SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 8
Baixar para ler offline
Qual o sentido de se publicar nos nossos dias um texto sobre arte moderna de
1960? A simples documentação de uma tendência interpretativa já seria uma justificativa
— sobretudo quando se trata de trabalho de um dos mais importantes críticos deste sé-
culo. No entanto, podemos exigir mais. Em função dos rumos que a arte contemporânea
vem tomando, este ensaio de Giulio Carlo Argan ganha uma dimensão extremamente
atual. O recente debate sobre modernismo e pós-modernismo — a que Novos Estudos
CEBRAP tem tentado dar subsídios, com a publicação de alguns artigos de importância,
como o de Alberto Tassinari (vol. 2 nº4), o de Fredric Jameson (nº12) e o de Perry An-
derson (nºl4) — tem trazido à tona algumas interrogações que, se mal delineadas, não
passarão de falsos problemas. A renovada oposição entre sensação e estrutura, esponta-
neidade e racionalismo, visão mítica e clareza formal, realização artesanal e impessoali-
dade parece querer reatualizar, um tanto canhestramente, a tão pouco histórica polarida-
de entre romantismo e classicismo que Argan, ao passar em revista as fontes do moder-
nismo, soube mediar de forma admirável.
Giulio Carlo Argan nasceu em Turim, em 1909, e formou-se sob a orientação de
Lionello Venturi, um dos mais importantes historiadores da arte da Itália. Publicou vá-
rios ensaios e monografias sobre questões e artistas contemporâneos, bem como sobre
realizações do Renascimento e do Barroco. De 1976 a 1979 foi prefeito de Roma, eleito
como independente pela lista do Partido Comunista. "As Fontes da Arte Moderna" per-
tence ao livro Salvação e Queda na Arte Moderna, que a editora Marco Zero — a quem
agradecemos a cessão dos direitos — deverá publicar proximamente. (RN)
"Arte Moderna" não significa arte contemporânea, ou então arte do nosso século
ou dos nossos dias. Há um período, ao qual atualmente nos referimos como o das "fon-
tes do século XX", em que se pensou que a arte, para ser arte, deveria ser moderna, ou
seja, refletir as características e as exigências de uma cultura conscientemente preocupa-
da com o próprio progresso, desejosa de afastar-se de todas as tradições, voltada para
a superação contínua de suas próprias conquistas. A arte deste período é também conhe-
cida como "modernista" — programaticamente moderna e portanto consciente da ne-
cessidade de desenvolver-se em novas direções, com freqüência contraditórias em rela-
ção às anteriores. O ponto de ruptura na tradição artística é representado pelo impres-
sionismo: o movimento moderno na arte européia começa quando se percebe que o
SETEMBRO DE 1987 49
Giulio Carlo Argan
Tradução:RodrigoNaves
AS FONTES DA ARTE MODERNA
impressionismo mudou radicalmente as premissas, as condições e as finalidades do tra-
balho artístico. Coloca-se então o problema da avaliação da dimensão histórica do im-
pressionismo, e em primeiro lugar procura-se esclarecer se o impressionismo orientava-
se por uma tendência clássica ou romântica, ou se resolvia (e como) a antítese destas
duas posições, não mais consideradas como situações históricas determinadas e sim co-
mo eternas polaridades do espírito humano.
Reivindicando para o artista o objetivo de traduzir na obra de arte a sensação vi-
sual imediata, independentemente, e mesmo em oposição, de toda noção convencional
da estrutura do espaço e da forma dos objetos, o impressionismo afirmara o valor da
sensação como fato absoluto e autônomo: o artista realiza na sensação uma condição
de plena autenticidade do ser, atinge na renúncia a qualquer noção habitual um estado
de liberdade total, fornece o exemplo daquela que deve ser a figura ideal do homem
moderno, livre de preconceitos e pronto para a experiência direta do real. Um exame
e um aprofundamento das possibilidades do homem moderno, ou do homem definido
exclusivamente pela autenticidade das próprias experiências, deviam necessariamente
mover-se em duas dimensões – buscar estabelecer qual poderia ser a figura e eventual-
mente a estrutura de um mundo dado exclusivamente como sensação e fenômeno; defi-
nir o sentido e eventualmente a finalidade de uma existência humana entendida exclusi-
vamente como sucessão, interferência e contexto de sensações. Uma arte que se desen-
volva nestas duas direções é intrinsecamente moderna, porque implica a renúncia a qual-
quer princípio de autoridade, seja ele entendido como imagem revelada e eterna do cria-
do ou como norma estética geral ou como tradição histórica de valores. Também por
isto a arte deste período, a arte moderna, prescinde de toda e qualquer tradição nacio-
nal, e se coloca não mais como arte ou beleza universais e sim como a arte de uma socie-
dade histórica que busca superar as tradicionais fronteiras das nacionalidades e ser inter-
nacional ou européia. Não há dúvida de que o objetivo das diversas, e freqüentemente
contraditórias, correntes artísticas, do fim do século XIX ao começo do século XX, era
a definição de uma idéia de Europa, resultante justamente da superação dialética das tra-
dições históricas e daquilo que o positivismo filosófico denominava características ou
constantes nacionais.
Deste modo, a questão da arte se apresenta em vários planos: participando direta-
mente da situação histórica, abarca necessariamente problemas de ordem não especifi-
camente estética — intelectuais, morais, sociais, religiosos e políticos. Mas dado que, en-
quanto arte, é um modo completo e insubstituível de experiência, ela conserva e acen-
tua sua própria autonomia. Art pour l’art é o feliz slogan do fim do século. Mas,
quando
se afirma que o artista não tem outra finalidade que não a produção artística, acentua-se
igualmente que a arte, como pura arte, é indispensável à vida do mundo, que a sociedade
se forma e se educa também, embora não exclusivamente, por meio da arte. Assim sen-
do, e considerando que o artista também faz parte da sociedade, a arte não só não decor-
re de uma estética dada de antemão, mas, na sua atuação, elabora ou constrói uma estéti-
ca. Por esta razão uma das características marcantes da arte moderna é a formação contí-
nua de grupos e tendências, cada um dos quais enuncia e desenvolve um programa e
tende a impor sua própria estética, ou mais precisamente sua poética, pois estes princí-
pios não se enquadram em um sistema filosófico e tendem sobretudo a condicionar o
fazer artístico. Pode-se dizer portanto que a sucessão de poéticas — ou dos ismos, como
às vezes são pejorativamente qualificadas — representa a vontade de definir a relação
entre arte e vida contemporânea, em contínuo e acelerado movimento. Não tendo mais
como finalidade a representação dos eternos valores religiosos ou morais, a arte só pode
ser uma modalidade da vida e, como tal, interferir em todos os aspectos da vida contem-
porânea. A arte torna-se um fato plenamente social, vinculando-se aos movimentos polí-
ticos mais progressistas.
1884 é o ano em que Seurat expõe, no novo Salon des Indépendents, La Baigna-
50 NOVOS ESTUDOS nº 18
de. As pesquisas impressionistas em. torno da emocionalidade visual eram então impul-
sionadas somente por Monet e Pissaro, enquanto os aspectos mais fáceis e exteriores da
visão impressionista (a pintura clara, a cor brilhante, a fatura rápida, a atenção dispensa-
da aos acontecimentos da vida cotidiana), ao menos em parte, já eram aceitos mesmo
por artistas tradicionais, como Bastien-Lepage, Besnard ou Boldini. O neo-impressionismo
de Seurat e Signac nasce da vontade de dar à visão luminosa e colorística do impressio-
nismo uma formulação rigorosa, não apenas em relação às diluições que surgiam mas
também em confronto com o empirismo dos pioneiros do movimento. Os escritos de
F. Feneon e de D. Sutter, de alto nível teórico, procuram estabelecer os fundamentos cien-
tíficos da visão, em relação com as anteriores pesquisas ópticas de Chevreul e com as
de Helmholtz e Rood, um pouco posteriores. Trata-se de um desenvolvimento lógico
da objetividade impressionista, mas um desenvolvimento de grande alcance. A sensação
que os impressionistas lograram isolar não é mais somente um modo de conhecimento
imediato e espontâneo (e portanto mais autêntico e flexível). É um estado da consciên-
cia, a própria consciência surpreendida e interrogada no momento ativo de seu encon-
tro com o fenômeno. A sensação tem portanto uma estrutura que é preciso revelar; e
tem um desenvolvimento, um processo que deve se tornar manifesto no desenvolvimento
e nos procedimentos da operação pictórica. A visão é algo que se faz mediante a pintura,
e consequentemente as fases do procedimento pictórico não devem ter mais nada de
inspirado ou de misterioso e sim ser visíveis e demonstráveis como as fases de uma ex-
periência científica. Trata-se, em suma, de encontrar a forma da luz e da cor; ou, antes,
de apreender a forma ou a estrutura da consciência no interior do fenômeno, dado que
não se pode pensar a consciência em abstrato, mas somente no ato de apreender e en-
quadrar o fenômeno. Explica-se assim por que o neo-impressionismo, com o seu viés
científico, pôde ter uma difusão européia (caso típico, o divisionismo italiano), consti-
tuindo o ponto de partida de todas as correntes voltadas para a analítica da visão, como
o cubismo e o futurismo
A justificação do impressionismo como última conseqüência do imanentismo ro-
mântico e suprema vitória das idéias de Delacroix sobre as de Ingres não é mais sustentá-
vel, pois, se é verdade que a sensação e a percepção não têm nada de eterno e mudam
continuamente, é igualmente verdade que a consciência, revelando-se no fenômeno que
enfeixa, demonstra uma atitude, uma estrutura constante. De resto, o surgimento do neo-
impressionismo coincide ad annum, ou quase, com o que poderia parecer (mas não é)
um retrocesso ou ao menos uma pausa para meditação no desenvolvimento dos mestres
do impressionismo: Renoir volta da Itália, onde Rafael o entusiasmou, e confessa encontrar-
se num impasse, não conseguindo mais pintar ou desenhar, e a sua vocação clássica, co-
mo atesta a excelência de suas obras, não é uma involução sob a inspiração de Ingres,
mas a intuição de uma possível justificação clássica do impressionismo. Degas, por sua
vez, intensifica as experiências com o desenho, aprofunda a análise da relação movimento-
espaço — o seu espaço não é uma categoria a priorí na qual se enquadram os fenôme-
nos, e sim a estrutura do próprio fenômeno. Mesmo Monet, que desenvolve com abso-
luta coerência as premissas do impressionismo, percebe cada vez mais que a sensação
não é somente um fato visual, e que, envolvendo toda a existência, alcança as camadas
profundas do sentimento. A pesquisa dos neo-impressionistas é cientificamente rigoro-
sa, mas a ciência não é toda a cultura. Os anos posteriores a 1884 são os anos do retiro
operoso de Cézanne, e também de suas límpidas e conscientes investigações: ainda uma
vez a sensação, ou antes a petite sensation, pois a consciência não é mais que um con-
junto de sensações harmonizadas, o espaço está saturado de sensações que se compõem
em um contexto e o objeto resulta de uma soma construtiva de sensações. É preciso,
certamente, superar o caos sensorial e chegar à clareza absoluta da forma, mas sem per-
der nada da experiência sensorial, que constitui o conteúdo da consciência e sem a qual
ela não pode existir, desde que a consciência não é mais que o próprio conteúdo. E co-
SETEMBRO DE 1987 51
AS FONTES DA ARTE MODERNA
mo a realidade do homem histórico não se resume à imediatez e à vívacidade das sensa-
ções, como as próprias sensações são influenciadas pela experiência passada, recoloca-
se — mas em termos de experiência e não de autoridade — a questão da história, de
onde o famoso confronto entre Poussin, o mais histórico dos artistas, e a natureza. Se,
portanto, é clássica a arte que se propõe a representação de uma concepção positiva do
mundo, em sua totalidade espaço-temporal, não resta dúvida de que, com Cézanne, o
impressionismo torna-se verdadeiramente clássico. Mas o fato novo importante é que aque-
la totalidade espaço-temporal se dá no fenômeno, no modo como a consciência o enfei-
xa, e portanto a imagem é sempre, em igual medida, objetiva e subjetiva, imagem de
si e do mundo.
De resto, a idéia clássica, o interesse pelos conteúdos elevados e profundos, a fé
em uma função ideal da arte não foram destruídos pela onda de objetivismo visual dos
impressionistas — os últimos decênios do século XIX presenciam o trabalho de artistas
que, embora muito distantes das pesquisas sobre os fenômenos da visão, hoje ninguém
mais ousaria acusar de obscurantismo e tradicionalismo acadêmico. No mesmo ano em
que Seurat pintava La Baignade, Puvis de Chavannes realizava, em Lion, Vision Antique,
uma obra cujo rigor literário não é inferior ao rigor científico de Seurat, e disto se aper-
ceberá Gauguin e, posteriormente, nos primeiros anos de seu trabalho em Paris, Picasso.
O confronto entre as suntuosas fantasias pictóricas de G. Moreau, que será mestre dos
fauves, e o Flaubert das Tentações e de Salambô é bastante fácil; como é claro em Monti-
celli, que entusiasmará Van Gogh, o desejo de associar uma excitada fantasia poética a
uma excitada visão colorística. Embora com pouco sucesso, Carriere tenta o caminho
oposto, o da visão imprecisa, desfocada, descolorida, retomando temas patéticos que
pareciam abandonados para sempre. Num movimento de sentido contrário, Toulouse-
Lautrec, que estudou a fundo o sistema de signos dos impressionistas, transforma a im-
pressão visual em impressão mental, e se serve de uma notação rápida e displicente para
fazer uma pintura aguda e polemicamente interessada pela vida social de seu tempo. Odilon
Redon, que nestes anos sai da sombra e descobre em Mallarmé o seu irmão espiritual,
julgava o impressionismo bas de plafond e ao naturalismo sensorial opunha um natura-
lismo investigativo, que abria para a fantasia um novo e encantado mundo de imagens
poéticas. Afinal, se a arte pode ter um lado científico, voltado para o objeto, pode ter
também um lado poético ou literário, preocupado com a compreensão do sujeito, que
não pode ser desprezado.
Ora, não se pode sustentar, com os Goncourt e depois com L.E. Blanche, que o
impressionismo, por suas cores brilhantes e seus resplandecentes efeitos de luz, seja um
retorno à melhor tradição do século XVIII francês: um modo rápido e feliz de poser sa
touche e diviser les tons. Tampouco o impressionismo é fruto de uma tradição nacional,
já que correntes mais ou menos diretamente ligadas ao impressionismo se desenvolve-
ram na Alemanha, Inglaterra, Países Baixos, Itália e Estados Unidos, Não há a possibilida-
de de uma corrente artística moderna que não leve em conta, mesmo que polemicamen-
te, a nova concepção do mundo e do homem, e sobretudo do homem no mundo, que
os impressionistas propuseram e, desde então, se procura aprofundar, explicar e levar
às últimas conseqüências.
1886 é o ano do simbolismo literário, mas é também o ano da primeira estada de
Gauguin na Bretanha, da chegada de Van Gogh a Paris, da edição das Iluminações de
Rimbaud. Simbolismo é um conceito que implica a oposição da idéia de imagem à idéia
de forma. A forma é sempre uma representação, embora livre e interpretativa, do mundo
exterior, e como tal tem sempre um único e preciso significado: de uma paisagem, uma
figura ou uma natureza-morta, aquilo que surgirá será sempre um princípio estrutural,
um principium individuationis, seja ele o relevo plástico, a luz ou a cor. A imagem pode
ter infinitos significados. Uma Nossa Senhora com o Menino Jesus pode representar tam-
bém a maternidade ou a salvação do gênero humano, e assim por diante. A forma nasce
52 NOVOS ESTUDOS nº 18
sempre de um processo de análise, a imagem, de um processo de síntese — e esta é a
descoberta de Gauguin, a figura central do simbolismo pictórico, e a razão de sua oposi-
ção à pintura puramente visual de um Monet ou de um Pissarro. Mas tampouco Gauguin
pode prescindir da sensação. Ele quer, antes, simplificá-la e exacerbá-la, porque deseja
saber o que ela significa, que remotas experiências ressuscita, que envolvimentos com
o presente determina a imagem do mundo que se forma na mente. Para ele o quadro
não é mais o anteparo em que se projeta uma figura do mundo. Ao contrário, é uma ima-
gem autônoma, dotada de existência e poder mágicos, como acontece com as antigas
imagens da arte popular ou, para ser mais exato, com as imagens das divindades dos po-
vos primitivos. A sensação permanece, até mesmo com muita força. Mas, para o homem
que vive de sensações e para o qual o mundo não é mais que um aflitivo e prepotente
apelo à sua capacidade de sentir, qual pode ser o valor do sagrado e do mito? É certo,
a sensação não o elimina. Como a sensação é realidade plena, e não uma realidade inicial
e provisória que tenda a desaparecer para ser esclarecida pelo entendimento, também
o sagrado e o mito permanecem ligados, juntamente com a sensação, à nossa carne, e
a vida não é mais que um rito, uma evocação contínua das obscuras e profundas razões
comuns ao ser humano e ao cosmo. Puvis de Chavannes sonhava com a confluência do
mito clássico e do mito cristão em um novo "humanismo". Gauguin aspira a uma nova,
eterna barbárie, na qual os mitos, desvencilhados da perspectiva da história, estejam pre-
sentes e sejam atuantes na existência física, nas tristes e desenfreadas paixões do homem
moderno. É esta uma das razões de sua fuga para o Taiti. Mas não a única. Uma outra
causa, e não tanto de sua evasão para as ilhas do Pacífico quanto do surgimento de sua
pintura de maiores dimensões, por meio de grandes e serenas extensões de cor, foi a
amizade com Van Gogh, à qual se seguiu a certeza de uma incompatibilidade irredutível.
De fato, se Gauguin busca desesperadamente, indo além dos limites do conhecimento
e da civilização, uma imagem que sintetize uma concepção do mundo e uma concepção
do destino humano — Weltanschauung e Lebenswelt — e seja, apesar de tudo, clássica,
Van Gogh é aquele que derruba todas as pontes e coloca a arte como puro ato de exis-
tência, assumindo a visão do real como expressão de uma condição interior, vinculando-se
à mais profunda e autêntica raiz romântica (como prova o seu prolongado estudo de De-
lacroix). Gauguin busca o sagrado na natureza das coisas e do homem, ainda que por
meios mágicos e não racionais. Van Gogh, que buscara Deus no apostolado religioso e
fora rejeitado, sabe que não poderá jamais encontrá-lo e que a natureza será o caminho
da queda e não da salvação.
A divergência, ou mesmo a antítese, entre a visão dos impressionistas e a de Van
Gogh é radical. Cézanne tenta recolocar a arte entre as grandes atividades intelectuais.
Já a violência sensorial de Van Gogh é inteiramente negativa e revela somente a impotên-
cia e o desespero do homem frente ao real. Mas o destino artístico e humano de Van
Gogh é decidido somente quando, em 1886, em Paris, os impressionistas lhe dão a medi-
da da realidade, colocando-a diante de seus olhos como um problema intransponível.
Até aquele momento ele havia feito uma pintura ideológica, áspera em sua polêmica so-
cial; uma pintura escura, na qual a realidade era pouco mais que uma hipótese amarga
que incitava a alma à piedade e à revolta. Mas quando a realidade se dá na violência das
sensações, quando se vê como a paixão interna pode exacerbar e deformar as sensações,
qual poderá ser o destino do homem, o sentido de sua existência? A resposta é trágica.
Se a arte é a própria vida, se a vida é o choque impiedoso do eu com o mundo, se o
mundo não pode mais ser separado de nós e o nosso esforço para possuí-lo não faz mais
que nos restituir a imagem de nossa solidão e desespero, não restam outras saídas senão
a loucura ou o suicídio. A mensagem de Van Gogh aos homens de seu tempo — que
tinham a ilusão de ter encontrado o caminho da paz e do progresso — é trágica como
a de Dostoiévski. Assim como é cínica e amarga, se não trágica, a resposta de um seu
contemporâneo belga, Ensor. Semelhante é também a história da sua pintura, pois do
SETEMBRO DE 1987 53
AS FONTES DA ARTE MODERNA
mesmo modo Ensor quer ser um pintor de idéias e é a experiência dos impressionistas
que lhe mostra que a realidade é algo de vivo e concreto, em comparação à qual o ho-
mem da sociedade moderna, com os seus preconceitos e suas ambições enganosas, não
é mais que uma máscara entre o ridículo e o macabro.
A insociabilidade nasce em geral de uma aspiração social reprimida, portanto de
um problema social. E a questão da sociabílidade da arte, explicitada por Morris e Rus-
kin, se desenvolve naquele amplo movimento voltado para a integração total da arte na
vida social que é o art nouveau. Trata-se de reencontrar uma harmonia com o mundo
da produção, de encontrar na arte, como expressão de um artesanato sublime, um corre-
tivo também moral (agora torna-se cada vez mais difícil separar o domínio da estética)
à técnica excessivamente mecânica da indústria. Evidentemente, a influência da arte so-
bre a produção e, através dela, sobre os costumes e sobre a vida social somente pode
efetivar-se com a difusão de um estilo que se desenvolva não apenas na pintura e na es-
cultura, mas também na literatura, na música, na arquitetura, no mobiliário, na moda,
em suma, em todas as formas que constituem o ambiente que o homem cria em torno
de sua própria vida. O movimento dos nabis, no último decênio do século, está em con-
sonância com esta exigência natural e tende a sistematizá-la, envolvendo todas as forças
vivas da arte moderna em uma finalidade cultural grandiosa, eliminando as contradições,
capitalizando mesmo aquelas investigações que se desenvolveram sem nenhum interes-
se social, como as de Cézanne, e inclusive as que contrastavam com os ideais da socieda-
de moderna, como as investigações de Gauguin e Van Gogh. No plano cultural, a enver-
gadura do movimento é enorme: pela primeira vez um movimento artístico tenta formu-
lar uma estética válida para todas as artes e para todos os países. Não se nega a importân-
cia da sensação; ao contrário, o objetivo é que cada imagem, cada signo artístico envol-
va toda a gama das sensações, de modo que a pintura seja também arquitetura, poesia,
música. Mas o todo deve compor-se em uma harmonia que suprima qualquer aspereza
dramática da existência humana, fundindo-a com a infinitude do criado. Na origem do
movimento — pela intermediação de Serusier e da Académie Julian — está Gauguin e
a escola de Pont-Aven, e o motivo estilístico dominante é a composição por grandes áreas
de cor. Mas o principal interesse desta teoria, claramente formulada por Maurice Denis,
é a tentativa de resolver em uma síntese todos os esforços e experiências — mesmo que
divergentes — da arte que então já se qualifica abertamente de "moderna". São revalori-
zadas tendências que poderiam parecer secundárias (Puvis de Chavannes, Moreau, Re-
don); tenta-se o acordo entre posições opostas, como as de Cézanne e Van Gogh;
conciliam-se experiências culturais muito diversas, como o classicismo neo-humanístico
de Puvis de Chavannes, o neoprimitivismo dos pré-rafaelitas, o gosto pela arte japonesa
de Toulouse-Lautrec e Van Gogh; buscam-se "correspondências" entre as várias artes,
harmonizando-as em uma poética que deve muito a Mallarmé; tentam-se todas as aplica-
ções artísticas — a litografia, os trabalhos em vidro e tecidos; reafirma-se a função deco-
rativa como típica função estética e social da arte; espera-se poder dar forma moderna
também aos antigos conteúdos religiosos; mas, acima de tudo, todos os artistas moder-
nos, não importa de que nacionalidade, se agrupam em torno de um ideal de plena parti-
cipação da arte na vida e nos ideais de seu tempo.
A partir deste momento, e embora Paris permaneça o centro da cultura artística,
será impossível distinguir as correntes em relação às diversas tradições figurativas nacio-
nais. Mesmo que atitudes ou conteúdos tradicionais sejam ainda reconhecíveis, todas
as correntes insistem em afirmar-se como ideal europeu. Um Hodler é sem dúvida um
artista europeu, embora sua pintura, oscilando entre o academicismo e o modernismo,
caia muito freqüentemente na evocação retórica da história nacional; europeu é também
Munch, mesmo com seu exasperado pathos nórdico apoiado em Ibsen e Strindberg; eu-
ropeus são os artistas da escola de Munique, um Corinth ou um Boecklin, assim como
o são Segantini, Klimt e, sobretudo, Rodin, que quer alcançar na escultura a imediatez
54 NOVOS ESTUDOS nº 18
visual dos impressionistas, associando-a a uma monumentalidade michelangesca. É a fa-
se — não totalmente clara mas tampouco totalmente negativa — do cosmopolitismo ar-
tístico. Não de todo clara porque não raramente os impulsos renovadores se misturam
a um academicismo travestido, não mais temeroso do escândalo e sim de não estar sufi-
cientemente à Ia page. Não totalmente negativa porque, naquela tentativa confusa de ex-
primir conteúdos já velhos com formas novas, prepara-se uma nova fase de mais lúcida
consciência dos problemas. De agora em diante, não se buscará mais um europeísmo
genérico, mas a definição das componentes históricas de uma cultura européia.
O primeiro decênio do século XX presencia o surgimento simultâneo de duas cor-
rentes, o fauvismo e o expressionismo, que têm em comum a premissa histórica do im-
pressionismo, mas refletem o contraste de fundo entre cultura francesa e cultura alemã,
entre um eterno classicismo e um eterno romantismo. No centro do fauvismo está Matis-
se, o artista mais limpidamente clássico do século, o Gide da pintura moderna. E funda-
mentalmente clássica é a aspiração dos fauves para resolver, sem resíduos, nas duas di-
mensões da superfície, na ressoante vizinhança das áreas de cor, a violência exacerbada
das sensações: o fim último, e a pintura de Matisse é a demonstração disto, é ainda uma
representação sintética e global do mundo — ou, antes, do universo — ; porque se consi-
dera que toda sensação, desde que seja autêntica e preencha verdadeiramente a nossa
existência, é mais a experiência do universo como um todo do que de um objeto parti-
cular. E não somente do universo como natureza, mas como história — a arte de civiliza-
ções remotas e primitivas, a escultura africana, por exemplo, restitui ao homem moder-
no aquela integridade vital, aquela profunda unidade do ser individual com o mundo
de que as distinções lógicas do racionalismo e a própria estrutura da sociedade o priva-
ram. Ela não é mais, como em Gauguin, a evasão da história no mito do primitivo. A
arte dos primitivos se insere com plenos direitos na história, torna-se mesmo o paradig-
ma da nova classicidade.
É através da experiência fauve que Rouault logra restituir um sentido ao termo,
já em desuso, de pintura sacra ou religiosa, reencontrando a austeridade, a árida conduta
sentimental dos bizantinos e dos românicos. E é também através desta experiência que
as esculturas de Modigliani podem reevocar as esculturas negras sem sombra de terror
mágico, como perfeitos, clássicos exemplos de estilo. E como explicar, se não por esta
via, que um pintor de fim de semana, o Douanier Rousseau, tenha podido atingir uma
pureza de estilo que faz da sua pintura um exemplo não tanto de uma agradável ingenui-
dade e sim de um nobre arcaísmo?
Se nos voltarmos para a qualidade, para o valor da sensação, os expressionistas
não estão muito longe dos fauves: é ainda a sensação que define a condição existencial,
o ser-no-mundo do homem moderno. Mas aquilo que nos fauves é uma espécie de exal-
tação pânica, uma apropriação total da realidade, para os expressionistas — que partem
de Van Gogh e Munch — é a irrupção de profundos e convulsivos complexos: aquela
visão deformada, aquela sensação exasperada e furiosa, aquele juízo severo sobre as coi-
sas do mundo são o produto de antigos terrores, de culpas longínquas e obscuras repres-
sões. Podemos dizer — lançando mão de uma distinção proposta por Maurice Denis a
respeito dos nabis — que a deformação dos fauves é objetiva, enquanto a dos expressio-
nistas é subjetiva. Os fauves não têm preocupações racionais, na própria composição
do grupo já encontramos em germe o intemacionalismo da Escola de Paris. Nos expres-
sionistas – e Barlach é um exemplo extensivo a todos os outros artistas – há um "germa-
nismo" que quer sublimar-se, tornar-se europeu. Por isso a obra dos expressionistas, que
recoloca a questão de uma experiência romântica não resolvida, é repleta de ansiedade:
de um lado, o problema da visão, que os teóricos da visibilidade colocam em termos
rigorosos, de outro o problema religioso e social, a questão do velho artesanato e da
arte popular, do primitivo e do moderno. Dos conteúdos ardorosos do grupo Die Bruec-
ke se passará diretamente, por sublimação, à abstração formal dos artistas que se reu-
SETEMBRO DE 1987 55
Novos Estudo*
CEBRAP
nº 18, setembro 87
pp. 49-56
niam em torno da revista Der blaue Reiter, e não é por acaso que, mediando estes dois
movimentos, encontramos um russo, Kandinski.
Da parte da cultura francesa, que então podia ser considerada classicamente euro-
péia, não havia lugar para as superações por sublimação, quase que por uma inesperada
iluminação divina. O historicismo latente sob a ostentada indiferença histórica dos fau-
ves impunha a via da experiência e, mais ainda, de uma experiência revolucionária. E,
de fato, o cubismo foi e quis ser revolucionário, assim como foram revolucionários o
futurismo e todos os movimentos de vanguarda que surgiram às vésperas da I Guerra
Mundial. A inexistência de uma contradição de fundo entre a posição dos fauves e a dos
cubistas é demonstrada pela passagem de Braque — o mais coerente dos artistas moder-
nos — de um movimento para outro, e pela transformação repentina, entre 1907 e 1908,
de um famoso quadro de Picasso, Les Demoiselles d’Avignon. Mas o cubismo levanta ex-
plicitamente o problema da renúncia à função decorativa, do retorno à analítica da visão
e da rigorosa objetividade da forma, da renovação total da linguagem, do sistema dos
signos e da técnica — ou seja, retoma o problema da forma e do espaço no ponto em
que Cézanne, ao morrer, o tinha deixado. Na obra deste mestre, que justamente os críti-
cos alemães tinham estudado nos seus aspectos mais problemáticos, se individua então
o fundamento de toda linguagem plástica possível, portanto de toda cultura figurativa
possível: somente sobre este fundamento poder-se-á construir uma linguagem objetiva-
mente analítica, isenta de determinantes históricas ou tradicionais e concretamente eu-
ropéia. E não somente a história não influi na análise da visão, mas, ao contrário, é a
história que sofre a sua influência. De modo que, por meio do cubismo, abrem-se novas
perspectivas históricas, que trazem à luz valores até então negligenciados, afastando ou-
tros, que tinham sido exaltados.
As revoluções são sempre o produto de um esprit de géometrie, e todavia são re-
voluções, e o espírito revolucionário do cubismo se fez sentir sobretudo nos países que
tinham participado menos diretamente dos movimentos europeus de vanguarda. Assim,
o futurismo italiano foi certamente um modo de fazer, com atraso e talvez muito às pres-
sas, uma experiência incompleta do romantismo e, ao mesmo tempo, de assimilar os úl-
timos resultados do impressionismo e do neo-impressionismo. De fato, a pintura de Boc-
cioni (e não somente dele) parte do espírito científico do neo-impressionismo, enquanto
sua escultura apóia-se na plástica de Medardo Rosso, talvez o único que soube transpor
para a escultura a visão imediata do impressionismo, e não como fácil dissolução da su-
perfície na luz mas como princípio de uma nova estrutura da forma e do espaço.
Mas a esta altura as profundas contradições da cultura e da vida social européia
atingiram o limite da tensão e está prestes a eclodir aquele conflito mundial que transfor-
maria profundamente a face e o destino da Europa. E a arte moderna, que havia cons-
cientemente renunciado ao antigo privilégio da eternidade do belo para percorrer o agi-
tado domínio da existência histórica, não poderá escapar à urgência dos novos proble-
mas. O cubismo passará da fase analítica à fase sintética, que será um prelúdio das inves-
tigações em torno da abstração formal, o futurismo se dissolverá com o esgotamento
das suas motivações revolucionárias; novas correntes, como o dadaísmo, defenderão a
revogação de toda experiência histórica e de todas as premissas estéticas, e outras, como
o De Stijl, formularão os princípios de uma estética primeira, remetendo à constituição
originária das idéias de espaço e de forma; a arte "metafísica" e depois o surrealismo
tentarão as vias da imaginação e do inconsciente, com um total afastamento da proble-
mática da visão fenomênica. O tema da Europa, que já no fim do século XIX era o tema
central da arte moderna, ganhará de quando em quando aspectos e interpretações diver-
sos. Mas o grande problema da arte moderna, ou seja, o problema de uma presença con-
creta e atuante da arte no mundo da vida social, e de uma ativa participação em suas
lutas históricas, permanecerá o problema dominante ao menos por toda a primeira me-
tade do nosso século.
56 NOVOS ESTUDOS nº 18
AS FONTES DA ARTE MODERNA

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados (19)

Filosofia Estética
Filosofia EstéticaFilosofia Estética
Filosofia Estética
 
Aula iv estética
Aula iv   estéticaAula iv   estética
Aula iv estética
 
Filosofia e arte na modernidade
Filosofia e arte na modernidadeFilosofia e arte na modernidade
Filosofia e arte na modernidade
 
História do conceito de arte
História do conceito de arteHistória do conceito de arte
História do conceito de arte
 
Aula 2 arte - 3º ano
Aula 2   arte - 3º anoAula 2   arte - 3º ano
Aula 2 arte - 3º ano
 
AULA 3 - ARTE - 1º E.M
AULA 3 - ARTE - 1º E.MAULA 3 - ARTE - 1º E.M
AULA 3 - ARTE - 1º E.M
 
Aula 3 arte - 3º ano
Aula 3   arte - 3º anoAula 3   arte - 3º ano
Aula 3 arte - 3º ano
 
Aula 2 arte - 2º ano
Aula 2   arte - 2º anoAula 2   arte - 2º ano
Aula 2 arte - 2º ano
 
O estudo da arte e suas diferentes visões.
O estudo da arte e suas diferentes visões.O estudo da arte e suas diferentes visões.
O estudo da arte e suas diferentes visões.
 
Crítica de arte
Crítica de arteCrítica de arte
Crítica de arte
 
Arte e mercado
Arte e mercadoArte e mercado
Arte e mercado
 
AINT - Trabalho
AINT - TrabalhoAINT - Trabalho
AINT - Trabalho
 
Aula 1 arte - 3º e.m
Aula 1   arte - 3º e.mAula 1   arte - 3º e.m
Aula 1 arte - 3º e.m
 
A ARTE
A ARTEA ARTE
A ARTE
 
127 texto do artigo-240-2-10-20200104
127 texto do artigo-240-2-10-20200104127 texto do artigo-240-2-10-20200104
127 texto do artigo-240-2-10-20200104
 
Estética em Schiller
Estética em SchillerEstética em Schiller
Estética em Schiller
 
Estética e Arte Contemporânea - Aulas 1 e 2
Estética e Arte Contemporânea - Aulas 1 e 2Estética e Arte Contemporânea - Aulas 1 e 2
Estética e Arte Contemporânea - Aulas 1 e 2
 
Estética e ensino de arte
Estética e ensino de arteEstética e ensino de arte
Estética e ensino de arte
 
O que é a arte?
O que é a arte?O que é a arte?
O que é a arte?
 

Semelhante a Argan

Conceito de arte
Conceito de arteConceito de arte
Conceito de artekardovsky
 
Entre museus de arte obras monumento e arquivos-documentos
Entre museus de arte obras monumento e arquivos-documentosEntre museus de arte obras monumento e arquivos-documentos
Entre museus de arte obras monumento e arquivos-documentosgrupointerartes
 
historia-da-arte4 contemporanea arte arte
historia-da-arte4 contemporanea arte artehistoria-da-arte4 contemporanea arte arte
historia-da-arte4 contemporanea arte artessuser90b57a
 
A Cultura do Palácio: Renascimento
A Cultura do Palácio: RenascimentoA Cultura do Palácio: Renascimento
A Cultura do Palácio: RenascimentoDylan Bonnet
 
Evolução conceito arte
Evolução conceito arteEvolução conceito arte
Evolução conceito arteGi Loureiro
 
Fund. filosóficos e sociológicos da arte nota 10,0
Fund. filosóficos e sociológicos da arte   nota 10,0Fund. filosóficos e sociológicos da arte   nota 10,0
Fund. filosóficos e sociológicos da arte nota 10,0HENRIQUE GOMES DE LIMA
 
Apostila de Arte - EJA.pdf
Apostila de Arte - EJA.pdfApostila de Arte - EJA.pdf
Apostila de Arte - EJA.pdfGustavoPaz34
 
A descrença no pensamento positivista e as novas concepções científicas
A descrença no pensamento positivista e as novas concepções científicasA descrença no pensamento positivista e as novas concepções científicas
A descrença no pensamento positivista e as novas concepções científicasgofontoura
 
Situacionsimo Popart
Situacionsimo PopartSituacionsimo Popart
Situacionsimo PopartEllen_Assad
 
História da arte - Arte Moderna
História da arte  - Arte ModernaHistória da arte  - Arte Moderna
História da arte - Arte ModernaLú Carvalho
 

Semelhante a Argan (20)

Conceito de arte
Conceito de arteConceito de arte
Conceito de arte
 
Hist da arte
Hist da arteHist da arte
Hist da arte
 
lala uhul
lala uhullala uhul
lala uhul
 
Entre museus de arte obras monumento e arquivos-documentos
Entre museus de arte obras monumento e arquivos-documentosEntre museus de arte obras monumento e arquivos-documentos
Entre museus de arte obras monumento e arquivos-documentos
 
historia-da-arte4 contemporanea arte arte
historia-da-arte4 contemporanea arte artehistoria-da-arte4 contemporanea arte arte
historia-da-arte4 contemporanea arte arte
 
Arte o que é
Arte   o que éArte   o que é
Arte o que é
 
A Cultura do Palácio: Renascimento
A Cultura do Palácio: RenascimentoA Cultura do Palácio: Renascimento
A Cultura do Palácio: Renascimento
 
Evolução conceito arte
Evolução conceito arteEvolução conceito arte
Evolução conceito arte
 
O que é a arte
O que é a arteO que é a arte
O que é a arte
 
Apostila de-arte-eja
Apostila de-arte-ejaApostila de-arte-eja
Apostila de-arte-eja
 
Fund. filosóficos e sociológicos da arte nota 10,0
Fund. filosóficos e sociológicos da arte   nota 10,0Fund. filosóficos e sociológicos da arte   nota 10,0
Fund. filosóficos e sociológicos da arte nota 10,0
 
Filosofia e arte na modernidade
Filosofia e arte na modernidadeFilosofia e arte na modernidade
Filosofia e arte na modernidade
 
Apostila de Arte - EJA.pdf
Apostila de Arte - EJA.pdfApostila de Arte - EJA.pdf
Apostila de Arte - EJA.pdf
 
8ºano
8ºano8ºano
8ºano
 
Definindo arte
Definindo arteDefinindo arte
Definindo arte
 
A descrença no pensamento positivista e as novas concepções científicas
A descrença no pensamento positivista e as novas concepções científicasA descrença no pensamento positivista e as novas concepções científicas
A descrença no pensamento positivista e as novas concepções científicas
 
V dfilo cap4p_arte
V dfilo cap4p_arteV dfilo cap4p_arte
V dfilo cap4p_arte
 
Artigo nadja
Artigo nadjaArtigo nadja
Artigo nadja
 
Situacionsimo Popart
Situacionsimo PopartSituacionsimo Popart
Situacionsimo Popart
 
História da arte - Arte Moderna
História da arte  - Arte ModernaHistória da arte  - Arte Moderna
História da arte - Arte Moderna
 

Último

Construção (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! SertãConstrução (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! SertãIlda Bicacro
 
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...licinioBorges
 
JOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptx
JOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptxJOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptx
JOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptxTainTorres4
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...azulassessoria9
 
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envioManual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envioManuais Formação
 
ATIVIDADE PARA ENTENDER -Pizzaria dos Descritores
ATIVIDADE PARA ENTENDER -Pizzaria dos DescritoresATIVIDADE PARA ENTENDER -Pizzaria dos Descritores
ATIVIDADE PARA ENTENDER -Pizzaria dos DescritoresAnaCarinaKucharski1
 
COMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcante
COMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcanteCOMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcante
COMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcanteVanessaCavalcante37
 
Aula de História Ensino Médio Mesopotâmia.pdf
Aula de História Ensino Médio Mesopotâmia.pdfAula de História Ensino Médio Mesopotâmia.pdf
Aula de História Ensino Médio Mesopotâmia.pdfFernandaMota99
 
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdfNoções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdflucassilva721057
 
PROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdf
PROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdfPROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdf
PROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdfMarianaMoraesMathias
 
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdfENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdfLeloIurk1
 
Literatura Brasileira - escolas literárias.ppt
Literatura Brasileira - escolas literárias.pptLiteratura Brasileira - escolas literárias.ppt
Literatura Brasileira - escolas literárias.pptMaiteFerreira4
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...azulassessoria9
 
Considere a seguinte situação fictícia: Durante uma reunião de equipe em uma...
Considere a seguinte situação fictícia:  Durante uma reunião de equipe em uma...Considere a seguinte situação fictícia:  Durante uma reunião de equipe em uma...
Considere a seguinte situação fictícia: Durante uma reunião de equipe em uma...azulassessoria9
 
Revista-Palavra-Viva-Profetas-Menores (1).pdf
Revista-Palavra-Viva-Profetas-Menores (1).pdfRevista-Palavra-Viva-Profetas-Menores (1).pdf
Revista-Palavra-Viva-Profetas-Menores (1).pdfMárcio Azevedo
 
Discurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptx
Discurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptxDiscurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptx
Discurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptxferreirapriscilla84
 
Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)ElliotFerreira
 
COMPETÊNCIA 4 NO ENEM: O TEXTO E SUAS AMARRACÕES
COMPETÊNCIA 4 NO ENEM: O TEXTO E SUAS AMARRACÕESCOMPETÊNCIA 4 NO ENEM: O TEXTO E SUAS AMARRACÕES
COMPETÊNCIA 4 NO ENEM: O TEXTO E SUAS AMARRACÕESEduardaReis50
 
Urso Castanho, Urso Castanho, o que vês aqui?
Urso Castanho, Urso Castanho, o que vês aqui?Urso Castanho, Urso Castanho, o que vês aqui?
Urso Castanho, Urso Castanho, o que vês aqui?AnabelaGuerreiro7
 
Mapa mental - Classificação dos seres vivos .docx
Mapa mental - Classificação dos seres vivos .docxMapa mental - Classificação dos seres vivos .docx
Mapa mental - Classificação dos seres vivos .docxBeatrizLittig1
 

Último (20)

Construção (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! SertãConstrução (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! Sertã
 
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
 
JOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptx
JOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptxJOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptx
JOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptx
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
 
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envioManual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
 
ATIVIDADE PARA ENTENDER -Pizzaria dos Descritores
ATIVIDADE PARA ENTENDER -Pizzaria dos DescritoresATIVIDADE PARA ENTENDER -Pizzaria dos Descritores
ATIVIDADE PARA ENTENDER -Pizzaria dos Descritores
 
COMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcante
COMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcanteCOMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcante
COMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcante
 
Aula de História Ensino Médio Mesopotâmia.pdf
Aula de História Ensino Médio Mesopotâmia.pdfAula de História Ensino Médio Mesopotâmia.pdf
Aula de História Ensino Médio Mesopotâmia.pdf
 
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdfNoções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
 
PROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdf
PROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdfPROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdf
PROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdf
 
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdfENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
ENSINO RELIGIOSO 7º ANO INOVE NA ESCOLA.pdf
 
Literatura Brasileira - escolas literárias.ppt
Literatura Brasileira - escolas literárias.pptLiteratura Brasileira - escolas literárias.ppt
Literatura Brasileira - escolas literárias.ppt
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
 
Considere a seguinte situação fictícia: Durante uma reunião de equipe em uma...
Considere a seguinte situação fictícia:  Durante uma reunião de equipe em uma...Considere a seguinte situação fictícia:  Durante uma reunião de equipe em uma...
Considere a seguinte situação fictícia: Durante uma reunião de equipe em uma...
 
Revista-Palavra-Viva-Profetas-Menores (1).pdf
Revista-Palavra-Viva-Profetas-Menores (1).pdfRevista-Palavra-Viva-Profetas-Menores (1).pdf
Revista-Palavra-Viva-Profetas-Menores (1).pdf
 
Discurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptx
Discurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptxDiscurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptx
Discurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptx
 
Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)
 
COMPETÊNCIA 4 NO ENEM: O TEXTO E SUAS AMARRACÕES
COMPETÊNCIA 4 NO ENEM: O TEXTO E SUAS AMARRACÕESCOMPETÊNCIA 4 NO ENEM: O TEXTO E SUAS AMARRACÕES
COMPETÊNCIA 4 NO ENEM: O TEXTO E SUAS AMARRACÕES
 
Urso Castanho, Urso Castanho, o que vês aqui?
Urso Castanho, Urso Castanho, o que vês aqui?Urso Castanho, Urso Castanho, o que vês aqui?
Urso Castanho, Urso Castanho, o que vês aqui?
 
Mapa mental - Classificação dos seres vivos .docx
Mapa mental - Classificação dos seres vivos .docxMapa mental - Classificação dos seres vivos .docx
Mapa mental - Classificação dos seres vivos .docx
 

Argan

  • 1. Qual o sentido de se publicar nos nossos dias um texto sobre arte moderna de 1960? A simples documentação de uma tendência interpretativa já seria uma justificativa — sobretudo quando se trata de trabalho de um dos mais importantes críticos deste sé- culo. No entanto, podemos exigir mais. Em função dos rumos que a arte contemporânea vem tomando, este ensaio de Giulio Carlo Argan ganha uma dimensão extremamente atual. O recente debate sobre modernismo e pós-modernismo — a que Novos Estudos CEBRAP tem tentado dar subsídios, com a publicação de alguns artigos de importância, como o de Alberto Tassinari (vol. 2 nº4), o de Fredric Jameson (nº12) e o de Perry An- derson (nºl4) — tem trazido à tona algumas interrogações que, se mal delineadas, não passarão de falsos problemas. A renovada oposição entre sensação e estrutura, esponta- neidade e racionalismo, visão mítica e clareza formal, realização artesanal e impessoali- dade parece querer reatualizar, um tanto canhestramente, a tão pouco histórica polarida- de entre romantismo e classicismo que Argan, ao passar em revista as fontes do moder- nismo, soube mediar de forma admirável. Giulio Carlo Argan nasceu em Turim, em 1909, e formou-se sob a orientação de Lionello Venturi, um dos mais importantes historiadores da arte da Itália. Publicou vá- rios ensaios e monografias sobre questões e artistas contemporâneos, bem como sobre realizações do Renascimento e do Barroco. De 1976 a 1979 foi prefeito de Roma, eleito como independente pela lista do Partido Comunista. "As Fontes da Arte Moderna" per- tence ao livro Salvação e Queda na Arte Moderna, que a editora Marco Zero — a quem agradecemos a cessão dos direitos — deverá publicar proximamente. (RN) "Arte Moderna" não significa arte contemporânea, ou então arte do nosso século ou dos nossos dias. Há um período, ao qual atualmente nos referimos como o das "fon- tes do século XX", em que se pensou que a arte, para ser arte, deveria ser moderna, ou seja, refletir as características e as exigências de uma cultura conscientemente preocupa- da com o próprio progresso, desejosa de afastar-se de todas as tradições, voltada para a superação contínua de suas próprias conquistas. A arte deste período é também conhe- cida como "modernista" — programaticamente moderna e portanto consciente da ne- cessidade de desenvolver-se em novas direções, com freqüência contraditórias em rela- ção às anteriores. O ponto de ruptura na tradição artística é representado pelo impres- sionismo: o movimento moderno na arte européia começa quando se percebe que o SETEMBRO DE 1987 49 Giulio Carlo Argan Tradução:RodrigoNaves
  • 2. AS FONTES DA ARTE MODERNA impressionismo mudou radicalmente as premissas, as condições e as finalidades do tra- balho artístico. Coloca-se então o problema da avaliação da dimensão histórica do im- pressionismo, e em primeiro lugar procura-se esclarecer se o impressionismo orientava- se por uma tendência clássica ou romântica, ou se resolvia (e como) a antítese destas duas posições, não mais consideradas como situações históricas determinadas e sim co- mo eternas polaridades do espírito humano. Reivindicando para o artista o objetivo de traduzir na obra de arte a sensação vi- sual imediata, independentemente, e mesmo em oposição, de toda noção convencional da estrutura do espaço e da forma dos objetos, o impressionismo afirmara o valor da sensação como fato absoluto e autônomo: o artista realiza na sensação uma condição de plena autenticidade do ser, atinge na renúncia a qualquer noção habitual um estado de liberdade total, fornece o exemplo daquela que deve ser a figura ideal do homem moderno, livre de preconceitos e pronto para a experiência direta do real. Um exame e um aprofundamento das possibilidades do homem moderno, ou do homem definido exclusivamente pela autenticidade das próprias experiências, deviam necessariamente mover-se em duas dimensões – buscar estabelecer qual poderia ser a figura e eventual- mente a estrutura de um mundo dado exclusivamente como sensação e fenômeno; defi- nir o sentido e eventualmente a finalidade de uma existência humana entendida exclusi- vamente como sucessão, interferência e contexto de sensações. Uma arte que se desen- volva nestas duas direções é intrinsecamente moderna, porque implica a renúncia a qual- quer princípio de autoridade, seja ele entendido como imagem revelada e eterna do cria- do ou como norma estética geral ou como tradição histórica de valores. Também por isto a arte deste período, a arte moderna, prescinde de toda e qualquer tradição nacio- nal, e se coloca não mais como arte ou beleza universais e sim como a arte de uma socie- dade histórica que busca superar as tradicionais fronteiras das nacionalidades e ser inter- nacional ou européia. Não há dúvida de que o objetivo das diversas, e freqüentemente contraditórias, correntes artísticas, do fim do século XIX ao começo do século XX, era a definição de uma idéia de Europa, resultante justamente da superação dialética das tra- dições históricas e daquilo que o positivismo filosófico denominava características ou constantes nacionais. Deste modo, a questão da arte se apresenta em vários planos: participando direta- mente da situação histórica, abarca necessariamente problemas de ordem não especifi- camente estética — intelectuais, morais, sociais, religiosos e políticos. Mas dado que, en- quanto arte, é um modo completo e insubstituível de experiência, ela conserva e acen- tua sua própria autonomia. Art pour l’art é o feliz slogan do fim do século. Mas, quando se afirma que o artista não tem outra finalidade que não a produção artística, acentua-se igualmente que a arte, como pura arte, é indispensável à vida do mundo, que a sociedade se forma e se educa também, embora não exclusivamente, por meio da arte. Assim sen- do, e considerando que o artista também faz parte da sociedade, a arte não só não decor- re de uma estética dada de antemão, mas, na sua atuação, elabora ou constrói uma estéti- ca. Por esta razão uma das características marcantes da arte moderna é a formação contí- nua de grupos e tendências, cada um dos quais enuncia e desenvolve um programa e tende a impor sua própria estética, ou mais precisamente sua poética, pois estes princí- pios não se enquadram em um sistema filosófico e tendem sobretudo a condicionar o fazer artístico. Pode-se dizer portanto que a sucessão de poéticas — ou dos ismos, como às vezes são pejorativamente qualificadas — representa a vontade de definir a relação entre arte e vida contemporânea, em contínuo e acelerado movimento. Não tendo mais como finalidade a representação dos eternos valores religiosos ou morais, a arte só pode ser uma modalidade da vida e, como tal, interferir em todos os aspectos da vida contem- porânea. A arte torna-se um fato plenamente social, vinculando-se aos movimentos polí- ticos mais progressistas. 1884 é o ano em que Seurat expõe, no novo Salon des Indépendents, La Baigna- 50 NOVOS ESTUDOS nº 18
  • 3. de. As pesquisas impressionistas em. torno da emocionalidade visual eram então impul- sionadas somente por Monet e Pissaro, enquanto os aspectos mais fáceis e exteriores da visão impressionista (a pintura clara, a cor brilhante, a fatura rápida, a atenção dispensa- da aos acontecimentos da vida cotidiana), ao menos em parte, já eram aceitos mesmo por artistas tradicionais, como Bastien-Lepage, Besnard ou Boldini. O neo-impressionismo de Seurat e Signac nasce da vontade de dar à visão luminosa e colorística do impressio- nismo uma formulação rigorosa, não apenas em relação às diluições que surgiam mas também em confronto com o empirismo dos pioneiros do movimento. Os escritos de F. Feneon e de D. Sutter, de alto nível teórico, procuram estabelecer os fundamentos cien- tíficos da visão, em relação com as anteriores pesquisas ópticas de Chevreul e com as de Helmholtz e Rood, um pouco posteriores. Trata-se de um desenvolvimento lógico da objetividade impressionista, mas um desenvolvimento de grande alcance. A sensação que os impressionistas lograram isolar não é mais somente um modo de conhecimento imediato e espontâneo (e portanto mais autêntico e flexível). É um estado da consciên- cia, a própria consciência surpreendida e interrogada no momento ativo de seu encon- tro com o fenômeno. A sensação tem portanto uma estrutura que é preciso revelar; e tem um desenvolvimento, um processo que deve se tornar manifesto no desenvolvimento e nos procedimentos da operação pictórica. A visão é algo que se faz mediante a pintura, e consequentemente as fases do procedimento pictórico não devem ter mais nada de inspirado ou de misterioso e sim ser visíveis e demonstráveis como as fases de uma ex- periência científica. Trata-se, em suma, de encontrar a forma da luz e da cor; ou, antes, de apreender a forma ou a estrutura da consciência no interior do fenômeno, dado que não se pode pensar a consciência em abstrato, mas somente no ato de apreender e en- quadrar o fenômeno. Explica-se assim por que o neo-impressionismo, com o seu viés científico, pôde ter uma difusão européia (caso típico, o divisionismo italiano), consti- tuindo o ponto de partida de todas as correntes voltadas para a analítica da visão, como o cubismo e o futurismo A justificação do impressionismo como última conseqüência do imanentismo ro- mântico e suprema vitória das idéias de Delacroix sobre as de Ingres não é mais sustentá- vel, pois, se é verdade que a sensação e a percepção não têm nada de eterno e mudam continuamente, é igualmente verdade que a consciência, revelando-se no fenômeno que enfeixa, demonstra uma atitude, uma estrutura constante. De resto, o surgimento do neo- impressionismo coincide ad annum, ou quase, com o que poderia parecer (mas não é) um retrocesso ou ao menos uma pausa para meditação no desenvolvimento dos mestres do impressionismo: Renoir volta da Itália, onde Rafael o entusiasmou, e confessa encontrar- se num impasse, não conseguindo mais pintar ou desenhar, e a sua vocação clássica, co- mo atesta a excelência de suas obras, não é uma involução sob a inspiração de Ingres, mas a intuição de uma possível justificação clássica do impressionismo. Degas, por sua vez, intensifica as experiências com o desenho, aprofunda a análise da relação movimento- espaço — o seu espaço não é uma categoria a priorí na qual se enquadram os fenôme- nos, e sim a estrutura do próprio fenômeno. Mesmo Monet, que desenvolve com abso- luta coerência as premissas do impressionismo, percebe cada vez mais que a sensação não é somente um fato visual, e que, envolvendo toda a existência, alcança as camadas profundas do sentimento. A pesquisa dos neo-impressionistas é cientificamente rigoro- sa, mas a ciência não é toda a cultura. Os anos posteriores a 1884 são os anos do retiro operoso de Cézanne, e também de suas límpidas e conscientes investigações: ainda uma vez a sensação, ou antes a petite sensation, pois a consciência não é mais que um con- junto de sensações harmonizadas, o espaço está saturado de sensações que se compõem em um contexto e o objeto resulta de uma soma construtiva de sensações. É preciso, certamente, superar o caos sensorial e chegar à clareza absoluta da forma, mas sem per- der nada da experiência sensorial, que constitui o conteúdo da consciência e sem a qual ela não pode existir, desde que a consciência não é mais que o próprio conteúdo. E co- SETEMBRO DE 1987 51
  • 4. AS FONTES DA ARTE MODERNA mo a realidade do homem histórico não se resume à imediatez e à vívacidade das sensa- ções, como as próprias sensações são influenciadas pela experiência passada, recoloca- se — mas em termos de experiência e não de autoridade — a questão da história, de onde o famoso confronto entre Poussin, o mais histórico dos artistas, e a natureza. Se, portanto, é clássica a arte que se propõe a representação de uma concepção positiva do mundo, em sua totalidade espaço-temporal, não resta dúvida de que, com Cézanne, o impressionismo torna-se verdadeiramente clássico. Mas o fato novo importante é que aque- la totalidade espaço-temporal se dá no fenômeno, no modo como a consciência o enfei- xa, e portanto a imagem é sempre, em igual medida, objetiva e subjetiva, imagem de si e do mundo. De resto, a idéia clássica, o interesse pelos conteúdos elevados e profundos, a fé em uma função ideal da arte não foram destruídos pela onda de objetivismo visual dos impressionistas — os últimos decênios do século XIX presenciam o trabalho de artistas que, embora muito distantes das pesquisas sobre os fenômenos da visão, hoje ninguém mais ousaria acusar de obscurantismo e tradicionalismo acadêmico. No mesmo ano em que Seurat pintava La Baignade, Puvis de Chavannes realizava, em Lion, Vision Antique, uma obra cujo rigor literário não é inferior ao rigor científico de Seurat, e disto se aper- ceberá Gauguin e, posteriormente, nos primeiros anos de seu trabalho em Paris, Picasso. O confronto entre as suntuosas fantasias pictóricas de G. Moreau, que será mestre dos fauves, e o Flaubert das Tentações e de Salambô é bastante fácil; como é claro em Monti- celli, que entusiasmará Van Gogh, o desejo de associar uma excitada fantasia poética a uma excitada visão colorística. Embora com pouco sucesso, Carriere tenta o caminho oposto, o da visão imprecisa, desfocada, descolorida, retomando temas patéticos que pareciam abandonados para sempre. Num movimento de sentido contrário, Toulouse- Lautrec, que estudou a fundo o sistema de signos dos impressionistas, transforma a im- pressão visual em impressão mental, e se serve de uma notação rápida e displicente para fazer uma pintura aguda e polemicamente interessada pela vida social de seu tempo. Odilon Redon, que nestes anos sai da sombra e descobre em Mallarmé o seu irmão espiritual, julgava o impressionismo bas de plafond e ao naturalismo sensorial opunha um natura- lismo investigativo, que abria para a fantasia um novo e encantado mundo de imagens poéticas. Afinal, se a arte pode ter um lado científico, voltado para o objeto, pode ter também um lado poético ou literário, preocupado com a compreensão do sujeito, que não pode ser desprezado. Ora, não se pode sustentar, com os Goncourt e depois com L.E. Blanche, que o impressionismo, por suas cores brilhantes e seus resplandecentes efeitos de luz, seja um retorno à melhor tradição do século XVIII francês: um modo rápido e feliz de poser sa touche e diviser les tons. Tampouco o impressionismo é fruto de uma tradição nacional, já que correntes mais ou menos diretamente ligadas ao impressionismo se desenvolve- ram na Alemanha, Inglaterra, Países Baixos, Itália e Estados Unidos, Não há a possibilida- de de uma corrente artística moderna que não leve em conta, mesmo que polemicamen- te, a nova concepção do mundo e do homem, e sobretudo do homem no mundo, que os impressionistas propuseram e, desde então, se procura aprofundar, explicar e levar às últimas conseqüências. 1886 é o ano do simbolismo literário, mas é também o ano da primeira estada de Gauguin na Bretanha, da chegada de Van Gogh a Paris, da edição das Iluminações de Rimbaud. Simbolismo é um conceito que implica a oposição da idéia de imagem à idéia de forma. A forma é sempre uma representação, embora livre e interpretativa, do mundo exterior, e como tal tem sempre um único e preciso significado: de uma paisagem, uma figura ou uma natureza-morta, aquilo que surgirá será sempre um princípio estrutural, um principium individuationis, seja ele o relevo plástico, a luz ou a cor. A imagem pode ter infinitos significados. Uma Nossa Senhora com o Menino Jesus pode representar tam- bém a maternidade ou a salvação do gênero humano, e assim por diante. A forma nasce 52 NOVOS ESTUDOS nº 18
  • 5. sempre de um processo de análise, a imagem, de um processo de síntese — e esta é a descoberta de Gauguin, a figura central do simbolismo pictórico, e a razão de sua oposi- ção à pintura puramente visual de um Monet ou de um Pissarro. Mas tampouco Gauguin pode prescindir da sensação. Ele quer, antes, simplificá-la e exacerbá-la, porque deseja saber o que ela significa, que remotas experiências ressuscita, que envolvimentos com o presente determina a imagem do mundo que se forma na mente. Para ele o quadro não é mais o anteparo em que se projeta uma figura do mundo. Ao contrário, é uma ima- gem autônoma, dotada de existência e poder mágicos, como acontece com as antigas imagens da arte popular ou, para ser mais exato, com as imagens das divindades dos po- vos primitivos. A sensação permanece, até mesmo com muita força. Mas, para o homem que vive de sensações e para o qual o mundo não é mais que um aflitivo e prepotente apelo à sua capacidade de sentir, qual pode ser o valor do sagrado e do mito? É certo, a sensação não o elimina. Como a sensação é realidade plena, e não uma realidade inicial e provisória que tenda a desaparecer para ser esclarecida pelo entendimento, também o sagrado e o mito permanecem ligados, juntamente com a sensação, à nossa carne, e a vida não é mais que um rito, uma evocação contínua das obscuras e profundas razões comuns ao ser humano e ao cosmo. Puvis de Chavannes sonhava com a confluência do mito clássico e do mito cristão em um novo "humanismo". Gauguin aspira a uma nova, eterna barbárie, na qual os mitos, desvencilhados da perspectiva da história, estejam pre- sentes e sejam atuantes na existência física, nas tristes e desenfreadas paixões do homem moderno. É esta uma das razões de sua fuga para o Taiti. Mas não a única. Uma outra causa, e não tanto de sua evasão para as ilhas do Pacífico quanto do surgimento de sua pintura de maiores dimensões, por meio de grandes e serenas extensões de cor, foi a amizade com Van Gogh, à qual se seguiu a certeza de uma incompatibilidade irredutível. De fato, se Gauguin busca desesperadamente, indo além dos limites do conhecimento e da civilização, uma imagem que sintetize uma concepção do mundo e uma concepção do destino humano — Weltanschauung e Lebenswelt — e seja, apesar de tudo, clássica, Van Gogh é aquele que derruba todas as pontes e coloca a arte como puro ato de exis- tência, assumindo a visão do real como expressão de uma condição interior, vinculando-se à mais profunda e autêntica raiz romântica (como prova o seu prolongado estudo de De- lacroix). Gauguin busca o sagrado na natureza das coisas e do homem, ainda que por meios mágicos e não racionais. Van Gogh, que buscara Deus no apostolado religioso e fora rejeitado, sabe que não poderá jamais encontrá-lo e que a natureza será o caminho da queda e não da salvação. A divergência, ou mesmo a antítese, entre a visão dos impressionistas e a de Van Gogh é radical. Cézanne tenta recolocar a arte entre as grandes atividades intelectuais. Já a violência sensorial de Van Gogh é inteiramente negativa e revela somente a impotên- cia e o desespero do homem frente ao real. Mas o destino artístico e humano de Van Gogh é decidido somente quando, em 1886, em Paris, os impressionistas lhe dão a medi- da da realidade, colocando-a diante de seus olhos como um problema intransponível. Até aquele momento ele havia feito uma pintura ideológica, áspera em sua polêmica so- cial; uma pintura escura, na qual a realidade era pouco mais que uma hipótese amarga que incitava a alma à piedade e à revolta. Mas quando a realidade se dá na violência das sensações, quando se vê como a paixão interna pode exacerbar e deformar as sensações, qual poderá ser o destino do homem, o sentido de sua existência? A resposta é trágica. Se a arte é a própria vida, se a vida é o choque impiedoso do eu com o mundo, se o mundo não pode mais ser separado de nós e o nosso esforço para possuí-lo não faz mais que nos restituir a imagem de nossa solidão e desespero, não restam outras saídas senão a loucura ou o suicídio. A mensagem de Van Gogh aos homens de seu tempo — que tinham a ilusão de ter encontrado o caminho da paz e do progresso — é trágica como a de Dostoiévski. Assim como é cínica e amarga, se não trágica, a resposta de um seu contemporâneo belga, Ensor. Semelhante é também a história da sua pintura, pois do SETEMBRO DE 1987 53
  • 6. AS FONTES DA ARTE MODERNA mesmo modo Ensor quer ser um pintor de idéias e é a experiência dos impressionistas que lhe mostra que a realidade é algo de vivo e concreto, em comparação à qual o ho- mem da sociedade moderna, com os seus preconceitos e suas ambições enganosas, não é mais que uma máscara entre o ridículo e o macabro. A insociabilidade nasce em geral de uma aspiração social reprimida, portanto de um problema social. E a questão da sociabílidade da arte, explicitada por Morris e Rus- kin, se desenvolve naquele amplo movimento voltado para a integração total da arte na vida social que é o art nouveau. Trata-se de reencontrar uma harmonia com o mundo da produção, de encontrar na arte, como expressão de um artesanato sublime, um corre- tivo também moral (agora torna-se cada vez mais difícil separar o domínio da estética) à técnica excessivamente mecânica da indústria. Evidentemente, a influência da arte so- bre a produção e, através dela, sobre os costumes e sobre a vida social somente pode efetivar-se com a difusão de um estilo que se desenvolva não apenas na pintura e na es- cultura, mas também na literatura, na música, na arquitetura, no mobiliário, na moda, em suma, em todas as formas que constituem o ambiente que o homem cria em torno de sua própria vida. O movimento dos nabis, no último decênio do século, está em con- sonância com esta exigência natural e tende a sistematizá-la, envolvendo todas as forças vivas da arte moderna em uma finalidade cultural grandiosa, eliminando as contradições, capitalizando mesmo aquelas investigações que se desenvolveram sem nenhum interes- se social, como as de Cézanne, e inclusive as que contrastavam com os ideais da socieda- de moderna, como as investigações de Gauguin e Van Gogh. No plano cultural, a enver- gadura do movimento é enorme: pela primeira vez um movimento artístico tenta formu- lar uma estética válida para todas as artes e para todos os países. Não se nega a importân- cia da sensação; ao contrário, o objetivo é que cada imagem, cada signo artístico envol- va toda a gama das sensações, de modo que a pintura seja também arquitetura, poesia, música. Mas o todo deve compor-se em uma harmonia que suprima qualquer aspereza dramática da existência humana, fundindo-a com a infinitude do criado. Na origem do movimento — pela intermediação de Serusier e da Académie Julian — está Gauguin e a escola de Pont-Aven, e o motivo estilístico dominante é a composição por grandes áreas de cor. Mas o principal interesse desta teoria, claramente formulada por Maurice Denis, é a tentativa de resolver em uma síntese todos os esforços e experiências — mesmo que divergentes — da arte que então já se qualifica abertamente de "moderna". São revalori- zadas tendências que poderiam parecer secundárias (Puvis de Chavannes, Moreau, Re- don); tenta-se o acordo entre posições opostas, como as de Cézanne e Van Gogh; conciliam-se experiências culturais muito diversas, como o classicismo neo-humanístico de Puvis de Chavannes, o neoprimitivismo dos pré-rafaelitas, o gosto pela arte japonesa de Toulouse-Lautrec e Van Gogh; buscam-se "correspondências" entre as várias artes, harmonizando-as em uma poética que deve muito a Mallarmé; tentam-se todas as aplica- ções artísticas — a litografia, os trabalhos em vidro e tecidos; reafirma-se a função deco- rativa como típica função estética e social da arte; espera-se poder dar forma moderna também aos antigos conteúdos religiosos; mas, acima de tudo, todos os artistas moder- nos, não importa de que nacionalidade, se agrupam em torno de um ideal de plena parti- cipação da arte na vida e nos ideais de seu tempo. A partir deste momento, e embora Paris permaneça o centro da cultura artística, será impossível distinguir as correntes em relação às diversas tradições figurativas nacio- nais. Mesmo que atitudes ou conteúdos tradicionais sejam ainda reconhecíveis, todas as correntes insistem em afirmar-se como ideal europeu. Um Hodler é sem dúvida um artista europeu, embora sua pintura, oscilando entre o academicismo e o modernismo, caia muito freqüentemente na evocação retórica da história nacional; europeu é também Munch, mesmo com seu exasperado pathos nórdico apoiado em Ibsen e Strindberg; eu- ropeus são os artistas da escola de Munique, um Corinth ou um Boecklin, assim como o são Segantini, Klimt e, sobretudo, Rodin, que quer alcançar na escultura a imediatez 54 NOVOS ESTUDOS nº 18
  • 7. visual dos impressionistas, associando-a a uma monumentalidade michelangesca. É a fa- se — não totalmente clara mas tampouco totalmente negativa — do cosmopolitismo ar- tístico. Não de todo clara porque não raramente os impulsos renovadores se misturam a um academicismo travestido, não mais temeroso do escândalo e sim de não estar sufi- cientemente à Ia page. Não totalmente negativa porque, naquela tentativa confusa de ex- primir conteúdos já velhos com formas novas, prepara-se uma nova fase de mais lúcida consciência dos problemas. De agora em diante, não se buscará mais um europeísmo genérico, mas a definição das componentes históricas de uma cultura européia. O primeiro decênio do século XX presencia o surgimento simultâneo de duas cor- rentes, o fauvismo e o expressionismo, que têm em comum a premissa histórica do im- pressionismo, mas refletem o contraste de fundo entre cultura francesa e cultura alemã, entre um eterno classicismo e um eterno romantismo. No centro do fauvismo está Matis- se, o artista mais limpidamente clássico do século, o Gide da pintura moderna. E funda- mentalmente clássica é a aspiração dos fauves para resolver, sem resíduos, nas duas di- mensões da superfície, na ressoante vizinhança das áreas de cor, a violência exacerbada das sensações: o fim último, e a pintura de Matisse é a demonstração disto, é ainda uma representação sintética e global do mundo — ou, antes, do universo — ; porque se consi- dera que toda sensação, desde que seja autêntica e preencha verdadeiramente a nossa existência, é mais a experiência do universo como um todo do que de um objeto parti- cular. E não somente do universo como natureza, mas como história — a arte de civiliza- ções remotas e primitivas, a escultura africana, por exemplo, restitui ao homem moder- no aquela integridade vital, aquela profunda unidade do ser individual com o mundo de que as distinções lógicas do racionalismo e a própria estrutura da sociedade o priva- ram. Ela não é mais, como em Gauguin, a evasão da história no mito do primitivo. A arte dos primitivos se insere com plenos direitos na história, torna-se mesmo o paradig- ma da nova classicidade. É através da experiência fauve que Rouault logra restituir um sentido ao termo, já em desuso, de pintura sacra ou religiosa, reencontrando a austeridade, a árida conduta sentimental dos bizantinos e dos românicos. E é também através desta experiência que as esculturas de Modigliani podem reevocar as esculturas negras sem sombra de terror mágico, como perfeitos, clássicos exemplos de estilo. E como explicar, se não por esta via, que um pintor de fim de semana, o Douanier Rousseau, tenha podido atingir uma pureza de estilo que faz da sua pintura um exemplo não tanto de uma agradável ingenui- dade e sim de um nobre arcaísmo? Se nos voltarmos para a qualidade, para o valor da sensação, os expressionistas não estão muito longe dos fauves: é ainda a sensação que define a condição existencial, o ser-no-mundo do homem moderno. Mas aquilo que nos fauves é uma espécie de exal- tação pânica, uma apropriação total da realidade, para os expressionistas — que partem de Van Gogh e Munch — é a irrupção de profundos e convulsivos complexos: aquela visão deformada, aquela sensação exasperada e furiosa, aquele juízo severo sobre as coi- sas do mundo são o produto de antigos terrores, de culpas longínquas e obscuras repres- sões. Podemos dizer — lançando mão de uma distinção proposta por Maurice Denis a respeito dos nabis — que a deformação dos fauves é objetiva, enquanto a dos expressio- nistas é subjetiva. Os fauves não têm preocupações racionais, na própria composição do grupo já encontramos em germe o intemacionalismo da Escola de Paris. Nos expres- sionistas – e Barlach é um exemplo extensivo a todos os outros artistas – há um "germa- nismo" que quer sublimar-se, tornar-se europeu. Por isso a obra dos expressionistas, que recoloca a questão de uma experiência romântica não resolvida, é repleta de ansiedade: de um lado, o problema da visão, que os teóricos da visibilidade colocam em termos rigorosos, de outro o problema religioso e social, a questão do velho artesanato e da arte popular, do primitivo e do moderno. Dos conteúdos ardorosos do grupo Die Bruec- ke se passará diretamente, por sublimação, à abstração formal dos artistas que se reu- SETEMBRO DE 1987 55
  • 8. Novos Estudo* CEBRAP nº 18, setembro 87 pp. 49-56 niam em torno da revista Der blaue Reiter, e não é por acaso que, mediando estes dois movimentos, encontramos um russo, Kandinski. Da parte da cultura francesa, que então podia ser considerada classicamente euro- péia, não havia lugar para as superações por sublimação, quase que por uma inesperada iluminação divina. O historicismo latente sob a ostentada indiferença histórica dos fau- ves impunha a via da experiência e, mais ainda, de uma experiência revolucionária. E, de fato, o cubismo foi e quis ser revolucionário, assim como foram revolucionários o futurismo e todos os movimentos de vanguarda que surgiram às vésperas da I Guerra Mundial. A inexistência de uma contradição de fundo entre a posição dos fauves e a dos cubistas é demonstrada pela passagem de Braque — o mais coerente dos artistas moder- nos — de um movimento para outro, e pela transformação repentina, entre 1907 e 1908, de um famoso quadro de Picasso, Les Demoiselles d’Avignon. Mas o cubismo levanta ex- plicitamente o problema da renúncia à função decorativa, do retorno à analítica da visão e da rigorosa objetividade da forma, da renovação total da linguagem, do sistema dos signos e da técnica — ou seja, retoma o problema da forma e do espaço no ponto em que Cézanne, ao morrer, o tinha deixado. Na obra deste mestre, que justamente os críti- cos alemães tinham estudado nos seus aspectos mais problemáticos, se individua então o fundamento de toda linguagem plástica possível, portanto de toda cultura figurativa possível: somente sobre este fundamento poder-se-á construir uma linguagem objetiva- mente analítica, isenta de determinantes históricas ou tradicionais e concretamente eu- ropéia. E não somente a história não influi na análise da visão, mas, ao contrário, é a história que sofre a sua influência. De modo que, por meio do cubismo, abrem-se novas perspectivas históricas, que trazem à luz valores até então negligenciados, afastando ou- tros, que tinham sido exaltados. As revoluções são sempre o produto de um esprit de géometrie, e todavia são re- voluções, e o espírito revolucionário do cubismo se fez sentir sobretudo nos países que tinham participado menos diretamente dos movimentos europeus de vanguarda. Assim, o futurismo italiano foi certamente um modo de fazer, com atraso e talvez muito às pres- sas, uma experiência incompleta do romantismo e, ao mesmo tempo, de assimilar os úl- timos resultados do impressionismo e do neo-impressionismo. De fato, a pintura de Boc- cioni (e não somente dele) parte do espírito científico do neo-impressionismo, enquanto sua escultura apóia-se na plástica de Medardo Rosso, talvez o único que soube transpor para a escultura a visão imediata do impressionismo, e não como fácil dissolução da su- perfície na luz mas como princípio de uma nova estrutura da forma e do espaço. Mas a esta altura as profundas contradições da cultura e da vida social européia atingiram o limite da tensão e está prestes a eclodir aquele conflito mundial que transfor- maria profundamente a face e o destino da Europa. E a arte moderna, que havia cons- cientemente renunciado ao antigo privilégio da eternidade do belo para percorrer o agi- tado domínio da existência histórica, não poderá escapar à urgência dos novos proble- mas. O cubismo passará da fase analítica à fase sintética, que será um prelúdio das inves- tigações em torno da abstração formal, o futurismo se dissolverá com o esgotamento das suas motivações revolucionárias; novas correntes, como o dadaísmo, defenderão a revogação de toda experiência histórica e de todas as premissas estéticas, e outras, como o De Stijl, formularão os princípios de uma estética primeira, remetendo à constituição originária das idéias de espaço e de forma; a arte "metafísica" e depois o surrealismo tentarão as vias da imaginação e do inconsciente, com um total afastamento da proble- mática da visão fenomênica. O tema da Europa, que já no fim do século XIX era o tema central da arte moderna, ganhará de quando em quando aspectos e interpretações diver- sos. Mas o grande problema da arte moderna, ou seja, o problema de uma presença con- creta e atuante da arte no mundo da vida social, e de uma ativa participação em suas lutas históricas, permanecerá o problema dominante ao menos por toda a primeira me- tade do nosso século. 56 NOVOS ESTUDOS nº 18 AS FONTES DA ARTE MODERNA