e emoções, lidando livremente com idéias e conceitos, ele é um ser criativo. Maslow (1973), outro psicólogo humanista, en- tende a criatividade humana como decorrente da saú- de, num sentido semelhante ao de Rogers (1999). As pessoas sadias satisfazem suas necessidades básicas de segurança, filiação, amor, respeito e amor próprio, de modo que passam a ser motivadas para a realiza- ção de suas capacidades e talentos; no processo de individuação, o auge seria um funcionamento mais ple- no do indivíduo com conseqüente aumento da criatividade.Noentanto,Maslow(1973),diferentemen- te de Rogers (1999), define a criatividade em termos mais episódicos do que como característica de deter- minada etapa alcançada e, nesse sentido, sua concep- ção é ainda mais abrangente, não se restringindo às pessoas saudáveis. Partindo desses pressupostos, abor- da a criatividade e a atividade artística pelo estudo do que denominou experiências culminantes. De fato, Maslow (1973) define as experiências criativas, artísticas, como aquelas em que o indivíduo experimentaum“episódiodeindividuação”(p.127),que pode ser equiparado a “uma visita a um Céu pessoal- mentedefinido,doqualretornadepoisàTerra(p.131)”. A pessoa, nessas experiências, sente felicidade e rea- lização supremas, sente-se no auge de seus poderes, livre de bloqueios, medos, autocríticas, sendo, conse- qüentemente, mais espontânea e auto-confiante, ca- racterísticas essas usualmente encontradas em pesso- as capazes de individuação, segundo observações clí- nicas de Maslow (1973). Dentre os psicólogos contemporâneos que se ativeram a questões da criatividade e arte, Rollo May (1975) explorou o tema com profundidade; ele partiu de seu contato com obras de artistas e com os artis- tas para formular suas considerações, o que é uma aproximação diferente das citadas anteriormente. Ele critica dois aspectos das teorias psicanalíticas de seu tempo sobre a criatividade: primeiro, o fato de essas teorias reduzirem a criatividade a outro processo qual- quer (como “regressão a serviço do ego”); segundo a consideração da criatividade como expressão de padrões neuróticos. O autor discorda “enfaticamen- te” dessas duas abordagens; ele diz que por existi- rem artistas com sérios problemas psicológicos isto não leva, necessariamente, que a arte seja um produ- to da neurose. Pelo contrário, o processo criativo deve ser estudado como “representação do mais alto grau de saúde emocional” (p39). May (1992) afirma que a vivência da beleza desperta qualidades que transcendem a morte e nos projetam para além do tempo e do espaço: “A beleza é a eternidade vinda à luz dentro da experiência” (p83); os artistas bem o sabem, criando obras que são eter- nas, e a arte, ao permitir essa vivência de eternidade, de transcendência, modifica a qualidade de vida e oportuniza a conscientização. Ela seria um ato lúdico integrador que, ao mesmo tempo, revela sua forma de ver o mundo. De sua vivência enquanto pintor, sente que participa do universo, sente prazer e vê-se como transmissor de nova visão da realidade. Há vários profissionais de renome internacio- nal que utilizaram recursos artísticos – pintura, escul- tura, música, dança, teatro - em contexto terapêutico. Surge, pois, em meados do século XIX, a arte-tera- pia, campo que abrange diversos tipos de práticas, baseadas em teorias psicológicas diversas e diferen- tes concepções de arte. O Artista e sua Arte
  • 6. 96 Dentre as existentes sobre o poder terapêutico do processo criativo, uma primeira é de que a arte é curativa, cicatrizante, restabelecedora.3 Segundo Malchiodi (1998), fazer arte gera auto-estima, enco- raja a experimentação, desperta novas habilidades e enriquece a vida, o que, por si só, já seria terapêutico. Além disso, o processo criativo conduz à individuação, aodesenvolvimentodospotenciaiseflexibilidade,além de oferecer oportunidade para crescimento e mudança de forma agradável. Para Natalie Rogers4 (1993) o processo psicoterápico e criatividade são ligados: o que é cria- tivo geralmente é terapêutico e vice-versa. A autora, utilizando os princípios da Abordagem Centrada na Pessoa e também recursos artísticos diversos reuni- dos sob a denominação de Person-Centered Expressive Therapy, parte da premissa de que men- te, corpo, emoção e espírito devem estar integrados no indivíduo saudável e, portanto, o processo terapêutico precisa oportunizar experiências que en- volvam todos esses aspectos. Outra personalidade de destaque no campo das arte-terapias5 é Rhyne (1996) que seguindo os prin- cípios da Psicologia da Gestalt e da Gestalt-Terapia, pratica o que denominou Experiência Gestáltica de Arte, em contexto terapêutico e educacional. Ele acre- dita que a experiência de criar em arte contribui para a clareza de insight. Partindo do pressuposto que é naturalmente humano fazer arte, ele busca recuperar essa parcela humana que é, muitas vezes, abafada e bloqueada no processo natural de crescimento. Pereira (1976) afirma que, na atividade artísti- ca, o artista sintetiza elementos de sua percepção e intuição e preocupa-se esteticamente com a escolha dos modos de expressão que mais favoreçam sua mensagem. Então, ao contrário de fortuito e ocasio- nal, o processo artístico é controlado pelo intelecto, segundo exigências estéticas.Assim, ao mesmo tem- po em que há o desprendimento de padrões antigos e mergulho em associações novas, há um rigor estéti- co. Ele diz que seus pacientes relataram mudanças no sono depois da arte-terapia: para uns, os pesade- los deixaram de existir e para outros a insônia dimi- nuiu. Ele, então assinala a possibilidade de mudanças no estado de consciência provocadas pela arte. Para Allen (1995), a arte é um meio de auto- conhecimento; não cura ou conserta, mas restabe- lece a conexão do indivíduo com o aspecto mais pro- fundo de si: a alma. O caminho da arte possibilita maior vivacidade e contato com emoções e intui- ções, mas requer coragem e curiosidade para contatar a imaginação. A arte permitiu-lhe a solu- ção de problemas, amenização de sofrimentos, enfrentamento de perdas, e também um profundo conhecimento de si .Andrade (1993, 1995), psicólo- go que realizou um extenso estudo sobre a prática da arte-terapia, também cita a arte como possibili- dade de auto-conhecimento. A conexão com a alma, como possibilidade ine- rente à arte, é assinalada, também, por McNiff (1988). Ela expressa, engaja e reestrutura a alma, asseme- lhando-se à terapia, ao xamanismo e à religião. Exer- cendo a mesma função de um sacramento, ela faz a alma acessível a sentidos, permite consciência dos propósitos coletivos.Aalma, a seu ver, é algo de mis- terioso e profundo, próximo ao que se passou a cha- mar “inconsciente” na Psicologia. Para este autor o processo criativo permite a livre experimentação, exercitando a imaginação; por sua vivência como artista e pesquisador, admite que o processo criativo traz benefícios e pode modificar o criador e afirma que este implica em mergulho no des- conhecido, requer confiança do criador, que é, sobre- tudo, dinâmico, surgindo a partir do próprio fazer e não de um planejamento pré-concebido. McNiff (2000) atribui à arte um poder de conhecimento do mundo, diferente do intelectual. Por isso, o fazer artístico, a imaginação, as metáforas, podem ser utilizados como meio de conhecimento de certos fenômenos humanos. Nesse sentido, a arte é, pois, um método. Em uma pesquisa feita por McNiff (1977), in- vestigando as motivações dos artistas com relação à arte, foram entrevistados 100 artistas, adultos e crian- ças; ele constatou que a motivação para a arte está vinculada a impulso de competência dentro do contex- to de um meio material específico, para explorar novas situações, por desejo de prazer estético, de usar a arte como veículo para mudança social, estabelecendo pa- drõeséticos,deusá-lacomomeiodeconfrontaromedo eosofrimento,intensificaçãodavida,dealcançaraimor- talidade através de seu trabalho, pela necessidade de 3 Traduções possíveis para o termo healing, frenqüente na bibliogra- fia estrangeira. 4 Natalie Rogers é filha de Carl Rogers. 5 O termo é usado no plural devido à adversidade do campo e à falta de especifidade do termo arte-terapia em sua forma singular. Giuliana Gnatos Lima Bilbao
  • 7. 97 comunicaçãodesentimentoseinteraçãocomoutros,de reconhecimentosocial;porpropósitosespirituais. Método Os participantes deste estudo foram artistas adultos, 4 do sexo masculino e 5 do sexo feminino, com idades entre 27 e 57 anos, cujo envolvimento com a modalidade artística fosse fundamental em suas vidas, portanto, todos tinham contato profundo com a arte; então, a fama ou o tempo como artista não fo- ram critérios relevantes para a participação na pes- quisa, mas sim a arte vivenciada como algo funda- mental, sendo provenientes das modalidades: teatro, pintura, dança, escultura, poesia e música. O primeiro contato com os artistas aconteceu por telefone ou pessoalmente, momento em que se fez uma breve apresentação do trabalho e o convite à participação. Os depoimentos foram colhidos no habitat de cada artista, ou seja, no local onde acontecem suas produções. Houve uma pergunta disparadora: “Como você vive a arte ?” e o participante discorria livre- mente sobre sua experiência em relação ao tema. Os depoimentos foram gravados, transcritos e procedeu-se, posteriormente, aos passos metodológicos descritos por Giorgi (1985) para aná- lise: 1- leitura dos depoimentos integralmente para apreensão do todo; 2- releituras dos depoimentos, tantas vezes quantas necessárias, com o objetivo de apreender Unidades de Significado, que, vale res- saltar, não se encontram prontas no texto, mas refe- rem-se aos significados que se aproximam do inte- resse do pesquisador, tendo em vista o fenômeno estudado. Elas se diferenciam umas das outras na medida em que existe mudança de significado, com foco no fenômeno estudado; 3-elaboração de uma Compreensão, transcrevendo o significado em lin- guagem psicológica, com ênfase ao fenômeno in- vestigado; 4-elaboração de uma Síntese Específica do depoimento, que traduz a essência do fenômeno. Após esses passos, procedeu-se à elaboração de uma Síntese Geral baseada nas específicas, buscan- do contemplar os significados comuns aos artistas e apreender a essência do fenômeno. Resultados e Discussão A estrutura do experienciado, em relação ao fe- nômeno de vivência do artista, revelou que a arte é per- cebida como uma atividade fundamental e necessária. A experiência artística, tal como vivenciada na pesquisa, tem relações com o que Maslow (1973) denominou de culminante, na medida em que é auto- validada e semelhante a uma “visita ao céu”. A sen- sação de aumento de poder, força ou energia, relaci- ona-se à descrição das experiências culminantes em que o indivíduo sente-se no “auge dos seus poderes”. Dentre as funções que os artistas atribuem à arte, o auto-conhecimento, mencionado por vários autores da arte-terapia (Allen, 1995; Rhyne, 1996; Naumburg, 1966; Halprin, 2000; McNiff, 1998; Rogers, 1993; Andrade, 1995) parece ser relevante e parte natural do exercício da própria arte, bem como a compreensão de aspectos criativos, da auto-ima- gem, das limitações, dos valores, idéias, sensações e emoções seriam inerentes à vivência da arte, ainda que cada artista o faça de forma particular. Com relação à superação e ao movimento de aperfeiçoamento constantes, buscando o esteticamen- te coerente e melhor, pode-se pensar em auto-desen- volvimento e superação de si mesmo como caracte- rísticas da pessoa metamotivada, conforme assinala Maslow (1973); ela estaria motivada à auto-realiza- ção e ao desenvolvimento de seus potenciais através da arte. Por isso esta é vivenciada como uma neces- sidade, ainda que não básica. De certa forma, também Jung (1997) concebe o próprio processo de auto-desenvolvimento, deno- minado individuação, como envolvendo a criatividade e a concretização de imagens que possibilitam um contato mais profundo com o inconsciente pessoal e coletivo, favorecendo o crescimento. Do ponto de vista filosófico, vale questionar se esse movimento de aperfeiçoamento não poderia ser compreendido como característico da evolução espiritual que se consegue alcançar através da bele- za, uma asserção desenvolvida por filósofos que viam como possível, através da arte, alcançar a perfeição, a verdade, a essência das coisas. Com relação à característica integradora da arte, presente na estrutura do vivido dos participan- tes, pode-se afirmar que filósofos como Pareyson (1966), que concebem a arte como conteúdo formatado, acabam por juntar os aspectos racional e emocional, objetivo e subjetivo dela, concentrando- os. Esse ponto integrador também está de acordo com as formulações de Winnicott (1975), May (1975) e O Artista e sua Arte
  • 8. 98 do filósofo Schiller (1995), quando mencionam a ple- nitude humana alcançada pelo impulso lúdico. Cabe salientar a arte usada para alívio de ten- são, ou de algum tipo de mal-estar psicológico. Tais vivênciasrelacionam-secomorelatodearte-terapeutas como McNiff (1998), Rhyne (1996) e Allen (1995), que declaram utilizá-la para benefício próprio e de seus pacientes. Num mesmo sentido, May (1992) discorre sobre a exposição às potencialidades de cura que a arte promove e McNiff (1977) constata entre artistas apossibilidadedetê-lacomomeiodeconfrontaromedo e o sofrimento. De fato, a palavra “remédio” foi, inclu- sive, referida por alguns artistas da pesquisa. Com relação ao prazer da experiência, obser- va-se que este se mostra inexorável na vivência dos artistas, aproximando-se de Maslow (1973), com sua descrição das experiências culminantes. Quanto à possibilidade de exercer a própria li- berdade, Schiller (1995) afirma que só através do exercício do impulso lúdico, o homem pode ser livre, sendo incontestável a liberdade proposta nos contex- tos de arte-terapia. Com relação aos obstáculos enfrentados pelos participantes para a realização da arte, impostos pela família,pelamarginalizaçãosocialoupelaprópria arte, que exige superação de limites pessoais e contato com o desconhecido, pode-se dizer, de maneira geral, que arte envolve coragem, nos termos de May (1975) e Allen (1995). Face à não aprovação social da arte, discute-se a questão da sublimação, pois os resulta- dos da pesquisa parecem apontar para um possível rechaço social, em dissonância com o conceito de sublimação, pelo qual a arte seria uma satisfação al- ternativa de impulsos sexuais com decorrente apro- vação social e adaptação ao processo civilizatório. Existe, de fato, na vivência de alguns artistas, a cana- lização de aspectos pessoais, não expressos na vida real, por dificuldades ou por desaprovação. Contudo, tais aspectos referem-se à criatividade, espontanei- dade e auto-expressão e não propriamente à sexuali- dade. Questiona-se se seria a criatividade a expres- são pessoal rechaçada pela sociedade. A frase de Pereira (1976)diz: “E o que se reprime no homem talvez não seja a sexualidade, nem a agressão, mas a essência de sua natureza: uma vida pregnante de li- berdade e de consciência cósmica”(p11). A característica transformadora parece rele- vante na vivência da arte e é confirmada por alguns autores. De forma genérica, a arte associada à evo- lução espiritual, conforme concepções filosóficas, traz implícita a idéia de transformação. Na Psicolo- gia, autores citam que o fazer arte modifica o mun- do interior (Jung, 1997; McNiff, 1998; Rhyne (1996); May, 1992; Andrade, 1993, 1995; Pereira, 1976; Allen, 1995). Para alguns, a vivência de transfor- mação é sentida de maneira intensa, profunda, dan- do à arte um caráter de salvação. Salienta-se que a arte foi um meio que os participantes desta pesqui- sa encontraram para estar no mundo de maneira adaptada e feliz. Uns encontraram nela um meio de expressão de características represadas, outros de auto-desenvolvimento, de preservar suas caracte- rísticas espontâneas e infantis e, ainda, uma forma de sobreviver num mundo considerado desagradá- vel e hostil. Assim, houve uma transformação adaptativa e, ao mesmo tempo, prazerosa. Pode-se, pois, com- preender esses movimentos como saudáveis, atualizantes, no sentido descrito por Rogers (1999). Certamente, isso vem ao encontro das afirmações que mostram como a criatividade é saudável, que seu exercício exerce papel importante na saúde do indivíduo (Winnicott, 1975; May, 1975; Maslow, 1973; Rogers, 1999; Andrade, 1995; Allen, 1995; Rogers, 1993; McNiff, 1998; Rhyne, 1996; Halprin, 2000) e que sua ausência pode estar associada à doença psicológica (Winnicott, 1975; Rhyne,1996; McNiff, 1998). A questão da consciência através da arte pa- rece relevante em dois níveis: primeiro, pela altera- ção de estados de consciência; segundo, pela maior conscientização de si e dos outros. A alteração do estado de consciência aparece nas afirmações sobre insônia posterior à criação, aumento da energia, po- der ou lucidez com a criação, maior velocidade de raciocínio, abertura sensível face à realidade e a sen- sação de uma outra atmosfera em que a densidade ou o tempo são diferentes. Quanto à ampliação da consciência, alguns au- tores creem que a arte a possibilita, num nível pessoal (Rhyne,1996;Allen,1995;McNiff,1998;Rogers,1993; Halprin, 2000); outros enfatizam o nível coletivo e su- pra-pessoal (Rogers, 1993; Pereira, 1976; May, 1975; Giuliana Gnatos Lima Bilbao
  • 9. 99 Trinca, 1995), que se pode chamar de trans-pessoal, e que seria o equivalente ao metafísico, na linguagem filosófica. Segundo a vivência dos artistas, essa cons- ciência implica o conhecimento de uma nova realida- de, seja ela pessoal, coletiva ou, ainda, metafísica. De forma geral, as características de auto-co- nhecimento, transformação e ampliação da consci- ência evidenciadas pela pesquisa parecem condizer com as afirmações de arte-terapeutas, ainda que o contexto de suas observações tenha sido prioritaria- mente o terapêutico e os que deram origem às asserções eram pacientes e não artistas. Assim sen- do, a constatação de tais características na vivência da arte justificaria sua inclusão no processo terapêutico com o intuito de favorecê-lo e esclarece cientificamente os pressupostos dos arte-terapeutas segundo os quais ela tem, por si só, poder terapêutico. No entanto, pergunta-se se a arte não é assim vivenciada pela profundidade que a arte assume. Essa hipótese é pertinente, suscita questões para pesqui- sas posteriores que possam estabelecer diferencia- ções no poder terapêutico da arte segundo variações na profundidade de sua vivência, levando-se em con- ta as diferenças pessoais. Com relação ao aspecto da consciência metafísica, que para os filósofos antigos era a apre- ensão das essências no Mundo Inteligível, deve-se ressaltar que a estrutura do vivido, conforme a pes- quisa, aponta a arte como forma de conhecimento de uma outra realidade, diferente da habitual, o que co- incide com as afirmações filosóficas. Essa realidade diversa pode ser vivenciada como captação de uma verdade cósmica, ou o transporte para outro mundo, ou contato com o Todo ou Deus. Esse é um aspecto de transcendência. Além disso, o processo que desfocaliza o eu, direcionando a maior consideração com o outro em virtude da percepção do poder transformador da arte, pode ser compreendido como um aspecto ético inte- ressante. É-se levado a pensar que uma intimidade com a arte conduziria ao exercício do bem e a uma preocupação social. Um estudo anterior (McNiff, 1977) aponta para o desejo de artistas de usarem a arte como veículo para mudança social, estabelecen- do padrões éticos. Nesse sentido, a afirmação dos filósofos sobre a interdependência da tríade Bem, Beleza e Verdade parece ter respaldo na vivência dos artistas, considerando-se que beleza e arte cami- nham juntas, ainda que a conotação filosófica não seja nesses termos. Talvez se possa dizer que os filósofos captaram algo verdadeiro sobre o fenômeno e elabo- raram suas asserções. No que tange a intimidade e familiaridade com aspectos fantasiosos, imaginativos, caóticos, absurdos do ponto de vista lógico-racional, vividos pelos artitas, ressalta-se que o caos é apontado por alguns como inerente ao próprio processo criativo, pois é de onde emergirá o novo, que é a obra (May, 1992; Pereira, 1976) e a imaginação também é vista como ingredien- te essencial (Allen, 1995; May, 1975; McNiff, 1998; Rhyne, 1996). Rogers (1999) fala da abertura à expe- riência em indivíduos criativos; o que concorda com a abrangência de elementos imaginativos, fantasiosos, sem rigidez perceptual, numa congruência entre as- pectos sensoriais e sua simbolização na consciência. Esse lado, que parece desenvolvido pela arte, remete a reflexões sobre aspectos do ser humano saudável. Pergunta-se se não se estaria relegando isto a um se- gundo plano nas escolas e no contexto social mais amplo, o que condiz com afirmação de May (1992) de que “O futuro de nossa civilização, sua sobrevivência e sua saúde, é inseparável do futuro de sua arte” (p.171). Referências Allen, P. (1995). Art is a Way of Knowing. Boston: Shambala. Andrade, L. Q. (1993). Terapias Expressi- vas: Uma Pesquisa de referenciais Teórico-Prá- ticos. Tese de Doutorado – IP USP, São Paulo. Andrade, L. Q. (1995). Linhas teóricas em arte- terapia. Em A Arte Cura? Recursos Artísticos em Psicoterapia. São Paulo: Editorial Psy II. Bachelard, G. (1989). A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes. Bosi, A. (1991). Reflexões sobre arte. São Paulo: Ática. Claussen, B. (1997). Beyond Reason: Art and Psychosis. LosAngeles:UniversityofCaliforniaPress. Focillon, H. (1983). A vida das formas. Rio de Janeiro: Zahar. O Artista e sua Arte
  • 10. 100 Frayze -Pereira, J. (1994).A alteridade da arte: estética e psicologia. Em Psicologia USP, v. 5 n. 1/ 2, 35-60. Freud, S. (1976). A interpretação de sonhos. Em Obras Completas de Sigmund Freud, vol. IV, Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1976). Leonardo daVinci e uma lem- brança da sua infância. Em Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XI, Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1976). Escritores criativos e deva- neio. Em Obras Completas de Sigmund Freud, vol. IX, Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1976). O Moisés de Michelangelo. Em Obras Completas de Sigmund Freud, vol XI, Rio de Janeiro: Imago. Giorgi, A. (1985). Phenomenology and Psychological research. Pittsburg: Duquesne University Press. Halprin, D. (2000). Living artfully: movement as an integrative process. Em Foundations of Expressive Arts Therapy. Philadelphia: Jessica Kingsley Publishers. Jung, C. G. (1997). O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes. Lacoste, J.(1986). A filosofia da arte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Malchiodi, C. A. (1998). The Art Therapy Sourcebook. Illinois: Lowell House. Maslow, A. (1973). Introdução à Psicologia do Ser. Rio de Janeiro: Eldorado Tijuca. May, R. (1975). A coragem de Criar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. May, R. (1992). Minha busca da beleza. Petrópolis: Vozes. Mcniff, S. (1977). Motivation in art. Art Psychotherapy, 4,125-136. Mcniff, S. (1988). The Shaman Within. The arts in Psychotherapy, 15,285-291. Mcniff, S. (1998). Trust the Process. Boston: Shambala. Mcniff, S. (2000). Art-Based Research. Lon- dres: Jessica Kingsley Publishers. Naumburg, M. (1966). Dinamically Oriented Art Therapy: Its Principles and Practice. Chicago: Magnolia Street Publishers. Nunes, B. (1966). Introdução à filosofia da arte. São Paulo: Editora da USP. Pareyson, L. (1966). Os problemas da estéti- ca. São Paulo: Martins Fontes. Pereira, R. C. C. (1976). A Espiral do Sím- bolo. Petrópolis: Vozes. Philippini, A. (1995). Universo Junguiano e Arteterapia. Imagens da Transformação Revista de Arteterapia, v. 2, n.2, p. 4-11. Rhyne, J. (1996). Arte e Gestalt: padrões que convergem. São Paulo: Summus. Rogers, C. R. (1999). Tornar-se Pessoa. São Paulo: Martins Fontes. Rogers, N. (1993). The creative Connection. California: Science & Behavior Books Inc. Schiller, F. (1995). A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras. Trinca, W. (1995). Arte e superação da dor mental. Insight psicoterapia. 57, 17-20. Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a reali- dade. Rio de Janeiro: Imago. Winnicott,D. W. (1990). O ambiente e os pro- cessos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. Artigo baseado em uma Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação da PUC-Campinas em Dezembro de 2001, com apoio financeiro do CNPq. Giuliana Gnatos Lima Bilbao